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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O golpe dos Trapalhões: gente bronca no comando do país -Maria Cristina Fernandes (Valor)

 MARIA CRISTINA FERNANDES - DECISÃO DE MORAES ATESTA GOLPISMO DE MILITARES DA ATIVA

Valor Econômico

Decisão coloca em xeque as declarações do ministro da Defesa, José Múcio, de que as Forças Armadas “como um todo” não queriam um golpe

A decisão que fundamentou a Operação “Tempus Veritatis” (hora da verdade), da Polícia Federal, atesta a participação, na tentativa de golpe de Estado, de militares da ativa que permaneceram em seus cargos e foram até promovidos pelo atual comando do Exército.

Ao envolver o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, na trama golpista, a operação tem potencial ainda de afetar as eleições municipais. Além de uma minuta do golpe, apreendida no escritório do ex-presidente na sede do PL, ficou evidenciada a relação entre o técnico Élder Balbino, contratado por Valdemar para atestar fraude nas urnas, e Fernando Cerimedo, um dos responsáveis pela difusão de notícias falsas durante a campanha. Valdemar foi preso durante a operação de busca e apreensão, pela posse ilegal de arma e de uma pepita de ouro não registrada.

E, finalmente, ao apreender o passaporte de Jair Bolsonaro, a Polícia Federal indica que o desfecho do inquérito sobre a participação do ex-presidente nos atos golpistas está próximo. Em mensagem de Cid, supostamente ao general Freire Gomes, ex-comandante do Exército, o ex-ajudante de ordens diz que Bolsonaro estava com um decreto, supostamente a minuta golpista, para respaldar participação das Forças Armadas no golpe.

O oficial de mais alta patente arrolado no inquérito é o general Theophilo Gaspar de Oliveira, que hoje está na reserva, mas à época estava à frente do Comando de Operações Terrestres (Coter) e integrava o Alto Comando do Exército. O general permaneceu nesta função até 30 de novembro do ano passado.

A decisão se baseia no vídeo de uma reunião com o ex-presidente, nas informações obtidas da delação de seu ex-ajudante de ordens, Mauro Cid, e no conjunto de mensagens arroladas no inquérito. Nas mensagens de WhatsApp entre Cid e outro coronel, Bernardo Corrêa Neto, o general Theophilo aparece como adesão certa ao golpe, desde que Bolsonaro assinasse a minuta de decreto golpista.

Em outra troca de mensagens, desta vez entre Cid e o próprio general, Theophilo lhe garante que vai falar com o general Julio Cesar Arruda, ex-comandante do Exército, para que uma eventual prisão do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro não se concretizasse. A interação com os golpistas não o inibiu a propor a reunião de vários tropas sob seu comando (operações especiais, artilharia, defesa cibernética e comunicação) ao longo dos 11 meses em que permaneceu em suas funções sob o novo governo. A proposta, confirmada pelo Exército, não chegou a ser acatada pelo Alto Comando.

A decisão do ministro Alexandre de Moraes fundamenta ainda a participação do coronel Bernardo Corrêa Neto, então lotado no Comando Sul, no aliciamento de oficiais para a subscrição da “Carta ao comandante do Exército de oficiais superiores da ativa do Exército brasileiro”. A despeito desta atuação, o coronel foi transferido para o Colégio Interamericano de Defesa, em Washington. A transferência foi assinada em 30/12/2022, segundo a decisão de Moraes, e em 2021, segundo o Exército. No Informex, porém, boletim oficial, a transferência tem como data o “terceiro trimestre de 2023” com permanência de dois anos.

A carta, cuja minuta foi enviada por Corrêa Neto, a Mauro Cid, visava a pressionar o então comandante do Exército, general Freire Gomes, a aderir ao golpe. O coronel cumpria, por delegação de Cid, a tarefa de aliciar oficiais para a empreitada golpista.

Como antecipado pelo Valor, em 21 de setembro de 2022, o almirante Almir Garnier, comandante da Marinha, aderiu incondicionalmente ao golpe, o comandante da Aeronáutica, Carlos Baptista, resistiu, e coube a Freire Gomes, comandante do Exército, se opor abertamente.

O então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, é identificado como um eloquente defensor de um golpe antes das eleições — “Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições”. Diz ainda ter pedido ao diretor-adjunto da Abin, Vitor Carneiro, para infiltrar agentes nas eleições. Neste momento, segundo o relato que consta da decisão, interrompe Heleno e diz que tratarão do assunto “em particular”. A manifestação indica que as ações ilegais moviam a própria Abin e não uma “Abin paralela”.

Nas mensagens reproduzidas constam aquelas que foram trocadas pela rede interna de comunicação do Exército, Una. Apesar disso, o atual comando do Exército informa que não teve conhecimento de nenhuma das informações contidas na decisão e que, por isso, não poderia ter evitado que os oficiais citados tivessem permanecidos em suas funções, fossem promovidos e que transferências determinadas pelo comando anterior fossem efetivadas. A assessoria do general Tomás Paiva informa ainda que há “informações pessoais” na troca de mensagens desta intranet e que, por isso, a rede não é monitorada pelo Centro de Informações do Exército.

O tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira, encarregado por Cid de dar apoio logístico ao acampamento golpista em frente ao QG do Exército e ao deslocamento de golpistas, foi promovido já sob o atual comando. Desde o fim do segundo turno de 2022, a troca de informações entre os dois girou em torno do apoio para a realização de manifestações cujos alvos seriam o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. “O que demonstra que os protestos convocados não se originavam da mobilização popular, mas, sim, da arregimentação e do suporte direto do grupo ligado ao então presidente Jair Bolsonaro”, diz a decisão. É assim que Moraes contesta a linha de defesa militar de que a conivência com os acampamentos visava a não se contrapor a “manifestações populares”.

O ex-ministro da Casa Civil general Braga Netto tem mensagens de WhatsApp em que critica com termos de baixo calão os ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica. A decisão reproduz suas queixas contra o atual comandante do Exército, general Tomás Paiva. Em mensagem por WhatsApp, Braga Netto dá conta de uma visita do general ao ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas e diz que ele, Tomás Paiva, tem se insurgido contra as atividades golpistas de Theophilo e do ex-ministro da Defesa, Paulo Sérgio Oliveira — “nunca valeu nada”.

A decisão coloca em xeque as declarações do ministro da Defesa, José Múcio, de que os acampamentos em frente ao quartel general do Exército eram democráticos e que as Forças Armadas “como um todo” não queriam um golpe. O despacho do ministro Alexandre de Moraes ainda evidencia que esta omissão em relação ao acampamento em frente ao QG era parte do planejamento dos atos de 8/1.

Passados 13 meses dos atos golpistas, 1.430 pessoas foram presas e 28 já foram condenadas. Enquanto isso, o Exército abriu quatro Inquéritos Policiais Militares e quatro processos administrativos até aqui, mas nenhum crime foi admitido. O Exército puniu dois militares de baixa patente por infração disciplinar.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Marcos Troyjo: *Um Brasil mais leve para a concorrência global* - Assis Moreira (Valor)

 Um Brasil mais leve para a concorrência global

O Brasil precisa ficar mais ágil na corrida com os outros países nesse universo da neoindustrialização e incertezas geopolíticas.

Assis Moreira, de Genebra

Valor Econômico04/01/2024  


Após deixar em março a presidência do Novo Banco do Desenvolvimento (NDB), o Banco do Brics, para dar lugar à Dilma Rousseff, Marcos Troyjo passou a lecionar na Universidade de Oxford, na cátedra antes ocupada por Iván Duque, ex-presidente da Colômbia, e também no Insead (França). Nesse período, ele visitou 18 países em contatos com autoridades, investidores e acadêmicos, e os questionamentos sobre o Brasil foram inevitáveis.

Para Troyjo, a convergência de crises atualizou a noção de policrise, com a pandemia mais grave que o mundo experimentou desde a gripe espanhola, depois a situação geopolítica mais delicada na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, e uma economia mundial que ainda não se recuperou na esteira de frouxidão fiscal e monetária que levou o centro macroeconômico mundial a fortes turbulências inflacionárias.

Essa situação acaba sendo muito exacerbada porque vem acompanhada de aumento do protecionismo no mundo, do que ele chama de recessão da globalização. Sua análise é de que a globalização não parou, mas há menos fluxos de mercadorias e capitais do que há 20 anos, e isso acaba por se converter em força de pressão inflacionária.

