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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Quem diria: a relação especial com Trump e os EUA fez chabu: comércio numa baixa histórica em 11 anos - Victor Irajá (Veja)

 Comércio entre Brasil e EUA atinge pior marca em 11 anos

Por Victor Irajá
Veja, 14 out 2020

Relação de Bolsonaro com Trump não se refletiu em números, afetados pela combinação dos efeitos da crise causada pela pandemia e restrições comerciais

Em maio do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro exaltou a parceria comercial com os Estados Unidos, o que definiu como um realinhamento da diplomacia brasileira em relação ao país presidido por Donald Trump. “O Brasil de hoje é amigo dos Estados Unidos, o Brasil de hoje respeita os Estados Unidos e o Brasil de hoje quer o povo americano e os empresários americanos ao nosso lado”, disse o presidente brasileiros antes de de adaptar seu bordão: “Termino com meu chavão de sempre. Brasil e Estados Unidos acima de tudo, Brasil acima de todos”. Os números comprovam que, ao Norte, o negócio não é bem assim. De acordo com um relatório divulgado pela Amcham Brasil, o comércio bilateral entre Brasil e Estados Unidos até o mês de setembro registrou, em 2020, o pior resultado dos últimos 11 anos. Entre janeiro e setembro, os dois países transacionaram 33,4 bilhões de dólares, uma redução de 25,1% em relação ao mesmo período do ano passado. O relatório aponta fatores principais para explicar a forte redução das trocas bilaterais.

O fator mais óbvio é a pandemia, que provocou uma queda expressiva no consumo da população e da necessidade das empresas por produtos oriundos da exportação brasileira. Mas outros fatores provocam uma reflexão sobre as diretrizes do Itamaraty de Ernesto Araújo. A China, atacada de frente por membros do governo, ampliou sua participação no mercado brasileiro como principal parceiro comercial do país. De acordo com o relatório, o país asiático representa 28,8% de todas as transações do Brasil. A queda no preço do petróleo, também graças à Covid-19, também teve impacto significativo nos resultados. O último fator envolve uma política protecionista do mandatário americano, que restringiu a entrada de produtos da siderurgia brasileira para proteger a indústria nacional. Em agosto, já com as eleições de novembro na cabeça, Donald Trump anunciou que cortaria em mais de 80% a importação de aço brasileiro até o fim do ano. O governo Bolsonaro devolveu com complacência: renovou, sem qualquer contrapartida, isenção de tarifa de importação sobre o etanol americano, enfurecendo os produtores locais. 

Segundo a análise, no acumulado do ano, as exportações brasileiras para os EUA caíram 31,5% em comparação com igual intervalo de 2019, alcançando o total de 15,2 bilhões de dólares. É o menor valor para o período desde 2010. Em termos relativos, os EUA foram o mais afetado entre os 10 principais destinos de exportação do Brasil em 2020. Foram sete bilhões de dólares a menos em exportações. A taxa de queda foi quatro vezes maior do que a redução das exportações totais do Brasil para o mundo. Por outro lado, as importações brasileiras vindas dos Estados  Unidos despencaram neste terceiro trimestre, com redução de 41,6% em relação a 2019. Entre janeiro e setembro de 2020, as importações totalizaram 18,3 bilhões de dólares, uma queda de 18,8%. Apesar da forte redução do comércio bilateral, os EUA seguem como o segundo principal parceiro comercial do Brasil. 

No início do mês, a Amcham havia traçado cenários para os impactos das eleições americanas para a política externa e as relações comerciais do Brasil. A instituição alerta para um maior caráter de defesa de uma política nacional-desenvolvimentista e protecionista do republicano em relação ao candidato democrata Joe Biden, cujo partido é mais historicamente ligado aos ideais globalistas. Segundo o documento, sob a liderança de Trump, os Estados Unidos se tornaram mais avessos ao multilateralismo e à atuação de organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU).  Trump, aponta o relatório, também tem sido crítico de alguns acordos de livre comércio firmados pelos Estados Unidos (como o NAFTA e a Parceria Transpacífica) e tende a privilegiar negociações bilaterais em detrimento de negociações que envolvam múltiplas partes. Por lá, é Estados Unidos acima de todos. 

https://veja.abril.com.br/economia/comercio-entre-brasil-e-eua-atinge-pior-marca-em-11-anos/

domingo, 12 de julho de 2020

Diplomacia em Cacos - Mary Zaidan (Blog do Noblat, Veja)

Nunca antes na história da diplomacia brasileira, ela tinha sido tão conspurcada como sob o tacão dos ignorantes bolsonaristas, os ineptos em relações internacionais, os sabujos e fanáticos do guru destrambelhado da Virgínia, aquele debiloide grosseiro que orienta o presidente despreparado e o chanceler acidental, submisso ao bando de bárbaros.
Como diplomata, sinto-me envergonhado pelo espetáculo lastimável de retrocessos inacreditáveis na diplomacia profissional e pela imagem diminuída do Brasil no mundo.
Como diria o Visconde de Cabo Frio, mas em circunstâncias totalmente diferentes a propósito da gestão do Itamaraty: "Estamos esperando que essa gente vá embora". 
Paulo Roberto de Almeida 

