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quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Humanidade e suas Fronteiras- livro de Eduardo Matias (Resenha PRA)

Um leitor me escreve para dizer que não encontrou a resenha que fiz do livro abaixo. Deveria estar no site do Observatório da Imprensa, mas provavelmente já não está mais disponível.
Como se trata de livro importante, transcrevo aqui esta resenha.
Paulo Roberto de Almeida

Fronteiras da sociedade global
Resenha de Eduardo Felipe P. Matias:
A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global
(São Paulo: Paz e Terra, 2005, 556 p; ISBN: 85-219-0763-X).
Publicada em formato digital no site do Observatório da Imprensa (ano 11, nº 421; 20/02/2007; ISSN: 1519-7670).
Relação de Trabalhos n. 1724; Publicados n. 751.

Fronteiras da sociedade global

Eduardo Felipe P. Matias
A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global
(São Paulo: Paz e Terra, 2005, 556 p; ISBN: 85-219-0763-X)

Este livro é uma tese, aprovada, aliás, com distinção numa banca da USP. O livro também contém várias teses, sendo a mais importante a que figura no seu subtítulo, ou seja, que estamos saindo do paradigma do Estado soberano para o da sociedade global. Pode-se admirar o livro, sua estrutura ideal enquanto tese acadêmica, sua perfeita cobertura dos mais importantes temas e problemas do direito internacional contemporâneo, mas cabe uma ou duas ressalvas quanto ao novo paradigma proposto pelo autor.
A primeira ressalva seria de ordem propriamente conceitual. No sentido mais corriqueiro da palavra, o termo paradigma refere-se a um padrão ou modelo de algo, tangível ou intangível, mas sempre definido de modo explícito. No que se refere ao modelo proposto neste livro, não se sabe bem a qual tipo específico de nova configuração civilizacional corresponderia à “sociedade global”, uma vez que seus atributos restam indefinidos. Pode-se dizer, paradoxalmente, que ela não tem fronteiras, ou então que suas fronteiras ainda são, justamente, as dos Estados nacionais. No sentido mais filosófico, ou “kuhniano”, da expressão, trata-se de um conjunto de crenças ou “teorias”, aceitas como verdadeiras, até serem desbancadas por algum outro conjunto superior de explicações racionais que, a partir de certo momento – usualmente definido como “revolução científica” –, passam a ser consideradas como a nova verdade estabelecida. Em nenhum desses dois sentidos, porém, o novo paradigma da sociedade global proposto por Matias parece já ter sido estabelecido e reconhecido no âmbito acadêmico.
Mas, há igualmente um enorme problema de ordem prática: se eu quiser falar com a tal de sociedade global, telefono para quem? Para falar com chefes de Estado ou com o secretário-geral da ONU , sei que posso encontrar os números em diretórios, mas o telefone do novo paradigma ainda é desconhecido, na verdade inexistente. Ou seja, ela não possui institucionalidade. Ao que tudo indica, continuará a ser assim no futuro previsível, por mais que a globalização empurre as “coisas” na direção desse novo paradigma. Os Estados nacionais continuarão a dar as cartas no jogo global, ainda que as regras de conduta e o substrato mesmo dos intercâmbios internacionais deixem a esfera do bilateralismo e se projetem, cada vez mais, nos planos multilateral e global.
Independentemente, porém, destas ressalvas feitas à “tese” principal de Matias, pode-se considerar que a “sociedade global” constitui, de fato, um bom arquétipo, ou modelo, de como foram e são importantes as transformações nos sistemas econômico e político internacional, desde o final da contestação “alternativa” – socialista ou outra – ao moderno regime democrático de mercado, para a conformação da nova ordem internacional, cujos contornos ainda não estão precisamente definidos. Esta tese acadêmica apresenta um pouco da nova arquitetura naquilo que constitui a especialidade do autor: o direito internacional e os mecanismos de regulação e de cooperação existentes no mundo contemporâneo. Desse ponto de vista, ele representa uma das melhores tentativas de síntese, já conhecidas na comunidade acadêmica brasileira, para apreender o que há de especificamente novo no cenário internacional com incidência sobre o campo do direito e das organizações internacionais.
A estrutura quadripartite da tese, presumivelmente mantida no livro, é relativamente simples: uma parte introdutória trata do Estado soberano, isto é, das fronteiras tradicionais que dividem, desde Westfália, os Estados-nacionais reconhecidos como tal, e reciprocamente, desde o século XVII. A primeira parte se ocupa da globalização em geral, na qual o subtítulo explicita seu objeto: “o papel da globalização e da revolução tecnológica na alteração do modelo do Estado soberano e na ascensão do modelo da sociedade global”. A segunda parte, “globalização jurídica”, se ocupa especificamente – e talvez repetitivamente – do papel da globalização jurídica e das organizações internacionais “na alteração do modelo do Estado soberano e na ascensão do modelo da sociedade global”. A parte final chega à “sociedade global”, definida como as novas fronteiras da humanidade. Uma conclusão de apenas três páginas e a bibliografia se estendendo por mais de trinta páginas completam este imponente volume de doze capítulos bem escritos e abundantes remissões bibliográficas.
Os estudiosos da história do direito encontrarão, no primeiro capítulo, um resumo de como os teóricos da política – Maquiavel, por exemplo – e da ciência jurídica – Grotius, Bodin, entre outros – trataram da emergência e da afirmação do Estado soberano a partir do Renascimento. O segundo capítulo aprofunda a construção do modelo de Estado soberano, seus significados (poder e supremacia, por exemplo), assim como as distinções entre soberania de direito e de fato. Seguem-se as duas partes centrais, com quatro capítulos cada uma, descrevendo e discutindo as forças principais da globalização contemporânea, a revolução tecnológica e o papel das empresas transnacionais, incluindo aqui os operadores financeiros. O interessante a observar em relação ao tratamento dado pelo autor a esse fenômeno tão suscetível de receber abordagens dicotômicas é que ele integra de modo satisfatório análises de autores notoriamente contrários à globalização com trabalhos de estudiosos bem mais favoráveis a esse processo.
Na parte da globalização jurídica – segunda parte da tese –, o foco do autor é posto na regulamentação internacional e no fortalecimento das organizações internacionais de cooperação e de integração. Ele constata, por exemplo, como as entidades mais notoriamente vinculadas a esses processos, a OMC, o FMI e o Banco Mundial, ao mesmo tempo em que preservam certos atributos da tradicional soberania dos Estados, acabam por minar as bases do poder e do arbítrio alocado exclusivamente às políticas de base nacional. Paradoxalmente, isto ocorre com o próprio consentimento dos Estados. De fato, como confirma o autor, permanecer à margem ou retirar-se dessas instâncias de regulação trans- ou supranacional representaria custos enormes, que poucos Estados estariam dispostos a pagar, uma vez que os benefícios advindos da regulação internacional são patentes e visíveis, no comércio e nas transações financeiras.
