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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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sexta-feira, 17 de junho de 2022

Uma breve geografia de meu percurso internacional - Paulo Roberto de Almeida

  Uma breve geografia de meu percurso internacional 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Nota sintética sobre meu percurso internacional, desde a juventude, mas apenas transcrevendo os países onde já estive.

 

 

Apenas atendendo a uma curiosidade, ou provocação, de um leitor, vou listar, numa ordem não exatamente perfeita, todos os países que visitei, como curioso, como turista, como estudante, como profissional, como simples viajante ocasional ou planejado, como uma espécie de substrato a um futuro “Baedeker” de minha trajetória internacional, ou seja, o roteiro de minha geografia pessoal, que poderei fazer um dia, talvez seguindo numa mapa do mundo, onde já estive e porque, com qual motivo e quais ensinamentos retirei de cada uma dessas “visitas”. Elas indiscutivelmente fizeram parte de minha formação, de minha educação e dos insumos que passaram a incrementar meu trabalho profissional e acadêmico nessa área das relações internacionais, sem que eu me considere um “internacionalista”. 

Sou apenas um curioso e um nômade com gosto, mas bem menos nômade do que minha cara Carmen Lícia, ela sim, uma viajante incansável, e planejadora inovativa e inovadora de todas as nossas viagens da fase adulta. Mas, as minhas viagens começaram bem mais cedo, primeiro nos livros que eu lia na biblioteca infantil de meu bairro em São Paulo: Monteiro Lobato, Karl May, Emílio Salgari, Jules Verne e todos os outros escritores de viagens, alguns que provavelmente nunca viajaram aos lugares sobre os quais escreveram, mas que aprenderam em outros livros, nas enciclopédias, nos livros de viagem, nos guias de turismo, nos relatos de outros viajantes. Depois, nas primeiras viagens de carona, como mochileiro, depois como autoexilado voluntário durante a ditadura militar, finalmente como profissional da área internacional e como turista acidental. Tudo isso me formou, e como!

Mas, não vou entrar em digressões neste momento. Vou apenas listar erraticamente, embora numa certa ordem cronológica, os lugares onde eu já estive, ao sabor da pena, ou melhor, do computador (que permite ajustes, correções e adições, a qualquer momento). 

 


 São Paulo, Mongaguá (o mar, ah, o mar), viagens com o Ginásio Vocacional Oswaldo Aranha pelo interior de SP e no Paraná, na primeira metade dos anos 1960, depois de mochila à Bahia e a Brasília, de mochila pelo Cone Sul (Paraguai, Argentina, Chile, Uruguai), na segunda metade dos anos 1960. Finalmente a partida do Brasil: de barco, no final de 1970, por Tenerife, Gibraltar, Barcelona, de trem e carona pelas estradas europeias em pleno inverno: França, Alemanha, Tchecoslováquia, uma visita a um país kafkiano, literalmente, não por culpa do Franz, mas por culpa do socialismo. Começo de uma aventura de quase sete anos, de estudos, muito estudo, sobretudo em bibliotecas, as mais diversas.

Bélgica, para estudos e trabalho, a partir do início de 1971: Bruxelas e viagens pelo país, inclusive de bicicleta, Holanda, França, Alemanha, Suíça, socialismo outra vez (a convite, inclusive União Soviética e algo mais), Argélia, Espanha, Itália, Grã-Bretanha, França muitas vezes, e o contato com todos os tipos de estrangeiros, em Bruxelas, Antuérpia, Paris. De trem, de carro, de avião, esticadas para todas as partes segundo a ocasião e as oportunidades. Mas, sobretudo bibliotecas, onde as viagens eram na imaginação.  

Brasil de volta, em 1977, indo para o governo final do regime militar, mas com a repressão ainda ativa. São Paulo, e logo em seguida Brasília, dando início a uma bela carreira, feita para mim, e que justamente combinava viagens, a trabalho, e escapadas para cultura e lazer. Pela primeira vez, eu era pago para viajar, logo em seguida: Polônia socialista, Iugoslávia de Tito, aproveitando para passar por Portugal, Paris e o que mais estivesse no caminho. Tive sorte de namorar, logo em seguida, com uma pessoa ainda mais nômade do que eu: Carmen Lícia Palazzo, que já tinha viajado tanto ou mais do que eu, nas encarnações anteriores. E livros, claro, sem o que não se pode ter uma vida a dois. Casamento e planos vagos sobre o futuro; lua de mel na estrada: 11 mil kms de Fiat 147, de Brasília a São Paulo, depois Porto Alegre, Brasília novamente, para descarregar os presentes, e Belém-Brasília, com duas únicas paradas no caminho, seguido de São Luis, Belém novamente e volta a Brasília, para passeios nas redondezas.

Não escolhi sair, mas me escolheram. Lá fomos nós, final de 1979: Berna, uma capital simpática, num país ordeiro, limpinho, organizado. Nasce o Pedro Paulo, mas com quinze dias ele já estava na estrada conosco, em todos os cantões da Suíça e mesmo na França, Itália, Áustria e Alemanha. De volta à Bélgica em 1981: retomada do doutoramento, que tinha ficado interrompido na volta ao Brasil em 1977; comecei a revisar os fundamentos e a racionalidade das posturas anteriores, inclusive com base em novas e frequentes viagens.