Diplomacia em cacos
A escalada negacionista
Por Mary Zaidan - Atualizado em 12 Jul 2020, 04h36 - Publicado em 12 Jul 2020, 08h30



O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, nas negociações do Pacto de Letícia pela Amazônia, Colômbia - 06/09/2019 Raul Arboleda/AFP

O reiterado descaso do presidente Jair Bolsonaro pela pandemia que já tirou a vida de mais de 70 mil brasileiros tem um rival quase imbatível: o desempenho do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, na dupla tarefa de desacreditar o vírus e o Brasil.
Desde que a Covid-19 desembarcou no país, o chanceler tenta caracterizá-la como mal criado e disseminado pela esquerda – o “comunavírus”, como ele gosta de tratar o que a turma bolsonarista chama de “vírus chinês”. Em abril, publicou em seu blog pessoal um artigo em que acusa a Organização Mundial da Saúde de usar a pandemia para incrementar um “projeto globalista” na direção ao comunismo.
No texto, o ministro ressalta que o comunismo embutido no “vírus ideológico” – considerado por ele mais perigoso que a Covid-19 – já estava sendo executado pelo “climatismo ou alarmismo climático”, ou sob a égide  da “ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo, do antinacionalismo, do cientifismo”. Um libelo de arrepiar até terraplanistas.
A escalada negacionista continuou a se aprofundar, incluindo organismos estatais para divulgá-la.
Na terça-feira, 14, Araújo promove, por meio da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), órgão de pesquisa do Itamaraty, a conferência virtual “Memória do comunismo e atualidade do vírus da mentira”, com o jornalista e escritor Federico Jiménez Losantos. Apresentador do La Mañana, programa matutino de audiência da rede espanhola Code, Losantos é um achado: um maoísta desencantado, com discurso aclamado pela direita extrema, que se autodefine como liberal.
Outras palestras no gênero foram realizadas ao longo do ano. A conjuntura internacional no pós-coronavírus teve como debatedores os neoespecialistas e assessores especiais da Presidência da República Felipe G. Martins e Arthur Weintraub, irmão do ex-ministro da Educação. A despeito de ter sido o pior titular da pasta a se sentar na Esplanada – ou até por esse motivo -, o antiglobalista convicto Abraham ganhou assento no Banco Mundial como prêmio de consolação pela fidelidade canina ao presidente Bolsonaro.
A Funag recebeu também o moçambicano Gabriel Mithá Ribeiro, polêmico defensor de teses no mínimo heterodoxas. Para o autor do livro “Um século de escombros: pensar o futuro com valores morais da direita”, o racismo não existe mais, o colonialismo nunca existiu, e o “pai intelectual do Brasil atual é o professor Olavo de Carvalho”.
O ciclo de conferências tem causado desconforto a diplomatas, que só não põem a boca no trombone em respeito ao Itamaraty e por saber que governos passam e a instituição fica. Alguns deles não escondem que gostariam que esse passasse depressa.
Nada contra o pensamento de direita que em muito enriquece a governança em diversas partes do mundo. Nem mesmo aversão às suas correntes mais radicalizadas, ainda que sofram dos males do fanatismo, válido para as dois polos ideológicos. Mas quando promovidos por uma organização de Estado, os encontros teriam que, pelo menos, tentar parecer plurais. Seria conveniente ainda se despirem do caráter catequizador e do eloquente proselitismo ao governante da vez.
Como se um erro autorizasse outros, alguns dirão: os governos do PT faziam ações semelhantes e ninguém reclamava. Mentira para boi dormir ou para iludir a boiada. Foram duramente criticados, seja no conteúdo pró-ditaduras de esquerda nas Américas, na África e no Oriente Médio, seja no desperdício de dinheiro público para promover encontros de formação política.
Não é necessário recorrer ao Google ou fazer qualquer esforço de memória para apontar que o início da partidarização das Relações Exteriores se deu sob o comando de Celso Amorim, no governo Lula. Ali, o Itamaraty começou a envergonhar seu patrono Rio Branco. De lá para cá, respirou um pouco no curto período de Michel Temer para, de novo, cair na esparrela.
Com sua agenda desconectada da razão, da lógica e do mundo, Araújo é um dos protagonistas ativos do massacre da imagem do Brasil lá fora, golpeada cotidianamente pelo negacionismo do presidente Bolsonaro diante da pandemia, desmatamento recorde e desdém ambiental.
Como o país precisa de gente capaz de desfazer nós e não de apertá-los, Araújo entrou na mira da turma do “segura o touro”. Os que defendem um governo sem arroubos tentam convencer Bolsonaro a colocar na bandeja as cabeças do chanceler e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
Salles até pode ser servido. Araújo é prata da casa.
Enquanto isso, a cristaleira refinada anos a fio pela invejável diplomacia brasileira, que começou a se quebrar no governo Lula, se estilhaça de vez. Vira cacos.
Mary Zaidan é jornalista 


sexta-feira, 29 de maio de 2020

A imagem DEGRADADA do Brasil no exterior - Edoardo Ghirotto (Veja)

