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sexta-feira, 28 de julho de 2023

Constituinte de 1823: Liberdade de Imprensa e participação popular - emissão da TV Câmara e texto de Paulo Roberto de Almeida

 Fui convidado pelo jornalista William França, da TV Câmara, para participar de uma série de quatro emissões sobre a Constituinte de 1823, por ocasião dos seus 200 anos, no programa "Ponto de Vista". Participei, do episódio 3, “Liberdade de Imprensa e participação popular”, divulgado em 27/07/2023 com os outros três episódios.

Como sempre faço quando recebo um convite para algum seminário ou debate, preparo previamente algumas notas a respeito do tema, que não tenho o costume de ler, e que só servem para organizar as ideias. Desta vez não foi diferente. Esta é a ficha do trabalho, que vai transcrito abaixo.

A emissão pode ser vista neste link: https://www.youtube.com/watch?v=QC67t21zGl8

Os demais episódios podem ser vistos no canal YouTube da TV Câmara.


4427. “A Constituinte de 1823 e a questão das liberdades”, Brasília, 28 junho 2023, 9 p. Notas para participar do programa Ponto de Vista, da TV Câmara, sobre os 200 anos do Parlamento brasileiro, configurado pela eleição, instalação e dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, em 1823, sob a coordenação de William França. Emissão, episódio 3, “Liberdade de Imprensa e participação popular”, divulgada em 27/07/2023 (link: https://www.youtube.com/watch?v=QC67t21zGl8). 

Ponto de Vista - 200 anos do Parlamento: Liberdade de Imprensa - 27/07/23


A Constituinte de 1823 e a ordem constitucional das liberdades 

 

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.

Notas para participar do programa Ponto de Vista, da TV Câmara, sobre os 200 anos do Parlamento brasileiro, configurado pela eleição, instalação e dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, em 1823. 

 

O primeiro processo constitucional brasileiro

Quando foi proclamada a independência, o Brasil – que não existia como tal, ou seja, como nação unificada por um Estado organizado constitucionalmente – contava com 19 províncias, as antigas capitanias, que eram as unidades administrativas que tinham escolhido, inclusive a Cisplatina, os primeiros deputados dessas províncias às Cortes de Lisboa, em 1821, que se estabeleceram depois da Revolução do Porto. A experiência, conquanto frustrada, de diversos representantes das províncias do Brasil no turbulento processo de elaboração da primeira Constituição de Portugal – na qual, o reino unido do Brasil voltou a ser um mero ajuntamento de províncias separadas, conectadas diretamente à antiga sede da monarquia – foi fundamental nos trabalhos da também turbulenta Constituinte brasileira. 

Quando D. Pedro foi aclamado imperador, ele o foi como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, mas evitou se comprometer com o acolhimento de uma carta constitucional que deveria resultar do primeiro processo verdadeiramente legítimo de criação de uma Carta Magna para o Império do Brasil. No início de 1823 foram feitos os trabalhos preparatórios à instalação da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, instalada pelo imperador em 3 de maio, sendo eleito, em junho, José Bonifácio como seu primeiro presidente. Bonifácio envolveu-se, como líder de uma facção maçônica e animador do jornal O Tamoio, no espancamento do jornalista concorrente, Luís Augusto May, redator do jornal Malagueta, o que levou o imperador a demitir Bonifácio do ministério do Império e dos Estrangeiros, e seu irmão Martim Francisco do ministério da Fazenda. No mesmo ato, decidiu o imperador fechar o Apostolado ou Nobre Ordem dos Cavaleiros de Santa Cruz, a sociedade secreta dos Andradas. O historiador Hélio Vianna escreveu a esse respeito: 

Assim terminou o Ministério que desde janeiro de 1822 tanto havia contribuído para a Independência do Brasil e a fundação do Império.[1]

 

