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sábado, 26 de maio de 2012

¿"Primavera"? ¿en Cuba??: "¿estas guevando hermano?

Primavera só se for da repressão, que continua florescendo. O artigo não traz muita coisa nova, a não ser a informação de que a antiga chancelaria, ou residência, da Embaixada do Brasil, expropriada quando do rompimento de relações, em 1964, nunca foi solicitada de volta pelo governo brasileiro, e hoje abriga o coronel Chávez, o único financiador de Cuba no momento. Depois de Chávez, abre-se um buraco negro...
Paulo Roberto de Almeida 

Primavera em Cuba
Luiz Eduardo Vasconcelos e Odemiro Fonseca
O Globo, 25/05/2012

Luiz Eduardo Vasconcelos é engenheiro e Odemiro Fonseca é empresário.

Visitar Havana é ver que o tempo pode parar. A arquitetura de casas e prédios parou no modernismo dos anos cinquenta. Os carros pararam nos rabos de peixe. Os bares pararam nos mojitos e daiquiris. Nas pessoas, há languidez na forma de agir. E os costumes à mesa, nas roupas, na linguagem, no conhecimento e na forma de argumentar mostram que o longo isolamento criou um fosso comportamental entre a ilha e o mundo.
Essa ilha linda, habitada por um povo alegre e musical, nunca foi independente em economia. Primeiro os colonizadores espanhóis, com seus portos fechados e legitimando a escravidão, que somente acabou em 1886. As lutas anticoloniais devastaram os barões de açúcar e tabaco e entraram os americanos comprando tudo. Já se manifestava então o espírito antiamericano na aristocracia rural e entre os intelectuais.
Depois da revolução de 1959, vieram os russos, construindo usinas a óleo diesel e grandes obras. E autoestradas, até hoje vazias. Infraestrutura ajuda se for usada. Como no comunismo não existe custo de capital, é em tais países onde se veem os melhores exemplos de desperdício de capital. Agora Cuba vive de ajuda chinesa, do petróleo de Chaves e dos turistas — que este ano vão ser três milhões. Os canadenses patrocinaram o horrendo aeroporto internacional de Havana e o mundo patrocinou a restauração da bela Havana Velha, patrimônio da Humanidade.
Não se vê atividade agrícola, industrial, transporte nas estradas. A principal fonte cambial são os turistas, pelo uso do peso conversível, comprável em moeda estrangeira, cuja cotação fixada pelo governo força todos a usar tal moeda para pagar por tudo. Os preços ficam perto dos internacionais (o governo já aprendeu), mas quase tudo é da pior qualidade. O charme de Cuba atrai estranhas tribos de turistas, todas muito complacentes.
Os cubanos recebem salários em pesos nacionais, que consomem em produtos muito racionados, em mercados pessimamente mantidos e supridos, que abrem poucas horas por dia. Como acontecia na Rússia, há roubo nas fábricas, que alimentam mercados informais. Educação superior é dada como alta, mas observa-se que muitos universitários não trabalham ou trabalham fora das profissões. E a qualidade da medicina é impossível de ser verificada por um estrangeiro. Sem liberdade, as pessoas não têm como usar educação.
A revolução cubana foi salva por um bônus populacional. Eram 7,1 milhões em 1960. Hoje são 11,1 milhões, com população declinante. A população em 1960 já crescia pouco e havia boa infraestrutura. Se a população cubana tivesse crescido como a mexicana ou a brasileira, Cuba seria hoje uma favela de 22 milhões de pessoas. Se a população cubana tivesse crescido como a do Equador ou da Venezuela, Cuba seria hoje uma favela de 30 milhões de pessoas. Mas mesmo com o bônus populacional, o resultado não é animador. As séries de Angus Maddison mostram que a renda per capita de Cuba em 1950 era a quinta entre os 22 maiores latino-americanos, depois de Venezuela, Argentina, Uruguai e Chile. Em 2001, Cuba estava entre os quatro piores, adiante de Honduras, Nicarágua e Haiti.
O importante porto de Havana definhou a partir de 1960. Mas agora Cuba tem um novo patrocinador — o Brasil. O BNDES financia (85% do investimento mais linhas de crédito para Cuba importar alimentos e máquinas agrícolas) e a Odebrecht constrói o porto de Mariel, para ser uma zona franca. Fomos detidos, longe do canteiro, por um guarda armado, por tirarmos fotos. Retiveram nossos documentos, e quando a novela terminou o nosso motorista, antes exaltando “o maior porto da América Latina”, estava muito silente e preocupado.
[???] ...ários destes episódios de controle social (paradas em postos policiais, ameaças aos guias dos turistas — “cuidado com o que falas”, lorotas incríveis), potencializados pela ridícula TV e imprensa estatal, ausência de livros e internet, impossibilidade de viajar e os ainda existentes CDRs (Comitês de Defesa da Revolução — que são por quarteirão e participação compulsória), mostram que a primavera cubana está longe de acontecer. Depois de 53 anos de ditadura, o povo cubano tem medo dele mesmo. A liderança cubana parece inerte e misteriosa. Ninguém sabe como e onde vivem e o que fazem. Mas fala-se à boca pequena sobre Chaves. Hospeda-se na antiga residência do embaixador brasileiro. Este palácio residencial foi expropriado quando as relações diplomáticas foram cortadas, e, depois de restabelecidas, o Brasil nunca solicitou a devolução.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Republica Surrealista Socialista da Coreia: imperdivel, para turistas endurecidos...

Já que estamos em ritmo de sucessão dinástica na Coreia do Norte, que tem como sua grande amiga uma amigona chamada China, também aliada estratégica do Brasil num tal de Brics, cabe relembrar uma matéria de Veja, da jornalista Thais Oyama, sobre esse país símbolo do comunismo ultra-stalinista.
A formatação é da Veja, e portanto, profissional; nada comparado com as improvisações feitas neste blog desconjuntado. Quem desejar ler diretamente no site da Veja, siga este link: http://veja.abril.com.br/260809/pais-mais-fechado-estranho-mundo-p-104.shtml
Paulo Roberto de Almeida

Home  »  Revistas  »  Edição 2127 / 26 de agosto de 2009


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Especial

O país mais fechado (e estranho) do mundo

A reportagem de VEJA entrou na Coreia do Norte, onde não há celular nem internet, crianças de 5 anos recitam juras de vingança contra os Estados Unidos e é proibido dobrar jornais que trazem a foto do líder Kim Jong-Il


Thaís Oyama, de Pyongyang
"O PRESIDENTE ETERNO"
Em Pyongyang, norte-coreanos reverenciam a estátua de Kim Il-sung, pai do ditador Kim Jong-Il e o único morto a presidir um país