As causas e os estragos da pior crise de imagem internacional do Brasil

O fracasso no combate à pandemia e as ameaças às instituições e ao meio ambiente evidenciam ao mundo o desgoverno do país

Por Edoardo GhirottoEduardo Gonçalves - Atualizado em 29 maio 2020, 09h44 - Publicado em 29 maio 2020, 06h00 


O Brasil encontra-se à beira de um lockdown diante da comunidade internacional. O estado de isolamento agudo daquele que seria o país do futuro está materializado na balbúrdia do presente por uma conjunção de catástrofes, a começar pela tragédia humanitária nacional, com a liderança mundial de mortes diárias por Covid-19 (rumando firme para a casa de 30 000 óbitos). Em vez das doses cavalares de prudência, de organização e de responsabilidade adotadas pela esmagadora maioria do planeta como remédios para conter a doença, por aqui o caminho foi apostar na improvisação, na negação da ciência e no desprezo à gravidade do problema. Na esteira do estrago do coronavírus vieram o agravamento da crise política, a queda acelerada rumo ao fundo do poço da recessão, o aumento dos insultos às instituições, as novas ameaças ao meio ambiente e a exacerbação de discursos e gestos autoritários, com direito a um flerte explícito com o militarismo. Em meio ao caos, “Bolsonero”, um dos vários apelidos criados recentemente por veículos de imprensa da Europa e dos Estados Unidos para classificar a postura do presidente, vai aumentando o volume de seu mantra de chamar a população de volta às ruas e de procurar inimigos por todos os cantos, boa parte deles imaginários, a fim de responsabili­zá-los pela situação. Para mostrar que não teme a “gripezinha” e estimular as pessoas a fazer o mesmo, o capitão não perde a oportunidade de se expor sem os devidos cuidados, e em uma das últimas aparições sem a proteção da redoma do séquito bolsonarista foi saudado com panelaços e gritos de “assassino” enquanto degustava um cachorro-quente em Brasília.
Esse flerte irracional com o perigo parece cada vez mais indigesto e incompreensível aos olhares estrangeiros. Não bastasse provocar ondas permanentes de espanto e de preocupação pelo estado de desgoverno até entre os vizinhos mais pobres da América do Sul, o país passa a sofrer as inevitáveis consequências econômicas por causa dessa política confusa em um mundo globalizado. São inúmeros os indicadores que comprovam como a instabilidade afugenta o capital, o que só agrava a situação do momento. O real se tornou uma moeda tóxica, com desvalorização de aproximadamente 30% em relação ao dólar neste ano. Segundo o Banco Central, investidores estrangeiros retiraram daqui 31,4 bilhões de dólares de aplicações financeiras entre janeiro e abril, enquanto a entrada de investimentos diretos despencou de 5,1 bilhões de dólares em abril de 2019 para insignificantes 234 milhões no último mês. Em sinal de alerta, a agência Fitch rebaixou a perspectiva da nota de crédito do país de neutra para negativa. “O Brasil se tornou um pária internacional”, disse a VEJA o historiador e brasilianista britânico Kenneth Maxwell. “Uma situação que foi amplificada pelo comportamento irresponsável de Bolsonaro.”



PROTAGONISTAS - Weintraub e Salles: falas chocantes na tristemente célebre reunião ministerial de 22 de abril Marcelo Camargo/Agência Brasil/Ueslei Marcelino/Reuters

Uma crise econômica no período pós-pandemia seria inevitável. A Alemanha, considerada um dos modelos no enfrentamento da doença, entrou nesta semana em recessão técnica, após as quedas no consumo e nas exportações derrubarem o PIB do primeiro trimestre em 2,2%. Para o Brasil, as consequências tendem a ser piores. O Instituto Internacional de Finanças revisou recentemente a previsão de queda do PIB para 6,9% em 2020. No campo político, Bolsonaro se equiparou aos ditadores de Nicarágua, Turcomenistão e Bielorrússia ao negar a gravidade da Covid-19. Também rodou o mundo a irrestrita defesa que fez ao uso da cloroquina, sem que houvesse comprovação científica, e as brigas que comprou com governadores e prefeitos que aplicavam medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. “Hoje, a nação é sinônimo de tragédia”, afirma o brasilianista Jeffrey Lesser, diretor do Instituto Halle de Pesquisa Global da Universidade Emory, nos Estados Unidos. “O país se tornou um problema sanitário e econômico global.”