E quais foram as viagens desta primeira incursão profissional, entre a Suíça e a então Iugoslávia, logo após a morte de Tito, entre 1979 e 1984? Primeira viagem de lazer, no primeiro fim de semana de Berna, de pura curiosidade “etílica”, foi feita na Route du Vin, da Alsácia, saindo da Suíça por Basileia, a cidade de Erasmo de Roterdam; voltamos não só com muitas garrafas de vinhos, de Riquewihr, Ribeauvillé, até Colmar, como também com um conjunto de pequenas taças para tomar os brancos da região, entre eles Pinot Noir. A partir daí não paramos mais, entre a Suíça francesa, de Genebra e Lausanne, a alemânica, até a italiana, sem contar uma vez que esquecemos o carrinho do Pedro, já de volta a Berna, em Murten ou Friburgo, não me lembro bem. Depois avançamos sobre a França, a Alemanha, a Itália, a Áustria (cruzando Lietchenstein) e até onde era possível alcançar, sem esquecer as terras do socialismo real: comprei a Marx-Engels Gesamtausgabe na Dietz Verlag de Berlim oriental, cruzando cidades das duas Alemanhas da Guerra Fria e suas fronteiras fortificadas. 

A partir de Belgrado, o mais comum eram as viagens à Itália, não exatamente para lazer, tão somente, mas sobretudo para abastecimento, numa fase de penúria socialista (mas no socialismo todas as fases são de penúria material, sem falar da miséria moral). Estávamos tão acostumados com Trieste, Padova, Veneza, que o Pedro Paulo, ao voltar para Brasília com 4 anos e meio, pediu para passar um fim de semana em Veneza, passeando de gôndola. Mas tinha também as viagens na própria Iugoslávia: Croácia e Dalmácia, Eslovênia, Montenegro, Macedônia, Kossovo, Vojvodina e outros lugares visitáveis. A partir dali fomos duas vezes à Grécia, e uma vez até Istambul e a Turquia asiática, atravessando a Bulgária e cruzando o Bósforo na grande ponte que une Europa e Oriente Médio. Itália foi, entre todas, a de maior quilometragem turística, de um canto a outro da bota, até a Sicília e a Calábria. Após a defesa do doutoramento na Bélgica, a intenção era ir de Belgrado até a União Soviética, entrando por Leningrado e voltando por Minsk ou Kiev: acabou não dando certo em Helsinque, por falta de vouchers apropriados – sem os quais seria impossível se abastecer ou se alojar ou comer – e então fizemos uma das melhores viagens de todos os tempos: da capital finlandesa até a terra de Papai Noel, Rovaniemi, no círculo polar ártico, por trem-auto, e depois atravessando a Lapônia finlandesa (milhares de lagos e zilhões de mosquitos), a sueca e o extremo norte da Noruega, onde o sol nunca se punha (claro que fomos no verão); volta pelos fiordes, Oslo, Gotemburgo (onde eu passei todo um verão lavando pratos, no verão de 1972, para pagar minha manutenção na Bélgica), Dinamarca, novamente Alemanha e volta a Belgrado, já próximo da volta ao Brasil.

Em Brasília, o que se podia fazer como passeios era nas cercanias, ou então, esticar até São Paulo e Porto Alegre, algumas vezes a Minas Gerais e ao Rio de Janeiro, uma vez. Mas foi por pouco tempo, logo estávamos a caminho da Suíça uma segunda vez, em Genebra, talvez um dos melhores postos da carreira, junto com Washington, pelo trabalho e pelas viagens, naturalmente. Nessa época, os mercados financeiros ainda não estavam tão desenvolvidos, assim que eu tinha duas ou três carteiras com francos franceses, liras e marcos alemães, eventualmente algum xelim austríaco, além de cartões de crédito. Eu até tive uma conferência diplomática no meio, em Washington, para um tratado sobre circuitos integrados sob gestão da OMPI, que eu seguia em Genebra. No continente europeu, foram dezenas e dezenas de milhares de quilômetros pelas grandes autoestradas e pelas pequenas rotas do interior, na costa italiana, no interior da França, na Romantische Strasse da Alemanha. Fui convidado para acompanhar o embaixador Rubens Barbosa na Aladi, em Montevidéu, mas ficamos em Genebra todo o tempo que foi possível. Saudades da Suíça.

Montevidéu é perto de tudo, do Brasil, de Buenos Aires, do Cone Sul, e por isso aumentamos a quilometragem, com muitas escapadas a Porto Alegre, e uma grande viagem até a Patagônia e o Chile no verão (janeiro-fevereiro de 1991), já na companhia da Maíra, conosco desde o final de Genebra, desta vez num Honda Civic, que me rendeu mais dinheiro na venda do que eu tinha dispendido na compra. Mas ficamos menos de dois anos em Brasília, pois já em 1993 estávamos saindo para a Europa novamente, desta vez em Paris. Mais viagens e incursões por toda a Europa ocidental, inclusive de novo na península itálica e na península ibérica, pois antes de ingressarem na CEE os portugueses se referiam à Europa que estava além dos Pirineus. A Grã-Bretanha já tínhamos conhecido, mas eu ainda fiz uma pequena viagem com Pedro Paulo a Londres, para visitar o embaixador Rubens Barbosa, que nessa época (1994) era o representante junto à Corte de St. James.