VEJA TAMBÉM
O presidente da Coreia do Norte não aparece em público há mais de quinze anos. Mesmo assim, os 23 milhões de habitantes do país enxergam seu rosto da hora em que acordam até a hora em que vão dormir. A imagem de Kim Il-sung, o "eterno presidente", pai do atual ditador Kim Jong-Il, está nos prédios, nos vagões de trem, nas estações de metrô e no broche que 100% da população de Pyongyang, a capital da Coreia do Norte, carrega "voluntariamente" no peito. "Embora tenha falecido em 1994, o nosso presidente continua vivo em nosso coração", diz a guia que recebe a reportagem de VEJA no aeroporto de Pyongyang. Ter um presidente morto é só uma das extravagâncias que fazem da Coreia do Norte uma aberração planetária. O regime mais isolado do mundo sobreviveu à morte de seu fundador, à derrocada do comunismo e a uma gestão catastrófica que matou de fome quase 3 milhões de pessoas no fim dos anos 90. Hoje, seria apenas um fóssil grotesco não fosse o fato de seu líder estar sentado sobre a bomba atômica. Esta repórter visitou o país de Kim Jong-Il na condição de turista (a entrada de jornalistas só é permitida mediante autorização do governo, que nunca a concede), levada por uma agência de viagens chinesa juntamente com um grupo de dezenove estrangeiros. Os seis dias passados lá mostraram que, mais do que um picadeiro para as bizarrices de Kim Jong-Il, a Coreia do Norte é uma sociedade oprimida pela fome e controlada pelo medo – e isso nem mesmo a onipresente propaganda do regime consegue esconder.
A viagem aérea de Pequim a Pyong-yang leva uma hora e meia e é feita num Tupolev russo. A parte mais desconfortável é ter de equilibrar sobre as pernas uma edição do Pyongyang Times,distribuída aos passageiros, sem amassá-la nem deixá-la cair no chão. Não se trata de mania. Ainda na China e, novamente, antes do embarque, os organizadores da excursão alertaram os turistas para que não dobrassem jornais que estampassem a foto de Kim Jong-Il (caso da edição lida no avião e, pelo que se viu mais tarde, de todas as outras já rodadas no país), sob pena de "ofender gravemente" os norte-coreanos. A lista de atitudes proibidas incluía ainda falar com a população nas ruas, tirar fotografias sem permissão e perguntar aos guias nativos sobre questões como a saúde de Kim Jong-Il ou a existência de campos de concentração no país. Na chegada ao aeroporto de Pyongyang, o grupo foi obrigado a entregar os celulares e a submeter toda a bagagem a uma revista cuidadosa, destinada a evitar o ingresso de material ideologicamente suspeito. O que seria ideologicamente suspeito? Basicamente tudo. Os norte-coreanos não podem ler livros, jornais e revistas estrangeiros e, à exceção de uma reduzidíssima elite, não têm acesso à internet, celular nem a rádio ou canais de TV que não sejam os oficiais.
O QUE SE MOSTRA E O QUE SE ESCONDE
No espetáculo exibido aos turistas, meninos e meninas de menos de 6 anos de idade cantam músicas de louvor ao regime e juram vingança contra o "imperialismo americano". À direita, criança pede esmola em parque de diversões: essa a propaganda não mostra

Da janela do ônibus que leva o grupo ao hotel, a paisagem que se avista é de romance do inglês George Orwell, autor da distopia 1984: imensos pôsteres de propaganda comunista decoram as avenidas, hordas de soldados marcham nas ruas – parte das tropas entoa uma música que será ouvida à exaustão nos próximos dias, a Canção do General Kim Il-sung – e carros equipados com alto-falantes conclamam a população para o trabalho. A guia explica que o país está no penúltimo mês da "Campanha dos 150 Dias": a primeira etapa do esforço nacional destinado a fazer a Coreia do Norte crescer 20% até 2012, data em que o país celebrará os 100 anos do nascimento de Kim Il-sung. As outras atrações do percurso são a Universidade Kim Il-sung, o Estádio Kim Il-sung e a Praça Kim Il-sung, de onde é possível avistar, ao longe, a próxima parada: uma imensa estátua de bronze de Kim Il-sung, em cujos pés os recém-chegados são convidados a depositar flores. Onde quer que se olhe, lá está a imagem do presidente eterno em várias versões: sentado, com o olhar voltado para o futuro; caminhando, de mãos dadas com criancinhas; de peito empinado, entre um soldado, um camponês e alguém que carrega um livro (bingo, é o intelectual).
E onde está Kim Jong-Il, o filho?
Não demora para o visitante entender que o tirano norte-coreano, de cabelos espetados como os do cantor Chico César, é, entre os Kims, o menor. O "Querido Líder", como é chamado no país, é pouco mais do que o representante de seu pai na terra. O culto a Kim Il-sung – cujo nome não é jamais pronunciado sem um dos epítetos costumeiros: "Grande Líder", "Sol da Humanidade" ou "Inigualável Patriota" – deve-se principalmente ao fato de que, sob o seu reinado, a Coreia do Norte viveu os seus melhores dias, graças à mesada da então União Soviética. Até 1965, o PIB do país era três vezes o da Coreia do Sul e cada grão que brotava do solo era apresentado como um presente ofertado ao povo por Kim Il-sung. Quando cessou a ajuda dos camaradas russos e a grande fome do fim dos anos 90 devastou a Coreia do Norte, obrigando as embaixadas da vizinha China a instalar cercas de arame farpado para impedir que multidões de refugiados famintos pulassem os muros em busca de comida e asilo, o Grande Líder já desfrutava a paz dos mortos. Sobrou para o filho a ruína em que se transformou o país depois de décadas de isolamento e gestão calamitosa. O Chico César coreano não é exatamente um gênio da política e administração – sua opção preferencial é pelo investimento em armas nucleares. Resultado: hoje, o PIB da Coreia do Norte equivale a 3,1% do da Coreia do Sul (veja o quadro).
FANTASIA E REALIDADE
O outdoor com a maquete de um edifício inexistente ilustra a Pyongyang que a Coreia do Norte gostaria de ter; o bonde decrépito dos anos 70 revela a falta de infraestrutura da capital do país

A foto de Kim Jong-Il, ao lado da do pai, aparece pela primeira vez no hotel em que a reportagem se hospedou. O Yanggakdo, no centro de Pyongyang, tem 1 000 quartos e 47 andares. No fim da década de 80, quando a sua construção teve início, a inimiga Coreia do Sul havia começado a erguer em Cingapura o que seria um dos hotéis mais altos da Ásia. O Yanggakdo e o Ryugyong, esse último jamais terminado, vieram para mostrar que os norte-coreanos também eram capazes de fazer edifícios altos. Ainda que vazios. Na última semana do mês passado, dos 1.000 quartos, apenas quarenta estavam ocupados. No Yanggakdo, os telefonemas são monitorados, os fax recebidos são lidos antes de ser entregues ao hóspede e os cartões-postais enviados de lá podem ou não chegar ao destino, dependendo do seu conteúdo, conforme aviso dado pela agência de turismo chinesa. Antes de irem para os quartos, os turistas têm de entregar seu passaporte à guia norte-coreana, que ficará com ele até o fim da viagem.
Do alto do 38o andar, a visão que se tem de Pyongyang é a de uma bela cidade cercada de colinas. O Rio Taedong, margeado por árvores e parques, corre ao longo de boa parte da região central, o que faz com que, além de imaculadamente limpa, a cidade pareça fresca e verde. Pyongyang foi inteiramente reconstruída depois da Guerra da Coreia (1950-1953). Tem avenidas largas, monumentos grandiosos e nenhuma casa térrea, só prédios – monótonos, compactos, soviéticos. Nas avenidas centrais, as mulheres se vestem basicamente do mesmo jeito: saia azul e blusa branca, sempre com salto alto. Olhá-las caminhando nas calçadas provoca uma imediata sensação de estranhamento no recém-chegado – parece que falta alguma coisa na paisagem. E falta mesmo: além da ausência de lojas, os carros em circulação em Pyongyang são tão poucos que, entre a passagem de um e outro, seria possível comer um prato inteiro de kimchi – a apimentada conserva de acelga que é a base das refeições na Coreia do Norte. Mas nada supera o espanto causado pela visão das guardas de trânsito da capital. Postadas em pedestais instalados nos cruzamentos, elas mantêm uma frenética atividade de sinalização com a cabeça e os braços mesmo quando as ruas estão desertas – e elas sempre estão desertas. A explicação da guia para o comportamento é a seguinte: como, por muito tempo, os Estados Unidos impediram a Coreia do Norte de desenvolver seu programa de energia nuclear, o país passou a sofrer de um déficit crônico de eletricidade. Assim, as controladoras de tráfego atuam como semáforos humanos, já que o uso de similares eletrônicos seria um desperdício. E por que elas têm de gesticular sem parar mesmo quando não há um único carro na rua? A guia não sabe responder. Diz-se na Coreia do Norte que o Querido Líder em pessoa (também conhecido como "Inteligente Líder" ou "Respeitado Líder") é quem escolhe as belas guardas – dissimulados símbolos sexuais e heroínas de muitos dos filmes produzidos lá (Sentinela do Cruzamento, por exemplo, fala sobre "a dedicação ao trabalho e o terno amor das guardas pelo povo e também sobre a verdadeira supremacia do socialismo do nosso país", diz o texto que resume o enredo).
ELES ESTÃO DE OLHO EM VOCÊ
Passageiros norte-coreanos em vagão de trem com retratos de Kim Il-sung e Kim Jong-Il: pai e filho estão também nas estações de metrô, prédios e avenidas de Pyongyang