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As consequências da imagem manchada do Brasil no exteriorO isolamento do país aos olhos do mundo, o chefe do serviço paralelo de informação de Bolsonaro e mais. Leia nesta edição
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Um exemplo concreto da perda de reputação com a crise do coronavírus é a recente proibição que os Estados Unidos impuseram a todos os voos vindos do Brasil. “Não quero pessoas infectando meu povo”, disse Donald Trump, considerado por Bolsonaro um aliado de primeira hora, ao explicar por que cogitava impedir a entrada de brasileiros. No pior dos cenários, tendo em conta o aprofundamento de seu atual grau de isolamento pelas grandes nações e pelos blocos econômicos, o país teria de lidar com a suspensão de voos, a proibição do tráfego marítimo e o bloqueio à entrada de produtos em importantes mercados, como os Estados Unidos, a China e a União Europeia. Para o cientista político chileno Jorge Heine, professor da Universidade de Boston e um dos autores do Manual da Diplomacia Moderna de Oxford, o Brasil atropela dois pré-­requisitos imprescindíveis nas relações internacionais: credibilidade e previsibilidade. “O país as tinha de sobra, mas isso não ocorre mais”, afirma o estudioso. Desde 2019, prossegue o especialista, o Brasil alcançou a rara posição em que conseguiu antagonizar praticamente com o mundo inteiro. “A comunidade internacional está horrorizada com o presidente dizendo ‘e daí?’ enquanto o país conta dezenas de milhares de mortos”, diz Heine. “Será preciso um enorme esforço para restaurar a posição que o Brasil um dia teve no mundo.”
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Se há características que certamente não fazem parte do governo Bolsonaro, elas são “credibilidade e previsibilidade”. No último dia 22, o ministro do STF Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial em que o presidente ameaça interferir na pasta da Justiça para proteger familiares e amigos de investigações. Além do disparate autoritário, a filmagem de quase duas horas mostra o presidente e seus ministros sem que haja qualquer filtro. O jornal britânico The Guardian dedicou um texto só para os 34 palavrões que Bolsonaro disse na reunião. Pior: o mundo pôde ver o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pedindo a prisão dos ministros do STF, assim como o fez a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, em relação a governadores e prefeitos. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, voltou a pôr fogo nas preocupações internacionais com a preservação da Amazônia ao dizer que o governo deveria aproveitar a distração da imprensa com a pandemia de Covid-19 para “passar a boiada”, alterando regramentos e flexibilizando normas. O resultado só não foi mais desastroso porque Celso de Mello omitiu os ataques que o ministro da Economia, Paulo Guedes, dirigiu à China, o principal parceiro comercial do Brasil.
O vídeo da reunião ministerial provocou estrago significativo na imagem do governo brasileiro no exterior. O jornal britânico conservador Financial Times, tido como a bíblia do mercado financeiro, veiculou, na segunda 25, uma coluna com o seguinte título: “O populismo de Jair Bolsonaro está levando o país ao desastre”. O presidente deu de ombros, classificando a imprensa internacional como “de esquerda”. A tática do confronto também foi adotada pelo chanceler Ernesto Araújo, que já chamou a pandemia de “comunavírus” e varreu do Itamaraty quadros renomados que não comungam de sua pregação. Alinhado a essa visão estreita, Luís Fernando Serra, embaixador na França, emitiu no dia 19 uma carta criticando a direção do Le Monde, a quem ele acusou de inventar ficções quando o jornal francês publicou um editorial devastador sobre a insensatez de Bolsonaro no combate ao coronavírus.


DITADURA - Médici: protestos internacionais por violação dos direitos humanos Cristiano Mascaro/.