Olhando pela ótica do Brasil, Troyjo considera que esse é um cenário perigoso, mas que traz também muitas oportunidades para o país. Ele destaca a questão demográfica. Nota que nos próximos 25 anos a população mundial vai saltar de 8 bilhões para 10 bilhões de habitantes. Observa que no ano em que Jesus Cristo nasceu a população mundial era estimada em 150 milhões de habitantes. E calcula que nos próximos 25 anos teremos o mesmo acúmulo de população ocorrido em 1.929 anos. É como se enormes naves descessem na Terra trazendo uma nova Rússia, depois outro EUA, com 350 milhões de pessoas, e uma nave bem maior que deposita uma nova China com 1,5 bilhão de pessoas. É muita gente.

As características de aumento populacional ficam mais positivas para as grandes economias emergentes, com o maior potencial do que no caso do G7 industrializado (EUA, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Itália, Canadá). A expectativa é de a Índia crescer em média 5% ao ano, a Indonésia, 6%, e a China, por volta de 4%, a partir de renda per capita ainda baixas. E quando vão crescer num intervalo tão curto, a tendência é que essas rendas adicionais sejam direcionadas a alimentos, energia e infraestrutura.

Significa que o mundo terá de responder à pergunta de onde virão os alimentos, energia e insumos, também para fortalecer a economia verde. E o que Troyjo repete no exterior é que o Brasil tem resposta para isso: é um dos quatro maiores produtores mundiais de alimentos, é o país que tem o mais facilmente renovável estoque de acesso a recursos hídricos, por exemplo. Em comparação, se o chinês tomar um copo de água a mais por dia, a zona desértica do mundo chega à periferia de Pequim. Na Índia, de 10 litros de água, 8,5 vão para agricultura, o que mostra uma situação de esgotamento. EUA e Europa também têm recursos limitados. Quem tem esses recursos abundantes é o Brasil.

Portanto, esse crescimento populacional brutal é promissor para o Brasil nesse jogo. Haverá inevitavelmente maior participação das exportações brasileiras no PIB. O trem já saiu da estação, e não apenas do ponto de vista comercial, mas também infraestrutural.

Existe o discurso de que no Brasil as empresas do agro e energia são muito boas da porteira para dentro, mas enfrentam dificuldades da porteira para fora. Ocorre que, quando o mundo tem problemas de segurança enérgica e alimentar, as dificuldades brasileiras são problema global. Para Troyjo, daí uma parte da explicação para o nível persistente de Investimento Estrangeiro Direto (IED) para o país.

A doutrina do que ele chama de geoeconosegurança beneficia o Brasil na prática. Mas a concorrência é fortíssima. O capital humano é essencial nesse jogo. Hoje, o México forma mais engenheiros por ano que os EUA, e isso o torna um polo de atração, exemplifica o ex-presidente do Banco do Brics. Ou seja, o Brasil precisa ajustar as prioridades, para extrair o máximo de benefícios como protagonista comercial em alimentos, energia e como destino de investimentos.

Para Troyjo, o Brasil precisa ficar mais leve na corrida com os outros países nesse universo da neoindustrialização e incertezas geopolíticas. Antes, se falava que o mundo era plano, no qual a maioria dos concorrentes, com exceção da mão de obra, teria oportunidades iguais. Agora o mundo, ainda mais com inteligência artificial, está ficando muito mais rápido. Ele pergunta: nesse cenário, quem vai atrair mais IED, país com carga tributária de 20% ou de 35% do Produto Interno Bruto (PIB)? Quem tem Banco Central independente ou vinculado a objetivos políticos? Quem trata as empresas públicas pela lógica da eficiência ou quem vai transformá-las em departamento de fisiologia política? Quem fica mais leve é quem está sempre trabalhando para melhorar o país no ambiente de negócios ou quem acha que isso não é importante?

Assis Moreira é correspondente em Genebra e escreve quinzenalmente

E-mail: assis.moreira@valor.com.br

https://valor.globo.com/google/amp/brasil/coluna/um-brasil-mais-leve-para-a-concorrencia-global.ghtml

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Os melhores livros de economia de 2023, segundo Martin Wolf - Financial Times, Valor

Os melhores livros de economia de 2023, segundo Martin Wolf 

Financial Times

 

História do capitalismo, 'Chicago boys' e economia da China estão entre os temas das obras selecionadas 

Liberalismo, história do capitalismo, 'Chicago boys' e economia da China são alguns dos temas abordados pelos livros de economia do ano, segundo o comentarista-chefe do jornal britânico Financial Times, Martin Wolf.

Veja abaixo as obras sugeridas, seguidas pelos comentários do colunista.

 

Plunder: Private Equity’s Plan to Pillage America

[Pilhagem: O Plano do Private Equity para Saquear os Estados Unidos]

por Brendan Ballou, PublicAffairs, 368 pp., R$ 251 e R$ 48,58 (ebook)

Sempre houve duas maneiras de ganhar dinheiro: criação de valor e pilhagem. Uma boa sociedade é aquela em que a primeira supera a última. Neste livro poderosamente argumentado, Ballou, atualmente na divisão antitruste do Departamento de Justiça dos EUA, insiste que os retornos dos investimentos em private equity derivam em grande parte da pilhagem. Isso é particularmente provável onde esses lucros são obtidos às custas dos impotentes —prisioneiros, pacientes ou idosos. Dados os incentivos, os resultados que ele descreve parecem inevitáveis.

 

Digital Empires: The Global Battle to Regulate Technology

[Impérios Digitais: A Batalha Global para Regular a Tecnologia]

por Anu Bradford, Oxford University Press, 607 pp., R$ 131,27 (ebook)

A chegada da economia digital, agora acelerada pelo surgimento da inteligência artificial, inevitavelmente —e corretamente— criou uma resposta política e regulatória. Neste livro abrangente e importante, Bradford, da Faculdade de Direito de Columbia, esclarece as abordagens contrastantes da China, dos EUA e da UE. Ela observa que os dois últimos confrontam a China, "em nome de salvar a democracia da autocracia". Mas há uma batalha para salvar a democracia do poder da tecnologia desenfreada também. Este é crucial: trata-se de saber se a tecnologia controla a democracia ou a democracia controla a tecnologia.

 

A Crash Course on Crises: Macroeconomic Concepts for Run-ups, Collapses, and Recoveries

[Curso Intensivo sobre Crises: Conceitos Macroeconômicos para Crescimentos, Colapsos e Recuperações]

por Markus Brunnermeier e Ricardo Reis, Princeton University Press, 136 pp., R$ 188,72 e R$ 171 (ebook)

"As economias às vezes passam por crises macrofinanceiras." De fato, elas passam, como aprendemos dolorosamente nas últimas décadas. Neste excelente e felizmente breve livro, dois estudiosos renomados atualizam estudantes e profissionais ocupados sobre o melhor pensamento sobre como essas crises se originam e se desenrolam e como os formuladores de políticas precisam responder. Um guia valioso para aqueles que precisam entender o que a economia contemporânea tem a dizer sobre esse tópico vital.

 

Economics in America: An Immigrant Economist Explores the Land of Inequality

[Economia nos EUA: Um Economista Imigrante Explora a Terra da Desigualdade]

por Angus Deaton, Princeton University Press, 280 pp., R$ 171,25 e R$ 84,99 (ebook)

Deaton, vencedor do prêmio Nobel, é também um imigrante nos EUA. Neste livro altamente agradável de ensaios, ele se concentra principalmente no país em que agora vive. Ele também condena a ajuda internacional. Isso é surpreendente e também muito amplo. No entanto, Deaton emerge do livro como um ser humano decente que deseja tornar o mundo um lugar melhor. Infelizmente, ele também chegou à conclusão de que a economia e os economistas não são tão bons nisso quanto ele gostaria.

