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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Constituinte de 1823: Liberdade de Imprensa e participação popular - emissão da TV Câmara e texto de Paulo Roberto de Almeida

 Fui convidado pelo jornalista William França, da TV Câmara, para participar de uma série de quatro emissões sobre a Constituinte de 1823, por ocasião dos seus 200 anos, no programa "Ponto de Vista". Participei, do episódio 3, “Liberdade de Imprensa e participação popular”, divulgado em 27/07/2023 com os outros três episódios.

Como sempre faço quando recebo um convite para algum seminário ou debate, preparo previamente algumas notas a respeito do tema, que não tenho o costume de ler, e que só servem para organizar as ideias. Desta vez não foi diferente. Esta é a ficha do trabalho, que vai transcrito abaixo.

A emissão pode ser vista neste link: https://www.youtube.com/watch?v=QC67t21zGl8

Os demais episódios podem ser vistos no canal YouTube da TV Câmara.


4427. “A Constituinte de 1823 e a questão das liberdades”, Brasília, 28 junho 2023, 9 p. Notas para participar do programa Ponto de Vista, da TV Câmara, sobre os 200 anos do Parlamento brasileiro, configurado pela eleição, instalação e dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, em 1823, sob a coordenação de William França. Emissão, episódio 3, “Liberdade de Imprensa e participação popular”, divulgada em 27/07/2023 (link: https://www.youtube.com/watch?v=QC67t21zGl8). 

Ponto de Vista - 200 anos do Parlamento: Liberdade de Imprensa - 27/07/23


A Constituinte de 1823 e a ordem constitucional das liberdades 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Notas para participar do programa Ponto de Vista, da TV Câmara, sobre os 200 anos do Parlamento brasileiro, configurado pela eleição, instalação e dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, em 1823. 

 

O primeiro processo constitucional brasileiro

Quando foi proclamada a independência, o Brasil – que não existia como tal, ou seja, como nação unificada por um Estado organizado constitucionalmente – contava com 19 províncias, as antigas capitanias, que eram as unidades administrativas que tinham escolhido, inclusive a Cisplatina, os primeiros deputados dessas províncias às Cortes de Lisboa, em 1821, que se estabeleceram depois da Revolução do Porto. A experiência, conquanto frustrada, de diversos representantes das províncias do Brasil no turbulento processo de elaboração da primeira Constituição de Portugal – na qual, o reino unido do Brasil voltou a ser um mero ajuntamento de províncias separadas, conectadas diretamente à antiga sede da monarquia – foi fundamental nos trabalhos da também turbulenta Constituinte brasileira. 

Quando D. Pedro foi aclamado imperador, ele o foi como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, mas evitou se comprometer com o acolhimento de uma carta constitucional que deveria resultar do primeiro processo verdadeiramente legítimo de criação de uma Carta Magna para o Império do Brasil. No início de 1823 foram feitos os trabalhos preparatórios à instalação da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, instalada pelo imperador em 3 de maio, sendo eleito, em junho, José Bonifácio como seu primeiro presidente. Bonifácio envolveu-se, como líder de uma facção maçônica e animador do jornal O Tamoio, no espancamento do jornalista concorrente, Luís Augusto May, redator do jornal Malagueta, o que levou o imperador a demitir Bonifácio do ministério do Império e dos Estrangeiros, e seu irmão Martim Francisco do ministério da Fazenda. No mesmo ato, decidiu o imperador fechar o Apostolado ou Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, a sociedade secreta dos Andradas. O historiador Hélio Vianna escreveu a esse respeito: 

Assim terminou o Ministério que desde janeiro de 1822 tanto havia contribuído para a Independência do Brasil e a fundação do Império.[1]

 

Escusado dizer que, enquanto se faziam os trabalhos preparatórios da Constituinte, algumas províncias do Brasil, no norte e nordeste, ainda se debatiam em batalhas da guerra da independência; na Bahia, as tropas portuguesas só foram derrotadas em 2 de julho de 1823. Em algumas províncias – Piauí, Maranhão, Grão-Pará, Alagoas – não chegaram a ser eleitos deputados constituintes; os da Bahia só participaram na fase final dos trabalhos. Noventa deputados foram eleitos em 14 províncias, mas nem todos compareceram à Assembleia: 22 eram magistrados, 19 sacerdotes e 7 militares, além de médicos, proprietários e funcionários públicos. Dentre os de maior destaque figurava outro irmão de José Bonifácio, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, ambos passados à oposição ao imperador depois da demissão do “patriarca da independência”. Com Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Antonio Carlos tinha sido constituinte nas Cortes de Lisboa, o que lhe conferiu um papel de líder natural nos trabalhos que se desenrolaram por seis meses, desde maio de 1823. 

A maior bancada era a de Minas Gerais – 20 deputados –, mas a de Pernambuco tinha revolucionários de 1817 entre seus membros, como Francisco Muniz Tavares, também historiador daquela tentativa republicana. Uma de suas primeiras propostas, no campo da legislação ordinária, foi um decreto autorizando o governo a expulsar do Brasil, brasileiros ou estrangeiros que não tivessem demonstrado adesão à causa da independência. José Bonifácio, por seu lado, apresentou duas memórias: “uma sobre a civilização dos indígenas ainda existentes no Brasil, outra sobre a mudança da capital para o interior”.[2] Uma sua representação sobre a escravatura permaneceu intocada.[3] Um debate inicial se deu a propósito da sanção, ou não, pelo imperador, de leis ordinárias aprovadas pela Assembleia, que confrontava a vontade do chefe da nação, como uma diminuição de suas prerrogativas. Apenas seis leis foram aprovadas pela Assembleia, em sua função legislativa, antes de sua dissolução, todas elas sancionadas pelo imperador, a despeito de sua contrariedade. 