Depois de quatro anos em Brasília (com as costumeiras viagens a Minas e ao Sul), fomos para a capital do Império, um posto que eu relutei ao início, mas que depois se revelou uma das melhores estadas da carreira, nos planos funcional diplomático, familiar, pessoal e acadêmico (com muitas reuniões com brasilianistas e convívio com as universidades locais. Logo no primeiro fim de semana de Washington, viajamos para Gettysburg, na Pensilvânia, o histórico lugar da mais cruenta batalha da guerra civil, e do famoso discurso do presidente Lincoln sobre a democracia. Do Canadá às fronteiras do México, de Chicago às Florida Keys, percorremos, a partir de Washington, praticamente toda a costa leste e grande parte do interior – que eu chamava de “caipirolândia” – e do Sul, ainda com traços visíveis do racismo americano – um regime talvez até pior do que o do Apartheid –, com várias incursões a Nova York, Pensilvânia, Maryland e Virgínia, dois estados em que moramos de 1999 a 2003. Não anotei o total da milhagem, mas daria, provavelmente, para ir e voltar da Terra à Lua.

Na volta a Brasília, com exceção de duas ou três viagens internacionais – Florida, Buenos Aires, estão na minha memória –, viajamos basicamente no Brasil, mas também esticamos três meses no milharal do Illinois, para um estágio na Universidade em Urbana-Champaign, a convite dos brasilianistas Werner Baer e Joseph Love, com nova viagem de carro desde a Florida, ida e volta. Eu atendia basicamente convite de acadêmicos, para bancas, seminários e palestras em diversas universidades brasileiras. Foi também o período em que mais escrevi, a partir de meu quilombo de resistência intelectual, deslocando do blog para a biblioteca do Itamaraty. Em 2010, tivemos a sorte de passar oito meses em Xangai, para a exposição universal, quando aproveitamos para viajar para diversas partes do imenso país, e também a Macau, Hong Kong e Japão. No meio, fui à Espanha e vim a Brasília, para um congresso da Brazilian Studies Association. 


 De volta a Brasília, e ainda no meu quilombo, aproveitei um convite da Sorbonne, em 2012, para passar seis meses em Paris (e viajando pela Europa), para aulas no mestrado do Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine: ainda aproveitamos para palestras na Universidade de Louvain-La-Neuve, e na Universidade de Londres. Um ano depois, aceitei trabalhar no Consulado do Brasil em Hartford, Connecticut, e foram quase três anos de viagens as mais proveitosas: ademais de incursões frequentes a New Haven (Yale), Nova York e mesmo Washington – para palestra no Foreign Institute do Departamento de Estado –, fizemos duas memoráveis travessias coast to coast, até o Pacífico, uma vez pelo Norte, outra vez pelo Sul, ademais de duas ou três escapadas ao Canadá e o outro extremo, Florida Keys.


 O retorno a Brasília coincidiu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que me levou a assumir a direção do IPRI – Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Itamaraty –, e com ela muitas viagens pelo Brasil e até duas ou três internacionais. Foi um dos períodos mais gratificantes intelectualmente, feito de inúmeros debates com acadêmicos brasileiros e visitantes estrangeiros, e muitas edições de livros sobre política externa. Durou exatos dois anos e meio, de agosto de 2016 a março de 2019, quando começou o fantástico desgoverno antiglobalista, ao qual dediquei pelo menos cinco livros, do que eu chamo de ciclo da diplomacia bolsolavista, que simplesmente não teriam existido se o bando de idiotas da franja lunática não destruísse com tanto empenho os padrões de qualidade da diplomacia profissional e deformado completamente a política externa brasileira. 


 Quando estávamos nos preparando para começar novo ciclo de viagens, de volta aos Estados Unidos e novamente à Europa, talvez até mesmo a China, começou a desgraça da pandemia da Covid-19, e depois a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, situação que ainda perdura. Estamos só aguardando uma acalmia no mundo, para retomar nossas viagens, agora puramente de lazer intelectual e prazer gastronômico.

Continuarei minha pequena geografia do mundo em outra ocasião. Apenas lembro que minhas postagens na plataforma Academia.edu são acessadas em dezenas de países e em centenas de universidades, o que já foi objeto de diversas postagens minhas, sobre esses acessos “universais” na própria plataforma. Também me utilizo ocasionalmente de outra plataforma, a Research Gate, mas a quase totalidade dos trabalhos pode ser conferida ou no meu site pessoal, ou na plataforma Lattes, obrigatória para qualquer acadêmico. Muita coisa pode ser vista no meu quilombo de resistência intelectual que, pela última contagem, já indica quase 25 mil postagens (desde 2006), mais de 9,5 milhões de acessos a essas postagens e algo como 919 seguidores (inclusive um que se intitula “Padre Eterno”, sic). Com livros e acesso a praticamente toda a imprensa mundial, já estou “viajando” todos os dias, mas estamos aguardando tempos mais amenos para retomar a estrada, antes que avião. A despeito dos temores, já estivemos três vezes em São Paulo e uma longa viagem até Gramado e Porto Alegre, neste ano. Aos poucos vamos retomando os caminhos de sempre e provavelmente também alguns novos, no continente ou fora dele. Vontade não falta...