 

The Chile Project: The Story of the Chicago Boys and the Downfall of Neoliberalism

[O Projeto Chile: A História dos Chicago Boys e a Queda do Neoliberalismo]

por Sebastián Edwards, Princeton University Press, 376 pp., R$ 132 e R$ 108,99 (ebook)

"A história das reformas de livre mercado no Chile pode ser resumida em duas palavras: sucesso e negligência." Assim resume Edwards, ele mesmo de origem chilena, o resultado deste "experimento". Essas reformas tiveram origem na ditadura, tornaram o Chile "em uma geração a estrela mais brilhante da América Latina", pelo menos economicamente, e, de forma um tanto surpreendente, sobreviveram à transição para a democracia e finalmente naufragaram em reação popular contra a desigualdade e injustiças percebidas. Edwards conta essa história complexa e controversa de forma excelente.

 

The Eight Per Cent Solution: A Strategy for India's Growth

[A Solução de Oito Por Cento: Uma Estratégia para o Crescimento da Índia]

por Nikhil Gupta, Bloomsbury, 400 pp., R$ 231,23 e R$ 48,79 (ebook)

Este é um livro excepcional. O autor, economista-chefe da Motilal Oswal Financial Services, explica e aplica a abordagem dos "saldos setoriais" à economia indiana. Essa análise ilumina a fraca posição financeira e a deterioração das economias das famílias e, mais recentemente, também do setor corporativo de capital fechado. Diante da provável fraqueza do consumo das famílias, dos gastos do governo e das exportações, há pouca chance de um boom desejado nos investimentos. O equilíbrio desta década deve ser, argumenta ele, um tempo de cura, antes que o crescimento possa acelerar.

 

Legacy: How to Build the Sustainable Economy

[Legado: Como Construir a Economia Sustentável]

por Dieter Helm, Cambridge University Press, 265 pp., R$ 245 e R$ 50,42 (ebook)

Helm, da Universidade de Oxford, apresenta um caso apaixonado para a transição para uma economia sustentável com base no princípio de que cada geração lega um estoque de capital —físico e, muito mais importante, natural— tão bom quanto o que herdou. Para tornar essa abordagem operacional, devemos abraçar as ideias gêmeas de "quem polui paga" e o "princípio da precaução". Helm argumenta que a implementação dessas ideias requer um conceito de cidadania. Infelizmente, os desafios de fazer essa ideia funcionar globalmente são assustadores.

 

The Trade Weapon: How Weaponizing Trade Threatens Growth, Public Health and the Climate Transition

[A Arma do Comércio: Como a Arma do Comércio Ameaça o Crescimento, a Saúde Pública e a Transição Climática]

por Ken Heydon, Polity, 204 pp., R$ 49,06 (ebook)

O comércio se tornou uma arma. Heydon, ex-funcionário do comércio australiano, argumenta que essa abordagem —na forma de sanções comerciais, busca de autossuficiência nas cadeias de valor, uso de medidas comerciais em nome da "segurança nacional" e restrição de importações necessárias para a transição climática— é "prejudicial para a economia mundial, pois diminui e distorce os benefícios do fluxo internacional de bens e serviços". Um livro corajoso e necessário.

 

Seven Crashes: The Economic Crises That Shaped Globalization

[Sete Crashes: As Crises Econômicas Que Moldaram a Globalização]

por Harold James, Yale, 376 pp., R$ 296 e R$ 157,73 (ebook)

Neste fascinante livro, James, um renomado historiador de economias e políticas econômicas, analisa o impacto de sete crises econômicas na história da globalização: as fomes da década de 1840, a crise financeira de 1873, a Primeira Guerra Mundial e as hiperinflações subsequentes de 1914-23, a Grande Depressão dos anos 1930, a inflação dos anos 1970, a Grande Recessão de 2008 e os lockdowns de 2020-22. Sua conclusão surpreendente é que os choques de oferta promovem a globalização, enquanto os choques de demanda a inibem.

 

Freedom from Fear: An Incomplete History of Liberalism

[Liberdade a partir do Medo: Uma História Incompleta do Liberalismo]

por Alan Kahan, Princeton University Press, 528 pp., R$ 424 e R$ 228,58 (ebook)

As raízes tanto da economia de mercado quanto do estado democrático estão no liberalismo. Neste livro notável, Kahan narra em detalhes persuasivos a história desse conjunto transformador de ideias. Hoje, como frequentemente antes, o liberalismo enfrenta inimigos, essencialmente porque "o projeto liberal de criar uma sociedade onde ninguém precise ter medo assusta aqueles que pensam que algumas pessoas e/ou alguns grupos devem ter medo." Os liberais não podem ceder nisso. Mas, ele sugere, eles devem adicionar um pilar moral/religioso aos seus pilares políticos e econômicos mais tradicionais.

 

Ours Was the Shining Future: The Story of the American Dream

[Nosso Futuro Foi Brilhante: A Ascensão e Queda do Sonho Americano]

por David Leonhardt, Riverrun/Random House, 528 pp., R$ 139,34 e R$ 50,10 (ebook)

Leonhardt demonstra o fracasso do capitalismo americano em gerar prosperidade amplamente compartilhada desde 1980, rotulando isso como a "Grande Estagnação Americana". A história não é apenas econômica. A expectativa de vida, por exemplo, ficou bem abaixo dos níveis de outros países de alta renda, enquanto a expectativa de vida daqueles que não foram para a universidade realmente diminuiu. Leonhardt, um escritor sênior do The New York Times, dá vida a essas realidades. Em parte como resultado das tendências que ele descreve, a democracia americana está em risco. Este é um livro importante.

 

Visions of Inequality: From the French Revolution to the End of the Cold War

[Visões da Desigualdade: Da Revolução Francesa ao Fim da Guerra Fria]

por Branko Milanovic, Belknap Press, 368 pp., R$ 213,42 e R$ 159,92 (ebook)

A desigualdade está de volta, como um tópico político e como foco de estudo. Neste livro fascinante, Milanovic, um dos estudiosos mais influentes do mundo sobre desigualdade, examina o que os principais economistas do passado tinham a dizer sobre essa questão. Ele passa de Quesnay a Kuznets, passando por Smith, Ricardo, Marx e Pareto. No final, ele analisa o trabalho de Thomas Piketty. Hoje, ele argumenta, temos mais teorias, mais dados e um foco mais amplo tanto na desigualdade nacional quanto global. Também temos mais preocupação. O campo está em pleno crescimento.

 

The Capitalist Manifesto: Why the Global Free Market Will Save the World

[O Manifesto Capitalista: Por Que o Livre Mercado Global Salvará o Mundo]

por Johan Norberg, Atlantic, 304 pp., R$ 265 e R$ 53,49 (ebook)

Norberg é talvez o defensor mais eficaz do capitalismo de livre mercado do mundo. Neste livro, ele retorna ao tema de que "liberdade de escolha e competição" são os motores do progresso econômico. Ele está, é claro, correto. Além disso, a evidência também mostra que sociedades mais prósperas são, em geral, mais felizes. No entanto, o que ele diz está longe de ser totalmente verdadeiro. Não apenas as bases sociais e políticas dos mercados livres são difíceis de construir, mas suas consequências sociais e políticas podem ser prejudiciais: o capitalismo é bom; o capitalismo desenfreado não é.

 

My Journeys in Economic Theory

[Minhas Jornadas na Teoria Econômica]

por Edmund Phelps, Columbia University Press, 248 pp., R$ 242,98 e R$ 98,90 (ebook)

Neste adorável livro, Phelps, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, descreve sua jornada de criatividade intelectual. Ele é famoso por sua contribuição, junto com Milton Friedman, para a ideia da "taxa natural" de desemprego. Posteriormente, ele se envolveu em ideias de justiça econômica encabeçadas pelo filósofo John Rawls e, assim, recomendou subsídios salariais. Mais recentemente, ele se concentrou na ideia de que o progresso econômico é o fruto da criatividade dispersa. Sociedades que incentivam isso alcançam um "florescimento em massa"; mas aquelas que não o fazem, não.

 

Making Sense of China’s Economy

[Compreendendo a Economia da China]

por Tao Wang, Routledge, 295 pp., R$ 349,99 e R$ 160,34 (ebook)

Este é um livro indispensável para aqueles que tentam entender a economia chinesa. A autora cresceu na China continental e atualmente é economista-chefe da China no banco de investimentos UBS em Hong Kong. Sua análise é bem informada e penetrante. Ela conclui que a taxa de crescimento anual da China provavelmente ficará entre 4% e 4,5% entre 2021 e 2030, uma queda acentuada em relação aos 8% alcançados de 2010 a 2019. Mas pode até ser tão baixa quanto 3%, à medida que as restrições domésticas e externas interagem. É muito improvável que ultrapasse 5%.