Na Fala do Trono quando da instalação da Assembleia, o imperador afirmou que a futura Carta mereceria sua aprovação “se fosse digna do Brasil e dele”, o que já causou estranheza em boa parte dos constituintes. Um anteprojeto constitucional foi elaborado por uma comissão, mas seu texto foi recebido com críticas por Antonio Carlos, supostamente por conter dispositivos copiados da recente constituição portuguesa ou espanhola. Antonio Carlos 

[f]icou encarregado de preparar outro texto, o que fez em curto prazo, dentro de quinze dias apenas. Apresentando-o em setembro, somente então começou a Assembleia a sua tarefa propriamente constituinte.

O projeto de Antonio Carlos, longo, de 272 artigos, era um código liberal, elaborado de acordo com as ideias da época. Nele era aproveitada a curta e recente experiência constitucionalista portuguesa, além das doutrinas então propagadas pelo escrito suíço-francês Benjamin Constant, expressas em seu Cours de Politique Constitutionnelle. Destas divergia, entretanto, ao fortalecer as atribuições do Poder Executivo do Ministério, das que deveriam competir ao Imperador.[4]

 

A despeito das importações estrangeiras, uma inovação foi perfeitamente brasileira: em lugar de se calcular a capacidade eleitoral e a elegibilidade dos cidadãos por alguma renda em dinheiro, Antonio Carlos o fez pelo preço de uma mercadoria amplamente consumida no Brasil, a farinha de mandioca. Dessa forma, para ser eleito de paróquia ou de província, deputado ou senador, deveria o candidato ter uma renda anual equivalente à renda líquida anual de 150, 250, 500 ou 1.000 alqueires de farinha de mandioca, com o quê se fixou o título que o projeto recebeu, de “constituição da mandioca”. Independentemente desse tipo de proposta, a discussão dos artigos avançou muito lentamente, e de setembro a novembro, apenas 24 artigos tinham sido revistos pelos constituintes, o que prometia um processo extremamente delongado de redação constitucional. 

No plano especificamente legislativo, a Assembleia aprovou meia dúzia de leis: uma estabelecia o modo de promulgação das leis; outra extinguia o Conselho dos Procuradores Gerais das províncias; uma terceira, proibia aos deputados eleitos aceitarem cargos públicos e a quarta revogou um alvará de 1818 que proibia o funcionamento de sociedades secretas; a quinta se dedicava a identificar as leis portuguesas que continuariam a ter vigência no Brasil e a última, dava ao imperador o poder de designar presidentes das províncias. A essa altura, já estava configurada uma forte oposição, não apenas dos Andradas, ao imperador e aos áulicos do gabinete, e não apenas na Assembleia, mas na “imprensa” também (na verdade, em “panfletos” e “folhas”). 

A oposição se fazia a tudo o que era português, e nisso entrava o próprio imperador e sua política externa, exageradamente vinculada aos assuntos de Portugal, ou aos interesses dos Braganças, num momento em que a independência ainda não tinha sido reconhecida pela antiga metrópole e pelas demais monarquias europeias. Os deputados não apreciaram, por exemplo, a admissão no Exército imperial de antigos militares portugueses, inclusive alguns que estavam presos na Bahia, num momento em que em Portugal se tinha restabelecido o poder absoluto, com a dissolução das Cortes, e permanecendo o estado de guerra entre os dois reinos. Conflitos entre diferentes grupos, dentro e fora da Assembleia, mais a guerrilha dos jornais, criaram uma situação de extrema tensão, o que facilitou a D. Pedro ultimar o decreto de sua dissolução, sob o pretexto de que tinha esse poder, pois fora ele quem a havia convocado, quando ainda era príncipe regente. No decreto de 12 de novembro de 1823, o dia do “golpe”, ele prometia apresentar um novo projeto “duplicadamente mais liberal” do que aquele em discussão. 

A dispersão dos constituintes foi até violenta: vários deputados foram presos, entre eles os três Andradas. Por recomendação do Conselho de Estado, criado simultaneamente para elaborar um novo projeto, os três, mais alguns outros, foram deportados para a França, embora dotados de pensões para suas subsistências. O Conselho, nomeado pelo imperador, era composto de seis ministros nomeados pouco antes, e mais quatro personalidades políticas, todos brasileiros natos, todos recebendo títulos nobiliárquicos mais adiante. Trabalhando rapidamente, em 11 de dezembro de 1823, o Conselho apresentou um projeto, já contendo o dispositivo inspirado em Benjamin Constant, o Poder Moderador. Neste ponto, o projeto de Antonio Carlos divergia radicalmente da Constituição outorgada: ele só reconhecia três poderes, e o imperador não podia dissolver a Câmara dos Deputados, nem aceitar ou suceder qualquer Coroa estrangeira; tampouco aceitava a vitaliciedade do Senado, depois consagrado. 

 

A questão das liberdades no ordenamento constitucional

Na Fala do Trono, ao abrir os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, a 3 de maio de 1823 – data em que se acreditava ter sido a descoberta do Brasil –, num texto elaborado por José Bonifácio, D. Pedro considerava que se deveria fazer

... uma constituição sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão e não pelo capricho, que tenha em vista tão somente a fidelidade geral, que nunca pode ser grande sem que esta constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado, que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade aos povos, e toda força necessária ao Poder Executivo. Uma constituição em que os três poderes sejam bem divididos, de forma que não possam arrogar direitos que não lhe compitam, mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, ainda pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos, e cada vez mais concorrerem de mãos dadas para a felicidade geral do Estado. Afinal uma constituição, que pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia e plante uma árvore daquela liberdade, a cuja sombra deva crescer a união, tranquilidade e independência deste império, que será o assombro do mundo novo e velho.[5]

 

Mas ele também agregava logo em seguida, uma crítica ao idealismo de certas constituições, liberais no espírito, mas geradoras de instabilidade na prática: 

Todas as instituições, que à maneira das de 1791 e 92 têm estabelecido as suas bases, e se têm querido organizar, a experiência nos tem mostrado que são totalmente teoréticas e metafísicas, e por isso inexequíveis; assim o prova a França, Espanha, e ultimamente Portugal. Elas não têm feito, como deviam, a felicidade geral; mas sim, depois de uma licenciosa liberdade, vemos que em alguns países já apareceu, e em outros ainda não tarda a aparecer o despotismo em um, depois de ter sido exercitado por muitos, sendo consequência desnecessária, ficarem os povos reduzidos à triste situação de presenciarem, e sofrerem todos os horrores da anarquia.[6]