 


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4172: 17 junho 2022, 6 p.

www.pralmeida.org
diplomatizzando.blogspot.com
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/9470963765065128
https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida
https://www.researchgate.net/profile/Paulo_Almeida2


domingo, 15 de novembro de 2020

Outras Cartografias: Por uma nova regionalização do Brasil - José Donizete Cazzolato

 Outras Cartografias: Por uma nova regionalização do Brasil

O Maranhão fora do Nordeste? O que seria a Região Noroeste do Brasil? 50 anos após o IBGE definir as Grandes Regiões, país mudou. É preciso reconhecer as novas identidades geográficas. Próximo Censo é oportunidade para isso

MAIS:
Baixe o mapa em alta resolução aqui

Por José Donizete Cazzolato, na coluna Outras Cartografias

Por que este mapa está aqui? A coluna sempre apresenta novas cartografias, e o que esta cartografia tem de novo? São as regiões do Brasil – Centro-Oeste, Norte, Nordeste… Opa! Mas algo está errado, tem duas regiões Norte! Não, uma é NO = Norte, mas e a outra… não é N = Norte também?”

Esta pode ser uma reação esperada de alguém jovem, com algum conhecimento geográfico, mas pouca intimidade com a cartografia e com as siglas das direções cardeais. De fato, à primeira vista o mapa é familiar, por ser diariamente exposto na TV aberta quando o noticiário apresenta a previsão do tempo, por exemplo. Mas há uma importante diferença: em vez das cinco Grandes Regiões do IBGE, adotadas em 1970 e alteradas em 1988 quando se criou o Tocantins, este mapa apresenta o Brasil dividido em seis macrorregiões.

Então mudou a divisão das regiões?”

Não, esta é uma proposta de mudança, buscando adequar a antiga divisão à geografia do Brasil atual. Vale lembrar que, em 1970, o país tinha 90 milhões de habitantes, menos da metade da população atual. Não existiam Tocantins nem Mato Grosso do Sul, Rondônia era um Território Federal com apenas dois municípios, e a cidade do Rio de Janeiro tinha o privilégio de ser o Estado da Guanabara; Niterói era capital do Estado do Rio de Janeiro.

Nesses 50 anos o Brasil cresceu e desenvolveu-se em diversos campos de atividade, atenuando ou aumentando as desigualdades. Suas cidades cresceram como nunca, e grandes áreas quase despovoadas foram ocupadas e incorporadas à economia nacional. Expandiram-se a agricultura, a pecuária, a malha viária e a rede urbana, principalmente na faixa que vai de Rondônia ao Maranhão passando por Goiás.

Especialmente no Centro-Norte – estado do Tocantins, Sudeste do Pará e Sul do Maranhão, houve um grande incremento demográfico e da atividade econômica como um todo. Em decorrência, os fluxos geográficos adensaram-se, estabelecendo também diferentes conexões reforçando novas identidades. Basta lembrar o estabelecimento do estado do Tocantins (31 anos atrás) e o plebiscito de 2011, quando os paraenses do Sudeste do Pará aprovaram a criação do Estado de Carajás.

É inegável a regionalidade que se formou na junção PA-MA-TO. Observe-se a bacia hidrográfica Tocantins-Araguaia, a rodovia Belém-Brasília, a Estrada de Ferro Carajás – ligando o Sudeste Paraense a São Luís – ou o longo traçado da Ferrovia Norte-Sul, que conecta a EF Carajás aos estados do Tocantins, Goiás e São Paulo. Todos esses elementos estruturantes da geoeconomia local estendem-se no sentido geral Norte-Sul, proporcionando uma nova dinâmica de fluxos na interface entre as atuais regiões Norte e Nordeste. Esta nova realidade regional também se evidencia na evolução da polarização urbana – São Luís, Palmas e Belém, diretamente ou através de Marabá, Imperatriz e Araguaína, estendem sua influência cada vez mais sobre áreas tradicionalmente ligadas a Fortaleza ou Goiânia.

A divisão regional atual, porém, secciona este novo contexto regional, mantendo o Maranhão no Nordeste e o Tocantins como um apêndice da Região Norte. Este fato, por sinal, pode ser considerado o ponto de inflexão do atual arranjo macrorregional. Poucos se lembram, mas até 1988 o atual Tocantins, que pertencia Goiás, fazia parte do Centro-Oeste. Nesse ano promulgou-se a atual Constituição Federal, em cujas disposições transitórias o Artigo 13 criou o novo Estado, transferindo-o simultaneamente para a Região Norte.

Em decorrência, descaracterizou-se o quadro macrorregional do país. A Região Norte ficou ainda maior – em extensão e em número de estados, aproximando-se do número recorde de 9 estados do Nordeste em comparação com o Sudeste e o Centro-Oeste (4) e o Sul, que tem apenas 3 unidades da federação. Além disso, não se justificava, geograficamente, a transferência do Tocantins para o Norte, que se efetivou, por sinal, sem qualquer consulta ou aval do IBGE, IPEA ou quaisquer outras instituições de pesquisa e tradição geográfica.