 

Revitalizing the World Trading System

[Revitalizando o Sistema de Comércio Mundial]

por Alan Wolff, Cambridge University Press, 588 pp., R$ 471,38 e R$ 194,59 (ebook)

Wolff, ex-vice-diretor-geral da OMC (Organização Mundial do Comércio), escreveu o guia definitivo sobre o passado, presente e possível futuro do sistema multilateral de comércio. Surpreendentemente, dada a crescente hostilidade à OMC e ao comércio em si nos EUA, seu próprio país, e a falta de apoio entusiasmado em outros lugares, especialmente da China e da UE, ele é otimista: "A autarquia não pode ser alcançada... Não pode haver desacoplamento das principais economias, exceto a um custo inaceitavelmente alto." A OMC é o único lugar onde a cooperação internacional necessária pode ser sustentada, porque ela, assim como o comércio em si, é global.

 

Age of the City: Why Our Future Will Be Won or Lost Together

[Era da Cidade: Por que Nosso Futuro Será Ganho ou Perdido Juntos]

por Ian Goldin e Tom Lee-Devlin, Bloomsbury Continuum, 256 pp., R$ 223 e R$ 94 (ebook)

"Em 1800", observam Goldin, de Oxford, e Lee-Devlin, do The Economist, "havia 1 bilhão de seres humanos compartilhando nosso planeta, aproximadamente 70 milhões dos quais habitavam cidades. Hoje, a população global é de 8 bilhões, com mais de 4,5 bilhões de pessoas vivendo em cidades." Isso representa um aumento de 6.300% na população urbana do mundo. Até o final deste século, a população urbana pode ter dobrado novamente. As cidades são, sem dúvida, nossa criação mais extraordinária. Elas são fontes de criatividade deslumbrante. Também são lugares de imensa desigualdade. Este livro fascinante explica os desafios que elas representam e o que precisa ser feito para torná-las melhores para todos os seus habitantes.

 

Techno-Feudalism: What Killed Capitalism

[Tecnofeudalismo: O que Matou o Capitalismo]

por Yanis Varoufakis, Vintage, 287 pp., R$ 260 e R$ 112,19 (ebook)

Varoufakis é uma notável combinação de analista e sonhador. Neste livro, o ex-ministro das Finanças grego afirma que algo novo, que ele chama de "tecnofeudalismo", substituiu a economia capitalista tradicional. Nesta nova economia, os grandes monopólios de tecnologia, proprietários onipresentes da "nuvem", são vistos como senhores feudais, cobrando de todos nós "aluguéis da nuvem" pelo direito de acessar o que eles possuem. Certamente, isso não está completamente errado. Se suas propostas para transformar esse novo sistema em uma utopia moderna fazem sentido é outra questão. Mas, como sempre, Varoufakis faz seus leitores pensarem. Isso é uma conquista importante.

 

quarta-feira, 24 de maio de 2023

A Argentina precisa desesperadamente do apoio do Brasil: entrevista com o embaixador Daniel Scioli (Valor)

 ‘Argentina pode superar a crise com ajuda do Brasil’, diz pré-candidato à presidência

Embaixador argentino em Brasília, peronista Daniel Scioli fala de voto, inflação e cooperação
Por Marcos de Moura Souza, Valor — São Paulo
23/05/2023 20h57 

O embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli, está em campanha para tentar emplacar seu nome como candidato governista nas eleições presidenciais de outubro. As primárias — etapa na qual os eleitores votam nos nomes que efetivamente disputarão a eleição — se realizarão em 13 de agosto.

No bloco governista, a Frente de Todos, foi o primeiro a se colocar como pré-candidato. Outros se movem, de forma mais aberta ou cautelosa, para tentar a vaga. Entre eles, o ministro do Interior, Eduardo de Pedro e o chefe de Gabinete do atual governo, Agustín Rossi. O ministro da Economia, Sergio Massa, não se lançou, mas é visto também como presidenciável. Scioli é um veterano da política e o nome, entre os quatro, que os eleitores conhecem há mais tempo.

Em entrevista ao Valor, ele descarta reformas estruturais ou corte de gastos, como defendem muitos economistas, para estabilizar a economia de seu país, que sofre com uma inflação de mais de 100%. Aposta em um cenário otimista de supersafra em 2024, com a expectativa de fim da prolongada seca, e no início das operações de um novo gasoduto, que, numa primeira fase, atenderá à demanda interna do país e, numa segunda fase, permitirá exportações para o Chile e para o Brasil.

Scioli vê nesses dois elementos o início de uma virada de página na atual crise argentina. Mas até que isso ocorra, diz ele, seu país precisa da ajuda do Brasil.

Scioli foi vice-presidente da Argentina no governo Néstor Kirchner (2003-2007), governador da Província de Buenos Aires (2007-2015) e candidato a presidente derrotado por estreita margem de votos e 2015. Desde 2019 é embaixador no Brasil.

Como pré-candidato governista, sua tarefa não é fácil dada a baixíssima popularidade do governo de Alberto Fernández.

Aos 66 anos, Scioli se apresenta como uma voz sensata e moderada para enfrentar os candidatos da oposição. Um deles, o economista e deputado Javier Milei, que faz sucesso entre uma faixa de eleitores pregando, entre outras ideias, o fim do peso e a adoção do dólar como moeda nacional. A seguir os principais trechos da entrevista:

Valor: A Argentina vive um momento de rápida deterioração das expectativas em relação a inflação e câmbio, além de as reservas estarem dilapidadas. O que é possível fazer para estabilizar a economia neste momento?
Daniel Scioli: Desenvolvê-la, colocar todo o esforço no desenvolvimento produtivo, impulsionar setores estratégicos, como energia, mineração, a economia do conhecimento, do turismo, que ajudam a fortalecer nossas reservas. E há a perspectiva de que em 2024 teremos uma safra recorde. O agronegócio, setor tão importante para a economia argentina, foi afetado por uma seca histórica que reduziu em US$ 20 bilhões o que a Argentina tinha previsto para este ano. E isso afetou muito fortemente as reservas. Trouxe consequências para o conjunto da economia. Por isso com nossa aliança estratégica com o Brasil estamos trabalhando em um marco de cooperação e de complementação para passarmos esse momento.

Valor: Que medidas o Brasil poderia adotar para ajudar a Argentina a administrar esse quadro?
Scioli: Há uma demanda de empresários brasileiros que exportam para a Argentina para que o Brasil possa encontrar mecanismos para aumentar o comércio bilateral. A Argentina não veio aqui [no último encontro entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Fernández em maio, em Brasília] pedir dinheiro. Veio apresentar uma situação relacionada à seca, somada aos impactos da guerra no aumento dos preços da energia. E para atravessar este momento seria muito importante que o Brasil, através de todas essas reuniões periódicas entre as autoridades, com o ministro Haddad, com vice-presidente Alckmin, com BNDES, com a própria Dilma Rousseff, conseguisse algumas garantias para ajudar a indústria brasileira que abastece a indústria argentina de insumos, matéria-prima e auto-peças.

Valor: Esse, na sua visão, é um dos pontos centrais? Mais disponibilidade de financiamento?
Scioli: Sim, para que o problema conjuntural com a seca na Argentina, que não tem dólares de forma imediata para importar, possa, através de financiamento de entidades brasileiras a suas empresas, conseguir que o comércio bilateral não seja interrompido. E isso por alguns meses e nada mais. Porque a Argentina tem projetada uma safra recorde, um superávit energético quando o gasoduto for concluído; um superávit muito importante relacionado às exportações de minerais estratégicos, como o lítio e o cobre; uma entrada de dólares também muito importante na economia do conhecimento.

Valor: As conversas com o Brasil estão avançando?
Scioli: Acredito que estamos muito próximos. Porque no acordo que foi firmado em janeiro, que é um plano de governo binacional, com interesses mútuos, houve avanço em todos os objetivos.