A parte final contém o que o autor chama de “novo paradigma”, isto é, o estabelecimento de um “novo contrato social” e de uma “nova soberania”. Os mecanismos para a criação dessas novas realidades são a cooperação e a interdependência entre os Estados, o que acaba resultando num novo tipo de contrato. Uma nova lex mercatoria, por exemplo, se impõe, por via do método arbitral, à margem e fora do alcance do poder dos Estados. No tratamento da questão da supranacionalidade, implícita em alguns modelos de integração, o autor acaba mencionando a Comunidade Andina, onde esse atributo, previsto originalmente nos tratados constitutivos, foi totalmente teórico e na prática inexistente. De todo modo, as bases do novo pacto estão postas, e elas corroem os fundamentos da soberania westfaliana.
Os motivos que levam os Estados a diluírem a sua própria soberania nas novas formas de organização inter- ou supra-estatais não derivam tanto da harmonia que existiria entre eles, como da necessidade de superar as fontes de conflito, substituindo-o pela cooperação. O cenário hoje se aproxima de uma soberania compartilhada, ou de uma “governança sem governo”, e o próprio direito deixa de ser, nas palavras de Celso Lafer, um “direito internacional de coexistência” – baseado em normas de mútua abstenção – para tornar-se um “direito internacional de cooperação”, com a missão de promover interesses comuns. Quais seriam, então, os elementos que compõem o novo paradigma da “sociedade global”, segundo o autor deste livro?
Entre eles se situam a sociedade civil organizada, composta pelas ONGs, e os fenômenos de natureza trans- ou supranacional já analisados no livro: as empresas multinacionais e os esquemas de integração econômica e política. Esses atores integram os novos regimes criados para regular a cooperação entre os atores tradicionais, os Estados soberanos (ma non troppo, poder-se-ia dizer). Como diz o autor, o novo sistema de governança global possui aspectos internacionais, transnacionais e supranacionais. Porém, a diluição da soberania estatal trazida pela globalização econômica interessa sobremodo às empresas transnacionais, em especial as do setor financeiro.
Dois problemas permanecem para a nova “sociedade global”: ela não dispõe de um poder judiciário – já que a corte da Haia só trabalha sob convocação e aprovação dos Estados – e ela não dispõe de um poder militar, ou policial, próprio, uma vez que a ONU nunca foi dotada, pelos Estados membros – a fortiori os cinco grandes do seu Conselho de Segurança – de forças armadas atuando sob um comando unificado a seu serviço (sem mencionar o poder de veto, que é atribuição individual de cada um dos cinco permanentes). Um terceiro problema seria a dimensão do desenvolvimento, uma vez que a pobreza e a desigualdade continuam a caracterizar boa parte da humanidade. Paz, segurança, justiça e desenvolvimento parecem ser, de fato, os obstáculos atuais à plena consecução da sociedade global almejada pelo idealismo jurídico. Não é certo que esses aspectos venham a ser resolvidos no plano global, pela “comunidade internacional”, como pretendem alguns; o mais provável é que eles ainda dependam, basicamente, da atuação dos Estados soberanos para sua resolução.
O autor acredita que “somente no momento em que os indivíduos de cada nação viessem a compartilhar um amplo conjunto de valores e interesses seria possível esperar que os conflitos hoje provocados pela divisão do mundo em Estados pudessem deixar de existir” e que o direito tem um papel fundamental nesse processo de confluência de valores (p. 515). Examinando-se o estado atual do mundo e a “educação” das massas, tal perspectiva aparece como sumamente idealista. Mas, ele também reconhece que a soberania pode ser uma das últimas salvaguardas para Estados fracos ou vulneráveis. Os princípios legitimadores da nova “sociedade global” deveriam ser os da democracia e das liberdades individuais, algo ainda distante do modo de vida de milhões de indivíduos na face da terra.
Em sua conclusão, o autor frisa bem que a sociedade global não é uma sociedade sem Estados ou sem fronteiras. Ele também acredita que a riqueza global esteja se concentrando e que a humanidade se torna cada vez mais desigual, daí sua afirmação segundo a qual o “bom combate é aquele em favor da justiça social na sociedade global” (p. 523). Essas “realidades”, no entanto, vêm sendo desmentidas por estudos empíricos solidamente embasados em dados sobre a distribuição de renda na dimensão individual (como por exemplo em diversos trabalhos de Xavier Sala-i-Martin). O autor diz lutar para que as “políticas adotadas por essas instituições [que assumem parte da antiga soberania estatal] sejam não apenas justas, mas socialmente justas, para que a parte do planeta que pouco ou nada tem seja resgatada por aqueles que conseguiram alcançar grau maior de desenvolvimento -- seja por seu mérito próprio, seja por uma história desigual” (p. 523). Essa “nova utopia”, encarregada de efetuar a redução da exclusão social em escala global, estaria baseada na “idéia de fraternidade”.
Pode até ser que o autor tenha razão, mas o que a história e a experiência da cooperação internacional nos ensinam, justamente, é que depois de mais de meio século de ajuda oficial ao desenvolvimento, em especial aquele dirigido à África, o “resgate” pela assistência e pela ajuda financeira não foram e não são suficientes para retirar essas massas da miséria mais abjeta ou da simples pobreza. Apenas o crescimento econômico, em bases propriamente nacionais, tem sido capaz de fazê-lo, como ensinam os casos recentes da China e da Índia. Que a África e, em certa medida, a América Latina não tenham sido capazes de superar os aspectos mais pungentes da pobreza e da desigualdade não deve ser visto como um fracasso da globalização ou das políticas econômicas ditas “neoliberais”, como pretendem aqueles que militam na antiglobalização. O fato é que esses continentes ainda estão muito longa da “sociedade global” proclamada pelo autor. Isso por decisão própria, por insistirem nas chamadas “políticas soberanas” de desenvolvimento – ou no caso da África, por corrupção mesmo, que se traduz no fenômeno da falência dos Estados – não porque o capitalismo global tenha pretendido excluir esses continentes de suas redes e fluxos integradores.
Em outros termos, a construção da “sociedade global”, a tese principal defendida neste livro, parece ser, ainda, uma obra essencialmente dependente da vontade dos Estados nacionais, vale dizer da capacidade de ação de seus dirigentes, nem todos estadistas, para dizer o mínimo. Isto, obviamente, em nada diminui o interesse desta tese de doutorado para o avanço dos estudos de direito internacional no Brasil. Que sua tese principal seja aprofundada e debatida…