Já se disse que a Coreia do Norte é um lugar em que ninguém sorri. Um país cuja economia se encontra há quase quinze anos em estado de flagelo de fato não oferece motivos para riso. A cambaleante produção agrícola – que, mês sim, mês não, leva à interrupção do fornecimento das cotas de comida à população – e a fome crônica que já dura doze anos deixaram marcas visíveis nos norte-coreanos. Não nas moças que desfilam de salto alto pelas avenidas, mas nos passageiros que é possível espreitar no interior dos bondes decrépitos, fabricados na Checoslováquia dos anos 70, e nos camponeses, magros e encovados, que se veem na beira das estradas. Por causa da subnutrição, 64 anos depois da separação das Coreias, os comunistas do norte são, em média, 7 centímetros mais baixos do que os capitalistas do sul. A diferença fica clara na visita que o grupo faz à Zona Desmilitarizada, na cidade de Kaedong. A área é guardada por soldados norte e sul-coreanos, que chegam a ficar separados por apenas 50 centímetros de distância, a largura da faixa de concreto que delimita aquela fronteira entre as duas Coreias. Diante dos bem nutridos militares do sul – de ombros largos, capacetes, botas reluzentes e óculos escuros – é que se percebe quão esquálidos e pequenos são os famélicos soldados do norte, com seus uniformes rotos que dão a impressão de pertencer a seus irmãos mais velhos. Mas a aparente melancolia dos norte-coreanos não vem apenas do seu estômago vazio ou do justificado medo que eles têm de pisar fora da linha – e ir parar num dos seis campos de concentração do país, que abrigam estimados 150.000 prisioneiros políticos (veja ao lado o depoimento de uma ex-prisioneira de um campo de concentração norte-coreano). Há outro detalhe que ajuda a entender a aparente morbidez da população. A Coreia do Norte vive na escuridão – e não somente no sentido metafórico. Embora a cidade de Pyongyang, cartão de visita do país, seja poupada dos cortes diários de luz que atingem o resto do território, também lá o fornecimento de energia é precário. Pouco iluminados, museus, estações de metrô e vagões de trem ganham uma atmosfera lúgubre. Some-se a isso o hábito de as pessoas baixarem os olhos quando veem turistas (a curiosidade em relação ao mundo exterior é malvista pelo regime) e entende-se o motivo pelo qual todo norte-coreano parece profundamente infeliz aos olhos de um estrangeiro.
Na distopia totalitária de Kim Jong-Il, a população é dividida em três castas: a dos "leais", que compreende de 20% a 30% da população; a dos "neutros", em que se encaixam em torno de 60% dos norte-coreanos; e a dos "reacionários", ou "hostis" – que totaliza 10% ou 20% da população. É com base nessa classificação, com 56 subdivisões, que o governo define se uma pessoa pode ou não cursar a universidade, a quantidade de ração que vai receber e a ocupação que terá ao longo da vida. A família da guia da excursão, como a maioria das famílias autorizadas a morar na capital, pertence à casta privilegiada. A jovem estudou inglês e russo numa das melhores universidades de Pyongyang e já viajou para a China – prerrogativa rara, já que mesmo os moradores da capital têm de ter autorização para se deslocar de uma cidade para outra. Aos 29 anos de idade, bonita e inteligente, ela é uma autêntica representante da elite norte-coreana. Indagada se o fato de dois homens cami-nharem de mãos dadas nas ruas (como se vê vez ou outra em Pyongyang) significa que são homossexuais, ela, demonstrando genuíno espanto, negou. Depois, achando graça no desconhecimento da visitante, explicou: "No nosso país não há gays nem lésbicas".
FRONTEIRA
Os galpões azuis delimitam as duas Coreias. Postados entre eles, os magros soldados do norte

No penúltimo dia da excursão, a guia perguntou à repórter, que ela supunha ser uma turista, o que se falava no Brasil sobre a Coreia do Norte. Ouviu em resposta que as últimas notícias giravam em torno da realização de nova bateria de testes nucleares com mísseis de longo alcance e da suposta doença de Kim Jong-Il. Diante disso, a guia balançou tristemente a cabeça: "Não são mísseis, são satélites. E o nosso líder não está doente: goza de perfeita saúde. Vocês não deveriam acreditar em tudo o que dizem os Estados Unidos". Como reza a cartilha dos regimes totalitários, a Coreia do Norte elegeu seu Inimigo Número Um e faz dele uma presença tão constante no imaginário popular quanto o rosto do Inigualável Patriota nas ruas. O ódio ao inimigo não aparece apenas no Museu da Vitoriosa Guerra da Liberação da Pátria, onde uma soldada-guia exibe com orgulho pilhas de botas de combatentes americanos mortos na Guerra da Coreia. No parque de diversões que o grupo visitou, a versão norte-coreana do tiro ao alvo era um painel com a pintura de três soldados americanos em chamas. A brincadeira, da qual participavam adultos e crianças, consistia em acertar pedras nos buracos cavados na altura do peito de cada um. Em outro programa da excursão, os turistas foram convidados a assistir a um show em que crianças de 5 a 6 anos de idade cantavam, dançavam e tocavam instrumentos com perfeição. Os números incluíam um minicantor que, maquiado, levantava o punho enquanto jurava vingança contra "os imperialistas americanos" e uma minicantora e dançarina que descrevia entre bailados a felicidade que sentia pelo fato de os pais terem cumprido sua cota na Campanha dos 150 Dias e contribuído, assim, para o engrandecimento da pátria socialista. Para se apresentarem aos turistas, as crianças treinaram três horas diárias durante um ano e meio, informaram as professoras.
Segundo o hiperativo serviço de inteligência da Coreia do Sul, Kim Jong-Il está gravemente doente. Sua pouco revolucionária pança – abastecida por sushis e sopa de barbatana de tubarão, suas iguarias preferidas, conforme entregou ao mundo um de seus ex-chefs – hoje parece tão murcha quanto seu outrora eriçado topete. Se a informação for verdadeira, a Coreia do Norte terá em breve uma chance de sair da escuridão. A morte de Kim Jong-Il pode começar a pôr fim ao totalitarismo mais eficiente do mundo. O desconhecido Kim Jong-un, filho caçula de Kim Jong-Il, não seria capaz de manter, acreditam especialistas, o regime e seus dois principais pilares: o culto à personalidade dos Kims e o isolamento do país.
BELAS E INÚTEIS
Escolhidas pessoalmente por Kim Jong-Il, segundo se diz, as controladoras de trânsito mantêm sua coreografia mesmo quando as ruas estão vazias, o que é frequente em Pyongyang