A proposta de ajuste aqui sintetizada busca reparar e, simultaneamente, atualizar a trama macrorregional do país. Reconhece a nova regionalidade que se consolida na junção PA-MA-TO e recupera o equilíbrio dimensional entre as unidades. Com esta nova cartografia, aprimora-se a percepção da realidade nacional e suas identidades regionais, disponibilizando para a gestão pública e para a sociedade um ferramental seguramente mais eficaz.

A efetivação da proposta requer apenas dois passos: 1. Passa a integrar a Região Norte o Estado do Maranhão; 2. Fica instituída a Região Noroeste, formada pelos estados de Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima. As demais regiões – Sudeste, Sul e Centro-Oeste, permanecem inalteradas.

Entendi… Mas como se faz essa alteração? Tem que criar uma lei? Ou é o IBGE que muda?”

Neste ponto pode surgir uma polêmica. Como foi o IBGE que elaborou e formalizou a atual divisão, caberia a ele mesmo promover quaisquer alterações, como de fato vem alterando e atualizando outras estruturas regionais. Porém, a atual divisão em Grandes Regiões foi instituída também por lei federal, cabendo então, nesse caso, uma ação do Executivo ou do Legislativo.

No entanto, os processos de discussão e votação nas casas legislativas nacionais podem levar um tempo além do razoável, e assim o próprio IBGE – a única instituição governamental federal com geografia no nome – poderia formalizar tecnicamente um ajuste na macrodivisão regional, aproveitando a oportunidade do Censo 2020 (adiado para 2021). O peso do notório saber que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística consolidou ao longo de quase um século é suficiente para que o novo desenho regional seja assimilado e adotado em todas as instâncias do saber e fazer nacionais com aporte espacial: ensino, pesquisa, comunicação, planejamento, logística, políticas públicas, etc.

Além de embasar a gestão pública e apreensão da realidade, outro aspecto fundamental das estruturas regionais ou territoriais é o reconhecimento das identidades geográficas. Nossa cidadania se consolida quando nossos lugares de vida são oficializados. Sejam eles bairros, distritos ou municípios, quando compõem uma trama igualitária de unidades, denominadas e delimitadas por lei, ganha força a ideia da democracia, da igualdade dos lugares – e, por extensão, das pessoas. O mesmo se aplica para outras escalas ou instâncias da vida social – regiões, Estados ou Macrorregiões.

Na proposta aqui exposta, o Maranhão deixa de ser a quarta força econômica e política do Nordeste para ser a segunda da nova conformação da Região Norte. O Tocantins deixa de ser um mero apêndice de uma região gigantesca para ocupar um lugar central no novo arranjo proposto. No outro extremo, o Amazonas assume a liderança da Amazônia Interior – reconhecida na proposta como Região Noroeste, enquanto Rondônia, Acre e Roraima ganham força pela proximidade de Manaus, a nova metrópole regional.

Do ponto de vista ambiental, o arranjo aqui defendido permite ajustar o foco nos grandes biomas, especialmente os dois mais expostos à degradação. Circunscreve uma nova região exclusivamente amazônica (Noroeste) e duas na interface Amazônia/Cerrado (Norte e Centro-Oeste). Paralelamente, este novo arranjo pode levar a estratégias mais eficazes na gestão das faixas fronteiriças, cuja incumbência passa a ser dividida por quatro unidades macrorregionais.

Esclareça-se, por fim, que o intuito deste trabalho é recuperar a operacionalidade das atuais Grandes Regiões do IBGE, cinquenta anos depois de sua última versão tecnicamente consensuada. Foi apresentado em encontros acadêmicos em 2007 e reeditado em 2019 para a Revista Confins – edição de julho de 2020. Sua versão integral está disponível em https://journals.openedition.org/confins/31037   

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ginasio Vocacional Oswaldo Aranha: minhas professoras preferidas - Paulo Roberto de Almeida


Minhas professoras favoritas: saudades do Vocacional
(um tributo a quem foi decisivo em minha formação)

Paulo Roberto de Almeida

O aluno e suas professoras preferidas, de Geografia e de História (SP, 2004)
Paulo Roberto de Almeida, Professoras Odila Feres e Maria Fonseca Frascino 