No jargão diplomático, o recorde de desatinos dos últimos tempos fez o Brasil queimar seu capital de soft power, como se define a habilidade de uma nação ter o que quer por meio da atração em vez da coerção. “Tradicionalmente, o Brasil tinha um soft power que emanava de sua reputação por políticas competentes e progressistas”, diz Joseph Nye, idealizador desse conceito e professor emérito da Harvard. “Essa imagem se perdeu com a forma como Bolsonaro lida com a pandemia.” As consequências já são sentidas no alijamento de representatividade da nação nos organismos multilaterais. Bolsonaro não participou da reunião entre os presidentes da América do Sul para tratar do combate à Covid-19 e ficou de fora de uma força-tarefa mundial para acelerar a produção de uma vacina para a doença. Entre diplomatas e especialistas em comércio exterior, corre a versão de que a renúncia de Roberto Azevêdo à direção da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi motivada pela incapacidade de domar os desvarios do governo brasileiro na área de relações exteriores e pela iminência de sanções contra o país. A rigor, o Brasil tem hoje apenas uma posição de liderança entre entidades do primeiro time global: José Sette, na direção da Organização Internacional do Café.
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Não é a primeira vez que o Brasil é posto de lado pela comunidade internacional. Na década de 70, na ditadura militar, o país sofreu com o isolamento em razão das violações dos direitos humanos, tendo como auge o tenebroso período do AI-5 durante o governo Médici (aliás, uma época incensada por Bolsonaro). Mas, para Rubens Barbosa, que foi embaixador de 1999 a 2004 nos Estados Unidos, há uma grande diferença entre o isolamento da época do período militar e o momento atual. “Antes, a sanção era só política. Agora, também é econômico-comercial”, compara.
A preservação do meio ambiente é uma das questões com maior potencial para gerar novos prejuízos. Em 2019, as cenas de desmatamento da Amazônia e a postura tíbia do governo diante do problema já haviam provocado uma crise internacional. O alerta voltou a ser aceso com as palavras de Ricardo Salles no tristemente célebre encontro de 22 de abril e a aproximação da temporada seca, quando o volume de queimadas costuma explodir. “Naquela reunião minha manifestação não tinha nada a ver com a Amazônia. Eu estava me referindo a normas infralegais, abaixo das leis. Reitero: estava falando de todos os ministérios”, afirmou a VEJA Salles. “Dito isso, defendo que, se não avançarmos na regulação fundiária da região, não adianta políticas de comando e controle. A fiscalização tem efeito limitado, é difícil cobrir um território que equivale a dezesseis países da Europa”, completa. Representa mesmo um desafio proteger uma porção de terra tão vasta, mas é fato também que o Ministério do Meio Ambiente não tem colaborado muito com o trabalho, punindo agentes do Ibama que aplicam corretamente as leis contra madeireiros e garimpeiros ilegais, entre outras barbaridades. Mesmo com o foco na pandemia, os governos europeus andam atentos à forma como o país trata essa área. Está prevista para o meio deste ano a assinatura do acordo do Mercosul com a União Europeia, que tem um capítulo inteiro dedicado ao cumprimento de acordos ambientais que vão desde a redução na emissão de carbono à preservação da Amazônia. “O governo brasileiro está avançando com sua política de expansão de atividades econômicas e comerciais predatórias na Amazônia”, escreveu a deputada portuguesa Isabel Santos, que entrou com uma representação no Parlamento Europeu que pede investigações sobre a atuação brasileira na região.


MUY AMIGO – Donald Trump: “Não quero pessoas infectando meu povo” Evan Vucci/AP/.

A imagem de um governo caótico também é um espantalho para a captação de negócios para o Brasil, sobretudo em um momento em que empresas estão repensando as suas operações e cortando gastos no mundo todo. “O investidor pensa: vou colocar o meu dinheiro em outro país, que até pode ter risco e oportunidades semelhantes, mas sem os problemas de gestão do Brasil”, diz o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega. VEJA conversou com executivos de três gigantes multinacionais do setor químico, automotivo e de vestuário. O sentimento é desesperador. Todos relataram não ter mais margem para fazer demandas às matrizes, seja para trazer novas linhas de produção, seja para pedir o capital necessário para manter saudáveis os caixas das sedes no Brasil. As matrizes orientam os executivos para que busquem fundos localmente, porque a prioridade é salvar outras operações ao redor do mundo. Os motivos elencados são o somatório de ruídos graves e constantes vindos do presidente, o confronto permanente entre os poderes, a perspectiva de uma crise maior do que em outros países e a projeção de uma retomada econômica mais lenta do que em outras localidades. “Quando se faz uma política externa ornamentada ideologicamente e atrelada a indivíduos, o cenário que se desenha é catastrófico”, diz o cientista político Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard.
Mesmo diante de uma situação tão crítica, é possível ainda evitar o pior? A firmeza de instituições como o STF diante dos arroubos autoritários e o potencial represado do Brasil dão sinais de que nem tudo está perdido. Um exemplo dessa capacidade de resiliência é o agronegócio. Desde o início do ano passado, o país abriu 48 mercados para produtos do setor rural nacional. Trata-se de um feito impressionante, pois parte dele ocorreu durante a escalada mundial da pandemia e em meio às constantes caneladas do governo no maior cliente, a China. “A boa notícia é que, com mudanças de administração ou de políticas, os países podem recuperar sua reputação com o passar do tempo”, diz Joseph Nye. De fato, há tempo para transformações enquanto as agências de classificação não cogitam pôr o país no clube dos inadimplentes. Antes da pandemia, a expectativa era de que o Brasil retomasse o grau de investimento em 2022. A hipótese, agora, beira a zero, mas não cair para o nível de calote já é alguma coisa. Economistas mais otimistas ainda veem uma janela de oportunidades com a profunda crise econômica para consertar gargalos antigos do Brasil, como os setores de infraestrutura e de tecnologia. Eles citam a tese da “destruição criativa”, do austríaco Joseph Schumpeter, que se propõe a explicar alterações bruscas no capitalismo. Se por um lado a inovação cria outras opções de emprego e atividades, por outro ela também torna obsoletas modalidades antigas. “É a característica desta era e temos de permitir que essa destruição promova produtividade e eficiência”, afirma Adriano Pires, sócio-fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE). É um chamamento para o governo Bolsonaro recobrar a lucidez e a razão. Há um enorme trabalho pela frente para recuperar o estrago feito até aqui.
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Com reportagem de Victor Irajá e Jennifer Ann Thomas
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Itamaraty cancela apoio ao CEBRI após carta crítica a Ernesto - Edoardo Ghirotto (Veja)