Esse isolamento já começa a apresentar fendas. Indício disso seriam recentes movimentos de Kim Jong-Il – como a libertação das jornalistas americanas capturadas em março, com a intercessão do ex-presidente Bill Clinton, e a autorização para a entrada de turistas sul-coreanos em território nacional, dada na semana passada. Outro sinal seria o surgimento de uma classe de comerciantes no país. Estima-se que já existam na Coreia do Norte mais de 300 pequenos e grandes mercados de produtos contrabandeados – roupas, alimentos e mercadorias provenientes da China. O governo faz vista grossa para o negócio, já que parte do lucro acaba revertendo para ele em forma de suborno. "Assim como aconteceu na antiga União Soviética, o aparecimento de uma elite econômica, paralela à elite política, sinaliza o enfraquecimento do regime", acredita o professor sul-coreano Ji-sue Lee, da Universidade Myongji, em Seul.
Ao fim da excursão, a volta do grupo para a China é feita de trem. Na fronteira, soldados do Exército do Povo Coreano entram nos vagões para uma revista que dura quase quatro horas. Todos os passageiros têm suas malas e câmeras fotográficas vasculhadas. Soldados olham foto por foto e, sem cerimônia, apagam as imagens que não lhes agradam – em geral, cenas de pobreza em Pyongyang. Uma das soldadas para, maravilhada, diante de uma turista obesa, sentada em uma das cabines. Gesticula e chama um colega, que fita a mulher com igual admiração. Os dois sorriem para ela e balançam afirmativamente a cabeça, como que a cumprimentando pela boa fortuna – no país em que tantos perecem de fome, ser gordo é ser feliz.
AFP
BILL E KIM
Bill Clinton posa ao lado de Kim Jong-Il pouco antes da libertação das jornalistas americanas. O líder norte-coreano estaria gravemente doente

Pouco antes de embarcar no trem, esta repórter havia procurado a guia para relatar-lhe um "problema". Contou-lhe que, cumprindo a determinação recebida, havia levado com cuidado para o hotel a edição do Pyongyang Times com a foto de Kim Jong-Il. Que, durante os seis dias da excursão, manteve o jornal perfeitamente esticado sobre a penteadeira. Que, no momento de fazer as malas, achou por bem não levar o jornal e, assim... A guia acompanhou o relato arregalando progressivamente os olhos amendoados, a ponto de virarem uma perfeita circunferência. Ao final, quando soube que o jornal havia sido deixado intacto sobre a penteadeira do quarto, suspirou aliviada: "Pensei que você o tivesse jogado no lixo". Esta repórter achou graça na reação da jovem, mas o que havia visto nos seus olhos segundos antes era algo próximo do terror. A Coreia do Norte pode ser um circo, mas, para os participantes compulsórios desse espetáculo, ele está longe de ser divertido.
UM DESERTO DE CONCRETO
Com o traje que é quase um uniforme das norte-coreanas, blusa branca e saia azul, mulher conversa com amiga em meio a uma avenida vazia em Pyongyang

"Fiquei dois meses num campo de concentração"


"Resolvi fugir da Coreia do Norte depois de ver minha neta de 6 anos morrer de fome, em 1998. Fui presa nas duas primeiras tentativas. Da segunda vez, fui mandada para Chongjin (campo de concentração no norte do país), onde fiquei por dois meses. Tive sorte de sobreviver. A comida que eles dão aos prisioneiros não serve nem para os porcos: é uma mistura de água com cascas de grãos mofadas ou podres. Os guardas são treinados para nos tratar como insetos. Vi-os chutar com suas botinas a barriga de uma jovem grávida capturada na China. Gritavam que ela carregava o filho de um chinês no ventre. O bebê nasceu e eles o deixaram chorando num canto até que morresse. Escapei porque adoeci gravemente e meu irmão subornou guardas para que dissessem que eu havia morrido. Moro em Seul há oito anos. Na Coreia do Norte, eles dizem que a sociedade daqui é doente e decadente e que lá é o paraíso dos trabalhadores. Como eles podem enganar as pessoas assim?"
Jong Bok Soon, de 63 anos

"Há os que fogem e depois voltam. 
Acho que essas pessoas são loucas"


"Eu era criança e estava visitando a fábrica em que meu pai trabalhava. Peguei um graveto e escrevi no chão de areia: ‘Kim Il-sung’. O chefe do meu pai viu e ficou furioso: ‘Como você escreve o nome do Grande Líder no chão?’. Tive medo e comecei a esfregar os pés na areia para desmanchar o que havia escrito. Isso o deixou ainda mais furioso: eu não devia estar usando os meus pés para apagar aquele nome. Lembro do meu pai se ajoelhando diante do chefe e implorando para que não me denunciasse. Consegui fugir de lá há sete anos. Sei de pessoas que escapam da Coreia do Norte e voltam, dizendo-se decepcionadas. Isso acontece porque a imagem que elas têm da Coreia do Sul é aquela que veem nas novelas contrabandeadas, em que todos são ricos. Quando chegam, percebem que é preciso encontrar emprego, um lugar para morar e, aí, resolvem voltar. Eu acho que essas pessoas são loucas."
Oh Sun Hwan (nome fictício), de 32 anos

"Não tinha nenhum sonho, não vim 
atrás de liberdade. Fugi para sobreviver"


"Em 1999, eu, minha mãe e meu irmão fugimos para a China. Minha mãe se casou com um chinês e nós moramos com ele por três anos, até que vizinhos nos denunciaram, a polícia apareceu no meio da noite e fomos mandados de volta para a Coreia do Norte. Pouco depois, conseguimos fugir novamente e chegar a Seul. Não tinha nenhum sonho, não vim em busca de liberdade – só queria sobreviver. Entre 1997 e 1998, minha avó, meu avô e meu pai morreram de fome. Atualmente, estudo psicologia na Universidade Sogang. No começo, eu me sentia incomodada ao ouvir colegas se referirem de maneira desrespeitosa a Kim Il-sung e a Kim Jong-Il. Também ficava confusa quando diziam que muita coisa do que eu havia aprendido lá não era verdade. Hoje, não tenho mais tanto respeito por Kim Jong-Il. Mas continuo admirando Kim Il-sung. Ele é como se fosse o nosso pai."
Keum Ju (nome fictício), de 24 anos

"Passei trinta anos sequestrado na Coreia do Norte


"Eu cresci na Coreia do Sul e sobrevivi a duas guerras: lutei na da Coreia e na do Vietnã, ao lado dos americanos. Quando voltei do Vietnã, em 1975, no meu primeiro dia de trabalho num barco pesqueiro, fui sequestrado por norte-coreanos com outros 32 homens. Fiquei trinta anos naquele país. Eles usam os sequestrados para fazer propaganda do regime: somos apresentados como se tivéssemos deixado a Coreia do Sul voluntariamente. Em 2005, meus irmãos conseguiram subornar um traficante para me trazer de volta. O traficante disse que traria também minha família – eu constituí uma na Coreia do Norte –, mas nunca cumpriu a promessa. Soube depois que, por causa de minha fuga, minha mulher e meus filhos foram mandados para um campo de concentração. Nunca mais tive notícias deles."
Goh Myong Seop, de 65 anos

domingo, 30 de janeiro de 2011

Socialismo da fome (uma redundancia): retrato da Cuba atual

Este jornalistra americano tentou sobreviver durante um mês com a "renda" de um cubano, na verdade menos do que um cubano, pois os cubanos roubam do Estado, ou exercem expedientes diversos para tentar chegar ao fim do mês vivos. O jornalista americano, sem recurso a esses expedientes, quase morre na experiência.
Este texto deveria ser lido por todos os amigos sinceros de Cuba, e todos aqueles que acreditam que a origem dos males cubanos está no embargo americano, como proclamam mentirosamente os dirigentes comunistas.
Alguns trechos de seu relato:

"A caderneta --conhecida como "libreta"-- é o documento fundamental da vida cubana. (...) Em 1999, o ministro do Desenvolvimento de Cuba me disse que a ração mensal oferecia comida suficiente para apenas 19 dias, mas previu que esse total logo subiria.
Na verdade, caiu. (...) A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias de comida."