Um humorista americano da primeira metade do século XX, Will Rogers – nos EUA, humoristas passam por serem filósofos igualmente, a exemplo do grande escritor Mark Twain, ou do satirista Louis Mencken –, tinha uma frase que eu selecionei para introduzir a seção relativa aos trabalhos originais do meu site. Ele dizia que, na vida, “as pessoas aprendem de duas maneiras: uma pela leitura, a outra em associação com pessoas mais espertas”. A frase exata, no original, é a seguinte: “A man only learns in two ways, one by reading, and the other by association with smarter people”.
Se, no meu site (ver: http://www.pralmeida.org/03Originais/00originais.html), eu selecionei essa frase para sintetizar o que representam os trabalhos acadêmicos no conjunto de minhas atividades profissionais e intelectuais é porque ela simboliza exatamente o método de aprendizado que mais desde sempre esteve associado à minha formação e ao processo de incorporação de novos conhecimentos ao estoque de saberes pacientemente acumulado ao longo de anos e anos de estudos formais e de aprendizado informal. Essas duas vias estão justamente na base do profissional e do acadêmico que sou hoje: de um lado, os livros, todos eles; de outros, pessoas mais espertas, várias.
Em relação aos livros, minha interação foi relativamente tardia: só comecei a ler, realmente, quando ingressei no curso primário, já na idade “avançada” de sete anos. Venho, desde então, procurando recuperar o “atraso”. A partir de minha autonomia na leitura, provavelmente um ano e meio depois, nunca mais parei de ler, todos os livros que me chegam às mãos, em toda e qualquer circunstância (menos, é claro, aqueles muito idiotas). A coisa mais importante que aconteceu em minha vida infantil, e que se prolongou até a primeira adolescência, foi ter à minha disposição a Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, minha “residência secundária” – eu até diria primária – por vários anos, entre 1956 e 1962, mas ela já o era, mesmo antes de começar a ler.
Ela ficava apenas a um quarteirão e meio de distância da modesta casa em que habitávamos em São Paulo, no bairro periférico que então levava o nome de Chácara Itaim (hoje Itaim Bibi, uma pujante aglomeração de prédios de luxo). Em lugar de passar a tarde jogando “pelada” com os demais garotos nos campinhos de várzea, eu me refugiava quase todas as tardes na biblioteca para ler todos os livros interessantes (e ainda retirava um ou dois para ler de noite, já deitado na cama). Eu me fiz nos livros, pelos livros, com os livros, e devo à Biblioteca Anne Frank a fase formativa mais importante da primeira etapa de minha vida intelectual. Já adulto, percorri uma vez as estantes da biblioteca para registrar os livros que havia lido enquanto criança, uma lista que infelizmente se perdeu naqueles tempos de primeiros computadores portáteis (o que levei, se bem me lembro, era um Sinclair, britânico, dos anos 1980).
A segunda coisa mais importante que aconteceu em minha vida foi ter tido a oportunidade de conviver com pessoas mais espertas, pelo menos do ponto de vista de um adolescente que, aos doze anos, teve a inacreditável chance de começar o ciclo ginasial – então a primeira fase do secundário – numa instituição excepcional, o Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha. Durante os quatro anos do GEVOA, eu pude me beneficiar do ensino ministrado por professores excepcionais, dentre os quais cabe agora destacar as minhas “heroínas preferidas”, as professoras de Geografia e de História, que sempre foram minhas matérias de estimação. “Dona” Odila Feres, a “gordinha” da Geografia, e “Mariazinha” Fonseca Frascino, a “magrinha” da História, foram essas heroínas, ainda que elas não tenham desconfiado dessa minha paixão secreta (na verdade, muito pouco discreta) pelas duas matérias pelas quais eram responsáveis, aliás intimamente associadas, nos métodos, nos conteúdos e nas práticas.