Escusado dizer que, enquanto se faziam os trabalhos preparatórios da Constituinte, algumas províncias do Brasil, no norte e nordeste, ainda se debatiam em batalhas da guerra da independência; na Bahia, as tropas portuguesas só foram derrotadas em 2 de julho de 1823. Em algumas províncias – Piauí, Maranhão, Grão-Pará, Alagoas – não chegaram a ser eleitos deputados constituintes; os da Bahia só participaram na fase final dos trabalhos. Noventa deputados foram eleitos em 14 províncias, mas nem todos compareceram à Assembleia: 22 eram magistrados, 19 sacerdotes e 7 militares, além de médicos, proprietários e funcionários públicos. Dentre os de maior destaque figurava outro irmão de José Bonifácio, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva, ambos passados à oposição ao imperador depois da demissão do “patriarca da independência”. Com Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, Antonio Carlos tinha sido constituinte nas Cortes de Lisboa, o que lhe conferiu um papel de líder natural nos trabalhos que se desenrolaram por seis meses, desde maio de 1823. 

A maior bancada era a de Minas Gerais – 20 deputados –, mas a de Pernambuco tinha revolucionários de 1817 entre seus membros, como Francisco Muniz Tavares, também historiador daquela tentativa republicana. Uma de suas primeiras propostas, no campo da legislação ordinária, foi um decreto autorizando o governo a expulsar do Brasil, brasileiros ou estrangeiros que não tivessem demonstrado adesão à causa da independência. José Bonifácio, por seu lado, apresentou duas memórias: “uma sobre a civilização dos indígenas ainda existentes no Brasil, outra sobre a mudança da capital para o interior”.[2] Uma sua representação sobre a escravatura permaneceu intocada.[3] Um debate inicial se deu a propósito da sanção, ou não, pelo imperador, de leis ordinárias aprovadas pela Assembleia, que confrontava a vontade do chefe da nação, como uma diminuição de suas prerrogativas. Apenas seis leis foram aprovadas pela Assembleia, em sua função legislativa, antes de sua dissolução, todas elas sancionadas pelo imperador, a despeito de sua contrariedade. 

Na Fala do Trono quando da instalação da Assembleia, o imperador afirmou que a futura Carta mereceria sua aprovação “se fosse digna do Brasil e dele”, o que já causou estranheza em boa parte dos constituintes. Um anteprojeto constitucional foi elaborado por uma comissão, mas seu texto foi recebido com críticas por Antonio Carlos, supostamente por conter dispositivos copiados da recente constituição portuguesa ou espanhola. Antonio Carlos 

[f]icou encarregado de preparar outro texto, o que fez em curto prazo, dentro de quinze dias apenas. Apresentando-o em setembro, somente então começou a Assembleia a sua tarefa propriamente constituinte.

O projeto de Antonio Carlos, longo, de 272 artigos, era um código liberal, elaborado de acordo com as ideias da época. Nele era aproveitada a curta e recente experiência constitucionalista portuguesa, além das doutrinas então propagadas pelo escrito suíço-francês Benjamin Constant, expressas em seu Cours de Politique Constitutionnelle. Destas divergia, entretanto, ao fortalecer as atribuições do Poder Executivo do Ministério, das que deveriam competir ao Imperador.[4]

 

A despeito das importações estrangeiras, uma inovação foi perfeitamente brasileira: em lugar de se calcular a capacidade eleitoral e a elegibilidade dos cidadãos por alguma renda em dinheiro, Antonio Carlos o fez pelo preço de uma mercadoria amplamente consumida no Brasil, a farinha de mandioca. Dessa forma, para ser eleito de paróquia ou de província, deputado ou senador, deveria o candidato ter uma renda anual equivalente à renda líquida anual de 150, 250, 500 ou 1.000 alqueires de farinha de mandioca, com o quê se fixou o título que o projeto recebeu, de “constituição da mandioca”. Independentemente desse tipo de proposta, a discussão dos artigos avançou muito lentamente, e de setembro a novembro, apenas 24 artigos tinham sido revistos pelos constituintes, o que prometia um processo extremamente delongado de redação constitucional. 