Valor: Financiar empresas que exportam para a Argentina enfrenta críticas no Brasil. Teme-se que as empresas brasileiras não recebam na Argentina e, consequentemente, não teriam como saldar o financiamento concedido a elas pelo Brasil. Há razão para esse temor?
Scioli: Não há nenhum risco. A Argentina tem uma situação conjuntural por esse fenômeno da seca. Mas todos os especialistas confirmam que no ano que vem teremos uma safra recorde. E a situação que tivemos neste ano e no ano passado, de ter de importar gás, será revertida e vamos passar a exportar. E apesar de tudo o que houve, estamos aumentando o comércio bilateral em mais de 25% em relação ao ano passado — a Argentina importando do Brasil— em um setor estratégico que é o automobilístico. Portanto, não há absolutamente nenhum risco porque a Argentina é um país que tem toda a condição para poder superar essa situação conjuntural. Veja o que está acontecendo no comércio bilateral com a China. China facilitou para que se possa pagar com yuan as importações da Argentina de empresas chinesas. Como defendo a integração, o nosso comércio bilateral, nossa aliança estratégica, estamos buscando mecanismos para que o Brasil não perca o mercado argentino para a China. Porque como as exportações vêm com financiamento da China, isso dá a ela uma vantagem. Vemos como muito mais natural [o comércio com o Brasil], estratégico, porque o Brasil é nosso principal sócio comercial e mais de 50% das exportações são de origem industrial. Então que se encontre uma fórmula, e será encontrada não tenho nenhuma dúvida.

Valor: Em quais setores empresas chinesas estão ampliando sua presença na Argentina, deslocando as empresas brasileiras?
Scioli: Podem ser calçados, têxteis. Também setores de autopeças, de pneus, químicos, insumos petroquímicos. Até no gasoduto. Porque há a possibilidade de a China fornecer os tubos com financiamento. A primeira etapa do gasoduto fizemos com tubos fabricados no Brasil. E se o grande beneficiário, quando a segunda etapa do gasoduto for concretizada daqui a um ano, vai ser o Brasil [fará sentido] que os tubos [desta segunda etapa] sejam fabricados no Brasil.

Valor: Voltando à crise da economia. Para além desse cenário otimista que o senhor apresenta pós-seca, com o novo gasoduto, o que o futuro governo precisará fazer para baixar a inflação?
Scioli: Vamos falar um pouco do cenário político argentino. Aqui há três caminhos. Os que propõem a dolarização; os que dizem que vão fazer o mesmo, só que mais rápido, que são aqueles que fizeram a Argentina voltar ao FMI com um hiperendividamento em dólares; e os que [como nós] estão convencidos que com desenvolvimento, crescimento, equilíbrio fiscal — não por meio de mais ajustes e mais sofrimento, mas, sim, por meio da expansão produtiva — serão geradas as condições para reverter essa situação. [...] O grande desafio é baixar a inflação e aumentar os salários porque a inflação afeta os salários. Não solucionaremos isso dolarizando a economia ou eliminando o BC, como defendem alguns, ou taxando a educação, a saúde ou tirando direitos dos trabalhadores.

Existem múltiplas causas para a inflação, não é só seca. Há também o impacto da guerra, que gerou aumento no preço da energia e a Argentina teve que importar gás. Houve também uma ajuda por parte do governo durante a pandemia que mudou o planejamento fiscal. Durante a pandemia a Argentina adotou medidas ativas para que nenhuma empresa fechasse suas portas. Então, com respeito ao futuro, a Argentina tem como encarar os seus desafios por isso estou convencido de que a alternativa segura será eleita de uma forma soberana — um nacionalismo moderno, de integração inteligente com o mundo, de industrializar e gerar valor com a economia do conhecimento, com a nossa matéria-prima. [A saída] não é a dolarização, nem mais ajuste que a sociedade não suporta nem mais endividamento. Não temos que pedir nem um dólar mais ao FMI. Temos que planejar e encarar o futuro expandindo nossos recursos aumentando as exportações.

Valor: O ministro Sérgio Massa tem feito gestões para adiantar os desembolsos do FMI. O senhor defende essa demanda e por que o Fundo aceitaria isso?
Scioli: Porque no acordo que foi firmado, o artigo 11 diz que qualquer acontecimento extraordinário seria possível rever metas e outros aspectos. E o que o ministro Massa está pedindo é que se considere essa nova situação.

Valor: Governo e oposição ainda não definiram seus candidatos. Enquanto isso, o candidato Javier Milei avança numa fatia importante do eleitorado? A indefinição dos concorrentes ajuda Milei?
Scioli: Na Argentina existe uma lei que são as primárias que eu defendo e decidi participar delas para que democraticamente a sociedade argentina escolha os melhores candidatos. No caso dessa força política que se chama Libertad Avanza, tem um só candidato que é Milei, com suas ideias e seu programa de governo. E as pessoas, como estão com raiva, encontraram nele um candidato para expressar essa inconformidade com a política. Mas eu espero que as pessoas votem com esperança em um país melhor e não com raiva, que é razoável que as pessoas tenham. Existe uma alternativa que é muito mais razoável e sensata de progresso, de desenvolvimento do país, de soberania, que tem a ver com essas ideias que eu fiz referência. O caminho não é dolarizar a economia e perder a nossa soberania enquanto política monetária expansiva de crédito, de fortalecimento da moeda que nos permite enfrentar esses desafios que temos.

Valor: Como o senhor espera que as pessoas votem com esperança em um candidato de um governo impopular que deixa uma inflação de mais de 100%?
Scioli: Porque as pessoas sabem escolher uma pessoa com mais experiência. Fui governador, vice-presidente, ministro, secretário de Turismo e de Esportes e comandei esse trabalho de reconstrução na relação com o Brasil, que começou no ano passado e tem produzido um grande impacto. Um trabalho que começou no ano passado com o governo com uma diferença ideológica e política notável e que agora está avançando na concretização de uma aliança e um acordo de integração profundos. [...] Agora, começou uma etapa de reindustrialização da Argentina, a finalização da obra binacional mais importante da história que é o gasoduto, o marco para investimentos na área de mineração, obras de infraestrutura. Então, sobre isso o desafio é construir um país melhor e atacar de forma urgente a maior preocupação que a sociedade argentina tem que é a inflação e a recuperação dos salários.

Valor: Em um dos vídeos nas suas redes sociais, o senhor destaca que a experiência como embaixador no Brasil lhe deu ideias renovadas. Efetivamente, de que maneira a experiência em Brasília lhe ajuda em uma possível candidatura à presidência e em um possível governo?Scioli: Eu insisto na globalização da região e para encarar mais rápido a recuperação [é preciso] integração com Brasil, que seja benéfica para os dois países. Vamos poder expandir o crescimento, que é de onde vem a solução de fundo de um país. Todos os programas sociais, de emergência tem que envolver o trabalho e isso se consegue de mãos dadas com educação. O Brasil me deu e me dá a experiência a importância da Integração energética, da infraestrutura, de energias alternativas, no foco no agronegócio, no compromisso que existe nesse programa de neoindustrialização buscando em todos os setores produtivos uma melhora na competitividade na produtividade, o que está se fazendo aqui em matéria de simplificação e redução de imposto para melhorar a competitividade melhor crescimento estes pontos entre outros.

Valor: Em janeiro o presidente Lula e presidente Alberto Fernández falaram sobre o interesse em discutir uma moeda comum não necessariamente para substituir o peso e o Real mas para que fosse usada nas transações comerciais o senhor se manifestou positivamente sobre essas ideias de que maneira na sua avaliação isso poderia ajudar a Argentina?
Scioli: Esse é um objetivo de longo prazos que não depende apenas da vontade apenas de Brasil e da Argentina (...) Isso depende de articulação e acordos entre os nossos países. Hoje existem caminhos imediatos intermediários, por exemplo potencializar o pagamento com moedas locais, no caso real ou peso argentino. Ou como no caso da China o caso dos yuan e isso vai no caminho do que dizia antes: é preciso repensar essa transformação geopolítica com maior autonomia e auto-abastecimento entre os nossos países. Por exemplo, no caso dos fertilizantes ou no caso do semicondutores com o objetivo de reativar um projeto binacional que temos. Argentina tem a maior bacia de potássio do mundo que é fundamental para desenvolver fertilizantes.