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1724: 11 fevereiro 2007.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Entre Davos e Dacar: dois mundos impossíveis? - Paulo Roberto de Almeida

Não tenho certeza de ter postado, neste formato, este meu artigo
Entre Davos e Dacar: dois mundos impossíveis?,
publicado no portal iG de economia em 10/02/2011.

Entre Davos e Dacar: dois mundos impossíveis?
Paulo Roberto de Almeida
Especial para o iG, 10/02/2011

Os antiglobalizadores se tornaram agora um grupo “importante” para apenas protestar ruidosamente contra os encontros capitalistas

Dois personagens à procura de um enredo

Entre o final de janeiro e o começo de fevereiro de cada ano são realizados, sucessivamente ou por vezes simultaneamente, dois fóruns mundiais, mas “inimigos”: de um lado, o dos capitalistas de Davos – o Fórum Econômico Mundial, ou WEF, na sua sigla em inglês – e, de outro, nos últimos dez anos, o dos antiglobalizadores do Fórum Social Mundial (FSM), em diferentes cidades tidas como, momentaneamente, “alternativas” (e Porto Alegre o foi, enquanto esteve sob o comando do PT). Já passou o tempo em que os militantes do segundo grupo se organizavam para perturbar, ou mesmo para tentar impedir a realização do primeiro, como faziam com todos os demais encontros “capitalistas” de par le monde, formando correntes de bloqueio, destruindo algumas propriedades e enfrentando a polícia nas ruas dessa pacata estação de esqui da Suíça (ou de outras cidades que por acaso abrigam reuniões periódicas dos “poderosos” do mundo).

Os antiglobalizadores – graças, justamente, à globalização, mas isso eles não reconhecem – se tornaram agora um grupo por demais “importante” para apenas protestar ruidosamente contra os encontros de capitalistas: eles já têm seu espaço garantido na mídia e na agenda de muitas ONGs e por isso se dedicam, hoje, com a mesma seriedade de uma multinacional “grisalha”, a transmitir suas próprias “soluções” aos problemas mundiais, chegando até a obscurecer, em algumas ocasiões, as propostas do primeiro grupo. Cabe, assim, tratar de suas agendas respectivas e de suas propostas, se é que alguma proposta significativa pode “emergir”, de um ou outro fórum, para “resolver”, de fato, problemas cruciais da humanidade.

