O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

Mostrando postagens com marcador Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O traço todo de minha vida no Vocacional Oswaldo Aranha - Paulo Roberto de Almeida

What a difference a school makes...
O traço todo de minha vida no Vocacional Oswaldo Aranha

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de janeiro de 2010
Aluno da primeira turma (1962-1965) do
Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha
Avenida Portugal, Brooklin, São Paulo, SP.


“O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber...”, escreveu Joaquim Nabuco no começo de Minha Formação (1900), quando ele se refere ao período transcorrido no Engenho Massangana, no qual passou os primeiros oito anos de sua vida e onde recolheu suas primeiras impressões sobre o mundo. Nabuco continua dizendo que esses anos teriam sido decisivos na constituição de sua personalidade: “Pela minha parte acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras impressões...”
De minha parte, o traço todo de minha vida foi indelevelmente marcado pelos quatro anos que passei, adolescente, no Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha, inaugurado em 1962 justamente pela minha turma, pioneiríssima de uma experiência inédita no Brasil, de educação integral e radicalmente diversa de tudo o que se fazia até então em matéria de formação de jovens. A “minha formação”, se eu tivesse de escrever um livro equivalente de memórias, teria de reservar um largo espaço ao Vocacional, tão importante ele foi para a formação de meu caráter, para a definição de minhas orientações intelectuais, das minhas quatro ou cinco primeiras impressões do Brasil e do mundo. Ao “Ginásio” devo o que sou, hoje, e o reconheço plenamente, com toda a saudade que uma memória fugidia pode trazer para a mente do homem maduro, que sou hoje, esses anos de juventude passados num ambiente verdadeiramente excepcional para o jovem que eu era no começo dos anos 1960.

Até onde minha mente alcança, no recuo para as origens, me vejo um garoto brincalhão, num bairro rarefeito da então periferia da cidade de São Paulo, quase às margens do rio Pinheiros, numa pequena rua de terra, cercada de terrenos baldios – onde a “molecada” (esse era o termo) do bairro disputava animadas peladas de futebol, corridas de pegar, piques, pião, taco e outras brincadeiras típicas de garotos de famílias modestas –, zona repicada de casas simplórias de alvenaria, praticamente nenhum edifício ou construção mais imponente, no que era então a Chácara Itaim (mais tarde chamado de Itaim-Bibi, para distingui-lo de outro bairro com o nome de Itaim Paulista). Além de brincar na rua, também frequentava o Parque Infantil, ou seja, a pré-escola municipal – da qual me lembro da gangorra e da merenda à base de leite e pão com goiabada – e, mesmo antes de aprender a ler, a Biblioteca Infantil, para jogos de salão e as sessões de cinema às quintas-feiras: Os Três Patetas, Gordo e Magro, Roy Rogers, Tarzan e Oscarito e Grande Otelo eram os filmes habituais, numa época em que o cinema nacional era feito sobretudo dessas comédias-pastelão.
Esse era o lado risonho de uma existência bem mais dura, já que meus pais, ambos com primário incompleto, não tinham condições de assegurar sequer o mínimo para manter o lar, então uma modesta casinha com dois cômodos nos fundos de um terreno relativamente grande para os padrões de renda que eram os nossos. Aliás, falar de renda seria um exagero, pois que os ganhos conjuntos de meu pai, um modesto motorista de entregas numa torrefação de café, e os de minha mãe, como lavadeira “para fora”, certamente não alcançavam para todas as necessidades da casa. Eu e meu irmão Luiz Flávio tivemos portanto de trabalhar, desde muito cedo, primeiro recolhendo restos de metal nos fundos de uma fábrica – para revendê-los ao ‘ferro-velho’ –, depois como pegadores de bolas de tênis no Clube Pinheiros, mais adiante como empacotadores à base de gorjetas no supermercado Peg-Pag; lembro-me da lanchonete de estilo americano na esquina do comércio, da qual eu cobiçava (sem ter dinheiro para comprar) sobretudo os sundayse os banana-splits
Ao aprender a ler, na tardia idade de sete anos, pude finalmente começar a frequentar de verdade a Biblioteca Infantil Anne Frank, onde devo ter passado o essencial de minha infância e pré-adolescência: deixando os jogos de lado, eu ficava o tempo todo na sala de leitura, de onde também retirava, dia sim, dia não, dois ou três livros para continuar a leitura em casa, de noite, deitado na cama, à contraluz; Monteiro Lobato, obviamente, e tudo o mais que me interessasse. Farei, em outro depoimento, a relação de minhas leituras juvenis, mas não poderia deixar passar o História do Mundo para as Crianças, adaptado por Monteiro Lobato de uma edição americana, um livro que foi verdadeiramente decisivo em minha formação e em minha orientação para os estudos humanísticos: devo tê-lo lido várias vezes, pois que, ao entrar para o Vocacional, eu era um “craque” – segundo a gíria da época – em todas as fases da História, da antiguidade à era moderna e mais além. 