 

Os dois Andradas, ainda no governo, formularam dois dias depois da Fala do Trono, um Voto de Graças, no qual reconheciam “na Fala de Sua Majestade os sentimentos de verdadeira constitucionalidade, e os princípios de genuína liberdade”,[7] a que aspirava a Assembleia. Outros deputados criticavam o fato de o imperador pretender “por si só julgar da bondade da Constituição”, atribuição que só pertencia a eles, como representantes da nação. Naqueles tempos, mesmo um liberal conservador como José Bonifácio, considerava que a palavra “República” – evocada por alguns constituintes no exemplo da Constituição da Filadélfia – era exageradamente próxima da anarquia democrática, ou seja, o governo do populacho, como tinha ocorrido na França do Diretório e em algumas repúblicas hispano-americanas. República era uma palavra temida em vários reinos, não apenas no Brasil.

O que estava no âmago dos debates, na verdade, era quais liberdades se deveriam conceder ao imperador, chefe do Poder Executivo, e quais liberdades deveriam ser garantidas ao povo, aos cidadãos ou súditos de um regime constitucional, entre elas a liberdade de expressão e a de imprensa. Como relatam os dois autores da História Constitucional do Brasil, Paulo Bonavides e Paes de Andrade: 

Dos projetos apresentados, mas não convertidos em lei pela Assembleia, que não teve tempo de fazê-lo em razão da dissolução, vale a pena assinalar pela sua importância o de 2 de outubro de 1823, da Comissão de Legislação, regulando a liberdade de imprensa.

Decreto do Poder Executivo de 22 de novembro de 1823, dez dias após o golpe de Estado, o pôs em execução.[8]

 

Os dois juristas ressaltam a personalidade de D. Pedro, “um temperamental”, que “evocava, enquanto símbolo de realeza, todo o passado absolutista dos Braganças”: 

Teve D. Pedro I dias fases existenciais: a primeira, sob a inspiração dos Andradas, afeiçoado ao Brasil e a um liberalismo monárquico e moderado, à semelhança do que circulava na Europa na Europa com base em Montesquieu, Burke e Constant, e a segunda, em que se inclinava em simpatia e audiência para o elemento luso, radicado no País, a saber, o ‘infame partido português’, no qual pululavam os absolutistas, os fomentadores dos impulsos autoritários do Imperador, cuja popularidade crescente o arrastou à abdicação de 7 de abril de 1831.[9]

 

A questão das liberdades, em geral e concretamente, no tocante aos poderes dos soberanos, aos deveres do Parlamento, enquanto representante dos súditos e dos cidadãos, e no que se refere aos direitos individuais, sempre esteve no coração dos regimes políticos, absolutistas ou constitucionais, que foram sendo elaborados ao longo dos séculos, desde a Magna Carta (1215), a Revolução Gloriosa (1688), a Declaração da Independência americana (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), depois impregnada em quase todos os modelos constitucionais e seus adendos, como as emendas apostas à Carta da Filadélfia sobre a liberdade de imprensa (num sentido negativo, ou seja, que nenhuma lei se poderia fazer restringindo esse princípio). A origem das liberdades democráticas é, na verdade, bem mais antiga, remontando à democracia grega, condensada de forma quase epigramática na famosa “Oração aos mortos”, de Péricles, reconstruída na famosa obra de Tucídides sobre a guerra do Peloponeso. Nos tempos modernos, ela teve diversas expressões, desde a Declaração de 1789, passando pela primeira emenda à Constituição americana, sendo na sequência incluída em praticamente todas as constituições liberais da contemporaneidade.

Na tradição ibérica, ela acaba sendo consagrada na Constituição de Cádiz (1812), que foi a base conceitual do movimento constitucionalista da revolução do Porto (1820), finalmente incorporada na Constituição portuguesa de 1822 e na do Império de 1824. Ela está inscrita no inciso IV do artigo 179 desta última, que informa, expressamente, que “Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar.”[10]

 

O papel de Hipólito da Costa na formulação inicial de um regime de liberdades

A vinculação dos liberais portugueses e brasileiros aos princípios da liberdade de imprensa muito deve Hipólito da Costa, primeiro jornalista independente do Brasil, ainda que exilado na Inglaterra, e jamais retornado ao Brasil (desde a sua primeira juventude, quando partiu para estudar em Coimbra), devido justamente à perseguição da Igreja e da Inquisição portuguesa aos espíritos livres como o dele. Correio Braziliense, fundado e administrado durante 14 anos por ele mesmo, como redator e editor, foi, por certo, mais importante para o Brasil do ponto de vista das lutas políticas e jornalísticas, pela liberdade de expressão e no controle das autoridades (e também diplomaticamente), do que como arauto ou porta-voz de políticas ou doutrinas econômicas e comerciais. Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical e o representante das ideias democráticas da Revolução francesa que muitos gostariam de ver.

A abertura do número inaugural do Correio Braziliense (1808) traz a sua profissão de fé no trabalho do jornalista independente, ao mesmo tempo em que constitui um verdadeiro programa de trabalho e uma reafirmação dos sólidos princípios que devem guiar a atividade dos “redatores de folhas públicas”: 

O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela, e cada um deve, segundo suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da mesma, os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo, que abrange o bem geral de uma sociedade, vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que ele espalha tiram das trevas da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar, com evidência, os conhecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas, quando estes, munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as reflexões sobre o passado, e as sólidas conjecturas sobre o futuro. [...]

