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domingo, 17 de junho de 2018

De la (Non) Democratie en Amerique (Latine): a Tocqueville report - Paulo Roberto de Almeida

De la (Non) Démocratie en Amérique (Latine):
A Tocqueville report on the state of governance in Latin America


Paulo Roberto de Almeida,
acting as an Assistant to M. Alexis de Tocqueville,
for a Report commissioned by the World Bank.
26th Estoril Political Forum, IEP-UCP (June 25-27, 2018)

Foreword by the assistant rapporteur - Paulo Roberto de Almeida
Preliminary report to the World Bank - Monsieur Alexis de Tocqueville
1. Latin Americans compared to the Americans of the North
2. Of the social conditions in the two parts of the American hemisphere 
3. Of the sovereignty principle in Latin America, or its absence
4. What happened to Latin America, that denied its people an expected progress?
5. What went wrong in Latin American, while Asia-Pacific went forward?
6. Progresses and blockages in Latin America: as time goes by…
7. What to expect from (and for) Latin America in the near future?
In a manner of conclusion, promising a full and complete report.


Abstract:Within a conceptual framework based on Tocqueville’s classic work about Democracy in America– freedom, democracy, equality, political organization, government and administrative centralization, etc. – this essay – drafted in the form of a report from Alexis de Tocqueville to the World Bank, at the demand of its Board – deals with the relative backwardness of Latin American countries, in terms of democratic principles, political accountability, insufficient economic and social development, social inequalities, adopting an historical and comparative perspective (with Asia-Pacific countries, for instance). The region has fragmented itself recently between globalizers, reluctant governments (protectionists and nationalists), and the so-called “Bolivarians”. Finally, it tackles the current and future challenges of Latin American countries, also in a comparative perspective with the Asia-Pacific region, and concludes that most of the problems at the source of the backwardness of the continent, and its peculiar difficulties to adapt and to insert into modernity and globalization are due to especially inept and corrupt elites, of all kinds and social origins. 
Key words: Latin America; Asia-Pacific; comparative analysis; Alexis de Tocqueville; development; globalization; democracy; economic freedom; elites.

terça-feira, 14 de março de 2017

A grave crise da governança no Brasil - Paulo Roberto de Almeida


A grave crise da governança no Brasil
Duas ou três coisas que eu sei dela e algumas maneiras de superá-la

Paulo Roberto de Almeida


A despeito do que se crê e do que se afirma freqüentemente, o Brasil não enfrenta nenhuma crise econômica, ou mesmo política. Ele tem, sim, uma séria e grave crise de governança, que: (a) paralisa a máquina pública; (b) aumenta a volatilidade do ciclo econômico; (c) diminui a confiabilidade do e no sistema de solução de controvérsias (judiciário) e (d) influencia de modo negativo o quadro político-institucional. Esse quadro termina por: (e) acirrar artificialmente alguns conflitos menores e (f) diminuir, de modo dramático, as perspectivas de melhoria da mesma governança. Desejo, desde já, sublinhar o adjetivo “grave”, pois o quadro compromete a possibilidade de quaisquer políticas.
Não há crise econômica no País. Esta afirmação pode soar irônica ou irrealista, em vista do crescimento negativo do PIB, do aumento do desemprego, da fragilidade continuada das contas públicas e da incapacidade de enfrentar novas demandas por recursos públicos por parte dos agentes públicos e da própria sociedade. Tudo isso pode ser verdade e, no entanto, o País não está e nem corre o risco de enfrentar uma crise econômica. Os indicadores negativos atualmente exibidos decorrem de um pequeno ciclo de falta de confiança despertado pela conjuntura política, que veio agregar-se aos problemas gerados anteriormente em escala regional... O Brasil tem problemas de fragilidade interna e externa desde muitos anos, praticamente desde a fase da redemocratização – que jamais produziu anos de crescimento sólido e sustentável – e vinha penosamente, ao longo dos anos 1990, tentando colocar em ordem esses desequilíbrios, com base em políticas consistentes e adeptas do rigor fiscal, com maior ênfase a partir da mudança no regime cambial em 1999. O comando econômico precisaria continuar virtuoso, sem hesitações.
A retomada de um processo de crescimento sustentado, compatível com as taxas historicamente registradas no passado (com exceção do interregno 1962-1965), depende, ao meu ver, da manutenção daquelas políticas, o que entretanto foi colocado em dúvida na conjuntura política atual. Pagamos o preço por uma transição política extremamente saudável do ponto de vista democrático e bem vinda do ponto de vista político e social. Devemos reconhecer que a democracia tem um certo preço em termos de aumento da cacofonia no processo decisório, mas ela é, em qualquer hipótese, infinitamente mais saudável, inclusive no plano econômico, do que qualquer sistema autoritário de debates (restritos) e de tomada (arbitrária) de decisões.
O aparelho político precisaria estar “aparelhado” para acomodar esse aumento na dispersão de opiniões, mas qualquer melhoria na institucionalidade do Estado depende dramaticamente da qualidade dos homens públicos, fator notoriamente carente na nossa tradição social e cultural. Não se pode sempre dispor de condições ideais para o processo de desenvolvimento, mas as improvisações podem por vezes custar caro. Ora, temos hoje, no comando da máquina econômica, uma equipe realista, preparada e inimiga declarada de qualquer improvisação ou magia econômica. Esta equipe é um poderoso fator para a superação das dificuldades econômicas conjunturais, mas ela não pode, obviamente, ocupar as demais vertentes da governabilidade, que dependem do governo como um todo e não apenas dos limitados poderes da equipe econômica.