No plano especificamente legislativo, a Assembleia aprovou meia dúzia de leis: uma estabelecia o modo de promulgação das leis; outra extinguia o Conselho dos Procuradores Gerais das províncias; uma terceira, proibia aos deputados eleitos aceitarem cargos públicos e a quarta revogou um alvará de 1818 que proibia o funcionamento de sociedades secretas; a quinta se dedicava a identificar as leis portuguesas que continuariam a ter vigência no Brasil e a última, dava ao imperador o poder de designar presidentes das províncias. A essa altura, já estava configurada uma forte oposição, não apenas dos Andradas, ao imperador e aos áulicos do gabinete, e não apenas na Assembleia, mas na “imprensa” também (na verdade, em “panfletos” e “folhas”). 

A oposição se fazia a tudo o que era português, e nisso entrava o próprio imperador e sua política externa, exageradamente vinculada aos assuntos de Portugal, ou aos interesses dos Braganças, num momento em que a independência ainda não tinha sido reconhecida pela antiga metrópole e pelas demais monarquias europeias. Os deputados não apreciaram, por exemplo, a admissão no Exército imperial de antigos militares portugueses, inclusive alguns que estavam presos na Bahia, num momento em que em Portugal se tinha restabelecido o poder absoluto, com a dissolução das Cortes, e permanecendo o estado de guerra entre os dois reinos. Conflitos entre diferentes grupos, dentro e fora da Assembleia, mais a guerrilha dos jornais, criaram uma situação de extrema tensão, o que facilitou a D. Pedro ultimar o decreto de sua dissolução, sob o pretexto de que tinha esse poder, pois fora ele quem a havia convocado, quando ainda era príncipe regente. No decreto de 12 de novembro de 1823, o dia do “golpe”, ele prometia apresentar um novo projeto “duplicadamente mais liberal” do que aquele em discussão. 

A dispersão dos constituintes foi até violenta: vários deputados foram presos, entre eles os três Andradas. Por recomendação do Conselho de Estado, criado simultaneamente para elaborar um novo projeto, os três, mais alguns outros, foram deportados para a França, embora dotados de pensões para suas subsistências. O Conselho, nomeado pelo imperador, era composto de seis ministros nomeados pouco antes, e mais quatro personalidades políticas, todos brasileiros natos, todos recebendo títulos nobiliárquicos mais adiante. Trabalhando rapidamente, em 11 de dezembro de 1823, o Conselho apresentou um projeto, já contendo o dispositivo inspirado em Benjamin Constant, o Poder Moderador. Neste ponto, o projeto de Antonio Carlos divergia radicalmente da Constituição outorgada: ele só reconhecia três poderes, e o imperador não podia dissolver a Câmara dos Deputados, nem aceitar ou suceder qualquer Coroa estrangeira; tampouco aceitava a vitaliciedade do Senado, depois consagrado. 

 

A questão das liberdades no ordenamento constitucional

Na Fala do Trono, ao abrir os trabalhos da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa, a 3 de maio de 1823 – data em que se acreditava ter sido a descoberta do Brasil –, num texto elaborado por José Bonifácio, D. Pedro considerava que se deveria fazer

... uma constituição sábia, justa, adequada e executável, ditada pela razão e não pelo capricho, que tenha em vista tão somente a fidelidade geral, que nunca pode ser grande sem que esta constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos tenha mostrado, que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade aos povos, e toda força necessária ao Poder Executivo. Uma constituição em que os três poderes sejam bem divididos, de forma que não possam arrogar direitos que não lhe compitam, mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, ainda pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos, e cada vez mais concorrerem de mãos dadas para a felicidade geral do Estado. Afinal uma constituição, que pondo barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer aristocrático, quer democrático, afugente a anarquia e plante uma árvore daquela liberdade, a cuja sombra deva crescer a união, tranquilidade e independência deste império, que será o assombro do mundo novo e velho.[5]

 

Mas ele também agregava logo em seguida, uma crítica ao idealismo de certas constituições, liberais no espírito, mas geradoras de instabilidade na prática: 

Todas as instituições, que à maneira das de 1791 e 92 têm estabelecido as suas bases, e se têm querido organizar, a experiência nos tem mostrado que são totalmente teoréticas e metafísicas, e por isso inexequíveis; assim o prova a França, Espanha, e ultimamente Portugal. Elas não têm feito, como deviam, a felicidade geral; mas sim, depois de uma licenciosa liberdade, vemos que em alguns países já apareceu, e em outros ainda não tarda a aparecer o despotismo em um, depois de ter sido exercitado por muitos, sendo consequência desnecessária, ficarem os povos reduzidos à triste situação de presenciarem, e sofrerem todos os horrores da anarquia.[6]