A Grande Transformação 
Terminando os estudos primários na Escola Pública Municipal Aristides de Castro, a dez minutos de caminhada de casa, ainda fiz um “quinto ano” – que não era obrigatório, e muitos alunos de minha condição deixavam então o ensino formal – na mesma escola, sendo esse o caminho de “admissão” (o nome alternativo desse ano suplementar) para os estudos ginasiais, ou seja, o começo do segundo ciclo no Brasil, nessa época composto de “ginásio” e “colégio”, a última fase antes do terceiro grau.
Ninguém na minha família estendida tinha chegado então ao segundo ciclo e a opção que se apresentou aos meus pais foi a de uma escola técnica, para me dar de imediato uma formação profissional, uma inserção direta na vida ativa, com menos de 14 anos. Lembro-me de ter visitado, com minha mãe, uma escola de artes industriais do sistema Senai, com a intenção de uma possível inscrição no curso de marcenaria, a “profissão” que mais me seduzia no universo provável das modestas possibilidades de uma família sem recursos próprios da periferia de São Paulo. 
Não me lembro bem agora exatamente por que, talvez porque não houvesse vagas no curso de marcenaria para mim, uma alternativa se abriu vinda de não sei bem onde, provavelmente um anúncio de jornal: a outra opção seria tentar uma aprovação em concurso para um novo tipo de ensino que estava sendo inaugurado pelo governador de São Paulo, Carvalho Pinto, os ginásios vocacionais, cinco ao todo no estado de São Paulo. A seleção era rigorosa, envolvendo provas em várias matérias e entrevistas, nas quais devo ter tido um bom desempenho (sinceramente não me lembro dessa parte), posto que fui imediatamente chamado para a inscrição. 
O “problema” que então se colocou era de ordem financeira, ou talvez, mais exatamente, orçamentária: esse ginásio inédito exigia frequência integral, em lugar das três ou quatro horas dos ginásios tradicionais, o que colocaria minha família em “dificuldades”. Com efeito, os modestos aportes meus e de meu irmão, em nossas atividades “pecuniárias”, faziam parte integral do orçamento do lar, e minha retirada do “mercado de trabalho” provocaria um déficit primário nos seus recursos líquidos. A “grande transformação” em minha vida foi representada pela decisão familiar de que o garoto de doze anos recém completados que eu era, merecedor pelo sucesso na seleção, seria dispensado dos trabalhos remunerados para seguir quase integralmente a via dos estudos de segundo ciclo, de certa forma um “privilégio de classe”. Foi, provavelmente, o tournantmais importante dessa fase juvenil e para o resto da vida.
Quando digo “dispensado de trabalhos remunerados”, isso não é totalmente correto, posto que continuei, aos sábados pelo menos e provavelmente aos domingos também, a empacotar compras no supermercado Peg-Pag, praticamente durante todo período de estudos ginasiais. Quando se vem de uma família extremamente modesta como era a minha, nenhum aporte é dispensável para o mínimo de conforto de que desfrutávamos. Não tínhamos, obviamente, nem televisão, nem telefone em casa, se tanto um aparelho de rádio, o que de certa forma deve ter contribuído para meus hábitos de leitura intensa e, certamente, aplainou facilmente meu ingresso tranquilo na seleção dos vocacionais. 

Finalmente, o Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha 
Aos doze anos, com uma grande “cultura histórica universal” – especialmente na antiguidade egípcia e grega clássica –, eu dispunha, no entanto, de escassa cultura política brasileira contemporânea, e não tinha a menor ideia de quem fosse Oswaldo Aranha, que não podia, assim servir de premonição para a minha carreira futura na diplomacia. Minha entrada no Vocacional Oswaldo Aranha representou, sem qualquer sombra de dúvida, a mais importante ‘ascensão social’ em minha vida, antes do próprio ingresso na carreira diplomática, constituindo, portanto, uma espécie de ruptura entre o passado modesto, numa família de classe média baixa (provavelmente menos do que isso), e um futuro então em construção e largamente indefinido.
Talvez não tenha sido uma ruptura consolidada, pois que me lembro de que, em certas fases, minha mãe cogitou de me tirar do Vocacional para me colocar num ginásio tradicional, como meu irmão maior, por razoes sempre pecuniárias: não apenas eu não contribuía mais para o orçamento da casa, como passei a representar um ‘peso’, posto que o Vocacional tinha grandes exigências em se tratando de material de estudo e de atividades extraclasse (pagamento de ônibus de viagem, dinheiro de bolso para essas saídas etc.). Todos os meus colegas, com pouquíssimas exceções, eram de famílias de classe média, algumas até abastadas, o que era visível em traços exteriores – a despeito do uniforme e da democracia ambiente – e nas referências às compras, aos objetos pessoais, aos filmes e discos. Também tínhamos essas festinhas de fim de semana, nas casas de colegas, animadas a Cuba Libre (rum com Coca-Cola, para os mais jovens) e Hi-Fi(vodkacom Fanta), música dos Beatles naquelas ‘bolachas de vitrola’ (acho que muita gente hoje não tem ideia do que seja). Eu frequentava todos os eventos, mas por vezes não tinha condições de pagar toda a programação escolar, ou convidar de volta os colegas de classe, para uma casa que nunca teve ‘vitrola’ nem bebidas daquele tipo, sequer sala ou garagem para os bailinhos. 
Tirante esses ‘constrangimentos’ – os do próprio ginásio resolvidos muito amigavelmente com a ajuda da psicóloga Gloria Pimentel e da pedagoga Olga Teresa Bechara –, o Vocacional representou uma das mais vibrantes aventuras intelectuais de minha vida, talvez a mais importante que um jovem como eu poderia esperar receber de uma instituição de ensino. Para ser mais exato, tenho certeza de que seguiria, de qualquer forma, uma carreira ‘intelectual’, posto que desde o primeiro momento que me aproximei dos livros, fui fisgado pelo seu extraordinário poder de sedução e nunca mais consegui me desvencilhar do feitiço que eles carregam. Mas, a passagem por um ginásio tradicional ou o desvio para uma escola técnica provavelmente me fariam perder anos de ensino excepcional e me retirariam a motivação para perseguir o que sempre gostei de fazer: ler (todo tipo de leitura), escrever (sempre), pesquisar e, se possível, publicar os meus textos. Com o Vocacional, eu fiz tudo isso; sem ele, eu teria tido menos chances, se alguma, de avançar nos meus objetivos. 