Não há, tampouco, o menor sinal de crise política no País. Oposição e situação vêm cumprindo, com graus razoáveis de ativismo e de engajamento, suas funções respectivas: criticar e apontar caminhos alternativos a primeira, processar e votar leis a segunda. Ruídos e “golpes baixos” correspondem ao que se poderia esperar de um sistema político baseado em “jogo de soma zero”, como o brasileiro, e a um certo estilo de fazer política, marcado mais pelo apelo a uma retórica de teatro do que apoiado em argumentos racionais de governança responsável. A grande imprensa parece moderada, e não tem insuflado os ânimos ou paixões políticas, nem acuado o governo com demandas excessivas de explicações para os impasses atuais da governança.
O sistema político-partidário e, reconhecidamente, mesmo o regime democrático-representativo apresentam, no Brasil, baixa qualidade intrínseca e baixíssimos níveis de eficiência e não há qualquer expectativa de progresso no futuro previsível. Não obstante, o funcionamento do Legislativo não se deteriorou nos últimos quinze meses, mas tampouco experimentou melhora sensível, como corresponderia à “nova era” da política. Mas não se pode esperar, no curto prazo, correção de fatores estruturais como estes.

Não hesito portanto em dizer que o atual quadro brasileiro não se caracteriza por qualquer crise econômica ou política, ainda que possam existir indicadores preocupantes na primeira vertente e “ruídos” agora mais “ruidosos” na segunda, aliás derivados quase que inteiramente do dramático quadro de governança que passo agora a registrar.

É um dos truismos da vida prática, e até da teoria política, o fato de que o poder especificamente político não se divide, nem deve ser dispersado, devendo existir de forma concentrada numa única fonte de autoridade. Esta tem de deter, legítima e incontestavelmente, por delegação dos eleitores, o comando do processo decisório, que deve então funcionar de maneira eficiente a partir dessa fonte unitária de decisões.
Não é uma revelação inédita o fato de que, no Brasil atual, as fontes de poder estavam e estão relativamente dispersas, ainda que de maneira informal, passando a estar um pouco mais diluídas a partir de conhecido episódio no comando central do governo, que fragilizou uma dessas fontes legítimas e reconhecidas de poder. Sem qualquer avaliação sobre o caráter mais ou menos ético, ou eficiente, da “solução” que se deu ao episódio em questão, deve-se reconhecer que ambos, o evento e seu “encaminhamento”, impactaram tremendamente a natureza e o exercício da governança no Brasil. (Não me manifesto aqui sobre o impacto público, e suas conseqüências em termos de imagem, desses elementos ligados à simbologia e ao próprio exercício do poder, mas refiro-me, tão simplesmente, aos seus efeitos sobre a qualidade e a “quantidade” da governança. Mas pode-se também notar que esse processo, assim como o episódio ainda em aberto da compra do novo avião presidencial representam um enorme custo político e moral para a autoridade do poder central, difíceis de serem revertidos no curto ou no médio prazo.)
A recomposição de uma única autoridade central e a existência de um comando político reconhecido constituem, ao meu ver, condições indispensáveis para a superação da atual crise de governança no Brasil. Sem isso, todo o mais, em termos de políticas públicas e setoriais, está e ficará comprometido pelo resto do período de governo. Não é preciso dizer que autoridade não se proclama, mas sim se exerce, de modo claro e direto, com conseqüências imediatas – demissão ou afastamento – para os mais recalcitrantes e eventuais candidatos a rebeldes. Tergiversações e hesitações costumam ser mortais.

Mas o quadro é ainda mais grave quando se passa da autoridade “para dentro” para a autoridade “para fora”, isto é, em direção de fontes concorrentes de poder ou no âmbito do exercício real da autoridade legítima, delegada pela sociedade e pelo sistema constitucional, para o cumprimento das leis. Ora, não é preciso muito esforço visual, ou apelo a registros impressos, para se constatar que diminuiu enormemente o respeito à lei e aos contratos nos últimos quinze meses. Sem considerar questões partidárias ou mesmo de cunho ideológico (e persiste uma certa confusão aqui), deve-se reconhecer que essa situação faz aumentar, tremendamente, a volatilidade do cenário econômico, além de agregar custos reais ao funcionamento do sistema como um todo e de contribuir para agravar o quadro de anomia social e de desrespeito generalizado ao quadro legal no País.
A justiça, em si, já constitui um ônus terrível, direto e indireto, para o sistema econômico, diminuindo o PIB potencial. Mas o desrespeito à lei, endossado inclusive por ministros de Estado, constitui um imenso desincentivo aos investimentos (estrangeiros e nacionais) e à iniciativa privada, únicos capazes de criar empregos e disseminar renda no País. É dramático saber, por exemplo, que juízes de província podem criar obrigações para o Executivo sem qualquer amparo na legislação em vigor, que governadores podem promulgar leis anti-constitucionais ou que os mandatários, em geral, se eximem de fazer cumprir a lei em casos claríssimos de violação de direitos dos cidadãos (como as muitas invasões de propriedades). O desrespeito à legalidade chegou a níveis preocupantes no Brasil, mas isso não parece preocupar nem o sistema judiciário nem o próprio Executivo.

A desgovernança existente aparece em primeiro lugar na própria máquina pública, hoje ineficiente e descoordenada ao ponto da paralisia. Algo pode ser debitado aos custos da transição, na qual uma parte da tecnocracia foi substituída pela militância, dedicada e entusiasmada com a causa da mudança, mas nem sempre habilitada a lidar com as reais complexidades da administração pública. Se o ministro da área não possui competências executivas, ou não dispõe de prévia experiência anterior no seu setor, o quadro pode ficar ainda mais dramático, dando a impressão de que os ministérios atuam em ordem dispersa, cada um com suas próprias prioridades políticas e um escasso comprometimento com as diretrizes gerais do governo (quando elas existem naquele setor).
Não há uma solução simples a esse problema, pois qualquer estrutura ministerial, grande, média ou pequena – e a atual é desmesurada –, só pode funcionar bem se a qualidade da gestão, em suas diferentes vertentes, for razoavelmente satisfatória, com metas claras e cobranças regulares. A continuidade da atual lógica político-partidária na montagem ministerial significa a continuidade da inoperância administrativa na mesma proporção. Ainda que eu recomende uma completa reestruturação ministerial, reconheço que isso traria problemas na frente congressual. Cabe ao supremo mandatário julgar o que seria possível fazer para aumentar a eficiência da “sua” máquina executiva.