"Os vizinhos do meu amigo --marido, mulher e neto-- receberam a ração padronizada de produtos básicos, que consiste, por pessoa, em:
Dois quilos de açúcar refinado
Meio quilo de açúcar bruto
Meio quilo de grãos
Um pedaço de peixe
Três pãezinhos
Riram muito quando perguntei se recebiam carne de vaca."

"Depois de 50 anos de Progresso, o país está falido, na prática. Em 2009, ervilhas e batatas foram retiradas da ração e os almoços baratos nos locais de trabalho foram reduzidos às dimensões de lanches rápidos."

"Eu costumava dizer que, em Cuba, 10% de tudo era roubado, para revenda ou reaproveitamento. Agora creio que a proporção real seja de 50%. O crime é o sistema."

"Uma "cesta mensal" de comida racionada (que dura apenas 12 dias) custa 12 pesos por pessoa, de acordo com as contas do governo. Nos 10 dias seguintes de cada mês, as pessoas precisam comprar o mesmo volume de comida por 220 pesos, nos diversos mercados livres, paralelos e negros. E ainda assim isso só conduz o cidadão ao 22º dia do mês. As despesas mensais envolvidas em manter o mesmo padrão de alimentação seriam de 450 pesos --o que supera a renda de milhões de cubanos, e isso sem incluir roupas, transportes ou produtos para a casa.
"

"Ela é enfermeira, tem 24 anos, vive em Holguín. Para conseguir mais tempo de férias, trabalha turnos de 12 horas, e depois, a cada quatro ou seis meses, vai a Havana para um longo intervalo "no qual me dedico a isso", disse. Em um raro momento de eufemismo, se definiu como dama de acompañamiento."

Creio que basta isso. Os cubanos não merecem esse regime de emagrecimento forçado. Os amigos do regime, ou seja, os socialistas políticos, guevaristas de carteirinha deveriam sentir vergonha.
Paulo Roberto de Almeida

Cubano por 30 dias
PATRICK SYMMES
Folha de S.Paulo, 30/01/2011

Com o desafio de passar um mês em Havana com apenas 15 dólares, o repórter norte-americano Patrick Symmes narra seu mergulho na sociedade cubana e os diversos "jeitinhos" a que precisou recorrer para obter comida, se locomover e até mesmo para destilar rum caseiro.

NAS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS da minha vida, acho que nunca passei mais de nove horas sem comer. Mais tarde, fiquei sujeito a períodos mais longos de fome, mas sempre voltei para casa, fui recebido com festa, comi tudo o que quis, no momento que quis, e recuperei o peso que tivesse perdido. Além disso, segui a trajetória habitual de uma vida americana, ganhando meio quilo de peso por ano, década após década.

Quando decidi ir a Cuba e viver por um mês consumindo apenas aquilo que um cubano comum pode consumir, meu peso havia atingido 99 quilos; nunca tinha sido tão alto.

Em Cuba, o salário médio é de US$ 20. Médicos chegam a ganhar US$ 30, e muitas outras pessoas ganham só US$ 10. Decidi que me concederia o salário de um jornalista cubano: US$ 15, a renda de um intelectual oficial. Sempre quis ser um intelectual, e US$ 15 representava uma vantagem significativa sobre os proletários que constroem paredes de alvenaria ou cortam cana por US$ 12, e quase o dobro dos US$ 8 da pensão de muitos aposentados. Com esse dinheiro, eu teria de comprar minha ração básica de arroz, feijão, batata, óleo, ovos, açúcar, café e tudo o mais de que precisasse.

A primeira meia hora em solo cubano foi passada nos detectores de metais. Depois, como parte de um novo regime de vigilância que eu não havia encontrado em meus 15 anos anteriores de visita ao país, passei por um interrogatório intenso, porém amadorístico. Não era nada pessoal: todos os estrangeiros que chegaram no pequeno turboélice vindo das Bahamas foram separados do grupo e extensamente interrogados.

Como em Israel, um agente à paisana me fez perguntas detalhadas, mas que não versavam sobre assuntos importantes. ("Para que cidade você vai? Onde ela fica?"). O objetivo era me provocar, revelar incoerências ou causar nervosismo. Ele não olhou minha carteira ou perguntou por que, se eu planejava passar um mês em Cuba, tinha menos de US$ 20 comigo.

O olhar do agente se voltou aos demais passageiros. Eu tinha passado. "Trinta dias", eu disse à senhora que carimbou meu visto de turista. O prazo máximo.

Havia uma placa pendente do teto do aeroporto, com o desenho de um ônibus. Mas nada de ônibus. Só mais tarde, explicou a mulher da cabine de informações. Haveria um ônibus -só um- naquela noite, por volta das 20h, para levar os funcionários do aeroporto de volta a suas casas.

Eu teria de esperar seis horas. O centro de Havana fica a 16 quilômetros do aeroporto. Porque um táxi custaria US$ 25 --ou seja, mais que o meu orçamento para todo o mês--, eu teria de ir a pé. A mesma mulher tirou do bolso do uniforme duas moedas de alumínio, e me deu: 40 centavos de peso, o equivalente a dois centavos de dólar.

Na rodovia, a alguns quilômetros do aeroporto, eu talvez encontrasse um ônibus para a cidade. E em Havana eu poderia encontrar, ou teria de encontrar, uma maneira de sobreviver por um mês. Ergui a mochila aos ombros e comecei a caminhar, com as moedas de alumínio tilintando no bolso. Saí do terminal e atravessei o estacionamento, chegando à via de acesso.

Comecei a caminhar pela estrada, deixando o mundo externo para trás a cada sólido passo. A intervalos de alguns minutos, táxis se aproximavam, buzinando, ou carros particulares paravam ao meu lado e me ofereciam uma jornada até a cidade por apenas metade do preço oficial. Eu continuei caminhando, devagar, deixando para trás os velhos terminais e contemplando os campos de vegetação esparsa.

Os outdoors trombeteavam mensagens do passado: Bush terrorista. Depois de caminhar 40 minutos, cruzei por sobre os trilhos da ferrovia em uma passarela e, ao chegar à rodovia, tive sorte. O ônibus para Havana estava no ponto. Passada uma hora, eu havia chegado ao centro de Havana e estava de novo caminhando, em busca de um velho amigo.

RACIONAMENTO As primeiras pessoas com quem conversei na cidade --desconhecidos que vivem perto da casa do meu amigo-- mencionaram o sistema de racionamento. Sem que eu perguntasse, eles me mostraram suas cadernetas de racionamento e se queixaram bastante.

A caderneta --conhecida como "libreta"-- é o documento fundamental da vida cubana. Quase nada mudou no sistema de racionamento: ainda que agora seja impressa em formato vertical, a caderneta é idêntica às emitidas anualmente durante décadas.

O que mudou foi a tinta: havia menos texto na caderneta. O número de itens era menor, e as quantidades também eram menores, menos do que em 1995, a época de fome do "Período Especial". Desde então, a economia cubana se recuperou, mas o sistema cubano de racionamento ainda não. Em 1999, o ministro do Desenvolvimento de Cuba me disse que a ração mensal oferecia comida suficiente para apenas 19 dias, mas previu que esse total logo subiria.

Na verdade, caiu. Ainda que hoje o volume total de alimentos disponíveis em Cuba seja mais alto e o consumo de calorias per capita também tenha crescido, isso não se deve ao racionamento. O crescimento ocorreu em mercados privatizados e hortas cooperativas, e por meio de importações maciças; a produção de alimentos pelo Estado caiu 13% no ano passado e a ração encolheu junto. A opinião geral é de que a ração mensal hoje só dá para 12 dias de comida.

A minha viagem serviria para que eu fizesse o meu próprio cálculo: como alguém pode sobreviver durante um mês com comida para apenas 12 dias?