Levado destes sentimentos de patriotismo, e desejando aclarar os meus compatriotas sobre os fatos políticos, civis e literários da Europa, empreendi este projeto, o qual espero mereça a geral apreciação daqueles a quem o dedico.[11]

 

Seu Correio Braziliense forneceu, durante exatos quatorze anos e sete meses ininterruptos, material de informação, de reflexão e de críticas a todos os dirigentes portugueses (que o liam, à sorrelfa) e aos brasileiros ilustrados, constituindo o maior repositório de dados e análises fiáveis sobre o estado do reino de Portugal, sobre a situação da Europa napoleônica e pós-napoleônica, sobre as Américas em geral e sobre o Brasil em particular. Esse “armazém literário” constituiu o mais completo manual de políticas públicas e de economia política – no sentido de estadismo para a prosperidade dos povos, como definia Adam Smith – cujo grande objetivo era o de ajudar o Brasil e os “brazilienses” a enriquecer rapidamente, como ocorria então na Inglaterra da primeira revolução industrial.[12]

Com José Bonifácio, Hipólito permaneceu um súdito fiel do reino português e um apoiador de um grande império dual, com sede no Rio de Janeiro, até quando pode, ou seja, os primeiros meses de 1822.[13] Mas, com as disposições francamente desfavoráveis ao Brasil tomadas pelas Cortes, Hipólito começou a se render à independência, o que, segundo um de seus biógrafos, só se deu definitivamente em julho desse ano: “Nessas circunstâncias” – escreveu Hipólito, no vol. XXIX do Correio – “não podem Portugal e Brasil fazer outra coisa melhor do que dar o último abraço e despedir-se”.[14]

O próprio Hipólito preparou um projeto de Constituição, que constava de apenas 87 artigos, com a previsão dos três poderes tradicionais – Legislativo, Executivo e Judicial – sendo que o primeiro poder seria integrado por “três autoridades”, uma delas o rei, a outra o Conselho de Estado e, claro, os representantes eleitos. Hipólito previa uma proporcionalidade estrita, com um representante para cada 15 mil eleitores. O poder legislativo era contemplado com oito atribuições exclusivas e igual número estava previsto para os fundamentos de suas leis, ao passo que o rei, ou regente, o primeiro membro do poder Executivo, dispunha de apenas dois artigos, sendo um o poder de comutar as penas, ao passo que o mais abrangente previa a sanção das leis, a declaração de guerra (com a aprovação do Conselho de Estado) e o comando das forças de mar e terra. O Conselho de Ministros, outro ramo do Executivo, ao lado das juntas de província e das câmaras dos distritos, era encarregado de expedir as ordens do rei, cada um deles nomeados e demitidos por ele, mas responsáveis ante o Conselho de Estado, por leis contra a Constituição ou “contra o bem do Estado”. As Juntas de Província, por sua vez, seriam compostas por “tantos membros quantas forem as Câmaras” das províncias, ao passo que estas, os distritos eleitorais, teriam sempre sete membros. O poder judiciário, finalmente, seria composto de três autoridades: um Tribunal Supremo, com 33 membros vitalícios, uma Relação em cada província, composta por 12 membros vitalícios, e um juiz por distrito, servindo por três anos, mas podendo ser reeleito.[15]

Hipólito alertava que a “Constituição do Brasil” seria “obra do tempo e da experiência”, e que se deveria evitar “abranger casos particulares”, pois dessa forma seria “menos perfeita”:

E tanto melhores serão as leis de um Estado, quanto mais se limitarem às regras gerais, claras e compreensivas.

Se considerarmos as partes mais belas da Constituição inglesa, as que são mais dignas de imitar-se e suscetíveis de serem adotadas em todos os governos constitucionais, acharemos, pela lição da história, que essas sábias instituições inglesas não foram arranjadas por uma vez, nem apareceram repentinamente à voz do legislador, como o decreto do onipotente fiat lux produziu em um momento o efeito que o criador se propunha. Foi a experiência, foram os repetidos ensaios, foram os melhoramentos sucessivos, foi enfim, a prudência dos legisladores em aproveitar os momentos, em adaptar suas medidas às circunstâncias em que se iam achando os povos na série dos acontecimentos políticos, que fez chegar essas partes da Constituição inglesa, a que aludimos, ao grau de perfeição em que as vemos agora.

(...)

Por outra parte, nos Estados Unidos da América setentrional, tomando-se por base que os costumes daqueles povos eram análogos aos dos ingleses, adotou-se a Constituição da Inglaterra, só com aquelas modificações que a natureza das circunstâncias exigia; essa Constituição dura, e durará, porque foi fundada na experiência, e só estabeleceu regras gerais; as ocorrências vão mostrando a maneira de a por em prática e essa mesma prática estabelece uma Constituição de costume, que é a mais duradoura que uma nação pode ter.

(...)

A Constituição de qualquer Estado, bem como as demais leis não podem durar eternamente; porque é sempre mutável a situação dos homens e quando as circunstâncias variam, forçoso é que variem também as leis.[16]

 

Sábios conselhos de Hipólito da Costa, que teriam, possivelmente, feito do Brasil um império democrático, fundado sobre as liberdades econômicas e políticas, bem governado e, talvez, livre da instabilidade política e da corrupção. Suas lições continuam tendo validade permanente.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4427, 28 junho 2023, 9 p.



[1] Cf. Hélio Vianna, História do Brasil, 4ª ed.; São Paulo, Melhoramentos, 1966, volume III, Império e República, p. 7.

[2] Cf. Vianna, op. cit., p. 14.

[3] ANDRADA e SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva. Representação à Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, por José Bonifacio de Andrada e Silva, deputado à dita Assemblea pela Provincia de S. Paulo. Paris: na Typographia de Firmin Didot, impressor d’El Rei, 1825, 40 p.; Registro eletrônico de obras raras n. 22512, Biblioteca Luiz Vianna Filho, Senado Federal (disponível: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/518681; acesso: 20 dez. 2020); reproduzida com atualização ortográfica em Jorge Caldeira (2002), José Bonifácio de Andrada e SilvaJosé Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Editora 34, p. 200-217.

[4] Cf. Vianna, História do Brasil, vol. III, op. cit., p. 15. 