 

Os dois Andradas, ainda no governo, formularam dois dias depois da Fala do Trono, um Voto de Graças, no qual reconheciam “na Fala de Sua Majestade os sentimentos de verdadeira constitucionalidade, e os princípios de genuína liberdade”,[7] a que aspirava a Assembleia. Outros deputados criticavam o fato de o imperador pretender “por si só julgar da bondade da Constituição”, atribuição que só pertencia a eles, como representantes da nação. Naqueles tempos, mesmo um liberal conservador como José Bonifácio, considerava que a palavra “República” – evocada por alguns constituintes no exemplo da Constituição da Filadélfia – era exageradamente próxima da anarquia democrática, ou seja, o governo do populacho, como tinha ocorrido na França do Diretório e em algumas repúblicas hispano-americanas. República era uma palavra temida em vários reinos, não apenas no Brasil.

O que estava no âmago dos debates, na verdade, era quais liberdades se deveriam conceder ao imperador, chefe do Poder Executivo, e quais liberdades deveriam ser garantidas ao povo, aos cidadãos ou súditos de um regime constitucional, entre elas a liberdade de expressão e a de imprensa. Como relatam os dois autores da História Constitucional do Brasil, Paulo Bonavides e Paes de Andrade: 

Dos projetos apresentados, mas não convertidos em lei pela Assembleia, que não teve tempo de fazê-lo em razão da dissolução, vale a pena assinalar pela sua importância o de 2 de outubro de 1823, da Comissão de Legislação, regulando a liberdade de imprensa.

Decreto do Poder Executivo de 22 de novembro de 1823, dez dias após o golpe de Estado, o pôs em execução.[8]

 

Os dois juristas ressaltam a personalidade de D. Pedro, “um temperamental”, que “evocava, enquanto símbolo de realeza, todo o passado absolutista dos Braganças”: 

Teve D. Pedro I dias fases existenciais: a primeira, sob a inspiração dos Andradas, afeiçoado ao Brasil e a um liberalismo monárquico e moderado, à semelhança do que circulava na Europa na Europa com base em Montesquieu, Burke e Constant, e a segunda, em que se inclinava em simpatia e audiência para o elemento luso, radicado no País, a saber, o ‘infame partido português’, no qual pululavam os absolutistas, os fomentadores dos impulsos autoritários do Imperador, cuja popularidade crescente o arrastou à abdicação de 7 de abril de 1831.[9]

 

A questão das liberdades, em geral e concretamente, no tocante aos poderes dos soberanos, aos deveres do Parlamento, enquanto representante dos súditos e dos cidadãos, e no que se refere aos direitos individuais, sempre esteve no coração dos regimes políticos, absolutistas ou constitucionais, que foram sendo elaborados ao longo dos séculos, desde a Magna Carta (1215), a Revolução Gloriosa (1688), a Declaração da Independência americana (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), depois impregnada em quase todos os modelos constitucionais e seus adendos, como as emendas apostas à Carta da Filadélfia sobre a liberdade de imprensa (num sentido negativo, ou seja, que nenhuma lei se poderia fazer restringindo esse princípio). A origem das liberdades democráticas é, na verdade, bem mais antiga, remontando à democracia grega, condensada de forma quase epigramática na famosa “Oração aos mortos”, de Péricles, reconstruída na famosa obra de Tucídides sobre a guerra do Peloponeso. Nos tempos modernos, ela teve diversas expressões, desde a Declaração de 1789, passando pela primeira emenda à Constituição americana, sendo na sequência incluída em praticamente todas as constituições liberais da contemporaneidade.