Itamaraty cancela apoio a centro de estudos após carta crítica a Ernesto
Chanceler ordenou que a Fundação Alexandre de Gusmão revogasse um contrato de operação técnica com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)

Por Edoardo Ghirotto - Revista VEJA, 28 maio 2020, 13h56 

O chanceler Ernesto Araújo promoveu nova retaliação contra críticos de sua gestão no Itamaraty. Na última semana, Araújo ordenou que a Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), órgão do Ministério das Relações Exteriores voltado para pesquisas e divulgação, rompesse um contrato de parceria técnica com o Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), um think thank independente e suprapartidário composto por diplomatas e acadêmicos de renome.
O motivo para o fim da parceria foi uma carta divulgada no último dia 10 por 27 membros do Cebri, entre eles o ex-chanceler Rubens Ricupero, os ex-ministros Aldo Rebelo e Pedro Malan e os diplomatas Marcos Azambuja, Luiz Augusto de Castro Neves e Roberto Abdenur. O documento expressava “grave e urgente preocupação” com a condução da política externa brasileira e os “prejuízos” que ela trouxe ao país.
Na semana seguinte à divulgação da carta, a Funag entrou em contato com a direção do Cebri para informar que um contrato de cooperação técnica assinado em 2017 seria rompido. A parceria não previa o aporte de fundos, mas servia para que os dois centros de estudo organizassem eventos e projetos de pesquisa em conjunto. O Cebri também utilizava as dependências de prédios do Itamaraty para realizar conferências.
Araújo tem demonstrado maior irritação com os críticos desde que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se uniu a Ricupero e a outros ex-chanceleres para divulgar um artigo com questionamentos à gestão do Itamaraty e ao governo de Jair Bolsonaro. O documento foi publicado em inglês e espanhol e teve ampla repercussão no exterior. Fora do tom diplomático, Araújo declarou que o artigo fora escrito por “paladinos da hipocrisia” e “figuras menores”.
Recentemente, o jornal O Globo publicou uma reportagem em que mostra como a Funag se transformou num think thank dedicado ao pensamento conspiracionista do escritor Olavo de Carvalho, que foi responsável pela indicação de Araújo ao Itamaraty. Sob a direção de Roberto Goidanich, a Funag abriu espaço para blogueiros e militantes bolsonaristas darem palestras em vez de professores e diplomatas.
Nas exposições que o jornal acompanhou, palestrantes disseram que o ex-presidente americano Barack Obama é um “radical de extrema esquerda” e que o uso de máscaras contra a Covid-19 se assemelha aos gulags criados pelo ditador soviético Josef Stalin.
O aparelhamento ideológico tem preocupado diplomatas e acadêmicos porque a Funag sempre exerceu um papel importante na formação do pensamento de jovens que ingressam na carreira. Há o temor de que, no futuro, obras de Olavo de Carvalho sejam incluídas nos exames do Instituto Rio Branco, que organiza os concursos para diplomatas.


sábado, 28 de março de 2020

Ian Bremmer: Perto de Bolsonaro, Trump parece o Churchill, diz CEO da Eurasia (Veja)