Esses problemas, como se sabe, têm nome e “endereço”: pobreza ainda disseminada em diferentes regiões do planeta, ameaças à paz e à segurança internacionais em diversos hotspots do mundo, conflitos renitentes, sob a forma de guerras civis, enfrentamentos étnicos ou religiosos, em países próximos daquela condição associada a um “Estado falido”, poluição e perspectivas de novos cenários malthusianos com o aquecimento global antrópico, enfim, questões que estão há muito tempo na agenda das principais potências e organismos internacionais e que são, ou deveriam ser, tratadas também nos encontros mundiais de globalizadores e antiglobalizadores, onde quer que eles se reúnam. Vamos tentar ver um pouco mais de perto o que representam, de fato, esses encontros e analisar suas “soluções”.

Fórum de Davos: capitalistas “arrependidos” e fora de foco

O Fórum de Davos surgiu no início dos anos 1970 com a finalidade explícita de reunir representantes da elite do empresariado mundial e os dirigentes políticos com responsabilidade de governos em torno das questões mais relevantes da agenda mundial, num momento – choques do petróleo e revolução islâmica no Irã – em que o mundo se debatia entre a estagflação dos países ricos e as crises econômicas – geralmente de dívida externa – dos países em desenvolvimento. Seu organizador, Klaus Schwab, tinha a intenção de facilitar o diálogo entre esses dois grupos, já que o G7 se reunia praticamente a portas fechadas e que as reuniões das instituições de Bretton Woods – FMI e Banco Mundial – e do Gatt tampouco permitiam a participação do setor privado; haveria, portanto, um espaço a ser preenchido por uma ONG como a que ele criou precipuamente com essa finalidade: juntar reguladores e decisores em torno dos problemas do momento.

Os objetivos eram, sem dúvida alguma, meritórios: encontrar um terreno neutro, quase de lazer (já que Davos sempre se distinguiu pelas suas pistas de esqui), para fazer avançar a coordenação de políticas entre os principais atores da economia mundial – Estados e companhias globalizadas –, sempre com intenção de, através do diálogo informal, despojado do peso das burocracias governamentais, fazer com que algumas novas ideias pudessem ser concretizadas no terreno das políticas práticas e das iniciativas intergovernamentais, com vistas a incrementar, de modo adequado e mutuamente benéfico, a chamada interdependência econômica global. Nesse sentido, a agenda de Davos não era muito diferente daquela do G7, da OCDE ou daqueles entidades multilaterais, com a vantagem de oferecer um espaço de discussão informal, sem os rigores e os compromissos das declarações oficiais de governos e entidades.

Passados quarenta anos de sua criação, qual seria o balanço a ser feito do WEF e de suas contribuições, eventualmente positivas, para a melhoria das condições econômicas e sociais no nosso planeta? Elas são inegavelmente positivas, pelo simples fato de se ter mais um espaço de diálogo entre a chamada “sociedade civil” – ainda que representada majoritariamente pelos capitalistas, ou seja, os “ricos e poderosos”, como diriam seus opositores – e líderes governamentais, tratando de problemas relevantes da agenda mundial: crescimento econômico, desenvolvimento sustentável (que é o novo mantra da agenda ecológica de radicais e cientistas do meio ambiente), comércio internacional (que sempre anda aos “trancos e barrancos”, ao sabor das rodadas de negociações comerciais multilaterais), sistemas financeiros (e a verdadeira anarquia monetária e cambial que existe nessa área), questões tópicas de saúde, segurança, comunicações, ou questões mais amplas, como desenvolvimento social, distribuição de renda, diversidade cultural, etc.

Aos poucos, porém, essa agenda passou a refletir o “politicamente correto” das agências intergovernamentais, com uma linguagem cuidadosamente escolhida para não ofender “gregos e goianos”, e tomando o cuidado para tampouco contrariar as prioridades governamentais, para não afastar os líderes governamentais, que, junto com os capitalistas, são os que sustentam financeiramente o WEF. Na verdade, os encontros de Davos são uma ocasião adequada para que estes últimos, em suas missões de lobby e de novas oportunidades de negócios, encontrem os decisores de governo, ou seja, continuem a fazer aquilo que eles normalmente fazem em direção de suas capitais e nos países focados para investimentos e transações comerciais. Podem até ocorrer cenas implícitas de corrupção, dado que a profusão de atores tornam menos visíveis certos encontros e conversas que, no plano puramente nacional, seriam refletidas pela imprensa local e pelos competidores de outros países.

Nesse ambiente de “mútuo congraçamento”, de troca de favores gentis, de palavras amenas uns com os outros, só poderia dar no que deu: a agenda do WEF foi capturada pelas prioridades repetidamente reincidentes – com perdão pela redundância – das agências intergovernamentais, das ONGs de “bem-pensantes” – como Raymond Aron se referia a essas “almas cândidas”, interessadas, equivocadamente, em fazer o “bem” para o mundo, mas sempre pelas vias erradas – e das personalidades beneméritas, sempre prontas a agitar alguma “ideia generosa”, desde que aquilo lhes garantisse alguns minutos de publicidade gratuitas nas telas dos canais internacionais e dos grandes jornais de circulação mundial.