Valor: Por fim, para dar um impulso a sua pré-candidatura seria necessário um gesto, uma posição do presidente da vice-presidente e o senhor espera isso?
Scioli: Não,não. Eu confio no povo argentino e o povo argentino confia em mim. Me conhecem há 25 anos na minha carreira política e em outras atividades no mundo desportivo, por exemplo. O presidente está [trabalhando para] resolver os problemas da Argentina e a vice-presidente tem o seu papel instituciona. Eu tomei uma decisão [de me pré-candidatar] convencido que é preciso dar ao nosso país essa alternativa que é a que eu represento frente ao que os outros grupos políticos tem proposto. Estou seguro que vai ganhar o previsível, o confiável, a sensatez, a moderação que possa harmonizar melhores acordos dentro da Argentina e com o mundo como eu demonstrei aqui no Brasil.
 

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Lula abraça visão da esquerda que vê guerra como desafio à hegemonia dos EUA, diz Ricupero - Marcos de Moura e Souza (Valor)

 Lula abraça visão da esquerda que vê guerra como desafio à hegemonia dos EUA, diz Ricupero

Para ex-embaixador, embora não veja risco de retaliações de parceiros aliados aos EUA, o Brasil se enfraquece ao tentar esse caminho

Por Marcos de Moura e Souza

Valor, 18/04/2023

As declarações recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia -- de que os dois têm responsabilidade que precisam parar -- dão vazão a uma interpretação que tem sido feita por partidos e por acadêmicos de esquerda, segundo a qual o que está em curso desde o ano passado é uma espécie de guerra por procuração. 

De um lado, EUA e aliados ocidentais por trás da Ucrânia; de outro, Rússia e China. Um confronto entre a hegemonia americana e seus principais contestadores. É o que, na avaliação do ex-embaixador Rubens Ricupero, parece explicar as posições de Lula, que logo foram rebatidas pela Casa Branca e pela União Europeia. Ricupero diz que não há "justificativa para a invasão e muito menos para colocar em pé de igualdade o agressor e o agredido". Para ele, o Brasil não ganha nada com as palavras do presidente, que coincidem mais com as palavras de Moscou e Pequim do que com as de Washington e Bruxelas. E embora não veja risco de retaliações de parceiros aliados aos EUA, Ricupero avalia que o Brasil se enfraquece ao tentar esse caminho.

Aos 86 anos, Ricupero esteve bastante próximo do ex-chanceler Celso Amorim durante a campanha de Lula em 2022. Apoiou publicamente o petista e diz não se arrepender disso. Mas contesta uma linha que considera ser a do PT puro-sangue nas posições relativas à política externa neste início de terceiro mandato. O resultado é um só, diz ele: "Se você olhar as reações dos últimos dias, Lula está sendo criticado urbi et orbi."

A seguir os principais trechos da entrevista:


Valor: O que a declaração do presidente Lula de que Rússia e Ucrânia têm responsabilidade pela guerra revela sobre a percepção dele em relação à invasão russa e a guerra?

Ricupero: Obviamente é inadequado colocar no mesmo pé o agressor e o agredido. Por que o Lula faz isso? Ele, como muitas outras pessoas, faz isso porque entende que a raiz da guerra é a questão da expansão da Otan até as fronteiras da antiga União Soviética. É um argumento que considera o que seriam os temores da Rússia em relação à entrada da Ucrânia na Otan. Mas ainda que para essas pessoas tenha sido um erro à expansão da Otan -- e para mim não foi um erro -- isso não justifica de forma alguma invasão como a que ocorreu em 24 de fevereiro de 2022. Foi uma invasão premeditada e ilegal. Pela carta das Nações Unidas, só há duas hipóteses em que um país pode recorrer à guerra legalmente pelo direito internacional. Uma é em legítima defesa, o que obviamente não aconteceu; a outra é quando o Conselho de Segurança decide que aquele país é uma ameaça à paz e à segurança mundial. Foi o que aconteceu com Afeganistão em 2001, quando o governo afegão se recusou a pôr fim à proteção que dava a Al-Qaeda e o Conselho de Segurança decidiu que era justificável uma operação contra o Afeganistão. Nesse caso da Ucrânia, não existe nem uma hipótese nem outra. Então não é uma justificativa para a invasão e muito menos para colocar em pé de igualdade o agressor e o agredido.


Valor: Essa percepção que o presidente manifesta é uma percepção partilhada, em particular, por partidos e por acadêmicos mais alinhados com uma visão da esquerda?

Ricupero: Nos Estados Unidos há uma tendência entre alguns acadêmicos da chamada escola realista do poder e o mais eminente deles é o professor da universidade de Chicago John Mearsheimer. Antes da guerra e durante a guerra ele escreveu artigos expondo um ponto de vista que foi um erro a expansão da Otan e que os Estados Unidos não deveriam se envolver nesse conflito. A posição dele não é ideológica. Ele considera que a Ucrânia tem um interesse periférico para a segurança americana e que os Estados Unidos só deveriam reagir a interesses vitais do ponto de vista de segurança. E Mearsheimer não tem nada de esquerda.

Agora, existe uma corrente que eu acho que é mais forte fora dos Estados Unidos e que se percebe no Brasil, por exemplo, que vê a situação como Lula colocou na China. Ele disse que gostaria de ajudar a reequilibrar a geopolítica mundial. O que ele quer dizer com isso? Dentro da visão tradicional da esquerda, que no passado era a visão comunista, é a visão segundo a qual a guerra na Ucrânia é, na verdade, uma guerra por procuração. Que atrás da Ucrânia estão os Estados Unidos e do outro lado, Rússia e China.

É a visão de que a guerra é apenas uma manifestação da luta entre o país hegemônico da ordem mundial atual, os Estados Unidos, contra uma aliança da Rússia com a China com alguns outros apoios que querem contestar essa ordem mundial. Essa é, um pouco, a visão da esquerda.


Valor: É uma visão que, na sua avaliação, influencia as posições de Lula?

Ricupero: Tenho impressão que sim. Durante a visita à China, ele declarou que quer colaborar para equilibrar a geopolítica e isso só pode ser interpretado que, na visão de Lula, a geopolítica está desequilibrada. E o que se pode entender disso é que na visão dele a hegemonia americana é que desequilibra o mundo. E que Lula afirma querer ajudar a reequilibrar.

Os chineses vêm isso de outra maneira. Recentemente, chineses e russos assinaram um falando em amizade sem limites que expôs bem essa ideia de que a China e a Rússia querem construir uma nova ordem mundial diferente da ordem dominada pelos Estados Unidos e pelos seus aliados.


Valor: Uma nova ordem que pretenderia ir contra o quê?

Ricupero: Você pode encarar essa expressão de duas maneiras. Uma maneira mais formal: a ordem mundial é representada pela Carta das Nações Unidas, pelas organizações criadas quando terminou a Segunda Guerra: ONU, o Banco Mundial, FMI e outros. Uma ordem criada pelos vencedores da guerra e a União Soviética estava entre os vencedores, é bom lembrar.

A segunda acepção de ordem mundial é a que eles [russos e chineses] têm em mente: que é a acepção do poder por trás da Carta da ONU, por trás da ONU, por trás do FMI, por trás do Banco Mundial, por trás da Organização Mundial do Comércio. Um poder hegemônico que são os Estados Unidos com seus aliados na Otan e fora da Otan. É esse poder hegemônico que russos e chineses contestam por considerar que é um poder desequilibrado.


Valor: Um reequilíbrio, ou uma nova ordem com mais peso para Rússia e China, seria um caminho para melhores soluções de problemas de ordem global?

Ricupero: Quando se diz que o mundo precisa de uma nova governança -- que é uma frase muito repetida pelo presidente Lula -- significa que a governança atual não está sendo capaz de encaminhar soluções para os grandes problemas. E o primeiro, a meu ver, é o aquecimento global. Nesse caso, a questão é: é possível contar com a China para lidar com o aquecimento global? A China, o único grande país do mundo que está aumentando o consumo de carvão? A China está entre os maiores violadores do acordo de Paris.

Um segundo problema, a pandemia. A China não colaborou nas investigações para se descobrir as origens da pandemia e adotou uma estratégia [lockdowns prolongados e muito restritivos] que ninguém mais seguiu durante a pandemia. Então, também não seria por aí uma nova ordem capitaneada pela China.


Que outro tema importante? Direitos humanos? Aí é como dizem os espanhois: ni hablar.