O que o Vocacional tinha de diferente?
Antes de tudo, uma educação humanista, no sentido mais renascentista do termo. Em segundo lugar, professores especialmente preparados e motivados para essa experiência inédita no Brasil, uma metodologia radicalmente inovadora de ensino, envolvendo os estudantes e os professores num aprendizado integral. Em terceiro (e mais importante) lugar, concepções pedagógicas revolucionárias quanto ao relacionamento entre mestres e alunos. 
Passávamos todo o dia no ginásio, às vezes mais do que isso, com as frequentes visitas e saídas em trabalho de grupo, no município, no estado, no Brasil. Tivemos visitas recíprocas entre os ginásios vocacionais de São Paulo, aliás, os únicos do Brasil, e aprendemos a fazer pesquisa sobre a comunidade, sobre o meio geográfico, sobre as historias respectivas. Foi no Vocacional que eu comecei a manipular “instrumentos de adultos”, como a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e outras ferramentas especializadas. Foi o Vocacional que nos levou, garotos de 13 ou 14 anos, ao encontro de professores da USP, como Sérgio Buarque de Holanda, Ulpiano Bezerra de Menezes e vários outros. No Vocacional adquiri consciência do mundo: lembro-me perfeitamente de uma palestra com Oliveiros da Silva Ferreira, quem primeiro informou-me sobre a crise dos foguetes em Cuba e o bailado sinuoso da geopolítica bipolar e do equilíbrio do terror pelas armas nucleares das duas superpotências.
Foi a partir do Vocacional que adquiri independência e disposição para me aventurar sozinho pelo mundo, quando a ocasião se apresentou ou quando a necessidade se impôs. O Vocacional completou a “minha formação” de uma maneira que nenhuma outra instituição poderia ter feito, nem jamais conseguiu fazer novamente, depois do desmantelamento do sistema vocacional no seguimento do Ato Institucional n. 5 e a prisão de sua grande promotora, inspiradora e diretora, Maria Nilde Mascellani. Eu também fiquei diferente no Vocacional. Do garoto brincalhão, mas introspectivo e leitor compulsivo, tornei-me um adolescente desinibido, participante e continuei um leitor compulsivo. O Vocacional manteve isso...
Não posso dizer que eu tenha me aborrecido um só dia no Vocacional, ao contrário: todos os dias tínhamos algo novo no ginásio, uma atividade diferente, uma nova parte do programa, o calendário a ser seguido, mas sempre com alguma surpresa no caminho. Fiz excelentes amigos no Vocacional, que conservo até hoje, a despeito mesmo de ter “desaparecido” do Brasil um pouco depois de terminar o colegial e de ter ingressado na Faculdade, e de ter desaparecido no mundo por muitas décadas depois disso. Não vou mencionar meus amigos mais chegados, para não cometer injustiça com ninguém, mas lembro-me de ter iniciado a redação de um romance de aventuras para jovens – do mesmo tipo dos que eu lia naquela fase – com dois deles, que permanecem meus amigos até hoje.
Lembro-me também de muitas aulas, em especial daquelas que mais me prendiam pelo seu conteúdo, já totalmente identificado com minhas afinidades eletivas por toda a vida: eram duas, as de geografia com Dona Odila, as de História com a Professor Terezinha. Em contrapartida, as aulas de Matemática, com a Professor Lucila Bechara, irmã de Olga, sempre me deixaram inconfortável, e até hoje mantenho uma distância respeitosa da matéria (o que não deixo de lamentar, pois a matemática é a base de todo pensamento rigoroso, em especial na economia). As aulas de Educação Física podiam ser agradáveis quando se tratava de jogar handball, com o Professor Frank, mas a ginástica nunca me encantou muito. Mas, tínhamos aulas de tudo o que se podia imaginar numa escola “normal” e muitas outras coisas mais: Artes Plásticas, Artes Industriais, Musica, Economia Doméstica e outras ainda de que nem me lembro. Um depoimento decente de alguém lembrará isso por mim.

