Minhas professoras favoritas: saudades do Vocacional
(um tributo a quem foi decisivo em minha formação)
Paulo Roberto de Almeida
O aluno e suas professoras preferidas, de Geografia e
de História (SP, 2004)
Paulo Roberto de Almeida, Professoras Odila Feres e
Maria Fonseca Frascino
Um humorista americano da
primeira metade do século XX, Will Rogers – nos EUA, humoristas passam por serem
filósofos igualmente, a exemplo do grande escritor Mark Twain, ou do satirista Louis
Mencken –, tinha uma frase que eu selecionei para introduzir a seção relativa
aos trabalhos originais do meu site. Ele dizia que, na vida, “as pessoas
aprendem de duas maneiras: uma pela leitura, a outra em associação com pessoas
mais espertas”. A frase exata, no original, é a seguinte: “A man only learns in
two ways, one by reading, and the other by association with smarter people”.
Se, no meu site (ver: http://www.pralmeida.org/03Originais/00originais.html), eu selecionei essa
frase para sintetizar o que representam os trabalhos acadêmicos no conjunto de
minhas atividades profissionais e intelectuais é porque ela simboliza
exatamente o método de aprendizado que mais desde sempre esteve associado à
minha formação e ao processo de incorporação de novos conhecimentos ao estoque de
saberes pacientemente acumulado ao longo de anos e anos de estudos formais e de
aprendizado informal. Essas duas vias estão justamente na base do profissional
e do acadêmico que sou hoje: de um lado, os livros, todos eles; de outros,
pessoas mais espertas, várias.
Em relação aos livros,
minha interação foi relativamente tardia: só comecei a ler, realmente, quando
ingressei no curso primário, já na idade “avançada” de sete anos. Venho, desde
então, procurando recuperar o “atraso”. A partir de minha autonomia na leitura,
provavelmente um ano e meio depois, nunca mais parei de ler, todos os livros
que me chegam às mãos, em toda e qualquer circunstância (menos, é claro, aqueles
muito idiotas). A coisa mais importante que aconteceu em minha vida infantil, e
que se prolongou até a primeira adolescência, foi ter à minha disposição a
Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, minha “residência secundária” – eu
até diria primária – por vários anos, entre 1956 e 1962, mas ela já o era, mesmo
antes de começar a ler.
Ela ficava apenas a um
quarteirão e meio de distância da modesta casa em que habitávamos em São Paulo,
no bairro periférico que então levava o nome de Chácara Itaim (hoje Itaim Bibi,
uma pujante aglomeração de prédios de luxo). Em lugar de passar a tarde jogando
“pelada” com os demais garotos nos campinhos de várzea, eu me refugiava quase
todas as tardes na biblioteca para ler todos os livros interessantes (e ainda
retirava um ou dois para ler de noite, já deitado na cama). Eu me fiz nos
livros, pelos livros, com os livros, e devo à Biblioteca Anne Frank a fase formativa
mais importante da primeira etapa de minha vida intelectual. Já adulto,
percorri uma vez as estantes da biblioteca para registrar os livros que havia
lido enquanto criança, uma lista que infelizmente se perdeu naqueles tempos de
primeiros computadores portáteis (o que levei, se bem me lembro, era um
Sinclair, britânico, dos anos 1980).
A segunda coisa mais
importante que aconteceu em minha vida foi ter tido a oportunidade de conviver
com pessoas mais espertas, pelo menos do ponto de vista de um adolescente que,
aos doze anos, teve a inacreditável chance de começar o ciclo ginasial – então
a primeira fase do secundário – numa instituição excepcional, o Ginásio
Estadual Vocacional Oswaldo Aranha. Durante os quatro anos do GEVOA, eu pude me
beneficiar do ensino ministrado por professores excepcionais, dentre os quais cabe
agora destacar as minhas “heroínas preferidas”, as professoras de Geografia e
de História, que sempre foram minhas matérias de estimação. “Dona” Odila Feres,
a “gordinha” da Geografia, e “Mariazinha” Fonseca Frascino, a “magrinha” da
História, foram essas heroínas, ainda que elas não tenham desconfiado dessa
minha paixão secreta (na verdade, muito pouco discreta) pelas duas matérias
pelas quais eram responsáveis, aliás intimamente associadas, nos métodos, nos
conteúdos e nas práticas.