Na tradição ibérica, ela acaba sendo consagrada na Constituição de Cádiz (1812), que foi a base conceitual do movimento constitucionalista da revolução do Porto (1820), finalmente incorporada na Constituição portuguesa de 1822 e na do Império de 1824. Ela está inscrita no inciso IV do artigo 179 desta última, que informa, expressamente, que “Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar.”[10]

 

O papel de Hipólito da Costa na formulação inicial de um regime de liberdades

A vinculação dos liberais portugueses e brasileiros aos princípios da liberdade de imprensa muito deve Hipólito da Costa, primeiro jornalista independente do Brasil, ainda que exilado na Inglaterra, e jamais retornado ao Brasil (desde a sua primeira juventude, quando partiu para estudar em Coimbra), devido justamente à perseguição da Igreja e da Inquisição portuguesa aos espíritos livres como o dele. Correio Braziliense, fundado e administrado durante 14 anos por ele mesmo, como redator e editor, foi, por certo, mais importante para o Brasil do ponto de vista das lutas políticas e jornalísticas, pela liberdade de expressão e no controle das autoridades (e também diplomaticamente), do que como arauto ou porta-voz de políticas ou doutrinas econômicas e comerciais. Hipólito, aliás, estava longe de ser o jacobino radical e o representante das ideias democráticas da Revolução francesa que muitos gostariam de ver.

A abertura do número inaugural do Correio Braziliense (1808) traz a sua profissão de fé no trabalho do jornalista independente, ao mesmo tempo em que constitui um verdadeiro programa de trabalho e uma reafirmação dos sólidos princípios que devem guiar a atividade dos “redatores de folhas públicas”: 

O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela, e cada um deve, segundo suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da mesma, os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou. O indivíduo, que abrange o bem geral de uma sociedade, vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que ele espalha tiram das trevas da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. Ninguém mais útil, pois, do que aquele que se destina a mostrar, com evidência, os conhecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro. Tal tem sido o trabalho dos redatores das folhas públicas, quando estes, munidos de uma crítica sã e de uma censura adequada, representam os fatos do momento, as reflexões sobre o passado, e as sólidas conjecturas sobre o futuro. [...]

Levado destes sentimentos de patriotismo, e desejando aclarar os meus compatriotas sobre os fatos políticos, civis e literários da Europa, empreendi este projeto, o qual espero mereça a geral apreciação daqueles a quem o dedico.[11]

 

Seu Correio Braziliense forneceu, durante exatos quatorze anos e sete meses ininterruptos, material de informação, de reflexão e de críticas a todos os dirigentes portugueses (que o liam, à sorrelfa) e aos brasileiros ilustrados, constituindo o maior repositório de dados e análises fiáveis sobre o estado do reino de Portugal, sobre a situação da Europa napoleônica e pós-napoleônica, sobre as Américas em geral e sobre o Brasil em particular. Esse “armazém literário” constituiu o mais completo manual de políticas públicas e de economia política – no sentido de estadismo para a prosperidade dos povos, como definia Adam Smith – cujo grande objetivo era o de ajudar o Brasil e os “brazilienses” a enriquecer rapidamente, como ocorria então na Inglaterra da primeira revolução industrial.[12]

Com José Bonifácio, Hipólito permaneceu um súdito fiel do reino português e um apoiador de um grande império dual, com sede no Rio de Janeiro, até quando pode, ou seja, os primeiros meses de 1822.[13] Mas, com as disposições francamente desfavoráveis ao Brasil tomadas pelas Cortes, Hipólito começou a se render à independência, o que, segundo um de seus biógrafos, só se deu definitivamente em julho desse ano: “Nessas circunstâncias” – escreveu Hipólito, no vol. XXIX do Correio – “não podem Portugal e Brasil fazer outra coisa melhor do que dar o último abraço e despedir-se”.[14]