Permaneci no GEVOA de 1962 a 1965, anos bastante conturbados no Brasil, quando tomei conhecimento, e consciência, dos problemas do país de uma forma provavelmente menos maniqueísta do que em outras instituições. Creio que sai algo “esquerdista” de lá, como aliás correspondia à juventude progressista de então, no meu caso propensão ainda reforçada pelo fato de minhas origens ditas ‘populares’ e supostamente inclinada a contestar um sistema injusto, feito de exploração capitalista e de dominação imperialista, que convinha acabar, segundo um modelo não muito diferente do que vigia em Cuba.
Quando segui para o “clássico”, no Colégio Estadual Ministro Costa Manso, bem mais próximo de casa do que o Vocacional, comecei imediatamente a participar das passeatas e manifestações contra a ditadura militar e o imperialismo estrangeiro, uma transição quase natural para quem tinha sido educado num ambiente de diálogo e até de contestação às ideias estabelecidas. Também comecei a ler toda a literatura engajada que fazia parte dos currículos oficial e não oficial das faculdades de ciências sociais, autores dos quais eu já tinha ouvido falar no Vocacional, alguns até presentes em minha biblioteca pessoal, que começava então a crescer. Nesses anos, de 1966a 1968, estudando a noite e trabalhando de dia no centro da cidade, eu frequentava as bibliotecas Mario de Andrade, municipal, a universitária da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a corporativa do Centro das Indústrias de São Paulo, e as bibliotecas americanas da USIA, no Consulado americano da Avenida Paulista, e do Centro de Estudos Brasil-Estados Unidos (Cebeu), e poderia facilmente citar de memória muitos livros que retirei em cada uma dessas bibliotecas. 
O Vocacional me tinha preparado para ler literatura de nível universitário numa idade muito precoce e, mais tarde, quando entrei para o curso de Ciências Sociais da USP, eu já conhecia, em grande medida, os autores compilados na bibliografia de referência, pelos menos os brasileiros. Eram os mesmos de que nos falavam os professores no ginásio e isso me foi especialmente gratificante no plano intelectual. Não creio que qualquer outra escola, pública ou particular do ciclo ginasial, teria permitido a um jovem como eu, vindo de uma família que praticamente não dispunha de livros em casa, um contato tão intenso com os mestres das ciências sociais brasileiras, em especial com os gurus da chamada Escola Paulista de Sociologia.

Eu sinceramente lamento que muitos dos papeis acumulados nesses anos de estudos secundários tenham sido perdidos quando de minha partida apressada para a Europa, nos tempos mais duros da ditadura militar no Brasil, da qual eu fui um dos muitos opositores frustrados com nossa incapacidade organizacional em derrubá-la. Provavelmente foi melhor assim, pois já nessa época, nossa adesão ao socialismo e oposição à “democracia burguesa” não prenunciava nada de bom para o futuro do Brasil (mas isso eu só vim a constatar alguns anos mais tarde).
Lamento também que muitos dos escritos dessa fase juvenil tenham sido perdidos, quando foi no Vocacional que “publiquei” meus primeiros artigos. Felizmente, uma reunião de vários colegas dessas primeira turma, em 2004, me permitiu recuperar uma poesia ingênua, dessa fase – não exatamente publicada, apenas redigida no “caderno de lembranças” de uma colega de classe –, e dois textos minúsculos que saíram no jornalzinho dos alunos, um deles comemorando a vitória das ‘meninas’ do handball contra uma equipe adversária de outro ginásio da região. Talvez não seja o caso de refazer minha lista de publicados, para retroceder vários anos na recuperação desses textos de jornalista amador, mas certamente é um motivo de orgulho ter podido encontrar um espaço totalmente livre, no Vocacional, para realizar os primeiros exercícios de um talento que imagino ter conservado até hoje: a capacidade de observar a realidade, redigir algo compreensível em torno disso e ver o texto publicado e divulgado para um público mais amplo.
Enfim, o Vocacional foi uma escola de verdade, uma escola completa, no mais puro sentido dessa palavra; ao ginásio devo alguns dos momentos mais felizes de minha vida, um oásis de inteligência e cordialidade, num ambiente de convivência totalmente aberta e sincera, num momento em que o Brasil descia na escala da convivência democrática. Foi uma das fontes de meu enriquecimento intelectual e a ele devo muito do que me tornei na vida adulta e do que sou ainda hoje.