A ausência de prioridades claras de governo e sobretudo a dispersão do comando central, com a persistência de dúvidas relativamente ao apoio às orientações econômicas até aqui seguidas (...), tem atuado para aumentar a volatilidade do ciclo econômico, pois os agentes são levados a adotar um compasso de espera (seja para precaver-se contra uma possível mudança de regras, seja no aguardo de medidas que possam representar uma melhoria relativa das condições da atividade econômica). O problema aqui é tanto a falta de uma clara manifestação em favor da política econômica atual, com o engajamento do conjunto do governo, quanto o próprio fato de que agentes do Estado ainda determinam, por vezes de modo arbitrário, o comportamento de vários setores da economia, o que obviamente dá margem à manutenção do já referido quadro de incertezas.
Um exemplo, entre outros, da contradição entre as orientações gerais do governo e a implementação concreta de medidas setoriais revelou-se no caso da discriminação entre companhias nacionais e de capital estrangeiro nos financiamentos concedidos pelo mais importante órgão do setor. Independentemente da legalidade ou da oportunidade de tal tipo de medida discriminatória, o fato a ser destacado é, justamente, a possibilidade de que órgãos subordinados possam atuar contraditoriamente às orientações do governo. Isto se chama ausência de autoridade e repercute na crise geral da governança pública.

A situação da justiça e do ordenamento legal é provavelmente um dos fatores mais negativos que afetam a governabilidade do e no País, aumentando dramaticamente os custos da atividade econômica. Não me refiro apenas à possível e provável existência de disfuncionalidades no aparato judicial, com manifestações de corrupção e nepotismos que podem e devem ser coibidos por alguma forma de controle externo (como aliás deve ser o caso com qualquer poder: não é possível, por exemplo, que o Legislativo e o Judiciário possam criar fontes de despesas sem qualquer tipo de disciplina orçamentária). O que desejo destacar é a própria anomia dos processos jurídicos, nas três esferas da federação e em vários setores de atividade (nas relações de trabalho, por exemplo). Mais: controles internos e externos devem ser implementados para coibir a extraordinária profusão de medidas liminares, várias dotadas de escasso ou nenhum embasamento legal.
Um exemplo pode ser citado na determinação ilegal de fichamento de turistas americanos ingressando no Brasil, ainda mais dramatizada pelo endosso oficial (isto é, do Executivo) a essa medida que claramente carece de amparo na legislação existente. Outro é o fato de estados federados introduzirem, também ilegalmente, restrições à circulação de mercadorias em seus territórios (soja supostamente transgênica), sem que qualquer autoridade federal coibisse imediatamente tal usurpação inconstitucional de autoridade. A falta de iniciativa do Executivo ou do Judiciário redunda em imensos custos econômicos para os agentes privados: produtores, transportadores, compradores ou simples cidadãos.
Podem ser multiplicados várias vezes os casos de ausência de controle – o que não é, senão, uma manifestação a mais de falta de autoridade – de medidas “legais” que afetam gravemente a confiabilidade do sistema judicial em nosso País e aumentam, de modo exponencial, a volatilidade com que tem de se haver o sistema econômico. Uma possível recomendação seria a constituição de um grupo de trabalho para examinar esse tipo de controle, que não está sendo cogitado no atual processo de reforma do Judiciário.

Um governo, qualquer governo, não é feito para provar teses acadêmicas ou testar programas partidários. Ele tampouco atua com base em “grandes teorias” (aliás mais proclamadas do que reais). Ele é eleito, e constituído, para produzir o máximo de bem estar para os cidadãos, pelos meios os mais pragmáticos e racionais possíveis. Parece estar havendo hoje, no Brasil, uma luta contra o passado e uma dispersão de esforços no presente. A luta contra o passado se exerce tanto contra antigos “adversários” (o que é revelado pela tese da “herança maldita”), como em relação às teses anteriores, que não podem (e não devem) ser o centro do debate das alternativas de políticas econômicas.
Essa obsessão com um passado mítico, seja para condenar (o dos outros), seja para se justificar (o seu próprio), tem ocupado uma parte substancial da atividade retórica do governo, o que constitui obviamente um grande perda de energia e um desvio do foco próprio da governança atual. Mas também existe, hoje, uma grave dispersão de esforços em diferentes áreas de atividade, mesmo quando elas não são prioritárias para o aumento do bem estar do povo, em setores concretos sob responsabilidade governamental.
O exemplo mais conspícuo é, obviamente, o da chamada política industrial, não porque ela esteja absolutamente errada, mas porque ela é claramente não prioritária no rol imenso de problemas graves que deve enfrentar o governo para melhorar a qualidade de vida da maioria da população. Corretamente apresentada como sendo “tecnológica” e de “comércio exterior”, essa política não vai conseguir, concretamente: (a) aumentar a oferta de empregos, (b) distribuir renda e (c) capacitar profissionalmente a mão-de-obra, três objetivos que estariam, supostamente, no coração da política social do governo (cujo foco não é, ou pelo menos não poderia ser, a assistência a necessitados, assim preservados).
Infelizmente, pode-se antecipar que essa política industrial vai: (a) criar poucos empregos, (b) pode concentrar ainda mais ou, no máximo, ser neutra em relação à iníqua distribuição de renda e (c) vai formar poucos trabalhadores nas habilidades mínimas que se espera de um país voltado para o incremento das oportunidades sociais via aumento da produtividade dos recursos humanos (num sentido amplo, e não apenas como foco setorial). A criação de mais uma agência pública pode representar, por outro lado, mais um cartório de espera para alguns esperançosos em dádivas públicas, o que continuará influenciando negativamente o quadro de expectativas microeconômicas em nosso País (em lugar do livre empreendedorismo, o possível leilão de favores governamentais).
Ainda que a política industrial possa oferecer, um dia, todas as virtudes que se esperam dela, não me parece que ela venha a alterar, dramaticamente, as condições sob as quais o Brasil já participa da economia internacional, ou sequer arranhar as condições sob as quais labuta a maioria dos trabalhadores, em grande medida à margem do mercado formal de relações contratuais. Esse tipo de dispersão e de perda de foco me parece grave, num governo que foi eleito para cuidar dos trabalhadores e não dos patrões, que deveriam ser deixados à sua própria sorte, e sobretudo com menos interferência estatal.