Como ainda disse o mesmo “filósofo”
Will Rogers, “todo mundo é ignorante, mas em assuntos diferentes”. Quando
ingressei no Vocacional, eu certamente não era um ignorante no que se referia à
História. Desde quando li a adaptação de Monteiro Lobato do História do Mundo para as Crianças,
ainda no primário, tornei-me um fanático por livros de história, mesmo se não
me orientei para essa disciplina na vida acadêmica ou profissional. Cheguei ao
ponto de decorar algumas das dinastias de faraós do antigo Egito e de, já
levemente agnóstico, ler a Bíblia unicamente pelo seu forte conteúdo histórico,
onde estavam relatados episódios políticos e guerreiros de toda a região
coberta pelos dois testamentos. Assim, precocemente contaminado pelo vírus da História,
eu só podia ficar fascinado pelas aulas da Professora “Mariazinha”.
Mas, até ingressar no
Vocacional, eu era, provavelmente, bem mais ignorante em Geografia. Foi nessa
área que a Professora Odila teve fundamental importância, ao me prover de
conhecimentos sólidos, de novos saberes, que solidificaram minha paixão pelas
duas matérias conjuntamente. Aliás, as duas matérias era dadas imbricadas uma
na outra: começávamos com o estudo da comunidade local, passávamos ao estado de
São Paulo, depois ao Brasil e o mundo, sempre fazendo levantamentos geográficos
e sociais e estudando o itinerário histórico de cada uma dessas “entidades”.
Ambas as professoras nos acompanhavam nas “saídas de estudo”, nas visitas
locais, nas regionais (aos outros GVs do estado), e mesmo fora do estado, com
aulas que não paravam sequer nos trajetos: Dona Odila nos recomendava observar
as ondulações e cores dos terrenos das janelas dos ônibus, fazer o registro das
formações geológicas do interior de São Paulo e observar a terra roxa do café
no norte do Paraná, no seguimento da marcha do produto mais importante da
história econômica do Brasil. Entre uma subida “geográfica” ao pico do Jaraguá,
e uma incursão “histórica” (e também política) ao Rio de Janeiro, todos nós
passamos a conhecer o Brasil, da melhor forma possível. A fórmula era simples,
mas ao mesmo tempo sofisticada: unir o estudo teórico ao conhecimento prático,
era isso o que tínhamos nas aulas e visitas com as duas “fadas madrinhas” dos
estudos sociais.
A verdade, no entanto, é
que pudemos desfrutar de muito mais do que simples aulas de História e de Geografia.
Lembro-me perfeitamente, ainda hoje, de alguns encontros que foram decisivos
para fixar e consolidar meu profundo interesse nas ciências sociais e que desde
a adolescência me dirigiram para essa disciplina em nível universitário, a
despeito de tentativas familiares de me orientarem para uma inefável (e
detestada) carreira na advocacia. Ambas professoras tinham estudado com mestres
da USP, da famosa Fefelech, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, provavelmente a primeira geração daqueles que tinham sido formados por
mestres da França e de outros países, que tinham vindo ao Brasil nas primeiras
décadas de existência da primeira universidade estadual de São Paulo. A USP
passou a ser, então, o meu objetivo intelectual, e, com meros 13 ou 14 anos,
passei a ler os livros de seus professores muito tempo antes de poder ingressar
na Faculdade, em Ciências Sociais, justamente. Muitas dessas recomendações de
leitura, registro, foram dadas por elas.
Foi assim, por exemplo,
que fomos levados pelas duas à casa do historiador Sérgio Buarque de Holanda,
um pequeno sobrado no Pacaembu, junto ao qual ficamos sabendo que ele era o pai
de um jovem compositor de música popular que despontava então com algumas
canções inovadoras, bem diferentes no velho repertório dos velhos boleros e
sambas-canção a que estávamos acostumados. Foi com elas, também, que visitamos
um arqueólogo da USP, Ulpiano Bezerra de Menezes, de quem ouvi uma recomendação
jamais esquecida desde então: manter, com respeito a qualquer processo de
pesquisa e de investigação intelectual, um “ceticismo sadio”, ou seja, uma atitude
de desconfiança curiosa em relação a qualquer argumento ou prova “empírica” de
um evento ou fato qualquer, buscar seus fundamentos, aprofundar o conhecimento.
Foi, provavelmente, um dos mais importantes conselhos metodológicos de que
guardei lembrança, e que me serve de guia em qualquer circunstância, e que está
na origem de minha postura moderadamente “contrarianista”.