Que diferença faz uma escola!
E a diferença foi o Vocacional...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de janeiro de 2010.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Vocacional: e ja que estamos falando de saudades dos velhos tempos, uma visita em 2004 - Antonio Carlos Goncalves

Reposto, aqui, uma mensagem de um dos antigos vocacianos do GEVOA, tal como a postei da primeira vez:

O Velho Vocacional: mudamos nós ou mudaram as circunstâncias?
(título de Paulo Roberto de Almeida)

Mensagem do Antonio Carlos Gonçalves, de 7 de outubro de 2004:

Gente,
Estive ontem na escola junto com a Gloria,a Mazé, para verificar os reparos necessários nas instalações do refeitorio e confesso que fiquei meio chapado.  Olhei a escola... aqueles corredores.. as salas de aulas .. , e me vieram lembranças, boas lembranças bons momentos que passamos e que vivemos.
As lembranças começam com aqueles corredores de ceramica vermelha, sempre bem encerado, ( hoje trocado por um piso cinza), das escadas de granilite com corrimão que faziamos de escorregador, do local da cooperativa, hoje um vestiario juntamente com a parede onde pintamos aquele mural . Na minha imaginação eu ainda enxergo o mesmo naquele lugar.
Andei pelo patio externo observando os alunos tendo aula de Ed. fisica e enxerguei a nós mesmos.  A sala do Frank e Ephigenia permanece igual.  A quadra , eu imaginava maior, bem como a arquibancada e também  a cobertura da mesma onde o Prof  Frank nos "ajudava " carinhosamente " a atravessar.   
Lembranças da ginastica de solo, dos colchões verdes, do ping pong , das apresentações de quadrilha , de danças ,da montagem cenografica que fizemos de Santo Amaro.  Gente foi muito gostoso lembrar disso tudo, ali.                                 
Dá tristeza ver as salas , na maioria redivididas,  perderam personalidade , o charme,  olhei para a parede onde estavam os  armários de aço , como querendo vê-los naquele local, só lembranças da posição, da cor.
Me vi correndo pelos corredores como gostava de fazer, até atropelar , na curva em frente a sala de Praticas comerciais, uma professora, que não me lembro quem foi. Me vi afundando o piso do corredor, quando o mesmo estufava, fazendo trabalhos de madeira em artes industriais, fazendo a vitrola, como eu gostava e até hoje curto eletronica.  Me vi em Artes Plasticas, pintando, trabalhando com linóleo(lembram-se) para fazer gravuras, preparando a "tempera" para fazer pintura, as aulas de pintura , os "a fresco" ( não sei se se escreve assim ) preparando tinta com clara de ôvo, a terebentina, etc quantas lembranças, gente, boas lembranças.  Eu dou graças a Deus por ter podido frequentar uma escola que realmente nos preparava  para a familia, para a comunidade e para o mundo.
Observei , porém os atuais alunos, com tristeza. Pessoal , eles não tem nada a ver com o nosso passado, é muito esquisito,é um comportamento muito diferente. Porque essa geração é tão diferente da nossa?
Só sei uma coisa, com certeza, estou resgatando um passado que foi maravilhoso e que me ajudou a formar a  pessoa  que sou hoje.
 
Um grande abraço a todos
Toninho

Pela transcrição:
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 21/01/2016

Ginasio Vocacional Oswaldo Aranha: minhas professoras preferidas - Paulo Roberto de Almeida


Minhas professoras favoritas: saudades do Vocacional
(um tributo a quem foi decisivo em minha formação)

Paulo Roberto de Almeida

O aluno e suas professoras preferidas, de Geografia e de História (SP, 2004)
Paulo Roberto de Almeida, Professoras Odila Feres e Maria Fonseca Frascino 