Ou seja, numa lista de problemas é difícil encontrar algum problema concreto importante em que se poderia dizer que a ordem americana não é boa e que a ordem chinesa seria melhor.

Eu, pessoalmente, também tenho reservas com a ordem americana, mas o que seria uma ordem chinesa seria pior.

Portanto, o que sobra, na minha opinião, é só uma coisa: China e Rússia têm uma visão contrária aos Estados Unidos e eu acho que essa também é uma visão aqui. Quem é de esquerda e que no passado adotou uma posição de combate ao imperialismo americano tende a achar que o imperialismo americano é a fonte de todos os males.

Eu não estou defendendo uma ordem americana. Eu prefiro uma ordem que seja a ordem da Carta das Nações Unidas. E os Estados Unidos têm muita culpa no cartório. Da mesma forma como a Rússia invadiu a Ucrânia sem permissão do Conselho de Segurança, os americanos fizeram o mesmo com o Iraque, em 2003. Também violaram a Carta da ONU. Ainda assim, eu não acho que a ordem chinesa e russa ofereça vantagens em relação à ordem que conhecemos dominada pelos EUA.


Valor: Declarações recentes de Lula -- sobre a guerra, sobre o uso do remimbi no lugar do dólar nas transações com o Brasil e outras -- dão a entender um interesse em colocar o Brasil mais próximo do que seria essa ordem defendida por russos e chineses?

Ricupero: O que o Lula tem dito, ainda que com a intenção de promover a paz, objetivamente o que ele fez -- para usar uma expressão dos antigos comunistas -- foi colocar água para o moinho da Rússia e da China.

Quando o Lula afirma que os Estados Unidos e Europa não falam de paz e, ao contrário, continuam armando a Ucrânia o que significa isso? Se um país é vítima de agressão e você é contra que outros países forneçam armas para vítima, objetivamente você está apoiando o agressor. Qualquer que seja o seu raciocínio, na prática, você está querendo que aquele que está mais vulnerável continue vulnerável. E quase todas as declarações que Lula tem feito até agora vão nessa direção, o que na prática equivale que Ucrânia teria de cruzar os braços .


Valor: O Brasil tem defendido uma espécie de clube da paz, um grupo de países que possam fazer a mediação entre Rússia e Ucrânia. Esse é um caminho?

Ricupero: A ideia não tem fundamento. Dizer que a melhor abordagem para a paz é a de um grupo de contato formado por vários países não é verdade.

Normalmente, o país que faz o papel de mediador tem que ter uma vontade unívoca, na mesma direção. O exemplo mais importante que existe foi a mediação feita pelo presidente Ted Roosevelt em 1905 para colocar fim à guerra entre Rússia e Japão. Os russos estavam perdendo. Roosevelt impôs, de certa forma, a mediação. E conseguiu pôr fim à guerra. A mediação é uma atividade que exige vontade única, um processo de paz é muito complicado. Exige cessar-fogo, exige decisões sobre territórios que foram ocupados e exige discussões sobre quem vai pagar a reparação. No caso da Ucrânia, o país foi destruído e quem é que vai pagar? Então existe uma série de problemas e se você tiver 5, 10 ou 20 países envolvidos nessa mediação serão 20 países com 20 abordagens. Pode-se dizer que todos terão a mesma vontade, que é a paz. Mas, na prática, isso não acontece. Cada país que participa da política internacional tem a sua visão própria. Se você tiver 20 países você complica 20 vezes uma atividade de mediação que já é difícil.


Valor: O que o Brasil pode ganhar com aproximação com ponto de vista de Rússia e China?

Ricupero: Se você traduzir isso como dizem os americanos em "dolars and cents", você não vê muito o que o Brasil pode ganhar. O comércio com a China já é muito florescente. O Brasil tem um saldo de US$ 29 bilhões, eu duvido que os chineses vão fazer alguma coisa para aumentar o saldo brasileiro. E o Brasil também já um grande destinatário de investimentos chineses. Com a Rússia o que a Rússia poderia vender? Fertilizante [que já vende]. E a Rússia também tem interesse em vender para a gente. Minha impressão é que o presidente Lula deve achar, como no primeiro mandato, que ele tem uma vocação para grande política mundial. Houve, por exemplo, aquela tentativa de acordo com o Irã [sobre o desenvolvimento iraniano na área nuclear que causava fortes atritos com potências ocidentais] em 2010. Acho que isso [a forma como ele se manifesta sobre Rússia e Ucrânia] está um pouco naquela linha.


Valor: E o que o Brasil pode perder com posições que se assemelham com a da Rússia e da China?

Ricupero: Não vejo que o Brasil vá sofrer qualquer tipo de retaliação, mas o país perde prestígio. O Brasil não tem hard power, não tem bomba atômica, não tem grande Exército. E se uma visão da parte do mundo, que é a parte que tem mais influência na formação da opinião pública, se essa parte do mundo passa a ver o Brasil como parcial, a favor da China e da Rússia, eu acho que o Brasil se enfraquece.


Valor: Esses posicionamentos de Lula indicam que a diplomacia brasileira caminha para um rumo distinto do rumo de sua tradição?

Ricupero: Eu apoiei o Lula desde o primeiro turno. Apoiei não uma pessoa nem um partido, mas uma ideia de frente ampla das forças democráticas para ganhar a eleição e para governar. Essa era a minha ideia. Não me arrependo do meu voto. E faria o mesmo outra vez. Mas eu acho que o atual governo não é uma ampla frente de forças democráticas, embora seja uma coalisão de partidos diferentes. E na área de política externa, eu acho que é PT puro-sangue. O PT critica o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas não critica a política externa porque é a política na linha do PT. Não que não seja legítimo do ponto de vista do partido. A questão é que o governo não ouve outras linhas. Se você olhar as reações dos últimos dias, Lula está sendo criticado urbi et orbi. Interna e externamente.

Um comentário adicional. O que, de fato, mudou na política externa brasileira e para melhor é a ênfase no meio ambiente. No governo anterior de Lula, nem ele nem a Dilma eram ambientalistas. Nem Celso Amorim. Agora esse tema se é impôs. Se o Lula transformasse a questão ambiental na base principal da ação externa eu acho que ele ganharia muito prestígio, quem sabe até um Nobel. Mas, curiosamente, embora ele tenha mudado discurso, eu acho que ele não internalizou isso porque ele não dá ao meio ambiente a ênfase que ele está dando à Ucrânia.

E para o mundo, o Brasil não é visto como um potencial mediador da Ucrânia. É visto como o dono da Amazônia. E se o governo tivesse uma atitude mais proativa em relação ao meio ambiente, sua política externa seria de muito mais de êxito.


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Brasil na presidência do G20: quando menos poderá ser mais - Assis Moreira, Valor

Brasil na presidência do G20: quando menos poderá ser mais

A ostentação da Índia na presidência do grupo das maiores economias vai custar R$ 500 milhões neste ano
Por Assis Moreira
Valor — Genebra, 07/04/2023

A Índia tem atualmente a presidência do G20, o grupo das maiores economias e que pretende ser o fórum para solução de grandes problemas. Sua presidência culminará com a cúpula de chefes de Estado e de governo em Nova Déli em 9 e 10 de setembro. No começo de dezembro, os indianos passarão a presidência para o Brasil, no que marcará um importante retorno do país à cena internacional.

Pelo que se viu até agora na Índia, o mínimo que se pode dizer é que o Brasil precisará evitar o show de ostentação dos indianos.

Quem chega na Índia tem a impressão de que a principal preocupação do país atualmente é a presidência do G20, como notou recentemente a revista The Economist. É difícil escapar dos grandes cartazes de propaganda espalhados pelo país com o logo do G20 e a foto do primeiroministro Narendra Modi, que tem tendências crescentemente autoritárias.

Uma observação corrente entre delegados no G20 é sobre os excessos de todo tipo. Por exemplo, na escolha de 56 cidades para acolher reuniões do grupo. Há cidade que terá uma única reunião técnica, mas precisa fazer gastos para se preparar. Somente neste mês de abril, há encontros do grupo em Siliguri/Darjeeling, Gandhinagar, Guwahati, Kumarakom, Goa, Hyderabad, Varanasi e Bhubaneswar.