O próprio Hipólito preparou um projeto de Constituição, que constava de apenas 87 artigos, com a previsão dos três poderes tradicionais – Legislativo, Executivo e Judicial – sendo que o primeiro poder seria integrado por “três autoridades”, uma delas o rei, a outra o Conselho de Estado e, claro, os representantes eleitos. Hipólito previa uma proporcionalidade estrita, com um representante para cada 15 mil eleitores. O poder legislativo era contemplado com oito atribuições exclusivas e igual número estava previsto para os fundamentos de suas leis, ao passo que o rei, ou regente, o primeiro membro do poder Executivo, dispunha de apenas dois artigos, sendo um o poder de comutar as penas, ao passo que o mais abrangente previa a sanção das leis, a declaração de guerra (com a aprovação do Conselho de Estado) e o comando das forças de mar e terra. O Conselho de Ministros, outro ramo do Executivo, ao lado das juntas de província e das câmaras dos distritos, era encarregado de expedir as ordens do rei, cada um deles nomeados e demitidos por ele, mas responsáveis ante o Conselho de Estado, por leis contra a Constituição ou “contra o bem do Estado”. As Juntas de Província, por sua vez, seriam compostas por “tantos membros quantas forem as Câmaras” das províncias, ao passo que estas, os distritos eleitorais, teriam sempre sete membros. O poder judiciário, finalmente, seria composto de três autoridades: um Tribunal Supremo, com 33 membros vitalícios, uma Relação em cada província, composta por 12 membros vitalícios, e um juiz por distrito, servindo por três anos, mas podendo ser reeleito.[15]

Hipólito alertava que a “Constituição do Brasil” seria “obra do tempo e da experiência”, e que se deveria evitar “abranger casos particulares”, pois dessa forma seria “menos perfeita”:

E tanto melhores serão as leis de um Estado, quanto mais se limitarem às regras gerais, claras e compreensivas.

Se considerarmos as partes mais belas da Constituição inglesa, as que são mais dignas de imitar-se e suscetíveis de serem adotadas em todos os governos constitucionais, acharemos, pela lição da história, que essas sábias instituições inglesas não foram arranjadas por uma vez, nem apareceram repentinamente à voz do legislador, como o decreto do onipotente fiat lux produziu em um momento o efeito que o criador se propunha. Foi a experiência, foram os repetidos ensaios, foram os melhoramentos sucessivos, foi enfim, a prudência dos legisladores em aproveitar os momentos, em adaptar suas medidas às circunstâncias em que se iam achando os povos na série dos acontecimentos políticos, que fez chegar essas partes da Constituição inglesa, a que aludimos, ao grau de perfeição em que as vemos agora.

(...)

Por outra parte, nos Estados Unidos da América setentrional, tomando-se por base que os costumes daqueles povos eram análogos aos dos ingleses, adotou-se a Constituição da Inglaterra, só com aquelas modificações que a natureza das circunstâncias exigia; essa Constituição dura, e durará, porque foi fundada na experiência, e só estabeleceu regras gerais; as ocorrências vão mostrando a maneira de a por em prática e essa mesma prática estabelece uma Constituição de costume, que é a mais duradoura que uma nação pode ter.

(...)

A Constituição de qualquer Estado, bem como as demais leis não podem durar eternamente; porque é sempre mutável a situação dos homens e quando as circunstâncias variam, forçoso é que variem também as leis.[16]

 

Sábios conselhos de Hipólito da Costa, que teriam, possivelmente, feito do Brasil um império democrático, fundado sobre as liberdades econômicas e políticas, bem governado e, talvez, livre da instabilidade política e da corrupção. Suas lições continuam tendo validade permanente.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4427, 28 junho 2023, 9 p.



[1] Cf. Hélio Vianna, História do Brasil, 4ª ed.; São Paulo, Melhoramentos, 1966, volume III, Império e República, p. 7.

[2] Cf. Vianna, op. cit., p. 14.

[3] ANDRADA e SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva. Representação à Assemblea Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura, por José Bonifacio de Andrada e Silva, deputado à dita Assemblea pela Provincia de S. Paulo. Paris: na Typographia de Firmin Didot, impressor d’El Rei, 1825, 40 p.; Registro eletrônico de obras raras n. 22512, Biblioteca Luiz Vianna Filho, Senado Federal (disponível: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/518681; acesso: 20 dez. 2020); reproduzida com atualização ortográfica em Jorge Caldeira (2002), José Bonifácio de Andrada e SilvaJosé Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Editora 34, p. 200-217.

[4] Cf. Vianna, História do Brasil, vol. III, op. cit., p. 15. 

[5] Fala do Trono, transcrita in: Paulo Bonavides, Paes de Andrade, História Constitucional do Brasil. 3ª ed.; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 18-26, cf. p. 25; ênfase no original.