Um humorista americano da primeira metade do século XX, Will Rogers – nos EUA, humoristas passam por serem filósofos igualmente, a exemplo do grande escritor Mark Twain, ou do satirista Louis Mencken –, tinha uma frase que eu selecionei para introduzir a seção relativa aos trabalhos originais do meu site. Ele dizia que, na vida, “as pessoas aprendem de duas maneiras: uma pela leitura, a outra em associação com pessoas mais espertas”. A frase exata, no original, é a seguinte: “A man only learns in two ways, one by reading, and the other by association with smarter people”.
Se, no meu site (ver: http://www.pralmeida.org/03Originais/00originais.html), eu selecionei essa frase para sintetizar o que representam os trabalhos acadêmicos no conjunto de minhas atividades profissionais e intelectuais é porque ela simboliza exatamente o método de aprendizado que mais desde sempre esteve associado à minha formação e ao processo de incorporação de novos conhecimentos ao estoque de saberes pacientemente acumulado ao longo de anos e anos de estudos formais e de aprendizado informal. Essas duas vias estão justamente na base do profissional e do acadêmico que sou hoje: de um lado, os livros, todos eles; de outros, pessoas mais espertas, várias.
Em relação aos livros, minha interação foi relativamente tardia: só comecei a ler, realmente, quando ingressei no curso primário, já na idade “avançada” de sete anos. Venho, desde então, procurando recuperar o “atraso”. A partir de minha autonomia na leitura, provavelmente um ano e meio depois, nunca mais parei de ler, todos os livros que me chegam às mãos, em toda e qualquer circunstância (menos, é claro, aqueles muito idiotas). A coisa mais importante que aconteceu em minha vida infantil, e que se prolongou até a primeira adolescência, foi ter à minha disposição a Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, minha “residência secundária” – eu até diria primária – por vários anos, entre 1956 e 1962, mas ela já o era, mesmo antes de começar a ler.
Ela ficava apenas a um quarteirão e meio de distância da modesta casa em que habitávamos em São Paulo, no bairro periférico que então levava o nome de Chácara Itaim (hoje Itaim Bibi, uma pujante aglomeração de prédios de luxo). Em lugar de passar a tarde jogando “pelada” com os demais garotos nos campinhos de várzea, eu me refugiava quase todas as tardes na biblioteca para ler todos os livros interessantes (e ainda retirava um ou dois para ler de noite, já deitado na cama). Eu me fiz nos livros, pelos livros, com os livros, e devo à Biblioteca Anne Frank a fase formativa mais importante da primeira etapa de minha vida intelectual. Já adulto, percorri uma vez as estantes da biblioteca para registrar os livros que havia lido enquanto criança, uma lista que infelizmente se perdeu naqueles tempos de primeiros computadores portáteis (o que levei, se bem me lembro, era um Sinclair, britânico, dos anos 1980).
A segunda coisa mais importante que aconteceu em minha vida foi ter tido a oportunidade de conviver com pessoas mais espertas, pelo menos do ponto de vista de um adolescente que, aos doze anos, teve a inacreditável chance de começar o ciclo ginasial – então a primeira fase do secundário – numa instituição excepcional, o Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha. Durante os quatro anos do GEVOA, eu pude me beneficiar do ensino ministrado por professores excepcionais, dentre os quais cabe agora destacar as minhas “heroínas preferidas”, as professoras de Geografia e de História, que sempre foram minhas matérias de estimação. “Dona” Odila Feres, a “gordinha” da Geografia, e “Mariazinha” Fonseca Frascino, a “magrinha” da História, foram essas heroínas, ainda que elas não tenham desconfiado dessa minha paixão secreta (na verdade, muito pouco discreta) pelas duas matérias pelas quais eram responsáveis, aliás intimamente associadas, nos métodos, nos conteúdos e nas práticas.