[5] Fala do Trono, transcrita in: Paulo Bonavides, Paes de Andrade, História Constitucional do Brasil. 3ª ed.; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 18-26, cf. p. 25; ênfase no original.

[6] Idem, ibidem, loc. cit.; ênfase no original. 

[7] Idem, p. 41. 

[8] Idem, p. 45; se tratava do projeto de lei nº 36, de 02/10/1823, sobre liberdade de imprensa. 

[9] Idem, p. 47.

[10] BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em 28 de junho de 2023.

[11] Ver Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. reedição fac-similar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Braziliense, 2002-2003; coordenação de Alberto Dines e Isabel Lustosa (disponível Biblioteca Mindlin-USP: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/1303; acesso: 10 mar. 2021); cf. Correio Braziliense, I, 3, 1808.

[12] Cf. Paulo Roberto de Almeida. “O nascimento do pensamento econômico brasileiro” in Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002; reedição fac-similar, vol. XXX, p. 323-369.

[13] José Theodoro Mascarenhas Menck. A imprensa no processo de independência do Brasil: Hipólito José da Costa, o Correio Braziliense e as Cortes de Lisboa de 1821. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições da Câmara, (disponível: https://livraria.camara.leg.br/a-imprensa-no-processo-de-independencia-no-brasil; acesso: 20 fev. 2022).

[14] Cf. Carlos Rizzini. Hipólito da Costa e o Correio Braziliense. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, p. 286.

[15] Cf. Sergio Goes de Paula (org., introdução). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001; coleção Formadores do Brasil, p. 512-19.

[16] Cf. Correio Braziliense, op. cit., XXIX, n. 175, dezembro de 1822, p. 604-6.



quarta-feira, 23 de junho de 2021

Ditadura do PCC liquida o último jornal independente de Hong Kong - Deutsche Welle

A liberdade prevalecerá, na ilha e no continente, é só uma questão de tempo... 

ÁSIA

Tabloide pró-democracia de Hong Kong anuncia fechamento

Último jornal crítico a Pequim em Hong Kong sucumbe à ofensiva contra redação e decide fechar as portas. Nos últimos meses, o "Apple Daily" sofreu com batidas policiais, congelamento de bens e prisão de proprietário.

    
Cópias do tabloide Apple Daily de Hong Kong

Fundado em 1995 pelo magnata Jimmy Lai, o tabloide pró-democracia "Apple Daily" tornou-se um espinho para Pequim 

O último jornal diário pró-democracia de Hong Kong, o tabloide Apple Daily, publicará sua derradeira edição na quinta-feira, após um ano tempestuoso em que sua sede foi invadida pela polícia, seus ativos foram congelados e seu proprietário e funcionários acabaram presos no âmbito de uma nova lei de segurança nacional chinesa.

O fim de 26 anos de publicações do notório tabloide, que mistura discurso pró-democracia com fofocas atrevidas de celebridades e investigações sobre pessoas no poder, soou um novo alarme sobre a liberdade de imprensa e outros direitos civis na região semiautônoma de Hong Kong.

"Obrigado a todos os leitores, assinantes, clientes de publicidade e cidadãos de Hong Kong por 26 anos de imenso amor e apoio. Aqui dizemos adeus, cuidem-se", escreveu o Apple Daily num artigo em seu site nesta quarta-feira (23/06).

Pequenos grupos se reuniram em frente à sede do jornal na noite de quarta-feira. Os manifestantes entoaram mensagens de apoio e acenderam as lanternas de seus smartphones enquanto os jornalistas finalizavam a edição derradeira do Apple Daily.

Jornalistas afirmaram que planejam imprimir um milhão de cópias durante a noite – um número impressionante, dada a população de 7,5 milhões de residentes em Hong Kong. Geralmente, o Apple Daily imprimia 80 mil cópias.

Apple Daily: uma pedra no sapato de Pequim

O tabloide foi fundado em 1995 pelo magnata Jimmy Lai, que chegou a Hong Kong da China continental num barco de pesca quando tinha 12 anos de idade. Com o passar dos anos, o apoio do Apple Daily aos direitos e às liberdades democráticas tornou o tabloide uma pedra no sapato de Pequim. O Apple Daily sacudiu o panorama midiático em língua chinesa na região e se posicionou como um advogado da democracia às margens da China comunista.

Embora visto, às vezes, como espalhafatoso por alguns de seus críticos, o Apple Daily serviu como uma refúgio da liberdade midiática no mundo de língua chinesa e era lido por dissidentes e por uma diáspora chinesa mais liberal – um constante desafio ao autoritarismo de Pequim.

O proprietário Jimmy Lai, atualmente na prisão por participar de protestos pró-democráticos, foi um dos primeiros a ser acusado sob a nova lei após sua imposição no ano passado. Mas o capítulo final para o Apple Daily foi escrito na semana passada, quando as autoridades utilizaram o subterfúgio da lei de segurança nacional para invadir a redação, prender executivos e diretores e congelar ativos em torno de 2,3 milhões de dólares – o que impossibilitou o jornal de manter sua folha de pagamento. Cerca de mil pessoas perderam seus empregos, sendo cerca de 600 jornalistas.

As fotografias de semana passada de policiais sentados nas mesas dos repórteres e imagens deles enchendo vans com materiais jornalísticos causaram arrepios na mídia da ex-colônia britânica. A invasão foi avaliado como o ataque mais direito à imprensa de Hong Kong desde que Pequim recuperou o controle da região semiautônoma em 1997. 

O parque de ciências, administrado pelo governo e que abriga a sede do Apple Daily, também decidiu anunciar nesta quarta-feira que a empresa que administra o tabloide estava violando o contrato de locação e que medidas legais foram tomadas para confiscar o edifício.