Perto de Bolsonaro, Trump parece o Churchill, diz CEO da Eurasia

Em entrevista a VEJA, Ian Bremmer diz que o 'lockdown' é fundamental 

para salvar a economia e que o mundo sairá da crise mais desglobalizado

Por Eduardo Gonçalves - Atualizado em 27 mar 2020, 18h43 

O presidente da Eurasia, Ian Bremmer Richard Jopson/

Especialista em calcular o risco de crises no mundo, o presidente e fundador da consultoria Eurasia, Ian Bremmer, se tornou, no âmbito internacional, um dos maiores críticos à forma como o presidente Jair Bolsonaro tem lidado com a crise de coronavírus. Em suas análises diárias, ele já disse à população brasileira que pratique o “distanciamento social” de Bolsonaro e que, comparado com o brasileiro, o presidente norte-americano Donald Trump parece um estadista.
Comandada por Bremmer, a consultoria já fazia projeções de que o mundo passaria por um processo de instablidade política e desglobalização antes do surgimento da pandemia do coronavírus, o que agora só tende a se amplificar. Com escritórios ao redor do mundo, incluindo o Brasil, a instituição produz análises a clientes interessados em saber onde há mais oportunidades e menos riscos para aplicar os seus investimentos. Em entrevista a VEJA, Bremmer afirmou que Bolsonaro era a “melhor oportunidade” para a implementação de uma agenda reformista no país, mas que ele vem colocando isso a perder ao priorizar a economia na fase inicial de uma crise de saúde pública.
Como o sr. analisa os pronunciamentos de Bolsonaro e Trump nesta semana de que é mais importante preservar a economia do aplicar um isolamento total para conter o coronavírus? Os dois estão preocupados com os impactos econômicos da crise, e com a sua popularidade também. Mas Trump parece estar focado em medidas de isolamento e alívio financeiro, enquanto Bolsonaro está mais concentrado no lado econômico da equação. Só que a escolha entre a saúde pública e a economia é ainda mais desafiadora para Bolsonaro, dado que o Brasil não tem as mesmas reservas econômicas que os Estados Unidos. Globalmente falando, Bolsonaro está sozinho nesta equação e está apostando perigosamente cedo na preocupação majoritária com a economia em detrimento da saúde das pessoas que movem essa economia. O tempo dirá se eles pagarão um preço político por isso.
Por que o sr. escreveu que Bolsonaro é um “líder ineficaz”? Os governos que têm anunciado medidas mais drásticas estão sendo recompensados com amplo apoio público. Bolsonaro, por outro lado, insiste em subestimar a gravidade e detona os governadores que vêm adotando ações mais fortes. Isso pode lhe custar um preço muito alto do ponto de vista da opinião pública. O único político eleito que rivaliza com Bolsonaro em ineficácia é o presidente do México, Andrés Obrador, que continua percorrendo o país e fazendo campanha. Comparado com os dois, Donald Trump até parece Winston Churchill (o grande líder inglês na II Guerra Mundial). É importante dizer que o lockdown é fundamental para salvar a economia a longo prazo.
Em março de 2016, a Eurasia classificou o impeachment de Dilma Rousseff como “provável”, o que aconteceu meses depois. Bolsonaro também pode cair? Ainda não estamos na categoria do “provável”, mas esse erro de cálculo dele acaba pondo o afastamento no radar. O potencial de ele sofrer uma queda significativa em sua popularidade e um ambiente político desafiador pós-crise criam essa possibilidade. Agora, é claro, dependerá do que ele vai fazer nos próximos meses. Os momentos mais dramáticos ainda estão por vir. Cada vez mais, Bolsonaro demonstra não ter o caráter nem a capacidade de dar uma resposta efetiva. O único lado positivo é que ele tem um time altamente qualificado, como o ministro da Saúde e a equipe econômica.
Globalmente falando, Bolsonaro está sozinho nesta equação e está apostando perigosamente cedo na preocupação majoritária com a economia em detrimento da saúde das pessoas que movem essa economia
Logo após a eleição de 2018, a Eurasia avaliou que Bolsonaro era a “melhor oportunidade” de implementar uma agenda reformista e que as instituições brasileiras “continuavam sólidas”. Ainda concorda com isso? Sim, mas Bolsonaro está perdendo sua janela de oportunidade para fazer um bom governo. Antes dessa crise, víamos um círculo virtuoso, com um Congresso reformista e uma economia em recuperação. Esse círculo agora está quebrado com a crise. O Parlamento deve se concentrar em medidas de alívio de curto prazo, e o erro de cálculo do presidente pode levar a uma queda no seu apoio popular, o que o fará dobrar a aposta na polarização política. Algumas reformas ainda podem avançar, mas, com esses novos fatores em jogo, nossa equipe brasileira rebaixou as trajetórias de curto e de longo prazo do país. É um erro estratégico do presidente priorizar o crescimento econômico na fase inicial da crise.
Nos últimos relatórios, o sr. disse que a pandemia de coronavírus pode paralisar a globalização no mundo e até promover o fenômeno chamado de ‘desglobalização’? Pode explicar melhor. A trajetória da globalização já estava mudando, diante da guerra fria tecnológica entre os Estados Unidos e a China, bem como a importância reduzida do trabalho dos setores da indústria e serviços (também em grande parte por causa da crescimento tecnológico). Agora, com o coronavírus, teremos uma intensificação dramática desse processo. O mundo provavelmente se afastará mais das cadeias de suprimentos “just in time” para as de “just in case”. Também haverá uma escalada na tensão entre EUA e China.
O que o sr. acha do posicionamento de alguns setores da direita americana e brasileira de que as medidas de reação ao coronavírus podem causar mais danos do que a própria doença? Certamente, este é um dilema crítico. Permitir que a economia reinicie dá chances ao surgimento de novos surtos. A ausência de coordenação nacional e global torna esse problema ainda pior.
O erro de cálculo do presidente Jair Bolsonaro pode levar a uma queda no seu apoio popular, o que o fará dobrar a aposta na polarização política
É possível medir o impacto econômico que a pandemia terá no mundo? E no Brasil? Depois da crise, o mundo emergirá muito mais instável politicamente, o que será uma consequência muito diferente da que vivemos no estouro da bolha imobiliária de 2008 e depois do atentado de 11 de setembro de 2001. Nessas duas épocas, nós tivemos uma crise financeira global, mas a arquitetura geral da ordem geopolítica não mudou. O que nós vemos agora é o crescimento da desigualdade, da fragilização das democracias como o sistema de governança mais atraente, e da dificuldade do mundo em responder coletivamente aos desafios globais futuros, como a inteligência artificial e os problemas ambientais. No Brasil, há uma pobreza maior do que em países do hemisfério norte. Portanto, se o surto de coronavírus tiver a mesma dimensão do que nessas nações, a escala de sofrimento humano será muito maior.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Conselhos de Claudio Moura Castro aos aposentados (Veja)