Como ainda disse o mesmo “filósofo” Will Rogers, “todo mundo é ignorante, mas em assuntos diferentes”. Quando ingressei no Vocacional, eu certamente não era um ignorante no que se referia à História. Desde quando li a adaptação de Monteiro Lobato do História do Mundo para as Crianças, ainda no primário, tornei-me um fanático por livros de história, mesmo se não me orientei para essa disciplina na vida acadêmica ou profissional. Cheguei ao ponto de decorar algumas das dinastias de faraós do antigo Egito e de, já levemente agnóstico, ler a Bíblia unicamente pelo seu forte conteúdo histórico, onde estavam relatados episódios políticos e guerreiros de toda a região coberta pelos dois testamentos. Assim, precocemente contaminado pelo vírus da História, eu só podia ficar fascinado pelas aulas da Professora “Mariazinha”.
Mas, até ingressar no Vocacional, eu era, provavelmente, bem mais ignorante em Geografia. Foi nessa área que a Professora Odila teve fundamental importância, ao me prover de conhecimentos sólidos, de novos saberes, que solidificaram minha paixão pelas duas matérias conjuntamente. Aliás, as duas matérias era dadas imbricadas uma na outra: começávamos com o estudo da comunidade local, passávamos ao estado de São Paulo, depois ao Brasil e o mundo, sempre fazendo levantamentos geográficos e sociais e estudando o itinerário histórico de cada uma dessas “entidades”. Ambas as professoras nos acompanhavam nas “saídas de estudo”, nas visitas locais, nas regionais (aos outros GVs do estado), e mesmo fora do estado, com aulas que não paravam sequer nos trajetos: Dona Odila nos recomendava observar as ondulações e cores dos terrenos das janelas dos ônibus, fazer o registro das formações geológicas do interior de São Paulo e observar a terra roxa do café no norte do Paraná, no seguimento da marcha do produto mais importante da história econômica do Brasil. Entre uma subida “geográfica” ao pico do Jaraguá, e uma incursão “histórica” (e também política) ao Rio de Janeiro, todos nós passamos a conhecer o Brasil, da melhor forma possível. A fórmula era simples, mas ao mesmo tempo sofisticada: unir o estudo teórico ao conhecimento prático, era isso o que tínhamos nas aulas e visitas com as duas “fadas madrinhas” dos estudos sociais.
A verdade, no entanto, é que pudemos desfrutar de muito mais do que simples aulas de História e de Geografia. Lembro-me perfeitamente, ainda hoje, de alguns encontros que foram decisivos para fixar e consolidar meu profundo interesse nas ciências sociais e que desde a adolescência me dirigiram para essa disciplina em nível universitário, a despeito de tentativas familiares de me orientarem para uma inefável (e detestada) carreira na advocacia. Ambas professoras tinham estudado com mestres da USP, da famosa Fefelech, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, provavelmente a primeira geração daqueles que tinham sido formados por mestres da França e de outros países, que tinham vindo ao Brasil nas primeiras décadas de existência da primeira universidade estadual de São Paulo. A USP passou a ser, então, o meu objetivo intelectual, e, com meros 13 ou 14 anos, passei a ler os livros de seus professores muito tempo antes de poder ingressar na Faculdade, em Ciências Sociais, justamente. Muitas dessas recomendações de leitura, registro, foram dadas por elas.
Foi assim, por exemplo, que fomos levados pelas duas à casa do historiador Sérgio Buarque de Holanda, um pequeno sobrado no Pacaembu, junto ao qual ficamos sabendo que ele era o pai de um jovem compositor de música popular que despontava então com algumas canções inovadoras, bem diferentes no velho repertório dos velhos boleros e sambas-canção a que estávamos acostumados. Foi com elas, também, que visitamos um arqueólogo da USP, Ulpiano Bezerra de Menezes, de quem ouvi uma recomendação jamais esquecida desde então: manter, com respeito a qualquer processo de pesquisa e de investigação intelectual, um “ceticismo sadio”, ou seja, uma atitude de desconfiança curiosa em relação a qualquer argumento ou prova “empírica” de um evento ou fato qualquer, buscar seus fundamentos, aprofundar o conhecimento. Foi, provavelmente, um dos mais importantes conselhos metodológicos de que guardei lembrança, e que me serve de guia em qualquer circunstância, e que está na origem de minha postura moderadamente “contrarianista”.
Tudo isto que posso agora recordar, no mesmo momento em que registro estas poucas recordações, ficou gravado de maneira indelével em minha mente, de maneira profunda e persistente, tão claras eram as exposições de ambas as professoras sobre todos esses matizes dos estudos sociais. Lembro-me de várias recomendações de leituras, entre elas algumas traduções brasileiras dos livrinhos da coleção Que Sais-je?, no Brasil publicados como “Saber Atual”. Um deles me impressionou vivamente: o geógrafo francês Yves Lacoste, ainda no início dos anos 1960, insistia em colocar o Japão entre os “países subdesenvolvidos”. Anos mais tarde, fui conferir tal curiosidade na edição original francesa: Les Pays Sous-développés (creio que a primeira edição era de 1955). De fato, essa inclusão estava nas primeiras edições, e a explicação se dava pelo lado da demografia, ainda relativamente galopante no Japão, como de resto no Brasil. Em todo caso, nos tempos do Vocacional, eu fui muitas vezes ver filmes de samurai no bairro japonês da Liberdade e nunca me pareceu que aquele povo limpo, correto, organizado, fosse tão “subdesenvolvido” quanto os brasileiros pobres que circulavam pelas ruas: contrastes tão visíveis me indicavam que algo estava errado na classificação do geógrafo francês. Mas, foi a Dona Odila quem mencionou o livro...

As pesquisas, orientadas por ambas, eram sérias, e quase de nível universitário, para garotos e garotas entre os 12 e os 15 anos. Lembro-me, por exemplo, que para cada visita a municípios do estado, ou fora dele, consultávamos previamente a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, enorme publicação do IBGE em grossos volumes de cor cinza. Era a partir dessas pesquisas que fazíamos mapas bem cuidados, em papel de seda, colorindo rios, montanhas, acidentes geográficos, cidades e estradas. Tudo o que era humanamente possível aprender em História e Geografia estava à nossa disposição, através das duas queridas professoras, as que mais recordo de todos os mestres das muitas matérias que tínhamos no Vocacional. Tudo aquilo era a abundância do saber, quase a plenitude do conhecimento, tudo o que eu sempre valorizei na vida.
Aliás, para mim, que vinha de uma família modesta, sem livros em casa, com pai e mãe que sequer tinham concluído o ensino primário, o Vocacional foi mais do que uma escola, ou um local de aprendizado: foi uma universidade precoce, um verdadeiro templo da educação, num ambiente sadio, desafiador e ao mesmo tempo acolhedor. Sem o Vocacional Oswaldo Aranha – e sem a Biblioteca Anne Frank, antes dele – eu não teria sido o profissional bem sucedido que fui na vida adulta, bem como nas atividades acadêmicas que sempre exerci paralelamente à carreira diplomática. Não existe um só terreno dos conhecimentos em humanidades, mesmo em alto grau de especialização e de sofisticação, no qual eu não descubra uma semente ou um fundamento enraizados naqueles quatro anos durante os quais frequentei o magnífico ginásio do Brooklin.