CADERNETA Cada família recebe uma caderneta de racionamento. As mercadorias são distribuídas numa série de mercearias (uma para laticínios e ovos, outra para "proteínas", outra para pão; a maior delas cuida dos enlatados e outros produtos embalados, de café e óleo a cigarros). Cada loja conta com um administrador que anota na caderneta a quantidade de produtos retirada pela família. Os vizinhos do meu amigo --marido, mulher e neto-- receberam a ração padronizada de produtos básicos, que consiste, por pessoa, em:

Dois quilos de açúcar refinado
Meio quilo de açúcar bruto
Meio quilo de grãos
Um pedaço de peixe
Três pãezinhos

Riram muito quando perguntei se recebiam carne de vaca.

"Frango", disse a mulher, mas isso provocou uivos de protesto: "Qual foi a última vez que recebemos frango?", o marido questionou. "Pois então, é verdade", ela disse. "Já faz alguns meses." A ração de "proteína" é distribuída a cada 15 dias e consiste numa carne moída de misteriosa composição, que inclui uma bela proporção de pasta de soja (se a carne for suína, a mistura recebe o falso nome de "picadillo"; se for frango, é conhecida como "puello con suerte", ou frango com sorte).

A ração basta para o equivalente a quatro hambúrgueres por mês, mas até aquele momento, em janeiro de 2010, cada um só havia recebido um peixe --em geral, uma cavala seca e oleosa.

E há os ovos. A mais confiável das fontes de proteínas, eles são conhecidos como "salva-vidas". Antigamente, a ração era de um ovo por dia; depois, um ovo a cada dois dias; agora, é de um ovo a cada três dias. Eu teria dez deles como ração para o mês seguinte.

Meu amigo me conduziu a uma residência particular no bairro de Plaza, onde eu alugaria um apartamento por um mês --a única despesa que deixo fora de minhas contas aqui. O apartamento era espartano, em estilo cubano: dois cômodos, cadeiras sem almofadas, um fogareiro de duas bocas numa bancada e um frigobar.

No meu segundo dia, comecei comendo um bagel de gergelim, e distraidamente o devorei inteiro, como se fosse possível comprar outro. De acordo com um aplicativo de contagem de calorias instalado em meu celular, o bagel tinha 440 calorias. Tudo que comi pelos 30 dias seguintes foi anotado com ajuda do pequeno teclado, registrado, tabulado em termos diários e semanais, dividido em proteínas, carboidratos e gordura, avaliado por meio de gráficos de barras. Um homem ativo do meu tamanho (1,88 metro, 95 quilos) precisa de cerca de 2,8 mil calorias diárias para manter o peso. Eu ainda não tinha conseguido quaisquer outros suprimentos de comida, e concluí meu café da manhã quando a faxineira de meu senhorio me deu dois pequenos copinhos de café muito açucarado (75 calorias).

Da mesma forma que os cubanos aproveitam lacunas nos regulamentos para sobreviver, decidi explorar minha evidente condição de estrangeiro em meu benefício, e passei o dia entrando e saindo de hotéis nos quais poucos cubanos estão autorizados a entrar. Isso me dava acesso a ar condicionado, papel higiênico e música. Passei pela segurança no Habana Libre, o antigo Hilton, e subi de elevador até o topo, que oferecia lindas vistas de Havana ao crepúsculo.

A boate ainda não estava aberta, mas entrei mesmo assim; apanhei um ensaio em curso. Um roqueiro russo, com uma banda de apoio de mais de 30 músicos, estava passando o som do show que faria mais tarde. O hotel serviu chá e água mineral em garrafas aos músicos, e aproveitei a oportunidade para beber bastante. O sabor adstringente do chá --mediado por muito açúcar- finalmente começou a fazer sentido para mim. Era a bebida dos noviços em um mosteiro, das pessoas famintas e enregeladas. Seu objetivo é matar o apetite.

Havia restos de um lanche. Encontrei apenas um sanduíche e meio de queijo, abandonado em um guardanapo perto da seção de cordas; coloquei o guardanapo no bolso. Caminhei por uma hora, atravessando Havana para voltar ao meu quarto, passando por dezenas de lojas novas --açougues, bares, cafés, pizzarias e outros prolíficos fornecedores de alimentos vendidos apenas em moeda forte. Detive-me por longo tempo, contemplando os imensos peitos de peru expostos na vitrine de uma das lojas.

Quando enfim cheguei ao meu quarto, os sanduíches se haviam desintegrado no meu bolso, em uma massa de migalhas, manteiga e queijo sintético, mas os comi mesmo assim, devagar, prolongando a experiência. Eu sempre havia desdenhado os cubanos que se dispõem a aplaudir o regime em troca de um sanduíche, mas, já no meu segundo dia na ilha, eu me sentia disposto a denunciar Obama em troca de um biscoito.

Na manhã do terceiro dia, caminhei mais de duas horas por Havana em busca de comida, queimando 600 calorias, o equivalente aos sanduíches consumidos um dia antes. Eu havia presumido, erroneamente, que poderia simplesmente comprar a comida de que precisaria para o mês. No entanto, por ser norte-americano, eu era inelegível para o racionamento, nos termos do qual o arroz custa dois centavos de dólar o quilo. Como "cubano" vivendo com salário de US$ 15 ao mês, eu não teria como comprar comida fora do sistema, nas dispendiosas lojas que vendem alimentos em dólares. Os cubanos chamam essas pequenas lojas, que vendem de tudo, de pilhas e carne bovina a óleo de cozinha e fraldas, de "el shopping". Depois de horas de frustração, e incapaz de comprar qualquer comida, voltei de ônibus ao apartamento.

Eu não tinha almoçado. Tentei ler, mas só havia trazido livros sobre dificuldades e sofrimento, como "Les Misérables". Comecei com um panorama mais fácil e bem humorado sobre uma vida solitária e repleta de privações, "Sailing Alone Around the World", de Joshua Slocum, e li 146 páginas do livro em meu primeiro dia. Slocum atravessou o Atlântico em um veleiro comendo pouco mais que biscoitos e postas de carne de peixe voador, acompanhados por café, e fiquei especialmente satisfeito quando, ao chegar ao Pacífico, ele descobriu que havia uma infestação de mariposas em sua reserva de batatas, e teve de lançar as valiosas provisões ao mar. Mas depois disso ele costumava fazer absurdos como preparar um cozido irlandês ou apelar a uma reserva de vitela defumada comprada na Tierra del Fuego. Um navio de passagem chegou a lhe lançar uma garrafa de vinho espanhol, certa vez. Bastardo sortudo.

Se eu continuasse a ler no ritmo daquele primeiro dia, livros seriam mais uma das provisões que eu esgotaria antes do prazo.

Por fim, já que não conseguia mais ficar parado, corri para fora da casa e, seguindo uma dica, encontrei uma casa a alguns quarteirões de distância em cujo portão havia um cartaz com a palavra "café". Na parte traseira da casa havia uma janela gradeada, e eu passei o equivalente a 40 centavos de dólar pela janela. Uma mulher me serviu um pãozinho com apresuntado. Um copo de suco de papaia me custou mais 12 centavos de dólar. Embora eu tentasse comer devagar, o almoço desapareceu em questão de minutos. A esse ritmo --50 centavos de dólar por refeição-, minha reserva de dinheiro seria consumida rapidamente, e saí daquele quintal prometendo a mim mesmo que jantaria quase nada.

De manhã, notícias piores me aguardavam quando tentei me vestir. Descobri que o zíper de minha calça estava enguiçado. Como parte do meu esforço para parecer e me sentir cubano, só havia levado duas calças na bagagem. Calças são um dos muitos itens não alimentícios também distribuídos como parte da ração, e isso em geral quer dizer apenas uma calça por ano. A maioria dos cubanos se vira com apenas um ou dois exemplares de cada peça de roupa. Por isso, o zíper quebrado teria de ser reparado --em janeiro, não havia distribuição de calças. Depois do fracasso de alguns esforços nada competentes para consertar o zíper sozinho, compreendi que teria de gastar dinheiro, ou trocar alguma coisa, pelo trabalho de um alfaiate. Café da manhã: duas xícaras de café açucarado. Total de 75 calorias.