Tudo isto que posso agora
recordar, no mesmo momento em que registro estas poucas recordações, ficou
gravado de maneira indelével em minha mente, de maneira profunda e persistente,
tão claras eram as exposições de ambas as professoras sobre todos esses matizes
dos estudos sociais. Lembro-me de várias recomendações de leituras, entre elas
algumas traduções brasileiras dos livrinhos da coleção Que Sais-je?, no Brasil publicados como “Saber Atual”. Um deles me
impressionou vivamente: o geógrafo francês Yves Lacoste, ainda no início dos
anos 1960, insistia em colocar o Japão entre os “países subdesenvolvidos”. Anos
mais tarde, fui conferir tal curiosidade na edição original francesa: Les Pays Sous-développés (creio que a
primeira edição era de 1955). De fato, essa inclusão estava nas primeiras
edições, e a explicação se dava pelo lado da demografia, ainda relativamente
galopante no Japão, como de resto no Brasil. Em todo caso, nos tempos do
Vocacional, eu fui muitas vezes ver filmes de samurai no bairro japonês da
Liberdade e nunca me pareceu que aquele povo limpo, correto, organizado, fosse
tão “subdesenvolvido” quanto os brasileiros pobres que circulavam pelas ruas:
contrastes tão visíveis me indicavam que algo estava errado na classificação do
geógrafo francês. Mas, foi a Dona Odila quem mencionou o livro...
As pesquisas, orientadas
por ambas, eram sérias, e quase de nível universitário, para garotos e garotas
entre os 12 e os 15 anos. Lembro-me, por exemplo, que para cada visita a
municípios do estado, ou fora dele, consultávamos previamente a Enciclopédia
dos Municípios Brasileiros, enorme publicação do IBGE em grossos volumes de cor
cinza. Era a partir dessas pesquisas que fazíamos mapas bem cuidados, em papel de
seda, colorindo rios, montanhas, acidentes geográficos, cidades e estradas. Tudo
o que era humanamente possível aprender em História e Geografia estava à nossa
disposição, através das duas queridas professoras, as que mais recordo de todos
os mestres das muitas matérias que tínhamos no Vocacional. Tudo aquilo era a
abundância do saber, quase a plenitude do conhecimento, tudo o que eu sempre
valorizei na vida.
Aliás, para mim, que vinha
de uma família modesta, sem livros em casa, com pai e mãe que sequer tinham
concluído o ensino primário, o Vocacional foi mais do que uma escola, ou um
local de aprendizado: foi uma universidade precoce, um verdadeiro templo da
educação, num ambiente sadio, desafiador e ao mesmo tempo acolhedor. Sem o
Vocacional Oswaldo Aranha – e sem a Biblioteca Anne Frank, antes dele – eu não
teria sido o profissional bem sucedido que fui na vida adulta, bem como nas
atividades acadêmicas que sempre exerci paralelamente à carreira diplomática.
Não existe um só terreno dos conhecimentos em humanidades, mesmo em alto grau
de especialização e de sofisticação, no qual eu não descubra uma semente ou um
fundamento enraizados naqueles quatro anos durante os quais frequentei o magnífico
ginásio do Brooklin.
Fui, realmente, muito
feliz ao longo de todos aqueles anos, cada um deles identificado com algum
evento político, no Brasil ou no mundo, que por acaso também me levaram na
direção dos estudos de questões internacionais, às quais estou ligado profissionalmente
desde meu ingresso na carreira diplomática no final dos anos 1970. Em 1962, por
exemplo, ocorreu o famoso episódio da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, uma
crise geopolítica maior das relações internacionais na era da Guerra Fria, cuja
dimensão dramática nós só fomos descobrir, um ou dois anos mais tarde, a partir
de uma palestra feita no Vocacional por Oliveiros da Silva Ferreira, um jovem
editorialista do venerável Estadão, jornal “reacionário” que eu também aprendi
a ler, na precoce idade de treze anos, em função dessa extraordinária abertura
permitida pelo Vocacional. O ano seguinte, 1963, foi marcado por lutas
camponesas no Brasil, conduzidas pelo famoso advogado Francisco Julião, líder
das Ligas Camponesas na zona canavieira no Nordeste (cuja história e geografia também
tínhamos estudado com as professores); daí derivou, suponho, meu esquerdismo
juvenil, desde muito cedo identificado com os conflitos sociais então em curso.