Fui, realmente, muito feliz ao longo de todos aqueles anos, cada um deles identificado com algum evento político, no Brasil ou no mundo, que por acaso também me levaram na direção dos estudos de questões internacionais, às quais estou ligado profissionalmente desde meu ingresso na carreira diplomática no final dos anos 1970. Em 1962, por exemplo, ocorreu o famoso episódio da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, uma crise geopolítica maior das relações internacionais na era da Guerra Fria, cuja dimensão dramática nós só fomos descobrir, um ou dois anos mais tarde, a partir de uma palestra feita no Vocacional por Oliveiros da Silva Ferreira, um jovem editorialista do venerável Estadão, jornal “reacionário” que eu também aprendi a ler, na precoce idade de treze anos, em função dessa extraordinária abertura permitida pelo Vocacional. O ano seguinte, 1963, foi marcado por lutas camponesas no Brasil, conduzidas pelo famoso advogado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas na zona canavieira no Nordeste (cuja história e geografia também tínhamos estudado com as professores); daí derivou, suponho, meu esquerdismo juvenil, desde muito cedo identificado com os conflitos sociais então em curso. Em 1964, o ano do golpe militar no Brasil, pudemos sentir que algo estava mudando no ambiente externo, uma nova atmosfera que, poucos anos mais tarde, iria se refletir no fechamento, pelo regime autoritário, de todos os ginásios vocacionais existentes no estado de São Paulo. Em 1965, finalmente, a geopolítica mundial voltou à baila, com a revolução cultural na China, e a curiosidade que aqueles eventos misteriosos despertavam em nossas mentes juvenis. Não haverá, por certo, nenhuma surpresa em reconhecer que eu me politizei precocemente no e por meio do Vocacional Oswaldo Aranha, aliás um patrono pelo qual guardo especial afeição: não tenho nenhuma dúvida, hoje, conhecida sua trajetória de estadista e de diplomata, em afirmar que o Brasil teria sido um país muito diferente do que foi se, em algum momento de sua trajetória política, entre o começo dos anos 1930 e o final dos 1950, Oswaldo Aranha tivesse ascendido à suprema magistratura do país.

Os quatro anos que passei no GEVOA, quando consolidei amizades até hoje mantidas, foram, repito, os mais decisivos em minha formação intelectual, de resto em minha própria definição ulterior de vida e de carreira acadêmica, sobretudo na vertente das Humanidades que estou aqui destacando. Foi tão grande o impacto exercido sobre mim pelas duas professoras de Estudos Sociais que se tornou inevitável, chegado o momento, a opção pela mesma área de estudos quando terminei o segundo ciclo do secundário, o colegial na vertente “clássica”, de preferência à “científica” que constituía sua segunda vertente. À diferença, provavelmente, de todas as outras disciplinas que “enfrentei” ao longo dos estudos de graduação e de pós-graduação, jamais dispendi qualquer esforço adicional no estudo de matérias atinentes à História e à Geografia, tão forte e tão sólida foi a minha formação nessas duas áreas. Devo à Dona Odila e a Dona Mariazinha esse meu convício natural com as duas disciplinas-fundadoras dos estudos sociais, que elas justamente explicavam a partir de suas raízes clássicas, na Grécia antiga, mas que elas traziam até os grandes mestres fundadores das ciências sociais no Brasil, os grandes nomes que pontificavam dos anos 1930 aos 1950.
De todas as áreas e domínios das ciências sociais e das humanidades em geral, foram essas duas matérias que sempre me deram um prazer indescritível em ouvir, em ler, em sintetizar, e mais tarde ao escrever. De todos os exames, bastante rigorosos, que fiz para o ingresso na carreira diplomática, quando tive de me debruçar sobre livros de direito, de economia e de inglês, praticamente não me ocupei, quase nada, de História e de Geografia, tão forte era a minha confiança no conhecimento acumulado desde a primeira adolescência nessas duas disciplinas. A lembrança das duas jovens professoras foi inevitável naquelas horas, como ainda é hoje, cinquenta anos depois de concluído o Vocacional e quase quarenta de vida profissional e acadêmica.

Às duas professoras, meu sincero carinho e meu total reconhecimento, com um grande sentimento de satisfação intelectual por ter tido o privilégio de desfrutar de suas aulas altamente motivadoras. Minha homenagem especial à Dona Odila Feres, meu “anjo da guarda geográfico”, presença ainda viva e testemunha vibrante dos nossos “anos dourados” de incorporação ao mundo juvenil (na verdade quase adulto, tão ricas e profundas eram suas aulas nesse terreno).
Muito do que sou hoje, intelectualmente falando, devo ao que aprendi nesses anos do Vocacional Oswaldo Aranha, em especial com as minhas duas professoras preferidas. Devo a elas o primeiro contato direto, fascinante, com a obra de um grande historiador brasileiro, como também a oportunidade de erigir em padrão de conduta na pesquisa acadêmica o “ceticismo sadio” do arqueólogo uspiano, atitude que sempre caracterizou todos os meus empreendimentos intelectuais desde então. Lições como essas não se aprendem apenas nos livros: elas requerem pessoas mais espertas que nos guiem os passos e as reflexões.
Muito obrigado, de coração, e um grande beijo de saudades... 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2921: 19-21 de janeiro de 2016, 7 p.