Como ainda disse o mesmo “filósofo” Will Rogers, “todo mundo é ignorante, mas em assuntos diferentes”. Quando ingressei no Vocacional, eu certamente não era um ignorante no que se referia à História. Desde quando li a adaptação de Monteiro Lobato do História do Mundo para as Crianças, ainda no primário, tornei-me um fanático por livros de história, mesmo se não me orientei para essa disciplina na vida acadêmica ou profissional. Cheguei ao ponto de decorar algumas das dinastias de faraós do antigo Egito e de, já levemente agnóstico, ler a Bíblia unicamente pelo seu forte conteúdo histórico, onde estavam relatados episódios políticos e guerreiros de toda a região coberta pelos dois testamentos. Assim, precocemente contaminado pelo vírus da História, eu só podia ficar fascinado pelas aulas da Professora “Mariazinha”.
Mas, até ingressar no Vocacional, eu era, provavelmente, bem mais ignorante em Geografia. Foi nessa área que a Professora Odila teve fundamental importância, ao me prover de conhecimentos sólidos, de novos saberes, que solidificaram minha paixão pelas duas matérias conjuntamente. Aliás, as duas matérias era dadas imbricadas uma na outra: começávamos com o estudo da comunidade local, passávamos ao estado de São Paulo, depois ao Brasil e o mundo, sempre fazendo levantamentos geográficos e sociais e estudando o itinerário histórico de cada uma dessas “entidades”. Ambas as professoras nos acompanhavam nas “saídas de estudo”, nas visitas locais, nas regionais (aos outros GVs do estado), e mesmo fora do estado, com aulas que não paravam sequer nos trajetos: Dona Odila nos recomendava observar as ondulações e cores dos terrenos das janelas dos ônibus, fazer o registro das formações geológicas do interior de São Paulo e observar a terra roxa do café no norte do Paraná, no seguimento da marcha do produto mais importante da história econômica do Brasil. Entre uma subida “geográfica” ao pico do Jaraguá, e uma incursão “histórica” (e também política) ao Rio de Janeiro, todos nós passamos a conhecer o Brasil, da melhor forma possível. A fórmula era simples, mas ao mesmo tempo sofisticada: unir o estudo teórico ao conhecimento prático, era isso o que tínhamos nas aulas e visitas com as duas “fadas madrinhas” dos estudos sociais.
A verdade, no entanto, é que pudemos desfrutar de muito mais do que simples aulas de História e de Geografia. Lembro-me perfeitamente, ainda hoje, de alguns encontros que foram decisivos para fixar e consolidar meu profundo interesse nas ciências sociais e que desde a adolescência me dirigiram para essa disciplina em nível universitário, a despeito de tentativas familiares de me orientarem para uma inefável (e detestada) carreira na advocacia. Ambas professoras tinham estudado com mestres da USP, da famosa Fefelech, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, provavelmente a primeira geração daqueles que tinham sido formados por mestres da França e de outros países, que tinham vindo ao Brasil nas primeiras décadas de existência da primeira universidade estadual de São Paulo. A USP passou a ser, então, o meu objetivo intelectual, e, com meros 13 ou 14 anos, passei a ler os livros de seus professores muito tempo antes de poder ingressar na Faculdade, em Ciências Sociais, justamente. Muitas dessas recomendações de leitura, registro, foram dadas por elas.
Foi assim, por exemplo, que fomos levados pelas duas à casa do historiador Sérgio Buarque de Holanda, um pequeno sobrado no Pacaembu, junto ao qual ficamos sabendo que ele era o pai de um jovem compositor de música popular que despontava então com algumas canções inovadoras, bem diferentes no velho repertório dos velhos boleros e sambas-canção a que estávamos acostumados. Foi com elas, também, que visitamos um arqueólogo da USP, Ulpiano Bezerra de Menezes, de quem ouvi uma recomendação jamais esquecida desde então: manter, com respeito a qualquer processo de pesquisa e de investigação intelectual, um “ceticismo sadio”, ou seja, uma atitude de desconfiança curiosa em relação a qualquer argumento ou prova “empírica” de um evento ou fato qualquer, buscar seus fundamentos, aprofundar o conhecimento. Foi, provavelmente, um dos mais importantes conselhos metodológicos de que guardei lembrança, e que me serve de guia em qualquer circunstância, e que está na origem de minha postura moderadamente “contrarianista”.
Tudo isto que posso agora recordar, no mesmo momento em que registro estas poucas recordações, ficou gravado de maneira indelével em minha mente, de maneira profunda e persistente, tão claras eram as exposições de ambas as professoras sobre todos esses matizes dos estudos sociais. Lembro-me de várias recomendações de leituras, entre elas algumas traduções brasileiras dos livrinhos da coleção Que Sais-je?, no Brasil publicados como “Saber Atual”. Um deles me impressionou vivamente: o geógrafo francês Yves Lacoste, ainda no início dos anos 1960, insistia em colocar o Japão entre os “países subdesenvolvidos”. Anos mais tarde, fui conferir tal curiosidade na edição original francesa: Les Pays Sous-développés (creio que a primeira edição era de 1955). De fato, essa inclusão estava nas primeiras edições, e a explicação se dava pelo lado da demografia, ainda relativamente galopante no Japão, como de resto no Brasil. Em todo caso, nos tempos do Vocacional, eu fui muitas vezes ver filmes de samurai no bairro japonês da Liberdade e nunca me pareceu que aquele povo limpo, correto, organizado, fosse tão “subdesenvolvido” quanto os brasileiros pobres que circulavam pelas ruas: contrastes tão visíveis me indicavam que algo estava errado na classificação do geógrafo francês. Mas, foi a Dona Odila quem mencionou o livro...

As pesquisas, orientadas por ambas, eram sérias, e quase de nível universitário, para garotos e garotas entre os 12 e os 15 anos. Lembro-me, por exemplo, que para cada visita a municípios do estado, ou fora dele, consultávamos previamente a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, enorme publicação do IBGE em grossos volumes de cor cinza. Era a partir dessas pesquisas que fazíamos mapas bem cuidados, em papel de seda, colorindo rios, montanhas, acidentes geográficos, cidades e estradas. Tudo o que era humanamente possível aprender em História e Geografia estava à nossa disposição, através das duas queridas professoras, as que mais recordo de todos os mestres das muitas matérias que tínhamos no Vocacional. Tudo aquilo era a abundância do saber, quase a plenitude do conhecimento, tudo o que eu sempre valorizei na vida.
Aliás, para mim, que vinha de uma família modesta, sem livros em casa, com pai e mãe que sequer tinham concluído o ensino primário, o Vocacional foi mais do que uma escola, ou um local de aprendizado: foi uma universidade precoce, um verdadeiro templo da educação, num ambiente sadio, desafiador e ao mesmo tempo acolhedor. Sem o Vocacional Oswaldo Aranha – e sem a Biblioteca Anne Frank, antes dele – eu não teria sido o profissional bem sucedido que fui na vida adulta, bem como nas atividades acadêmicas que sempre exerci paralelamente à carreira diplomática. Não existe um só terreno dos conhecimentos em humanidades, mesmo em alto grau de especialização e de sofisticação, no qual eu não descubra uma semente ou um fundamento enraizados naqueles quatro anos durante os quais frequentei o magnífico ginásio do Brooklin.