Em 1964, o ano do golpe militar no Brasil, pudemos sentir que algo estava
mudando no ambiente externo, uma nova atmosfera que, poucos anos mais tarde,
iria se refletir no fechamento, pelo regime autoritário, de todos os ginásios
vocacionais existentes no estado de São Paulo. Em 1965, finalmente, a
geopolítica mundial voltou à baila, com a revolução cultural na China, e a
curiosidade que aqueles eventos misteriosos despertavam em nossas mentes
juvenis. Não haverá, por certo, nenhuma surpresa em reconhecer que eu me
politizei precocemente no e por meio do Vocacional Oswaldo Aranha, aliás um patrono
pelo qual guardo especial afeição: não tenho nenhuma dúvida, hoje, conhecida
sua trajetória de estadista e de diplomata, em afirmar que o Brasil teria sido
um país muito diferente do que foi se, em algum momento de sua trajetória
política, entre o começo dos anos 1930 e o final dos 1950, Oswaldo Aranha
tivesse ascendido à suprema magistratura do país.
Os quatro anos que passei
no GEVOA, quando consolidei amizades até hoje mantidas, foram, repito, os mais
decisivos em minha formação intelectual, de resto em minha própria definição ulterior
de vida e de carreira acadêmica, sobretudo na vertente das Humanidades que
estou aqui destacando. Foi tão grande o impacto exercido sobre mim pelas duas
professoras de Estudos Sociais que se tornou inevitável, chegado o momento, a
opção pela mesma área de estudos quando terminei o segundo ciclo do secundário,
o colegial na vertente “clássica”, de preferência à “científica” que constituía
sua segunda vertente. À diferença, provavelmente, de todas as outras disciplinas
que “enfrentei” ao longo dos estudos de graduação e de pós-graduação, jamais
dispendi qualquer esforço adicional no estudo de matérias atinentes à História
e à Geografia, tão forte e tão sólida foi a minha formação nessas duas áreas. Devo
à Dona Odila e a Dona Mariazinha esse meu convício natural com as duas
disciplinas-fundadoras dos estudos sociais, que elas justamente explicavam a
partir de suas raízes clássicas, na Grécia antiga, mas que elas traziam até os
grandes mestres fundadores das ciências sociais no Brasil, os grandes nomes que
pontificavam dos anos 1930 aos 1950.
De todas as áreas e
domínios das ciências sociais e das humanidades em geral, foram essas duas
matérias que sempre me deram um prazer indescritível em ouvir, em ler, em
sintetizar, e mais tarde ao escrever. De todos os exames, bastante rigorosos,
que fiz para o ingresso na carreira diplomática, quando tive de me debruçar
sobre livros de direito, de economia e de inglês, praticamente não me ocupei,
quase nada, de História e de Geografia, tão forte era a minha confiança no
conhecimento acumulado desde a primeira adolescência nessas duas disciplinas. A
lembrança das duas jovens professoras foi inevitável naquelas horas, como ainda
é hoje, cinquenta anos depois de concluído o Vocacional e quase quarenta de
vida profissional e acadêmica.
Às duas professoras, meu sincero
carinho e meu total reconhecimento, com um grande sentimento de satisfação intelectual
por ter tido o privilégio de desfrutar de suas aulas altamente motivadoras. Minha
homenagem especial à Dona Odila Feres, meu “anjo da guarda geográfico”,
presença ainda viva e testemunha vibrante dos nossos “anos dourados” de
incorporação ao mundo juvenil (na verdade quase adulto, tão ricas e profundas eram
suas aulas nesse terreno).
Muito do que sou hoje,
intelectualmente falando, devo ao que aprendi nesses anos do Vocacional Oswaldo
Aranha, em especial com as minhas duas professoras preferidas. Devo a elas o
primeiro contato direto, fascinante, com a obra de um grande historiador
brasileiro, como também a oportunidade de erigir em padrão de conduta na
pesquisa acadêmica o “ceticismo sadio” do arqueólogo uspiano, atitude que
sempre caracterizou todos os meus empreendimentos intelectuais desde então. Lições
como essas não se aprendem apenas nos livros: elas requerem pessoas mais
espertas que nos guiem os passos e as reflexões.
Muito obrigado, de
coração, e um grande beijo de saudades...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2921: 19-21 de janeiro de 2016, 7 p.