A programação para cada reunião de três dias é recheada com eventos que vão de apresentação de elefantes, de música e dança, passeio de barco onde isso é possível, jantares demorados. Sobra pouco tempo para fazer reuniões bilaterais e focar mais nos temas em discussão.

Com tudo isso, vem uma fatura pesada. A India vai gastar R$ 500 milhões, pelo menos, com sua presidência do G20 – e, por tabela, com a propaganda favorável a Modi e a seu partido Bharatiya Janata Party.

Para sua presidência do G20, a Índia escolheu como tema ‘Vasudhaiva Kutumbakam’, uma expressão sânscrita encontrada em textos hindus, que significa "o mundo é uma família’.

Sobretudo, o governo de Modi tenta apresentar seu país como voz do ‘Sul Global’, ou dos países em desenvolvimento, em rivalidade com a China. O acúmulo de papelada colocada na mesa por Nova Deli também é grande

E todo esse barulho resultará em nada, ou pouco. A cooperação internacional está em frangalhos, em meio à intensidade das tensões geopolíticas. As reuniões do G20 continuam sendo marcadas pela ausência mesmo de simples declarações comuns, illustrando a dificuldade de o grupo das maiores economias se engajar em discussões construtivas por causa da invasão da Ucrânia pela Rússia.

Nas reuniões do G20, as discussões sobre a guerra na Ucrânia tomam quase toda a agenda. A maioria destaca que o conflito deve ser tratado no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas é inevitável insistir com a preocupação com os efeitos econômicos da invasão russa

O racha é claro no grupo: Rússia e China de um lado e os países do G7 (EUA, Alemanha, Japão, França, Itália, Canadá, Reino Unido) de outro. No meio, estão emergentes como a própria Índia, Brasil, México, Indonésia, Argentina, tentando evitar fragmentação maior. Mas a dinâmica é mesmo de desconfiança. Dificilmente haverá ações concretas, a partir do grupo, agora ou no ano que vem, quando o Brasil assumirá a presidência.

Para o Brasil, estar na presidência do G20 em dezembro, por um ano, dará a oportunidade para o país moldar a agenda, com suas prioridades e aspirações na cena internacional. Mas é preciso focar em alguns temas principais, sem querer tratar de tudo. Para ser eficaz, o governo brasileiro precisará evitar dispersão com uma agenda enorme que não teria continuidade depois.

Além disso, o Brasil não pode gastar tanto dinheiro como os indianos. Ter marca de perdulário, no estado atual das finanças nacionais, não é a melhor política. Como nota um negociador de país do G20, em referência ao que a Índia vem fazendo: 'Vocês não vão fazer assim, não é?'.

O Brasil precisará definir também com cuidado onde vai organizar o número enorme de reuniões. Os problemas de logística são conhecidos. Já será um quebra-cabeça fazer uma reunião de ministros de energia em Foz do Iguaçu. Juntar ministros de meio-ambiente em Rio Branco (Acre), então, seria um desafio adicional. Quanto à cúpula de chefes de Estado e de governo, se depender dos parceiros, seria realizada no Rio de Janeiro.

Depois do show de exageros da Índia, a presidência brasileira do G20 poderia mostrar que ‘menos pode ser mais’ em certas ocasiões. Mas é preciso combinar com o presidente Lula.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Putin está muito mais quebrado do que se pensa - Edward Luce (FT)

 Putin está muito mais quebrado do que se pensa

Por Edward Luce

 ValorFinancial Times, 13/03/2023


Quando as estatísticas são submetidas a tortura por tempo suficiente, elas acabam confessando. Sustentado por essa máxima imemorial, Vladimir Putin conseguiu evocar uma contração irrelevante, de 2,1%, na economia da Rússia em 2022, contra os dois dígitos que prevíamos. O mais estranho é que acreditamos nele! 

O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial zelosamente reutilizaram os números de crescimento oficiais de Moscou para o ano passado, o que desencadeou autocríticas em torno da resiliência da Rússia. Se a Rússia conseguiu suportar as sanções ocidentais mais abrangentes já adotadas desde os dias do apartheid da África do Sul, talvez devêssemos repensar nossa posição. Não sou estatístico. Mas sei, com certeza, que há razões profundas para desconfiar dos dados oficiais da Rússia sobre qualquer assunto. 

Como destaca Jeffrey Sonnenfeld, decano da Faculdade de Administração de Yale, o Rosstat, departamento oficial de estatística russo, passou por uma constante rotatividade de liderança nos últimos 12 meses e já foi um órgão altamente comprometedor. De qualquer maneira, Putin obteve os números que queria. O Rosstat prevê que a Rússia crescerá 0,3% em 2023. Eu prevejo que isso se revelará um absurdo. 

Economistas mais criteriosos não ficam parados, esperando que os dados caiam no seu colo. Eles buscam outros medidas. Na China, essas medidas costumam ser métricas como frete ferroviário e consumo de energia. Ler a Rússia hoje deve ser muito mais simples. 

Três milhões das pessoas de nível de instrução superior da Rússia deixaram o país, levando consigo seu capital e energia intelectuais. Na Rússia, o governo tem canibalizado geladeiras e outros eletrodomésticos da linha branca à cata dos chips que não consegue mais importar. Segundo a equipe de monitoramento de Sonnenfeld em Yale, um mil dos 1,2 mil maiores investidores estrangeiros da Rússia se retiraram plenamente do país pelos dados atuais. Suas receitas respondiam por 35% do Produto Interno Bruto (PIB) da Rússia antes da invasão da Ucrânia. Entre elas estão as empresas de petróleo e gás, como a BP (que deu baixa contábil de US$ 25,5 bilhões), que mantinham em constante fluxo os dutos de combustíveis fósseis e faziam a manutenção dos equipamentos do país. 

As exportações russas de gás natural praticamente secaram. A Europa absorvia o grosso da oferta russa e hoje a reduziu a níveis próximos de zero. Não tenho a menor ideia de quem explodiu o Nord Stream II, mas foi um ato um tanto desnecessário. A Europa ostentou uma eficiência de estilo chinês ao construir rapidamente uma capacidade em gás natural liquefeito (GNL) para importar o combustível que a Rússia é tecnicamente incapaz de produzir. O gás em estado gasoso da Rússia, em vista disso, não está à disposição de nenhum mercado. Serão necessários anos para construir dutos russos para compradores alternativos. 

China, Índia e outros, sem dúvida, estão absorvendo o petróleo russo que a Europa deixou de importar. Mas a Rússia o está vendendo a preços abaixo do custo. O Deutsche Bank estima que a Rússia, mal e mal, obtém hoje o equivalente a um terço de suas receitas com combustíveis fósseis. Além disso, está ficando cada vez mais caro - aproximadamente o dobro da média global — para a Rússia extraí-los. A Rússia desembolsa US$ 4 

para extrair um barril de petróleo e mais US$ 12 para fazê-lo chegar a seus clientes. Isso atende aos desejos do Ocidente, uma vez que não queremos que o preço global do petróleo suba e não queremos que a Rússia ganhe dinheiro. Pelo fato de mais de metade do orçamento da Rússia provir de sua receita com combustível fóssil, o governo passou agora a saquear suas reservas para tempos difíceis. Medidas mais radicais de extração de receita certamente vão se seguir. O que isso significa para a guerra na Ucrânia ? Há implicações boas e más. Duvido que a China seja imprudente a ponto de começar a fornecer as armas e a munição que a Rússia necessita desesperadamente. Nesse caso, isso seria uma indicação da crescente preocupação da China com os custos de uma prolongada guerra na Ucrânia. 

Um Estado vassalo do tamanho da Rússia não representa maiores problemas até o momento em que se tem de começar a pagar as contas. A má notícia é que Putin ficará cada vez mais tentado a tomar medidas desesperadas para levar esta guerra a uma conclusão desejável. O ataque da semana passada de uma miríade de mísseis hipersônicos russos com capacidade nuclear à infraestrutura essencial ucraniana foi um indicador alarmante do que um Putin acuado poderia fazer. Certamente podemos esperar que uma Rússia totalmente desprovida de dinheiro arremesse crescentes ondas humanas de alistados maltreinados para morrerem em suas linhas de frente. 

Quando as pessoas não confiam em dados oficiais, para onde olharão? A crer em Sonnenfeld em detrimento do FMI, que implicações isso tem para a política ocidental para a Ucrânia? 

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