A tentativa de mudar um pouco de tudo, no Brasil e no mundo, e que parece estar no centro do ativismo governamental, aliás mais pelo lado das intenções do que pelo das realizações, pode constituir um entrave concreto ao exercício de uma boa governança em favor dos mais pobres e dos absolutamente carentes. Como as expectativas eram, de modo legítimo, muito grandes, o governo tem se esforçado para corresponder a todas elas, dando a impressão de que vai conseguir mudar tudo no curto espaço de quatro anos.
Entretanto, mais de um quarto do tempo alocado a este governo já se passou e um balanço (talvez impressionista) do quadro da governança poderia ser assim apresentado:
1) Um notável desempenho macroeconômico, que conseguiu reverter um quadro dramático de deterioração dos indicadores internos e externos com base no bom senso e também na certeza de que o único caminho disponível é o que foi efetivamente seguido. A construção da confiança só não foi total porque, no interior do próprio governo e nas bases “naturais” de sustentação, a demanda por magia continua alta e não coibida. Minha única recomendação concreta, aqui, seria a persistência na via adotada e um enquadramento de todo o governo com a política determinada pela autoridade máxima, que neste caso é também a política de maior racionalidade intrínseca.
2) Um pífio desempenho administrativo, em talvez na metade dos ministérios, o que é amplamente reconhecido até dentro das hostes governamentais. O inchaço da máquina e a seleção dos titulares por critérios alheios a preocupações com o desempenho são os responsáveis por esse quadro lamentável. A recomendação geral seria por um total remanejamento da máquina e dos titulares, mas não é possível oferecer neste espaço sugestões concretas sobre quais áreas devem e precisam mudar. Já ofereci a hipótese de que o governo tem muito Antonio Gramsci e carência de Peter Drucker. Talvez uma boa consultoria externa, dessas voltadas para organização e métodos para resultados, pudesse ajudar um pouco na reorganização da máquina do governo. Recomendo, sem pudores.
3) Um desempenho externo extremamente ativo e variado do Brasil-Estado, com impacto notável nos meios de comunicação, internos e externos, mas com resultados até aqui pelo menos duvidosos do ponto de vista da solução dos problemas concretos, e graves, do outro Brasil, o Brasil-Nação. Pode-se certamente assegurar, por essa via, uma maior presença do Brasil no cenário internacional, mas ela pode ser igualmente alcançada por uma melhoria da nossa situação econômica e social, pela maior solidez dos grandes equilíbrios macroeconômicos, pela confiança gerada nos investidores internos e externos ou ainda por um diálogo aberto com todo tipo de parceiro, sobretudo os mais relevantes. A segunda via é certamente mais lenta, mas não se deve descurar o fato de que um precoce engajamento em novas responsabilidades internacionais gerará uma demanda por recursos escassos, em meios militares e/ou cooperação técnica e financeira, que ainda fazem dramaticamente falta no plano interno. Minha recomendação, até por um questão de respeito aos eleitores deste governo, seria a de que uma atenção prioritária fosse agora dedicada ao plano interno, em especial em direção dos setores carentes.
4) Uma deterioração dramática do quadro político-institucional, sobretudo no que se refere ao cumprimento da lei, ao respeito da legalidade e à administração de conflitos sociais. O Estado, aos olhos de muitos, não faz cumprir a lei, ou por falta de vontade ou por falta de capacidade, ou por ambas, o que é, reconheçamos, extremamente grave. Uma caracterização desse tipo, se suficientemente embasada em fatos claramente delimitados, pode prestar-se a uma acusação de crime de responsabilidade, contra qualquer um dos agentes públicos, inclusive o mais alto. Minha singela recomendação seria em favor de uma revisão séria e ponderada da situação do quadro jurídico-legal no País e sobretudo no sentido de uma decisão superior em prol do seu estrito cumprimento pelo Estado. A experiência histórica nos ensina que o mais rápido e seguro caminho para a desgovernança prática começa pelo desrespeito à lei.

Não tenho a pretensão de oferecer soluções adequadas a todos os problemas de que padece atualmente (e estruturalmente) o País, em especial na vertente governamental. Tenho consciência, porém, de que um dos requisitos para encontrar respostas apropriadas está na correta formulação das perguntas pertinentes e no oferecimento de um diagnóstico ajustado aos problemas. Creio ter indicado os problemas que me parecem mais graves no Brasil atual, a começar pela crise de governança, que resulta ser uma crise da autoridade legal. Espero ter assim contribuído, com total ânimo cooperativo, para diminuir o quadro nebuloso que dificulta até mesmo visualizar a falta de governança no Brasil atual.
Paulo Roberto de Almeida

Vocês não vão acreditar, mas esse texto foi escrito em:
Brasília (1241), 9 de abril de 2004.

domingo, 6 de setembro de 2015

Os doze trabalhos da boa governanca - Paulo Roberto de Almeida

Já que estamos falando de crise da governança no Brasil, ou simplesmente da falta de governança, já que não temos mais direção de governo, políticas definidas, direção clara para a ação estatal, lembrei também de um trabalho que fiz em 2004, ou seja, 11 (na verdade 12) anos atrás, sobre esses temas.
Parece que não melhoramos muito desde então, aliás, só pioramos...
Paulo Roberto de Almeida