"Golpe terrível à liberdade de expressão"

"Instamos o governo a cumprir a promessa de salvaguardar a liberdade de imprensa, de permitir que as pessoas que trabalham na indústria de notícias sirvam a Hong Kong sem medo", disse Ronson Chan, chefe da associação de jornalistas de Hong Kong. "Ficaremos muito preocupados se houver consequências ao escrever um artigo. Receio que isso faça a sociedade sentir que as pessoas podem ser colocadas na prisão por causa do que escrevem. E isso leva a uma enorme preocupação com a liberdade de expressão na cidade."

"O fechamento forçado do Apple Daily pelas autoridades de Hong Kong é um golpe terrível à liberdade de expressão em Hong Kong", disse o ministro das Relações Exteriores do Reino Unido, Dominic Raab. "Está claro que os poderes da lei de segurança nacional estão sendo usados como uma ferramenta para restringir as liberdades e punir os dissidentes, em vez de manter a ordem pública."

"O assédio ao Apple Daily é mais um esforço das autoridades de Pequim para silenciar um meio de comunicação crítico. Viola o direito do povo de Hong Kong de acessar notícias independentes e é mais um passo para a erradicação da liberdade de imprensa na região", disse Barbara Trionfi, diretora-executiva da organização International Press Institute (IPI).

"Um ano após sua promulgação, a lei de segurança nacional da China para Hong Kong revelou ser exatamente o que os críticos temiam: um instrumento pronto para suprimir a cobertura independente de notícias", prosseguiu Trionfi. "A comunidade internacional não deve permanecer em silêncio enquanto as liberdades de Hong Kong são removidas tijolo por tijolo. A rede global do IPI é solidária com os jornalistas e funcionários do Apple Daily." 

pv (ap, afp, rtr)

sábado, 20 de abril de 2019

Dois juizes inconstitucionais e um bravo jornalista - Mario Sabino

Os dois juízes não são apenas inconstitucionais. Eles são anti-constitucionais, e deveriam ser sancionados não apenas pelo próprio STF – que provavelmente vai se acovardar e não fazer nada – como também pelo Senado, que pode chamá-los a se explicar e até destituí-los, se tiver coragem e respeito pela Constituição.
O presidente atual do STF, um completo despreparado, ex-advogado do PT, uma organização criminosa, como todos sabem, cometeu calúnia contra o Antagonista e a revista Crusoé, e deveria ser processado por isso. Proponho um pedido inicial de R$ 200.000,00 como reparação.
Acho também que, tendo contribuído para aumentar a audiência e provavelmente as assinaturas da revista Crusoé, os editores poderiam lhe oferecer um ano de assinatura gratuita, como prêmio pelo serviço involuntário de ajuda no marketing (e um prêmio Darwin, pela estupidez demonstrada).
Abaixo, o artigo de Mário Sabino na Crusoé desta memorável semana.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de abril de 2019

E lá fui eu parar na PF outra vez

Mario Sabino, revista Crusoé, 19/04/2019

Na última terça-feira, dia 16 de abril, apenas 24 horas depois de ser intimado pelo ministro Alexandre de Moraes, eu me apresentei ao delegado da Polícia Federal escolhido para conduzir o inquérito sigiloso e inconstitucional aberto para intimidar a imprensa (a história de que serve para apurar fake news e ameaças ao STF nas redes sociais é conversa para boi dormir. Pegaram uns coitados ao acaso). Foi a quarta vez na minha carreira profissional que me vi convocado a comparecer diante de um delegado pelo fato de ser jornalista. Na primeira, em 2008, fui à mesma Superintendência da PF em São Paulo, como redator-chefe da Veja, para sair de lá como o único indiciado no caso do dossiê dos aloprados. Contei essa história aqui, há menos de um mês. Em 2016, Lula também quis me levar para uma delegacia, sob a acusação de que O Antagonista era uma associação criminosa. Nossos advogados conseguiram evitar essa ignomínia. Em 2017, Wagner Freitas, presidente da CUT, foi outro a querer que um delegado me interrogasse. A tentativa foi novamente abortada.
É perturbador que um jornalista, pelo fato de exercer a sua profissão, seja intimado a ir quatro vezes à polícia, na vigência de um regime democrático. Tendo a crer que sou um recordista no Brasil. O delegado designado para conduzir o inquérito inconstitucional saído da cachola de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes não soube dizer aos meus advogados em qual condição eu estava ali: se de investigado, testemunha ou, sei lá, colaborador. Ele afirmou ainda que, por ser sigiloso, desconhecia o teor exato do inquérito a meu respeito. Sim, você leu certo: o delegado designado para conduzir o inquérito inconstitucional saído da cachola de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes disse não ter ideia sobre o que estava sendo investigado sobre mim. Se é que eu era investigado, claro.
Eu, no entanto, sei que não há objeto de investigação nenhum. Apenas quiseram calar a boca dos jornalistas da Crusoé e de O Antagonista que ousaram fazer reportagens sobre ministros do Supremo Tribunal Federal. Como não conseguiram – e nem conseguirão, se o Brasil realmente for uma democracia digna de tal nome –, o inquérito teratológico ampliou a sua ousadia autoritária, com Alexandre de Moraes prestando-se ao papel vexaminoso de censor da Crusoé e de O Antagonista.
Dias Toffoli e Alexandre de Moraes nutrem a ilusão de que irão destruir a Crusoé e O Antagonista, acusando-me de estar à frente de sites que não são jornalísticos, mas destinados a produzir notícias falsas contra o Supremo Tribunal Federal, em conluio com procuradores da Lava Jato e militares golpistas – ambos os veículos financiados por gente escusa do mercado financeiro. A ideia agora, pelo que depreendo, é tentar provar que não sou jornalista, embora tenha 35 anos de carreira e seja sócio-fundador de O Antagonista, que tem 15 milhões de leitores únicos por mês, e da Crusoé, a primeira revista inteiramente digital do país, que conta hoje com 72 mil assinantes.
Dias Toffoli mostrou que seguirá o caminho de tentar nos desqualificar e criminalizar, em entrevista ao Valor. Ele disse que orquestramos narrativas inverídicas para constranger o Supremo às vésperas de uma decisão sobre a prisão de condenados em segunda instância, o que seria obstrução de administração da Justiça. Respondi que o único constrangimento causado ao Supremo se dá pelo comportamento abusivo de Dias Toffoli, que está abolindo o devido processo legal, com o seu inquérito inconstitucional.
No dia seguinte, a Crusoé publicou que Dias Toffoli simplesmente mentiu ao Valor. Porque a reportagem foi publicada na quinta-feira, dia 11, “o julgamento estava marcado para o dia 10, um dia antes de ela ser publicada, mas já havia sido adiado seis dias antes, no dia 4, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil. E nem sequer havia sido marcada uma nova data. Alem disso, o documento da Odebrecht em que se baseou a reportagem foi anexado nos autos da Lava Jato no dia 9 de abril — após o julgamento ter sido adiado, portanto”. Pergunto-me se Dias Toffoli mentiria assim diante do delegado da Polícia Federal que tomou o meu depoimento.
O presidente do Supremo Tribunal Federal também disse que a Crusoé e O Antagonista não são imprensa livre, mas “imprensa comprada”. Respondi que não recebemos mesada e que Dias Toffoli não está imune a processo por calúnia.
Dias Toffoli e Alexandre de Moraes imaginavam que nós nos acovardaríamos porque teríamos rabo preso. Nós não nos acovardamos porque não temos o rabo preso. Eles imaginavam que não teríamos apoio dos grandes jornais e emissoras de rádio e TV. Nós tivemos o apoio dos grandes jornais e emissoras de rádio e TV. Todos perceberam que a ameaça não era apenas contra nós, mas contra a liberdade de imprensa. Eles imaginavam que nós mentíamos sobre a nossa imensa base de leitores. Nós temos uma imensa base de leitores, que podem não concordar com todas as nossas opiniões, mas sabem que somos honestos e transparentes. Os nossos ganhos são financiados por publicidade, jamais estatal, e assinaturas. Em 2018, finalmente consegui recuperar o dinheiro que gastei das minhas economias, enquanto procurávamos viabilizar comercialmente O Antagonista. Eles imaginavam que não contaríamos com o apoio de juristas e entidades de classe. Nós tivemos o apoio de juristas e entidades de classe.