Fui, realmente, muito feliz ao longo de todos aqueles anos, cada um deles identificado com algum evento político, no Brasil ou no mundo, que por acaso também me levaram na direção dos estudos de questões internacionais, às quais estou ligado profissionalmente desde meu ingresso na carreira diplomática no final dos anos 1970. Em 1962, por exemplo, ocorreu o famoso episódio da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, uma crise geopolítica maior das relações internacionais na era da Guerra Fria, cuja dimensão dramática nós só fomos descobrir, um ou dois anos mais tarde, a partir de uma palestra feita no Vocacional por Oliveiros da Silva Ferreira, um jovem editorialista do venerável Estadão, jornal “reacionário” que eu também aprendi a ler, na precoce idade de treze anos, em função dessa extraordinária abertura permitida pelo Vocacional. O ano seguinte, 1963, foi marcado por lutas camponesas no Brasil, conduzidas pelo famoso advogado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas na zona canavieira no Nordeste (cuja história e geografia também tínhamos estudado com as professores); daí derivou, suponho, meu esquerdismo juvenil, desde muito cedo identificado com os conflitos sociais então em curso. Em 1964, o ano do golpe militar no Brasil, pudemos sentir que algo estava mudando no ambiente externo, uma nova atmosfera que, poucos anos mais tarde, iria se refletir no fechamento, pelo regime autoritário, de todos os ginásios vocacionais existentes no estado de São Paulo. Em 1965, finalmente, a geopolítica mundial voltou à baila, com a revolução cultural na China, e a curiosidade que aqueles eventos misteriosos despertavam em nossas mentes juvenis. Não haverá, por certo, nenhuma surpresa em reconhecer que eu me politizei precocemente no e por meio do Vocacional Oswaldo Aranha, aliás um patrono pelo qual guardo especial afeição: não tenho nenhuma dúvida, hoje, conhecida sua trajetória de estadista e de diplomata, em afirmar que o Brasil teria sido um país muito diferente do que foi se, em algum momento de sua trajetória política, entre o começo dos anos 1930 e o final dos 1950, Oswaldo Aranha tivesse ascendido à suprema magistratura do país.

Os quatro anos que passei no GEVOA, quando consolidei amizades até hoje mantidas, foram, repito, os mais decisivos em minha formação intelectual, de resto em minha própria definição ulterior de vida e de carreira acadêmica, sobretudo na vertente das Humanidades que estou aqui destacando. Foi tão grande o impacto exercido sobre mim pelas duas professoras de Estudos Sociais que se tornou inevitável, chegado o momento, a opção pela mesma área de estudos quando terminei o segundo ciclo do secundário, o colegial na vertente “clássica”, de preferência à “científica” que constituía sua segunda vertente. À diferença, provavelmente, de todas as outras disciplinas que “enfrentei” ao longo dos estudos de graduação e de pós-graduação, jamais dispendi qualquer esforço adicional no estudo de matérias atinentes à História e à Geografia, tão forte e tão sólida foi a minha formação nessas duas áreas. Devo à Dona Odila e a Dona Mariazinha esse meu convício natural com as duas disciplinas-fundadoras dos estudos sociais, que elas justamente explicavam a partir de suas raízes clássicas, na Grécia antiga, mas que elas traziam até os grandes mestres fundadores das ciências sociais no Brasil, os grandes nomes que pontificavam dos anos 1930 aos 1950.
De todas as áreas e domínios das ciências sociais e das humanidades em geral, foram essas duas matérias que sempre me deram um prazer indescritível em ouvir, em ler, em sintetizar, e mais tarde ao escrever. De todos os exames, bastante rigorosos, que fiz para o ingresso na carreira diplomática, quando tive de me debruçar sobre livros de direito, de economia e de inglês, praticamente não me ocupei, quase nada, de História e de Geografia, tão forte era a minha confiança no conhecimento acumulado desde a primeira adolescência nessas duas disciplinas. A lembrança das duas jovens professoras foi inevitável naquelas horas, como ainda é hoje, cinquenta anos depois de concluído o Vocacional e quase quarenta de vida profissional e acadêmica.

Às duas professoras, meu sincero carinho e meu total reconhecimento, com um grande sentimento de satisfação intelectual por ter tido o privilégio de desfrutar de suas aulas altamente motivadoras. Minha homenagem especial à Dona Odila Feres, meu “anjo da guarda geográfico”, presença ainda viva e testemunha vibrante dos nossos “anos dourados” de incorporação ao mundo juvenil (na verdade quase adulto, tão ricas e profundas eram suas aulas nesse terreno).
Muito do que sou hoje, intelectualmente falando, devo ao que aprendi nesses anos do Vocacional Oswaldo Aranha, em especial com as minhas duas professoras preferidas. Devo a elas o primeiro contato direto, fascinante, com a obra de um grande historiador brasileiro, como também a oportunidade de erigir em padrão de conduta na pesquisa acadêmica o “ceticismo sadio” do arqueólogo uspiano, atitude que sempre caracterizou todos os meus empreendimentos intelectuais desde então. Lições como essas não se aprendem apenas nos livros: elas requerem pessoas mais espertas que nos guiem os passos e as reflexões.
Muito obrigado, de coração, e um grande beijo de saudades... 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2921: 19-21 de janeiro de 2016, 7 p.