Paulo Roberto de Almeida

Nestes tempos em que atitudes éticas e posturas responsáveis são, não apenas necessárias mas, absolutamente indispensáveis para guiar a conduta dos homens públicos (e mulheres idem) e para inspirar, pelo exemplo, os que estão empregados nesse imenso setor do terciário que tem a ver com a chamada res publica, decidi retomar reflexões antigas (mas nem por isso menos úteis) e alinhar num papel – eufemismo para a tela do computador – algumas simples regras de boa administração dessa “coisa pública”. As reflexões surgiram em primeiro lugar no contexto da transição política no Brasil – área na qual outras considerações já foram consolidadas em meu livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003) – mas elas podem ser vistas como “atemporais” e não determinadas geograficamente.
Como só consegui chegar até uma dúzia delas, pensei que poderia identificar o conjunto por meio de um título “apelativo”, que relembrasse o antigo herói da mitologia grega. Não é obviamente o caso, mas o evocativo parece suscetível de transmitir uma idéia aproximada das reais dificuldades que podem ser encontradas na implementação dessas tarefas da governança. Com efeito, os maiores problemas que se apresentam, nos dias de hoje, no processo de melhoria nas condições de vida e bem-estar das populações, em países ricos ou pobres, não são aqueles derivados da falta de recursos ou de meios técnicos para sua solução, mas provêm, tão simplesmente, da incompetência institucional.
Estes doze novos “trabalhos” podem ser vistos, pelo seu lado de administração da informação, como uma estratégia para a conquista consensual, ou para o convencimento, da maioria, não como uma forma de imposição da vontade do dirigente político. Pelo seu lado de “conselhos” ao dirigente, eles podem ser colocados naquela mesma cesta de recomendações “úteis” ou de observações sobre as técnicas de comando que, desde Kautylia e Maquiavel, vêm enriquecendo a literatura da governança política, sem que se saiba, exatamente, se elas provocam uma melhoria real na qualidade da gestão sobre os homens (e mulheres). Não me parece que elas tenham sido testadas ou controladas por algum órgão gestor dos orçamentos e da moralidade públicas, mas isso não representa um impedimento a que algum voluntário queira fazer alguma verificação empírica sobre sua consistência e adequação intrínseca às tarefas atuais de uma boa governança. Afinal de contas, o teste do pudim, como se diz, vem no ato de comê-lo.
As regras não estão concebidas em intenção de algum serviço estatal particular, nem foram pensadas como devendo aplicar-se exclusivamente a algum país determinado, mas o autor não tem nada contra, muito pelo contrário, a que cada um faça a leitura geográfica que bem lhe aprouver. Em todo caso, sem pretender a que estas regras sejam seguidas, ou sequer consideradas, por dirigentes concretos, num certo país de índole cordial e receptivo a modas as mais bizarras, transcrevo aqui os meus novos trabalhos para algum candidato a Hércules da burocracia deste começo de século 21. Bom proveito aos que pretenderem delas utilizar-se (não pretendo cobrar copyright pelo seu uso).
Apresento primeiro um resumo “literário” desses “novos trabalhos de Hércules”, para depois tecer considerações mais elaboradas sobre cada um deles:

1)    Mais administração para resultados, menos declarações genéricas;
2)    Antes a seleção pelo mérito do que a escolha corporativa;
3)    Prefira uma ação sobre os fins, antes que sobre os meios;
4)    Melhor proteger a manada, mesmo que tenha de sacrificar algum animal;
5)    Entre a focalização e a universalização, fique com ambas;
6)    Auto-publicidade é uma forma perversa de gastar recursos públicos,
7)    Conselheiros do príncipe costumam atuar por ensaio e erro: rejeite riscos;
8)    Não há conversa em “petit comité” que não escape para a “grande assembléia”;
9)    Não distribua favores restritos, coloque tudo em regime de competição;
10) O grande critério de seleção é o benefício para o maior número: abra, portanto;
11) Mercados globais sempre serão melhores do que a “preferência nacional”;
12) O desenvolvimento é uma atitude mental: não existe mais “terceiro mundo”.

Voilà: parece um pouco desordenado e obscuro, mas tudo tem uma razão de ser, segundo os critérios da eficácia social e das melhorias na governança que são os privilegiados neste ensaio reflexivo.
Vamos agora a considerações mais elaboradas sobre cada um dos “trabalhos”.


Primeiro trabalho: Esqueça Antonio Gramsci; adote Peter Drucker.

Já passou o tempo de acreditar na validade conceitual ou mesmo prática dessa conversa de “hegemonia ideológica”: isso valia para uma fase em que a sociedade era feita de poucos homens instruídos, em que a política era oligárquica, isto é, dominada por uns poucos iluminados, na qual mesmo a ação dos partidos ditos progressistas, ou de base operária, tinha de se apoiar sobre uma liderança aguerrida, disciplinada, que detinha a chave do futuro e se dedicava a liderar os demais na conquista e na manutenção do poder. Hoje em dia, graças à disseminação da educação e aos meios de comunicação, todos são razoavelmente bem informados sobre a maior parte das tarefas governativas.
O que vale mesmo, hoje em dia, é a boa gestão da coisa pública: honestidade, transparência, responsabilidade e, sobretudo, eficácia (ou eficiência, se preferirem). Por isso mesmo, creio que o velho (mais de 90 anos em 2004) Peter Drucker, economista austríaco naturalizado americano e guru das técnicas de administração para resultados, apresenta imensas vantagens comparativas intelectuais sobre seu quase contemporâneo (menos de uma geração) Antonio Gramsci. Deixe a retórica de lado, e passe a valorizar a ação concreta na busca de resultados efetivos para os fins almejados. Você prefere se alimentar de discursos ou ver as medidas de interesse público serem implementadas de modo razoavelmente barato, efetivo e transparente?


Segundo trabalho: Não ocupe pela conquista, selecione pelo mérito.