Pois foi assim que pudemos ver, poucos anos atrás, uma conhecida artista de Hollywood, seduzida pela agenda de um cantor idiota (mas de sucesso) de “salvar os africanos” da miséria e da fome, conduzir numa plenária do WEF, ao vivo, uma campanha imediata de doações em favor do continente africano, anunciando imediatamente que estava depositando um milhão de dólares na caixinha de uma entidade qualquer que se dedicava, justamente a essa atividade benemerente. Foi o sinal para que os capitalistas entusiasmados – não tanto pela África, mas provavelmente pela atriz sedutora – passassem a soltar seus milhares de dólares pela mesma causa. No espaço de uma hora, a conta deve ter subido a vários milhões, que provavelmente foram perdidos nas semanas e meses seguintes com a triste realidade da assistência oficial e privada ao “desenvolvimento” africano: metade gasta nos meios e suprimentos adquiridos nos próprios países desenvolvidos, outro quarto nos canais de intermediação africanos (com pelo menos uma parte voltando para os bancos offshore que mantêm contas numeradas) e o que sobrou sendo finalmente aplicado na atividade-fim (sem qualquer esperança de algum tipo de mudança nas realidades africanas).

Patéticos esses capitalistas de Davos, que agora precisam ser um pouco de tudo: sustentáveis, igualitários, socialmente conscientes, ecologicamente ativistas, politicamente equilibrados, culturalmente diversificados, includentes em matéria de gênero, raça e cor, sexualmente abertos, compreensivos com todas as religiões, favoráveis a cotas para todo tipo de minoria, apoiadores sinceros de uma “diplomacia supranacional da generosidade”, enfim, superhomens (e supermulheres), tudo menos simples capitalistas, vocês sabem, daquele velho estilo, interessados apenas em lucros e resultados para seus acionistas e proprietários. Eles estão quase pedindo desculpas por serem ricos e poderosos, por produzirem resultados tangíveis para suas empresas, ou simplesmente por serem capitalistas. Estão com a consciência culpada por terem um estilo de vida tão “luxuoso”, enquanto mais da metade da humanidade patina na miséria: “o que podemos fazer?”, suplicam eles...

Eu diria que eles deveriam voltar a ser o que sempre foram: capitalistas, apenas isso. Sua função principal é, essencialmente, a de produzirem resultados para seus proprietários e acionistas, quanto mais lucro melhor. Como o lucro só pode ser proveniente de alguma atividade lícita de mercado – claro, tem aqueles que vão a Davos para conseguir um contrato suculento com algum príncipe, mas esses são minoria – eles estarão cumprindo, assim, a função que lhes foi atribuída pela economia de mercado. Qualquer outra atividade “politicamente correta” que eles resolverem empreender, como empreendem de fato, é pura hipocrisia social, é uma rendição às novas patrulhas ideológicas que frequentam – infestam, seria o termo mais apropriado – esses encontros a partir dos organismos internacionais e das entidades não governamentais pretensamente caritativas e humanitárias.

O mundo dos capitalistas é o mundo dos retornos de mercado, dos lucros crescentes, das inovações tecnológicas, da competição desenfreada, da promoção das novas ideias para vencer a concorrência, enfim, o mundo que eles sempre conheceram antes de começar essa onda do “politicamente correto” que se revela economicamente estúpido. Os capitalistas não vão produzir um “outro mundo possível”, melhor do que o atual, entenda-se, seguindo as recomendações economicamente irracionais de ONGs e dinossauros intergovernamentais; eles apenas vão prolongar os diferenciais de produtividade, as desigualdades sociais e regionais, a não-educação, a corrupção, a ineficiência dos aparatos estatais na maior parte dos países em desenvolvimento, enfim, as mesmas realidades a que assistimos atualmente, depois de quatro ou cinco “décadas do desenvolvimento” decretadas pela ONU.

Mas também suspeito que eles vão para Davos praticar a mais velha das vaidades humanas, o exibicionismo do rico perdulário: “eu chego de jatinho particular, eu alugo um chalé a 300 mil dólares por um fim de semana, eu dou uma festa regada a champagne legítimo, eu vou esquiar em pista exclusiva, e depois, se sobrar tempo, passo naquela mesa-redonda para demonstrar minha compreensão com as causas do momento” (aproveitando para ver aquele velho corrupto do Oriente Médio). Enfim, isso também existe, e Davos até pode sair mais barato em matéria de lobby, ao concentrar toda essa fauna no mesmo lugar. Aposto como teremos mais quarenta anos de WEF, no mesmo estilo, com capitalistas cada vez mais encurralados no politicamente correto dos tempos que correm. Enfim, more of the same...

Os “alternativos” do FSM: socialistas reciclados na economia solidária

Outra é a fauna dos encontros anuais (e regionais) do FSM: viúvas do socialismo, órfãos do comunismo, frustrados com o prolongamento (várias vezes repetido) das “crises finais” do capitalismo, filhos ingratos da globalização, ingênuos de todo gênero e um gênero especial de velhos “velhacos” do altermundialismo profissional, aqueles capazes de vender ideias vazias para mentes igualmente vazias, como são as dos jovens que frequentam em sua grande maioria esses encontros ruidosos e caóticos. Assim como Davos é um convescote de luxo para os capitalistas (e outros poderosos do globo), os encontros do FSM são um piquenique catártico, geralmente austero, para todos esses rebentos rebeldes da globalização.