[6] Idem, ibidem, loc. cit.; ênfase no original. 

[7] Idem, p. 41. 

[8] Idem, p. 45; se tratava do projeto de lei nº 36, de 02/10/1823, sobre liberdade de imprensa. 

[9] Idem, p. 47.

[10] BRASIL. Constituição Política do Império do Brazil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>. Acesso em 28 de junho de 2023.

[11] Ver Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. reedição fac-similar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Braziliense, 2002-2003; coordenação de Alberto Dines e Isabel Lustosa (disponível Biblioteca Mindlin-USP: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/1303; acesso: 10 mar. 2021); cf. Correio Braziliense, I, 3, 1808.

[12] Cf. Paulo Roberto de Almeida. “O nascimento do pensamento econômico brasileiro” in Hipólito José da Costa, Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002; reedição fac-similar, vol. XXX, p. 323-369.

[13] José Theodoro Mascarenhas Menck. A imprensa no processo de independência do Brasil: Hipólito José da Costa, o Correio Braziliense e as Cortes de Lisboa de 1821. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições da Câmara, (disponível: https://livraria.camara.leg.br/a-imprensa-no-processo-de-independencia-no-brasil; acesso: 20 fev. 2022).

[14] Cf. Carlos Rizzini. Hipólito da Costa e o Correio Braziliense. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, p. 286.

[15] Cf. Sergio Goes de Paula (org., introdução). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001; coleção Formadores do Brasil, p. 512-19.

[16] Cf. Correio Braziliense, op. cit., XXIX, n. 175, dezembro de 1822, p. 604-6.



segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Cabe aguardar o golpe ou preveni-lo? - Paulo Roberto de Almeida

 Comentário a propósito da contrariedade de muitos a respeito da ação do ministro Alexandre de Moraes, mandando investigar empresários golpistas, considerando-a inconstitucional.

O problema de minimizar simples ameaças verbais é a possibilidade de um dia nos deparamos com o horror de uma ditadura cruel. 

Em 1926-27, quando foram publicados os dois volumes do Mein Kampf, não se deu muita importância aos argumentos de um golpista de instintos totalitários, já anunciando a luta contra bolcheviques e judeus. 

A obra só começou a ser lida, de fato, depois que Hitler já tinha transformado a turbulenta República de Weimar numa ditadura assassina. 

Como alertou Karl Popper, não se pode ser tolerante com os intolerantes, pois eles podem simplesmente matar a democracia.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 5/09/2022

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Quão credível é a ameaça de guerra nuclear da Rússia no caso da Ucrânia? Rememorando o caso dos mísseis soviéticos em Cuba

Quão credível é a ameaça de guerra nuclear da Rússia no caso da Ucrânia?

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Rememorando o caso dos mísseis soviéticos em Cuba.


 Por duas ou três vezes, o próprio Putin, seu eterno chanceler Lavrov, e outros observadores, comentaristas ou jornalistas seguindo os assuntos da guerra de agressão da Rússia, ou do Putin, contra a Ucrânia e os ucranianos, chegaram a mencionar a possibilidade de uma guerra nuclear, sem que se saiba exatamente por que, com quais motivos ou dirigida a quais envolvidos nesse conflito, que são, ademais da própria Rússia e a Ucrânia, todos os países vizinhos, pró-Rússia (como a Belarus), ou os "ocidentais" membros da OTAN, ou seja, os bálticos e membros recentes da UE e da OTAN na Europa central e oriental, os próprios países líderes da UE ou da OTAN (França, GB e Alemanha), alguns escandinavos e, sobretudo, os Estados Unidos, o capitão e comandante da OTAN.

Sempre achei essa ideia estapafúrdia, despropositada, sem sentido, pura chantagem dos agressores russos, que não conseguiram realizar seus objetivos primários – ocupar toda a Ucrânia, eliminar seu governo atual e colocar um governo fantoche no lugar, ou seja, transformá-la numa nova Belarus – e resolveram partir para a intimidação nuclear contra não se sabe bem quem exatamente, supostamente algum membro da OTAN que decidisse intervir na guerra (já estão intervindo, mediante sanções e ajuda militar à Ucrânia, que não é nem da UE, nem da OTAN, mas aspira ingressar em ambas).