Esta é uma derivação da tarefa anterior, no sentido em que, com a complexidade atual da administração pública, não se pode fazer uma boa gestão, com resultados pelo menos razoáveis, se se parte da idéia de que os únicos capazes para realizar os objetivos da mudança paradigmática são os iniciados e os membros da confraria, quando eles nem sempre possuem o instrumental teórico e técnico para o desempenho de funções especializadas que requerem conhecimento específico e um certo treino funcional. Por isso, pense em primeiro lugar nos resultados e atribua ao mérito a parte que lhe cabe nos processos de escolha do pessoal de apoio. Quanto aos menos preparados, faça-os se habilitarem para as novas funções, seja por esforço próprio, seja por estágios apropriados aos novos requerimentos do ofício.


Terceiro trabalho: Não siga publicitários ou comunicólogos: vá direto à questão.

É uma velha mania das lideranças inseguras, a de se precaver quanto a possíveis iras do povo miúdo mediante campanhas otimistas, bem direcionadas quanto ao foco e quanto ao objeto (apenas que contornando o problema real). Trata-se do velho hábito de esconder os problemas concretos fazendo apelo aos meios, antes que se ocupando dos fins. Como regra de princípio, este tipo de procedimento não costuma sustentar-se por muito tempo, por isso a única recomendação possível, em casos de necessidade urgente, seria a de deixar as relações públicas de lado e se ocupar diretamente da substância das questões públicas, pela via a mais reta possível. Supondo-se, é claro, que você consiga fazer um diagnóstico razoável da questão e das formas mais adequadas de encaminhá-la.


Quarto trabalho: Rejeite demandas de grupos, ataque os problemas da maioria primeiro.

O poder tem isso de incômodo que ele atrai um bando de arrivistas, oportunistas e aproveitadores de todos os matizes, cores e orientações políticas. A maior parte das moscas reais estão em busca de vantagens pessoais, mas numa sociedade organizada como a que vivemos, com incontáveis grupos de interesse e de associações de classe, o mais frequente de ocorrer é a mobilização dessas corporações organizadas que tentam convencê-lo de que seu interesse específico se confunde com o interessa da Nação como um todo. Não acredite nesse tipo de argumento: geralmente, os interesses da Nação não têm, salvo engano, representantes desinteressados que deles se podem fazer porta-vozes. Eles são difusos e, quando concretos, costumam interessar prioritariamente aos mais humildes, que não têm o hábito de se fazer ouvir nos corredores do poder.
Se você não consegue definir quais são os problemas da maioria, existe um modo muito prático e simples de encaminhar esse tipo de diagnóstico: consulte um desses anuários de desenvolvimento social – do PNUD ou do Banco Mundial, por exemplo – e veja as tabelas comparativas de serviços básicos (saneamento, serviços públicos etc.), os indicadores de saúde (sobretudo os fatores de morbidade) e de educação, bem como os resultados de testes de qualidade setorial. Eles darão um retrato imediato de como o seu país se situa na escala da (in)felicidade humana, o que se traduz imediatamente num programa de prioridades governamentais.


Quinto trabalho: Se tiver de definir setores, faça as políticas mais horizontais possíveis.

Nem sempre é fácil escapar de demandas setoriais: elas são o próprio de sociedades complexas que definem métodos próprios de encaminhamento de problemas técnicos, o que necessariamente envolve temas de natureza restrita a determinados grupos da sociedade. Dessa forma, algumas políticas serão dirigidas a alguns setores apenas da sociedade, ainda que com propósitos generalizantes.
Mas, não se deixe arrastar pelo falso debate entre, de um lado, a universalização dos serviços públicos e, de outro, a focalização das medidas de apoio governamental em favor de uma determinada categoria de cidadãos. Sendo os recursos escassos, e as pessoas desigualmente dotadas por motivos de berço ou de formação, nem sempre é possível atender a todos ao mesmo tempo, daí uma inevitável seleção dos beneficiários desses recursos a partir de alguns simples critérios de escolha por prioridades visíveis. As políticas públicas sempre serão, ao mesmo tempo, universais e focalizadas, mas o ideal é que a definição dos setores não seja excludente.
Esse debate sempre surge a propósito das políticas setoriais, das quais a industrial está sempre na linha de frente para receber algum tratamento favorecido por parte do governo. De fato, a experiência histórica indica que é na indústria que os ganhos derivados da inovação técnica e tecnológica, e portanto os aumentos de produtividade, costumam ter efeitos em cadeia e impactos redistributivos sobre o conjunto da sociedade, cabendo portanto aos governos estimular o progresso industrial. Este é um fato: mas cabe portanto aos governos estimular o progresso técnico da indústria como um todo, não necessariamente uma determinada indústria em particular, ainda que ela possa parecer estratégica ou “fundamental” para a competitividade internacional do país.
A experiência histórica é ainda mais conclusiva a respeito dos ganhos gerais para a economia, em todos os setores, derivados da capacitação em recursos humanos. Como regra de princípio, portanto, prefira as políticas industriais que atuam sobre as condições de inovação tecnológica do conjunto da sociedade, e deixe que ela mesma introduza os aperfeiçoamentos industriais que se revelarem úteis para o bem-estar social.


Sexto trabalho: Não acredite em propaganda governamental, deixe que os meios de comunicação informem sobre suas realizações.

Cada macaco no seu galho: o governo é pago para trazer segurança ao conjunto dos cidadãos, empreender obras públicas de mais longa maturação, criar as condições ideais para que todos possam exercer seus talentos com um mínimo de igualdade de chances na partida competitiva, o que implica em investimentos de educação e saúde, com alguma proteção seletiva aos menos favorecidos. Fazendo isso bem, os próprios governados se encarregarão de divulgar e “propagandear” o que o governo faz de bom.
Isso de publicidade institucional serve apenas para dar dinheiro fácil àqueles mesmos que devem viver de sua capacidade de “vender” algo de útil do ponto de vista da demanda do consumidor: entre duas opções, pode-se escolher ficar com a mais bem vendida do ponto de vista da publicidade, não necessariamente a de melhor qualidade ou menor preço, mas isso é um problema de microeconomia do bem-estar que será resolvido pela liberdade de escolha do consumidor. O governo disponibiliza “bens públicos”, que normalmente não necessitam de campanhas publicitárias, pois seus critérios de escolha ou de preço não são os mesmos da economia privada. Quanto ele tiver de fazer alguma campanha de informação, não faltarão meios adequados para isso. Deixe que os meios de comunicação se ocupem dos demais “produtos” governamentais: é mais barato e mais honesto.