As grandes estrelas são esses embromadores de sempre, nomes conhecidos na academia e nos meios de comunicação para serem repetidos aqui gratuitamente. A eles se somam alguns populistas e demagogos do chamado Terceiro Mundo, em maior número, atualmente, da América Latina, um continente atrasado que costuma produzir esse tipo de fauna política (já que em outras regiões, o pessoal está mais ocupado em realmente fazer emergir suas economias). Eles vêm “debater” – conforme leio no programa – “a conjuntura global e a crise, a situação dos movimentos sociais e cívicos e o processo do Fórum Social Mundial.”

Em matéria de resultados efetivos para a prosperidade do mundo, eles conseguem ser ainda mais negativos, e irrelevantes, do que os capitalistas de Davos, pois que estes últimos pelo menos produzem bens, serviços, utilidades mercantis que entram nos vastos circuitos da globalização, ao passo que os primeiros só produzem palavras, palavras e mais palavras. Nunca tantos se reuniram tanto, para transpirar tanto, sem qualquer inspiração útil, em torno de tão magras ideias (if any). Parece incrível, mas eles conseguem se repetir a cada ano, sem trazer nada de novo para o debate público. Senão vejamos.

Leio no documento de base dos antiglobalizadores: “A situação global está marcada pelo aprofundamento da crise estrutural da globalização capitalista.” Ou então: “Análises do movimento altermundista estão sendo aceitas, reconhecidas e contribuem para a crise do neoliberalismo. As propostas produzidas pelos movimentos são aceitas como base, por exemplo, para o monitoramento dos setores financeiro e bancário, para a eliminação dos paraísos fiscais, de tributos internacionais, para o conceito de segurança alimentar, até então considerados heresias, estão nas agendas do G8 e do G20.” Mais ainda: “Essas propostas tem sido acolhidas, mas não se efetivam por causa da arrogância das classes dominantes confiantes no seu poder.” (ver: “O que está em jogo no Fórum Social Mundial 2011”; 25.01.2011; disponível: http://www.forumsocialmundial.org.br/noticias_01.php?cd_news=2996&cd_language=1.)

Também leio na imprensa que um desses líderes latino-americanos presentes ao FSM de Dacar foi enfático em condenar a exploração e a dominação dos malvados de sempre, exaltando a liberação dos povos pela mão de dirigentes anti-imperialistas como ele: “Assim como a África foi colonizada e submetida, a América Latina também foi invadida pela Europa, que para ali foi aniquilar povos indígenas.” O caminho para a liberdade, porém, passa pela correta identificação dos adversários: “Sabemos bem quem são os inimigos do povo: o capitalismo, o neoliberalismo, o neocolonialismo, que possuem instrumentos para seguir impondo políticas e saqueando as riquezas da população.” Basta isso: já sabemos o resto.

O mais curioso, nesse tipo de catarse “social”, é que esses líderes condenam a exploração dos países ricos e poderosos, mas querem liberdade de emigração, ou seja, fronteiras livres para que seus “povos explorados” possam ter acesso aos mercados de trabalho das potências exploradoras. Não seriam eles cúmplices daqueles europeus que foram saquear as riquezas dos “povos originários”, querendo agora que esses mesmos povos sejam explorados desta vez no centro mesmo do sistema explorador?
É isso, pelo menos, que deduzo de algumas palavras de ordem do documento de base, que pede um “mundo diferente da globalização dominante”. Para isso, os antiglobalizadores pretendem colocar a questão dos “direitos dos migrantes e da migração que questione o papel das fronteiras, bem como a organização do mundo.” Mas se é para escapar da globalização assimétrica, como é que eles pretendem agora oferecer seus povos no altar da globalização, como vítimas expiatórias de um “novo mundo possível”? Vai entender...

E como é que os antiglobalizadores pretendem construir esse “outro mundo possível”? Segundo eles, mobilizando as forças de “movimentos de campesinos, sindicatos, grupos feministas, de juventude, habitantes locais, grupos de imigrantes reprimidos, grupos indígenas e culturais, comitês contra a pobreza e contra a dívida, a economia informal e a economia solidária, etc.” Enfim, majoritariamente os lumpen, e bem menos os trabalhadores da economia formal, que costumavam ser os “coveiros do capitalismo” naquela versão antiga das velhas teses alternativas à economia de mercado. Para piqueniques culturalmente diversos está muito bem, mas para construir uma alternativa real e credível a essa globalização assimétrica que está aí, deve-se reconhecer que essa tribo é bem menos homogênea do que os capitalistas de Davos. Vai ser difícil um entendimento sobre uma plataforma comum, e abrangente, de mudanças sociais e políticas que conduzam a esse “outro mundo possível”, se é verdade que os antiglobalizadores sabem onde querem chegar (o que eu duvido).