A censura foi levantada, mas não sei até que ponto os demais ministros do Supremo Tribunal Federal deixarão essa alopragem correr solta. Sugiro modestamente que contenham Dias Toffoli e Alexandre de Moraes (o despacho que levantou a censura que não era censura, por exemplo, tem pegadinhas). A pretexto de salvaguardar o Supremo, a dupla só fez afundar ainda mais a imagem do tribunal como guardião da Constituição. São eles, portanto, que ameaçam a corte. Sem o Supremo Tribunal Federal, não há democracia. Assim como não há democracia sem liberdade de imprensa, o que significa o direito de criticar e fiscalizar todas as instituições, inclusive o STF. E, não canso de repetir, a liberdade de imprensa só se enfraquece quando não a exercemos. Se tiver de voltar à PF, direi isso ao delegado.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

O vigor da liberdade - Duda Teixeira (Crusoé)

O vigor da liberdade

Nos Estados Unidos, decisões lapidares da Suprema Corte foram fundamentais para consolidar a liberdade de expressão e de imprensa, que já estavam contidos na Primeira Emenda da Constituição

Duda Teixeira,
Crusoé, 19/04/2019

A Primeira Emenda da Constituição Americana estabelece que o Congresso não pode elaborar leis que proíbam ou restrinjam a liberdade de religião, de expressão ou de imprensa. Adotada em 1791, o texto é invocado sempre que autoridades tentam esmagar os direitos alheios. Este ano, a peça pode até ganhar versão brasileira por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, como informou Crusoé. Mas a Primeira Emenda não foi um consenso desde seus primórdios. Sua robustez foi erguida ao longo dos anos, cimentada com decisões da Suprema Corte americana. “A Suprema Corte tomou diversas decisões que afetaram a liberdade de imprensa. Em geral, seus membros tiveram uma posição muito vigorosa a favor do trabalho dos jornalistas e da liberdade de expressão”, diz o advogado Michael DeDora, do Comitê para a Proteção aos Jornalistas (CPJ), em Washington. “Foram essas sentenças que definiram como a Primeira Emenda deve ser interpretada atualmente.”
Até a década de 1960, era comum que pessoas que se sentiam ofendidas por uma matéria processassem os jornais por difamação. Elas alegavam que os textos eram falsos ou que suas reputações tinham sido afetadas. Em um caso de 1886, um tanatopraxista conseguiu 3.500 dólares do jornal New York Times. Uma matéria afirmara que ele se apresentara bêbado para preparar corpo do ex-presidente Ulysses Grant. Processado pelo agente funerário, o jornal não conseguiu provar que ele estava alcoolizado e teve de arcar com a quantia.
Casos como o do tanatopraxista praticamente desapareceram depois de 1964, quando o Times ganhou um caso na Suprema Corte americana. Após a prisão do pastor negro Martin Luther King, um grupo de apoiadores publicou um anúncio de uma página inteira no jornal com o título “Prestem atenção nas suas vozes crescentes”. A peça dizia que a detenção tinha sido politicamente motivada e pedia doações para ajudar na defesa legal de Luther King. Um comissário de polícia da cidade de Montgomery, no estado do Alabama, L.B. Sullivan, entrou na Justiça alegando que o New York Times o tinha difamado, apesar de não ter sido citado na propaganda. Ele e outros quatro oficiais afirmaram que o texto era difamatório, falso e que arranhava a sua honra. O juiz acatou a demanda e ordenou que o jornal pagasse 500 mil dólares. Quando questionado sobre a validade da Primeira Emenda da Constituição, o magistrado argumentou que ela não protegia publicações difamatórias.
A Suprema Corte do estado do Alabama manteve a decisão e o caso subiu para a Suprema Corte dos Estados Unidos. Por um placar de 9X0, seus membros reverteram a decisão dada no Alabama. Eles entenderam que não houve por parte do Times a intenção de publicar algo que os editores do jornal sabiam que poderia ser considerado falso. O efeito mais imediato foi o fim dos processos que eram iniciados em estados do sul dos Estados Unidos para silenciar os jornalistas que relatavam a violência contra o movimento pelos direitos civis. O impacto de longo prazo foi que a sentença estabeleceu que funcionários públicos que se sentissem atingidos deveriam provar não apenas que a matéria em questão era imprecisa e que tinha ferido suas reputações, como também que o jornalista as tinha publicado mesmo sabendo ou desconfiando da sua inverdade. Por ser essa uma missão praticamente impossível para os litigantes, a decisão da Suprema Corte desencorajou a abertura de processos em todos os estados dos Estados Unidos. “Essa decisão deu uma blindagem muito grande aos jornalistas”, diz Ronaldo Porto Macedo Junior, professor de filosofia do direito da USP e coordenador da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da Fundação Getúlio Vargas. “Poucas condenações e indenizações ocorreram depois disso.”