MERCADO No quarto dia, saí para comprar comida, experiência ridícula. Por sorte, o apartamento que aluguei ficava perto do maior e melhor mercado de Havana, que não é nem tão grande e nem tão bom assim. O mercado era um "agro", ou seja, um sacolão.

Há quem compare esses mercados às feirinhas de produtos orgânicos norte-americanas, mas não havia conversa amistosa entre comprador e vendedor, e sim um ruidoso, lotado e barulhento corredor repleto de bancas vendendo todas o mesmo estreito elenco de produtos, a preços aprovados pelo Estado: abacaxis, berinjelas, cenouras, pimenta verde, tomate, cenoura, iúca, alho, bananas-da-terra e não muito mais.

Numa sala separada, havia carne de porco à venda, pilhas trêmulas de carne rosada e pálida, manipulada por homens de mãos nuas. Carne era um produto além de meu alcance, embora houvesse "gordura" à venda por US$ 1 (27 pesos) o quilo.

Esperei na fila para converter todo o meu dinheiro --18 pesos conversíveis, a moeda forte cubana-- em pesos comuns. A pilha de cédulas desgastadas e sujas que resultou da transação equivalia a 400 pesos, ou cerca de US$ 16, pela cotação do mercado negro de Havana.

Enfrentei as multidões e comprei uma berinjela (10 pesos), quatro tomates (15), uma cabeça de alho (2) e algumas cenouras (13). No balcão da padaria, a mulher que atendia me disse que pães só podiam ser vendidos a portadores de cadernetas de racionamento --mas mesmo assim me vendeu cinco pãezinhos, avidamente apanhando cinco pesos de minha mão. Só fui bem tratado pelo vendedor de tomates, que me ofereceu um tomate de brinde.

DOIS PESOS Cuba tem duas moedas, o peso valioso, oficialmente conhecido como CUC, e chamado de cuc, fula, chavita e convertible; ele foi introduzido para eliminar a presença de moeda estrangeira no país e seu valor deveria equivaler ao do dólar norte-americano, em termos gerais, ao menos antes da comissão de 20% cobrada pela conversão.

A outra moeda é o humilde peso comum (conhecido como peso). Os salários dos cubanos são pagos em pesos comuns, e para comprar qualquer coisa importante eles precisam convertê-los em CUC, à taxa de 24 por um. Uma caixinha de macarrão frito no bairro chinês de Havana custava "72/2,5",em pesos comuns e CUC, respectivamente, e o preço nos dois casos representava cerca de 15% da renda mensal média.

Comprei 1,5 quilo de arroz por pouco mais de 10 centavos de dólar, e um saco de feijão vermelho. Com isso, a conta final subiu a catastróficos US$ 2, por uma quantidade de comida que produziria apenas algumas refeições.

Alguns moleques me seguiram até a saída, murmurando "camarão, camarão, camarão", em um esforço para me vender alguma coisa. Do lado de fora, um homem viu que eu me aproximava e subiu numa árvore, descendo com cinco limões que me ofereceu. (Não era um limoeiro, e sim o lugar em que guardava seus produtos de mercado negro.) Cheguei em casa cambaleando com o peso do arroz e dos legumes, com cara, segundo a mulher de meu senhorio, de homem divorciado a ponto de começar vida nova.

DINHEIRO As calorias acumuladas inevitavelmente me levaram a refletir sobre o outro lado da equação: dinheiro. Como eu conseguiria sobreviver dali a duas semanas, se a cada vez que fizesse compras gastasse US$ 2? Eu continuava a fazer tudo a pé, o que me custava 60 minutos apenas para chegar aos hotéis de turistas em Vedado (nos quais não encontrei mais nenhum sanduíche extraviado), ou para encostar o rosto contra as grades de ferro de algum restaurante, assistindo, em companhia de quatro ou cinco cubanos, à banda que tocava mambo para os estrangeiros.

A cada dia eu era abordado por cubanos que, de uma ou outra maneira, me pediam dinheiro. E sabia que minhas escolhas pessoais seriam igualmente desagradáveis, algumas semanas adiante. Será que eu deveria me posicionar em uma esquina e pedir dólares a desconhecidos? Até que ponto uma pessoa precisa estar faminta para se tornar parecida com a adolescente pela qual passei em uma calçada de Vedado naquela tarde; ela trazia um bebê no colo, mas se voltou para mim e disse: "Deseas una chica sucky sucky?"

CAFÉ Se era questão de chupar alguma coisa, eu já sabia exatamente o quê. Apanhei-me contemplando os Ladas que passavam, para ver se as tampas de seus tanques de gasolina tinham trancas. Com uma mangueira e um recipiente plástico, eu poderia obter cinco litros de gasolina e vendê-la por intermédio de um amigo no bairro chinês. Mas todos os carros de Cuba têm trancas nas tampas do tanque de combustível, ou ficam protegidos atrás de portões trancados, à noite. Já havia homens demais, e bem mais durões que eu, envolvidos nesse tipo de trabalho. Cuba não é terra para ladrões amadores.

Eu precisava de café, mas nenhuma loja tinha estoque desse produto essencial. Nem mesmo a loja do meu bairro que opera com moeda forte tinha café, e visitas repetidas aos supermercados que vendem em dólares, em Vedado, e às lojas de diversos hotéis resultaram em zero café, por todo o mês. Certa vez vi um pacote de meio quilo de Cubacafe, a marca de exportação, à venda em um cinema da Velha Havana. Mas custava 64 pesos, e mesmo que a abstinência de café estivesse me matando, eu não tinha como pagar tão caro, ou andar toda aquela distância de novo. Da janela do meu banheiro, percebi que a loja de produtos racionados estava aberta, e fui até lá.

Em uma prateleira, havia cinco sacos de café. Eram da marca doméstica, Hola, um café claro, em contraposição ao pó escuro do Cubacafe, e o preço era de pouco mais de um peso pelo primeiro pacote de 100 gramas, e de cinco pesos por pacote adicional. Havia cerca de uma dúzia de pessoas disputando o pão e o arroz, e por isso pude estudar as duas lousas nas quais a loja anunciava os produtos disponíveis. A maior delas mencionava os produtos básicos --os primeiros dois quilos de arroz custam 25 centavos de peso; cada comprador pode comprar um quilo adicional por 90 centavos de peso. O limite de compras era de três quilos de arroz ao mês, para prevenir que as pessoas comprassem arroz e o revendessem em busca de lucros. A lousa menor informava sobre os "produtos liberados", e continha uma lista menor de coisas como cigarros e outros bens que podem ser adquiridos sem restrições.

Eu disse "el último", e tomei lugar na fila por trás do comprador que antes era o último. Logo chegou uma mulher com uma sacola plástica nas mãos e disse "el último", e se tornou a última da fila.

O homem que me atendeu sorria mas parecia agitado. Era alto, negro, e usava uma barba rala, mal cuidada. Quando pedi café, fez um gesto negativo com as mãos. Não era preciso explicar: um estrangeiro não tem direito a ração, e de qualquer jeito não havia café. Tentei ganhar tempo, esticando uma conversa à qual ele só respondia com gestos. Perguntei se não havia café em parte alguma, e disse que havia procurado por toda a cidade, sem encontrar. Acrescentei que realmente gostava de café. Sabe?

"Os cubanos bebem muito café", ele por fim respondeu. Tendo estabelecido uma conexão, eu acenei com a cabeça e perguntei se não seria possível conseguir café em algum lugar. "Não", ele respondeu.