Na sua linguagem sempre enrolada, típica de acadêmicos que vivem sua labuta constante na embromação cotidiana de alunos passivos, os antiglobalizadores reconhecem que a luta não é fácil: “O processo do FSM pôs em cena as bases para essa nova cultura política (horizontalidade, diversidade, convergência das redes de cidadãos e dos movimentos sociais, atividades autogestionadas, etc.) mas ainda deve inovar mais em muitas dificuldades relativas à política e ao poder, para conseguir superar a cultura política caduca, que para a imensa maioria persevera dominante.” Pois é, o mundo é mesmo pouco complacente com suas ideias vazias (se que eles têm alguma). Os capitalistas de Davos, pelo menos, costumam expressar seus objetivos apontando para resultados mais tangíveis: tanto de crescimento (descontada a inflação), lucros aumentados em x%, investimentos em y%, empregos criados em tal ou qual país, novos centros de pesquisa e desenvolvimento, z% do faturamento global aplicado em inovação, dividendos em alta, abertura de capital, etc.

Se os antiglobalizadores tivessem algum tipo de benchmark, e fossem avaliados por uma dessas consultorias globais em organização e métodos, eles provavelmente seriam reprovados. Só não fecham a “barraca” porque conseguem operar a custos mínimos, graças, entre outras benesses do capitalismo, ao free lunch da globalização: e-mail e blogs gratuitos (thanks Google), telefonia de graça por VOIP, patrocínio de empresas estatais e de governos “iluminados”, milhas acumuladas e passagens e diárias dadas pelas entidades de fomento à pesquisa pública, enfim, um sem número de benefícios do sistema que eles conspurcam de forma totalmente ingrata e incompreensível.

Capitalistas e antiglobalizadores: defasados e esquizofrênicos

Ao fim e ao cabo, tanto os capitalistas de Davos, quanto os antiglobalizadores do FSM (que são, em grande medida, anticapitalistas, com exceção dos jovens, que não são nada; são apenas a favor de um “mundo melhor”) estão de certa forma em descompasso com as realidades do mundo e aparentemente sem propostas sobre como empreender a construção desse “outro mundo possível” a que ambos os grupos aspiram (ao que parece). Os primeiros porque deixaram de ser apenas capitalistas para se apresentarem em “reformadores sociais”, quando esta não é a sua tarefa e a sua “missão histórica” (como diria Marx). Os segundos porque não têm mesmo nenhuma proposta viável a apresentar para a “reconstrução” do mundo, e se contentam em repetir slogans vazios e dar voltas em torno de suas teses requentadas sobre a globalização não-assimétrica e a economia solidária.

A rigor, ambas as tribos já fazem parte da paisagem da globalização, com seus rituais consagrados e seus estilos respectivos de promover encontros, convescotes requintados no primeiro caso, piqueniques rústicos no segundo. Não se espera que ofereçam, por isso mesmo, soluções inovadoras aos problemas do mundo atual. Os capitalistas porque parecem estar perdendo seus “espíritos animais” e domando aquela ganância por lucros em favor de “ações socialmente responsáveis” – que são um travestimento das únicas atividades que deveriam empreender vigorosamente, que são: inovar, vender e ganhar dinheiro – e os antiglobalizadores porque não dispõem, de nenhum modo, de estatura intelectual para apresentar propostas concretas a problemas concretos: eles ficam no seu mundo de palavras vazias, de discursos erráticos, de soluções utópicas, sem qualquer aplicabilidade ao mundo real.

O mundo vai ter de esperar mais um pouco: talvez um recesso da onda de “politicamente correto” de um lado e um cansaço dos slogans repetitivos de outro. Quando isso vai ocorrer, eu não sei; só sei que os espetáculos anuais de Davos e dos encontros do FSM começam a ser aborrecidamente recorrentes, como esses produtos pasteurizados que já saíram do gosto popular. Um outro Davos é possível, um outro FSM é possível: ninguém tem nada a perder inovando em cada uma das frentes, só tem um mundo novo a ganhar.

Paulo Roberto de Almeida é professor de Economia Política Internacional e autor de: Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2010)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Viva a globalizacao, sobretudo para o Brasil e suas exportacoes

Meu livro sobre a globalização e a antiglobalização, Globalizando, em breve chegará às livrarias. Nele eu me dedico a desmantelar os alguns dos mitos que certos ingênuos e outros militantes de má-fé adoram disseminar contra a "globalização capitalista".
Pois bem, o recente (terceiro) censo do capital estrangeiro no Brasil, comentado abaixo pelo ex-presidente do Banco Central (e que havia conduzido o primeiro censo, em 1995), demonstra que essas empresas explicam muito do sucesso econômico brasileiro, sobretudo no comércio exterior.
Acho que dá para calar a boca de quem fica falando sem conhecer nada da questão.
Paulo Roberto de Almeida