Não acredito, repito, em guerra nuclear, pois isso representaria a aniquilação de dezenas, possivelmente centenas de milhões de vidas humanas de um lado e outro, e a destruição da vida na Europa central, setentrional, meridional, oriental, ocidental, etc., etc., etc. Os generais e alguns estadistas responsáveis sabem disso, mas jornalistas e observadores ligeiros continuam especulando, como é de seu feitio, assim como os estrategistas amadores.

Em todo caso, como eu despertei para o tema da política internacional com a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, sessenta anos atrás, fui buscar na biblioteca o livro quintessencial de reflexão sobre esse caso emblemático da política do MAD durante a Guerra Fria, este aqui, publicado originalmente em 1971 e objeto de uma segunda edição revista em 1999.

Permito-me unicamente reproduzir a primeira e metade da segunda página da Introdução, com as questões que serão examinadas ao longo do livro, aliás muito chato, pois combina descrição empírica daqueles terríveis quinze dias de outubro de 1962 com capítulos especulativos sobre modelos decisórios em situações de alto stress como foram aqueles dias e situações de quase aniquilação nuclear. Lembro-me que minha mãe foi me buscar na escola num daqueles dias, quando normalmente eu voltava sozinho, a pé, durante três ou quatro quarteirões da zona sul de São Paulo: não sei exatamente para quê, pois é evidente que não tínhamos os abrigos nucleares construídos por americanos, russos e europeus para se proteger (inutilmente) do Armageddon nuclear caso ele ocorresse. Mais tarde, os uruguaios diriam que a solução era ir para o Uruguai, um país no qual, segundo eles, "no pasa nada!". 



Em todo caso, as questões em causa naquele conflito não encontram nenhuma correspondência com a situação atual. Para quê, exatamente, os russos usariam a arma nuclear, contra quem e onde? Estas questões alinhadas no livro do Allison (muito chato, diga-se de passagem) não encontram paralelo com o caso cubano ou outros casos menores ocorridos durante toda a era da Guerra Fria e além (tem os aventureiros coreanos do norte, iranianos, israelenses e os irmãos inimigos Índia e Paquistão).

O próprio Allison veio agora recentemente (desde 2015, pelo menos) com a ideia maluca de uma "armadilha de Tucidides", que seria uma guerra entre China e EUA, que só poderia ser nuclear. Se não for, seria uma proxy war, como as muitas que já ocorreram desde o final dos anos 1940, inclusive a atual, na Ucrânia.

Em todo caso, cabe recomendar, ou pelo menos esperar, cabeça fria e racionalidade da parte dos malucos que nos governam, alguns mais malucos do que outros, obviamente, Putin em primeiro lugar, o baixinho da Coreia do Norte em segundo lugar, talvez os aiatolás, depois que o Saddam Hussein e o Kaddafy já se foram. Ainda bem que Brasil e Argentina resolveram baixar suas armas nos coldres, pois era sumamente ridícula qualquer competição militar nuclear ou tradicional entre os dois grandes do Cone Sul sul-americano. Mas até hoje existem militares e diplomatas que consideram FHC um traidor, porque resolveu vincular o Brasil ao TNP (em 1996-98). Ainda bem que o fez, inclusive porque a Constituição de 1988 já tinha liquidado qualquer hipótese diferente.

Concluo: não haverá guerra nuclear. Mas espero que a Rússia seja condenada a pagar toda a destruição material e em vidas humanas que a loucura do Putin provocou. Não, não será uma reprodução do Tratado de Versalhes de 1919, e a Rússia não se converterá numa nova Alemanha com desejos de vingança. Ela tem de ser contida em seus instintos primitivos, sendo colocada numa espécie de "curral de contenção econômico". Essa é única forma de mostrar ao povo russo que ele precisa escolher dirigentes mais compatíveis com a Carta da ONU e com os grandes princípios do Direito Internacional. A China tem todo interesse que seja assim, pois do contrário ela também pagará um preço  se escolher outro caminho.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 2 de maio de 2022