Sétimo trabalho: Pratique a arte de escalpelar acadêmicos, ou melhor ignore-os.

Conselheiros do príncipe costumam ser idealistas, sonhadores, ingênuos e, no geral, pouco eficientes, na medida em que eles pretendem se ocupar de todas as esferas do conhecimento humano e acabam tendo uma visão superficial sobre cada uma delas, numa era manifestamente complexa e diversificada. Melhor, assim, confiar em tecnocratas especialmente treinados para elaborarem diagnósticos e propostas de ação em seus campos de ação respectivos. Eles costumam ser mais práticos e são bem mais baratos, na medida em que qualquer proposta de acadêmicos bem intencionados custa rios de dinheiro: estes estão sempre querendo revolucionar o mundo ou provar alguma teoria, o que necessariamente provoca despesas desproporcionais do ponto de vista dos minguados orçamentos públicos.


Oitavo trabalho: Não aceite pequenos conluios, acabará aceitando os grandes também.

Os grandes princípios éticos são geralmente agitados em período eleitoral e depois esquecidos na fase prática da governança. Aí é que começa o perigo, pois sempre haverá alguém disposto a “provar” que “este” problema é mais “urgente” do que outro ou que ele requer “medidas especiais” de implementação. Os problemas do diálogo para a busca de soluções tópicas a questões concretas também surgem nesse momento, pois que se deve passar da fase das declarações gerais destinadas ao grande público para a de soluções técnicas a problemas localizados.
As “pequenas” soluções de facilidade, como aquele mecanismo simples destinado a financiar, de modo “indolor”, determinada atividade pública, podem transformar-se, quando menos se espera, em grandes problemas, que só trazem dificuldades aos governantes. Por isso mesmo, pense duas vezes quando for confrontado, ou apresentado, a algum expediente “inovador” no campo da governança: geralmente vai se descobrir que ele já foi apresentado antes (e rejeitado por “heterodoxo”, digamos assim) e que pode provocar, numa análise mais acurada de custo-benefício, grandes despesas depois.


Nono trabalho: Regule pela concorrência, não pelo monopólio.

O princípio da concorrência é uma dessas coisas mais bem aceitas, no plano da teoria, e mais denegadas no terreno da prática. A competição entre muitos ofertantes costuma redundar em uma certa anarquia de situações, nos mercados de bens e serviços, o que pode obviamente perturbar a paz de espírito de algum dos competidores. Ela reduz os ganhos de todos os ofertantes, obriga todos eles a buscar cada vez mais inovações incrementais que diferenciem o seu produto do do concorrente e, pasmem, traz maior volume de opções e menores preços aos consumidores. Ideal no papel, não é mesmo?
Na prática, os concorrentes estão sempre procurando eliminar rivais, buscam com eles formar cartéis ou, no limite, procuram a situação “ótima” da reserva de mercado com pouco ou nenhum risco de concorrência. Governos costumam ser muito mais sensíveis a pleitos de produtores organizados do que aos desejos de consumidores desorganizados, daí o possível surgimento de normas e regulamentos que limitam, de fato, a competição. Os exemplos são muitos e não é preciso delongar-se neles aqui, bastando com citar, por exemplo, o caso da telefonia. Nesta área quanto mais “anarquia” concorrencial, melhor para os usuários, desde que observadas certas regras de fiabilidade no serviço.
Em muitas outras áreas, inclusive e também em determinados serviços públicos, a melhor forma de corrigir distorções de mercado derivadas da baixa qualidade da oferta seria ampliar as franquias para a exploração dos mercados de bens e serviços. Por que, por exemplo, só se pode ter uma única grande estatal explorando pétroleo, refinando o produto e distribuindo seus derivados? (Sei que já não mais ocorre esse monopólio, mas ele foi durante muito tempo defendido não se sabe bem em nome de quais princípios de economia pública.) Por que um presídio tem necessariamente de ser operado diretamente pela autoridade pública, em lugar de passar por uma espécie de “leilões de presos”, regime no qual ofertantes passam a “comprar” condenados do setor judicial ao melhor preço de mercado, para uma prestação determinada de serviços – guarda, reeducação, eventual reinserção no mercado de trabalho – como aliás já ocorre hoje no setor de saúde? São provavelmente idéias ousadas, mas que podem despertar algum desejo de se ter mais concorrência em serviços que se considera como “exclusivos do Estado”.


Décimo trabalho: Analise os efeitos distributivos de cada medida proposta.

Não há nenhuma novidade no que vai dito aqui, mas geralmente se tende a esquecer que a regulação de determinadas atividades públicas tem por objetivo ampliar a disponibilidade de bens e serviços aos cidadãos, não arrecadar mais recursos para o próprio Estado. Os governos constituídos – em todos os níveis – se tornaram as mais poderosas máquinas de arrecadação de recursos que já se conheceram em toda a história, deixando aos contribuintes (empresas e cidadãos) apenas as opções de pagar ou evadir. Muitos recorrem a diferentes mecanismos de evasão ou elisão fiscais, o que justifica uma ampliação ainda maior dos investimentos públicos nos meios (controle da arrecadação, processos, punição etc.), antes que nos fins, eternizando assim o circulo vicioso que consiste em ver o governo trabalhando para o próprio governo.
Quando se fala em analisar os efeitos distributivos de uma determinada medida, não se está obviamente recomendando o distributivismo compulsivo: ele geralmente é demagógico e economicamente desarticulador das atividades produtivas, já que costuma atuar sobre os estoques de riquezas existentes, antes que sobre os fluxos que poderiam ser criados a partir do estímulo contínuo a novas atividades econômicas potenciais. Efeitos distributivos são justamente aqueles que derivam de uma maior capilaridade social dos investimentos públicos, que devem atingir os setores mais carentes relativamente, com vistas a integrá-los num mercado mais amplo de bens e serviços de amplo consumo. Por exemplo: o contrário ocorre com determinadas políticas governamentais – como a PAC da União Européia – de subsídios públicos na área agrícola, já que não se tem, de fato, insegurança alimentar e o dinheiro canalizado é subtraído de utilizações alternativas que poderiam ter maior impacto sobre o emprego e a renda de um maior número de cidadãos.