Outra decisão que moldou a relação da imprensa com o poder público foi a que se seguiu à publicação dos chamados Papéis do Pentágono. A disputa entre os jornais New York Times e Washington Post com o governo americano, então sob a presidência de Richard Nixon, foi o tema do filme The Post – A Guerra Secreta, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 2017.
Em 1971, o New York Times começou a divulgar documentos que tinham sido vazados pelo analista militar Daniel Ellsberg. Ele fazia parte de um grupo convocado em 1967 pelo secretário de Defesa, Robert McNamara, para reunir documentos sobre o envolvimento americano na Guerra do Vietnã. Durante dezoito meses, Ellsberg copiou em uma máquina de xerox 7 mil páginas de documentos, que depois vazou para os dois jornais. Três dias depois de a primeira matéria ser publicada, o Departamento de Justiça obteve uma ordem de censura sob a alegação de que a circulação dos documentos secretos poderia causar dano irreparável e imediato aos interesses nacionais.
Durante quinze dias, advogados dos dois jornais tentaram derrubar a censura nos tribunais. No dia 30 de janeiro, a Suprema Corte deu seu parecer. Por 6 votos a favor e 3 contra, a corte entendeu que os dois veículos poderiam retomar a publicação das matérias sobre a Guerra do Vietnã. Os integrantes do tribunal concluíram que o governo falhou em justificar seu motivo para a censura. Não havia risco à segurança nacional. No filme de Steven Spielberg, a declaração do juiz Hugo Black é ouvida pelo telefone por uma jornalista, que repete o texto emocionada aos colegas: “Na Primeira Emenda, os Fundadores da Nação deram à imprensa livre a proteção necessária para que ela cumpra seu papel essencial na nossa democracia. O papel da imprensa é servir aos governados, não aos governantes.”

Que sirva de lição a alguns magistrados brasileiros.

Liberdade de imprensa: editorial de O Globo (18/04/2019)

Inquérito do STF atropela a lei e afeta imagem da Corte

Investigações abertas por Toffoli, já com relator, atingem a instância que dá a palavra final do Judiciário

Editorial O GLOBO, 18/04/2019

O anúncio feito em março, pelo presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, de que decidira instaurar inquérito para investigar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças (...) que atingem a honorabilidade do Supremo, de seus membros e familiares” foi logo acompanhado de temores de que a iniciativa poderia levar a Corte a uma crise.

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Pelo simples e grave motivo de que a iniciativa abria flancos para críticas técnicas, e por não ter havido consulta prévia a outros ministros. Ao fazer o anúncio solene, ao fim de uma sessão, Toffoli já nomeou para conduzir o inquérito o ministro Alexandre de Moraes, atropelando mais uma norma dos tribunais, a do sorteio de quem irá presidir as investigações, para garantir isenção e independência, princípios pétreos da Justiça.

O agravamento de tudo deu-se com a decisão tomada por Moraes de determinar que a revista “Crusoé” e o site “O Antagonista” retirassem do ar a notícia de que Marcelo Odebrecht, em sua delação premiada, identificara como o próprio Dias Toffoli o “amigo do amigo do meu pai”, citado na Lava-Jato. Toffoli, advogado do PT, foi nomeado responsável pela Advocacia-Geral da União por Lula, muito próximo a Emílio Odebrecht, pai de Marcelo. O documento com esta referência terminou retirado dos autos pelo juiz Luiz Antonio Bonat, da Lava-Jato no Paraná, a pedido do Ministério Público, por entender que o fato não tinha relação com a construção da Usina de Belo Monte, no Pará, sob investigação.

Ao ordenar um ato de censura, Moraes atraiu muitas críticas, por óbvio. E o pronunciamento formal da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, de contestação técnica do inquérito, amplificou a crise. O pedido de Dodge para que a investigação seja arquivada não foi aceito por Moraes, mas o assunto pode chegar ao plenário da Corte. Provocado pela PGR ou por meio de recursos impetrados contra a censura e o inquérito, relatados pelo ministro Edson Fachin. Quando ficará explícita a divisão do Supremo sobre a questão.

Além da visita ilegal do oficial de Justiça à redação dos veículos, houve mandados de busca contra detratores de ministros e a Corte. Mas nada que ponha a ordem constituída e a vida de autoridades em risco, até onde se sabe. Reagir contra calúnias e difamações é previsto em lei, sem ser preciso abrir inquéritos no STF.

O ministro Marco Aurélio Mello, logo depois do anúncio de Toffoli, se colocou contra a medida. Pois, por determinação constitucional, cabe ao MP acusar e ao Judiciário, julgar. Ao decidir que o próprio Supremo cumprirá este papel, numa interpretação também polêmica do regimento interno da Corte, Dias Toffoli criou a situação esdrúxula de que a Corte que investiga denunciará e julgará. Algo típico de regimes ditatoriais. O certo é que confrontos dentro do STF e choques institucionais com a PGR são negativos para todos, e logo quando devem chegar ao Judiciário demandas contra reformas vitais para o país.