Não falar de remédios, doenças, desaparecimentos. Manter seu caderninho de endereços ativo e permanecer aberto a convites, mesmo para falar de graça.
Paulo Roberto de Almeida

24/01/2020 | Banco Mundial | Revista Veja 

Cláudio de Moura Castro


    DAS INCONVENIÊNCIAS DE FICAR VELHO
    E o antigo caderninho de endereços também vai envelhecendo
    NÃO SE DEVEM tomar estatinas, explicou-me longamente um amigo. Um mês depois, morreu do coração. Qual a sua glicemia? Câncer de próstata, é mesmo? Quem foi o colega de colégio que teve um AVC? Caiu no banheiro? Prótese no joelho bichado? Gostou da UTI do Einstein? Quantos stents? Assim vão as conversas de velho, em uma espiral infindável e incontida. Como profilaxia preventiva, um grupo de conhecidos fez um pacto solene: é proibido falar de doença!
    Como fazem os aposentados para preencher o seu dia? A Lei de Parkinson responde: o que quer que precise ser feito vai consumir todo o tempo.
    Comprar um remédio pode ser empreitada para uma tarde inteira. Vestir-se, conferir a receita, ir à farmácia, checar as novidades e trocar ideias com o farmacêutico. Já em casa, ler a bula e ligar para o amigo, narrando os detalhes da expedição.
    Essas questões não são, a rigor, o tema desta crônica, mas, sim, o esforço de manter minha atividade de pesquisador, escritor e conferencista. Meu sucesso na empreitada depende de uma rede de conhecimentos bem azeitada. Por exemplo, a ex-estagiária foi para o Banco Mundial e, de lá, convidou-me para a Clinton Initiative, na qual conheci um brasileiro que me levou para um evento em Londres. Uma consultoria, oferecida por um colega do BID, me aproximou de alguém que me convidou para vários eventos na América Central. Alguém ouviu minha conferência em Santiago e me chamou para falar na Universidad de La Frontera. É o networking, em plena pujança. Sucesso para quem tem um poderoso caderninho de endereços.
    A desgraça é que os amigos, colegas e conhecidos vão se aposentando ou morrendo. Está com Alzheimer o empresário que me levava para visitar seus programas sociais. A ex-estagiária que assumiu bons cargos foi criar cavalos na Bolívia. O amigo em uma posição crítica agora cuida da sua fazenda. Outro virou expert em vinhos e arqueólogo amador.
    Uma a uma, o supremo adversário come as minhas pedras no xadrez da vida. Desfalca-se a network, com efeitos catastróficos. Serão as redes sociais uma poção mágica para sobreviver nessa área? Quem sabe? As conferências remuneradas escasseiam e as de graça permanecem. Mas, sem aceitar essas últimas, cai a probabilidade das primeiras. Conselho: jamais volte, muitos anos depois, a uma instituição onde trabalhou. Fui à Organização Internacional do Trabalho com a memória dos cumprimentos simpáticos pelos corredores. Vi-me um completo forasteiro. Apenas reconheci o garçom e o jardineiro.
    No passivo, diante das novas piruetas e façanhas econométricas, tenho de pedir socorro à nova geração. No ativo, os anos de experiência permitem entender o âmago das questões mais rapidamente e com menos leituras. Sinto que capto o ponto central de um tema, enquanto os jovens se perdem nas tecnicalidades. A inconveniência reside no enorme esforço para remendar a network e conseguir atividades interessantes. E, aqui, luto contra a natureza, pois preciso de toda a energia, na idade em que o ciclo de vida joga contra. Mas não perdi a guerra. Continuo escrevendo, falando e pesquisando.