A globalização e o Brasil

Gustavo H. B. Franco
Valor Econômico, 9/11/2010
 
Empresas com participação estrangeira impulsionam o comércio exterior. 
Os resultados do terceiro Censo do Capital Estrangeiro no Brasil, feito para o ano base 2005, foram divulgados recentemente. Os dados, cotejados com os resultados para os anos-base 1995 e 2000, fornecem um impressionante painel dos impactos das empresas estrangeiras sobre a economia brasileira nos primeiros 10 anos que se seguem ao Plano Real. O Brasil surpreendentemente cosmopolita e internacionalizado que emerge desses censos há de requerer políticas públicas adaptadas para essa realidade singular e estranha ao mito de um país fechado e isolado do fenômeno da globalização. O Censo é um questionário destinado a todas as empresas que, na data de referência, possuíssem um mínimo de 10% de participação acionária de não residentes no capital votante, ou de 20% sobre o capital total. De acordo com esse conceito, que diz respeito ao que poderíamos designar como EPEs, "empresas com participação estrangeira", o censo de 1995 teve 6.322 respondentes. Elas foram 11.404 em 2000 e 17.605 em 2005: são três novas EPEs a cada dia ao longo desta década! As empresas com controle estrangeiro, e que designamos como ECEs, foram 4.902 em 1995 e 9.673 empresas em 2005, respectivamente 77% e 55% do total.
Dessas empresas se solicitou pouco mais que suas demonstrações financeiras e o princípio foi simples: o Banco Central apenas conhece uma pequena parte do passivo não exigível dessas empresas, o capital de titularidade de não residentes, sujeito a registro no BC e oriundo de movimentação cambial ou reinvestimento. Todo o resto do balanço era desconhecido e, durante todos esses anos quando o BC enxergava a si mesmo como "autoridade cambial", mais até que como "autoridade monetária" (ao menos a julgar pelo número de funcionários dedicados ao controle cambial), jamais perguntou às EPEs nada além de sua movimentação cambial, como se a isso elas se resumissem. Na verdade, é o que está na cabeça de muita gente, que apenas enxerga EPEs como "passivo externo".
Pois bem, o que nos dizem os censos?
Para o ano de 1995, por exemplo, pode-se dizer que cada R$ 1,00 aportado por não residentes nessas empresas gerava R$ 5,50 em vendas e R$ 6,70 em ativos. Esses números foram mais modestos nos anos de 2000 e 2005 talvez em vista o espantoso crescimento do capital integralizado por não residentes especialmente no período entre 1995 a 2000.
É preciso entender melhor, mas os números do censo do capital externo explicam a evolução da economia
Para 2005 o capital estrangeiro acumulado é de R$ 381 bilhões, representando cerca de 87% do patrimônio total dessas empresas, cujos ativos totais se elevam a R$ 1,529 trilhão, e cujo faturamento atingiu R$ 1,294 trilhão. Durante a década coberta pelos censos os ativos cresceram cerca de 12% anuais em média, e o faturamento incríveis 19%.
No tocante ao comércio exterior vale registrar que esse conjunto de empresas era responsável por 55% das exportações totais do país em 2005, proporção que vinha se elevando desde 1995, quando era de 47%. O mesmo se pode dizer dos percentuais dessas exportações que eram "intra-firma" (comércio entre partes relacionadas): em 2005, 61% das exportações das EPES eram "intra-firma", o que equivale a dizer que algo como 1/3 das exportações brasileiras totais em 2005 eram "intra-firma". Em 1995 esse percentual era pouco inferior a 20%. Não há indicador mais poderoso para a inserção do país na economia globalizada que a extensão desses vínculos que definem o que se conhece como "produção internacional" ou "off shoring".
Resta observar que as EPEs empregavam 1,3 milhão de pessoas em 1995 e cerca de 2 milhões em 2005, representando parcelas do total da população ocupada que evoluíram de cerca de 2% para 2,3%, números surpreendentemente pequenos.
É possível estimar que para 2005 as EPEs produziam pouco mais de um terço do PIB brasileiro ao passo que as ECEs cerca de um quarto. Quando se tem em conta que EPEs e ECEs empregam menos de 3% da população ocupada, é possível construir indicadores de valor adicionado por trabalhador ocupado que ressaltam dramaticamente essas diferenças de produtividade: para 2005 enquanto um trabalhador em uma EPE gerava em média R$ 351 mil de valor adicionado, para o restante do país o número foi de R$ 23 mil.
Os valores para exportações por trabalhador ocupado talvez sejam os mais impressionantes. Enquanto um trabalhador ocupado em EPEs produzia cerca de US$ 31 mil em exportações, outro produzia US$ 1,3 mil em exportações em média, em outras empresas brasileiras . As exportações representavam cerca de 6% do PIB em 1995 e subiram a 13,4% em 2005 quando o PIB a preços constantes ficou praticamente estagnado; boa parte desse avanço teve a ver com as EPEs e offshoring: em 2005, as EPEs sozinhas eram responsáveis por exportações correspondentes a 7,4% do PIB brasileiro (5,7% para ECEs). Com efeito, as EPEs tinham propensão a exportar de 15,7% ao passo que o valor nas outras empresas brasileiras sem participação estrangeira era de 3,9%. Para 2005 o contraste ainda continua: EPEs com 21,5% e empresas brasileiras com 9,2%.
Os contrastes entre as EPEs e ECEs e o restante do país são óbvios e fáceis de se exagerar pois, como observado, seria preciso "controlar" outros fatores que podem explicar alta produtividade e propensão ao comércio, como tamanho, concentração, formalização do trabalho, entre outros. Mas mesmo com esse benefício concedido à dúvida é difícil evitar que esses contrastes nos levem a afirmar que as EPEs têm sido a locomotiva de expnsão do comércio exterior do país na primeira década depois do Plano Real, quando o crescimento do país não foi nada brilhante.
Apesar de ter havido pouca ajuda do comércio exterior, os números sugerem que foi a globalização o que fez andar a nossa economia nesses anos, e de formas que ainda precisamos entender melhor.

Gustavo H. B. Franco é professor da PUC-Rio, sócio fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central.