Décimo-primeiro trabalho: Entre um sistema aberto ao mundo e outro estritamente nacional, prefira o primeiro.

Não há mais nenhuma diferença, hoje, entre mercados nacionais e mercados internacionais, pelo menos na vasta gama de produtos e serviços uniformes (ou indiferenciados) que são consumidos pelos cidadãos, inclusive em áreas aparentemente exclusivas da “cultura” nacional como podem ser os serviços educacionais ou de lazer. Ao contrário, quanto maior a escala de mercado, maior a chance que o seu “produto nacional” possa ser também consumido em outros países, aumentando, portanto, suas vantagens de escala e a produtividade dos fatores de produção. Reservas de mercado, leis do “similar nacional” são cerceadoras da preferência dos consumidores e só servem para consagrar pequenos monopólios ou grandes cartéis que não ajudam em nada a elevação dos padrões de competitividade da economia nacional nos mercados globais, que hoje constituem a característica essencial do mundo interdependente em que vivemos.
Por isso mesmo não acredite quando lhe disserem que “vantagens comparativas” são uma invenção do século 18, que não se aplicam mais ao mundo do conhecimento em que se transformou a economia moderna. O princípio continua mais válido do que nunca, inclusive e principalmente nas novas áreas de atividade produtiva, como na já referida economia do conhecimento. Aliás, quem primeiro falou em “inteligência” como fator de produção, foi um contemporâneo brasileiro de David Ricardo, José da Silva Lisboa, num tempo em que todos eram “filósofos morais” e não economistas. Mercados amplos apresentam possibilidades muito maiores do que mercados cativos ou nacionais, daí uma preocupação constante em trabalhar em regimes abertos aos talentos individuais, antes do que fechados aos interesses de pequenos grupos.


Décimo-segundo trabalho: Acabe com dogmas e restrições mentais: o Brasil não é periferia.

Proposição ousada essa, pois não? Claro que existem economias “centrais”, que “extraem” recursos e mais valia de regiões ditas “periféricas”, mas isto se dá em qualquer sistema ou sociedade, inclusive num âmbito estritamente familiar, por exemplo. Quem organiza uma determinada atividade, distribui custos e concentra benefícios, mas para isso é preciso competência ou autoridade. Antigamente valia a autoridade paterna ou a da conquista; hoje em dia, elas têm cada vez menos capacidade de domínio ou prevalência, passando a ser substituídas pela capacitação própria em organizar sistemas complexos de produção e distribuição de bens e serviços. Por outro lado, aquela coisa de “primeiro mundo” ou “terceiro mundo” simplesmente acabou com o desaparecimento do segundo.
Com efeito, poucos se dão conta que a geopolítica mudou e com ela a relação que os diferentes atores de um mesmo mundo mantêm entre si: já não se está mais levando em consideração a atitude política que esses atores possam ter em relação a algum grande projeto organizador da humanidade – capitalismo, socialismo, essas coisas velhas –, mas apenas e tão simplesmente a atitude que se vai adotar em relação aos desafios do mundo global. Nesse sentido, o problema do desenvolvimento é de fato uma questão de atitude mental, pois tornaram-se peremptas aquelas teorias “conspiratórias” que faziam da exploração de alguns (ou de muitos, contavam algumas histórias) a condição da riqueza e do progresso de outros (os poucos).
Hoje em dia, provavelmente 90% do estoque acumulado de todo o conhecimento humano está livremente disponível para consulta, absorção, cópia e transformação em caráter irrestrito, inclusive de forma cada vez mais acessível nos sistemas abertos e online. Ou seja, não há mais limitação técnica – salvo no sentido estritamente material – ao aproveitamento dessas oportunidades de enriquecimento pessoal e coletivo, o que deveria, normalmente, diminuir as barreiras à entrada de mais sociedades em patamares mais avançados de bem-estar e conforto material.
O fato de que essa “convergência” de padrões de vida tenha alcançado, até aqui, uma fração restrita da humanidade, não se deve a nenhum complô desses países “ricos” no sentido de impedir que sociedades mais pobres conheçam padrões mais avançados de bem-estar, mas se explica pela incapacidade gerencial, ou de governança, das sociedades do chamado “terceiro mundo”. Terminando com nosso próprio exemplo nacional: todos os problemas brasileiros se devem à nossa própria incapacidade em solucioná-los dentro dos limites do sistema nacional, eventualmente com aproveitamento das experiências e conhecimentos já disponíveis a partir da trajetória das sociedades mais avançadas. Nenhum deles tem origem no exterior e eles não terão solução sem uma concentração de esforços no próprio país. Não acredita?: tente identificar uma “tragédia” nacional que se deve exlcusivamente a causas externas. Se encontrar, gostaria de ser avisado…

Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com)
[1º versão: Washington, 1º de setembro de 2003]
[Revisão: Brasília, 23 de fevereiro de 2004]

Brasília, 23 fev. 2004, 10 p. Retomada das notas efetuadas em Washington em 01/09/2003, sobre os elementos para “convencimento da maioria”, mas que evoluíram para cadernos da boa governança. Publicado na revista Espaço Acadêmico (n. 34, mar. 2004, ISSN: 1519.6186; http://www.espacoacademico.com.br/034/34pra.htm). Reproduzido no boletim Análi$e da economia regional para homens de negócio (Porto Alegre: n. 377 a 379, 26 abr. 2004, p. 5-8). 
Relação de Publicados n. 448.