Sério? Talvez alguém, em algum lugar? Nem precisa ser muito. Ele meneou a cabeça; o gesto do talvez.

Quem?

"A Sra. __", respondeu.

E onde posso encontrá-la?

Como se estivesse guiando um cego, ele saiu de trás do balcão, me apanhou pelo braço e me conduziu até a rua. Caminhamos apenas 10 passos, sem mudar de calçada. Ele entrou na primeira porta, e distraidamente apertou o traseiro de uma mulher que estava passando. ("Ei!", ela exclamou, furiosa. "Quem você acha que é?") Paramos na porta de um apartamento localizado imediatamente atrás da loja de produtos racionados. Ele bateu. A porta foi aberta por uma mulher com um bebê no colo.

"Café", ele disse.

Paguei com uma nota de 20 pesos. Ela me deu um pacote de Hola e cinco pesos de troco.

"Só isso?" Era três vezes mais que o preço cobrado na loja, a alguns passos de distância, mas descobri mais tarde que os cubanos também têm de pagar o mesmo ágio.

O homem fez que sim com a cabeça. Seu nome era Jesús.

Voltamos à loja. "Pão?", perguntei. Ele perguntou ao seu chefe, que respondeu com um "não" em volume alto o bastante para que a loja toda ouvisse.

Perguntei de novo. Ele repetiu a pergunta ao chefe. Não ouvi um novo não. Passei-lhe a nota de cinco pesos e recebi cinco pãezinhos.

Depois disso, pude comprar tudo que queria. Em companhia de Jesús, ninguém perguntava coisa alguma. Ninguém me pediu para ver minha caderneta de racionamento, nas compras dos itens básicos, e pelo resto do mês paguei o mesmo preço que os cubanos, pela mesma merda de comida.

PEDESTRE No sexto dia, fui a pé aos subúrbios, saindo de meu bairro, Plaza, e passando por Vedado rumo ao oeste, e pelo imenso cemitério de Colón, que abriga os mausoléus e os anjos alados das famílias ricas do passado cubano, bem como os sepulcros de concreto da classe média. Um jovem chamado Andy caminhou comigo por algum tempo, entusiasmado por aprender mais sobre os Estados Unidos. ("todos queremos viver lá"); ele me convidou para conhecer a barbearia de um amigo. Mais tarde, de novo sozinho, passei por alguns cafés, e estudei com atenção todas as pequenas barracas. Uma delas oferecia "pão com hambúrguer" por 10 pesos, o menor preço que havia visto até então. Mas ainda assim seria um gasto alto demais para aquele dia.

Entrei para o mundo dos pedestres de longo percurso, e percorri uma dúzia de avenidas e mais de 20 ruas ao longo de uma hora; encontrei a pequena ponte sobre o rio Almendares que separa Havana propriamente dita da Grande Havana. Os exilados costumam falar com nostalgia sobre o Almendares, cujo percurso tortuoso é marcado por vinhas e imensas árvores, mas sempre o vi como deprimente ou até mesmo um tanto assustador: uma fronteira úmida e lodosa entre a cidade decadente e as grandes (e dispendiosas) casas dos subúrbios a oeste. De uma ponte baixa perto do oceano, consegui ver o que restava da paisagem marinha: uma dúzia de cascos de navios naufragados, alguns barcos dilapidados usados como moradia, e galpões abandonados que no passado serviam como abrigos de embarcações. Só havia dois barcos em movimento: uma lancha da polícia e um pequeno iate sem mastros de cerca de seis metros de comprimento, aparentemente incapaz de chegar à Flórida.

Virei à direita na Miramar, passando por algumas das maiores mansões de Cuba e diversas embaixadas. É a região "dos endinheirados, das empresas estrangeiras e das pessoas com linhagem", diz uma prostituta no romance "Havana Babylon". "Viver em Miramar, mesmo que em um vaso sanitário, é sinal de distinção".

COMIDA ROUBADA Fui perseguido por duas mulheres que acenavam com uma lata imensa de molho de tomate e gritavam "15 pesos! É para os nossos filhos!" Não parei, mas depois percebi que havia cometido um erro. Ao preço de 15 pesos por uma lata em tamanho restaurante, o molho de tomate seria uma pechincha. Comida roubada é a mais barata. E nada poderia ser mais normal em Cuba do que caminhar carregando uma lata gigante de alguma coisa.

Poucos quarteirões adiante, cheguei por acaso ao Museu do Ministério do Interior. A equipe era formada por mulheres com o uniforme do Minint, com ombreiras verdes e saias na altura do joelho. Informaram-me que o ingresso custava dois CUC. Eu não tinha como pagar, é claro. E quanto custa o ingresso para os cubanos? Pergunta errada. Ninguém pechincha com o Minint.

Eu disse que voltaria outro dia, mas fiz hora no saguão de entrada, que serve como local para exposição: uma bancada de metralhadoras, fotos da grande sede do Minint, perto do meu apartamento, e citações em letras grandes de frases de Raúl Castro e outras autoridades, com elogios aos patriotas do Minint por protegerem o país.

Uma das mulheres, que usava o cabelo preso em um coque severo, estava me observando. Embora eu não tivesse fotografado nada e nem tomado notas, ela parecia astuta.

"Quem é você?", ela perguntou.

Eu sorri e comecei a caminhar para a saída.

"Você é jornalista?", ela quis saber.

"Turista", disse, olhando por sobre os ombros e caminhando apressado para a saída.

"Você tem credencial para vir aqui?", ela me perguntou, de longe.

Continuei a caminhar rumo oeste, por mais meia hora. Estava coberto em suor quando cheguei à casa de Elizardo Sánchez, um dos alvos do Minint.

PROGRESSO Quando contei a Sánchez que havia caminhado até sua casa, como parte de um plano para passar 30 dias vivendo e comendo como um cubano, ele me mostrou sua caderneta.

"O nome disso é caderneta de suprimentos", disse ele, "mas é um sistema de racionamento, o mais duradouro do mundo. Os soviéticos não tiveram racionamento por tanto tempo quanto os cubanos. Nem mesmo o racionamento chinês durou tanto." A escassez surgiu logo depois da revolução; o sistema para a distribuição controlada de bens básicos já estava em funcionamento em 1962.

Depois de 50 anos de Progresso, o país está falido, na prática. Em 2009, ervilhas e batatas foram retiradas da ração e os almoços baratos nos locais de trabalho foram reduzidos às dimensões de lanches rápidos.

"Havia rumores sobre retirar coisas da ração, ou eliminar o sistema de vez", disse Sánchez, sobre boatos que cativam os cubanos. Mas esses rumores desapareceram em 1º de janeiro de 2010, quando novas libretas foram distribuídas, a exemplo de todos os outros anos.

ARTES DOMÉSTICAS Sánchez mantém alegre ignorância quanto às artes domésticas. "Dois quilos de arroz a 25 centavos", ele disse, tentando recordar sua ração mensal. "Acho. E mais meio quilo a 90 centavos. Acho. Vamos perguntar às mulheres. Quanto a isso, elas dominam".

Ele chamou a mulher com quem vive, Barbara. Além de trabalhar como advogada em defesa de prisioneiros políticos, ela cozinha e ajuda sua mãe e uma sócia a manter uma padaria na cozinha de sua casa. Elas compraram uma saca de trigo "à esquerda", o que significa que se trata de farinha roubada, comprada de um contato. O custo foi de 30 pesos. Com isso e uma porção de carne moída comprada clandestinamente no açougue, elas fazem pequenas empanadas vendidas a três pesos a unidade, ou cerca de oito por US$ 1. É assim que Cuba se ajeita: as lojas de produtos racionados têm moradores dos bairros como funcionários; eles roubam ingredientes e os vendem aos vizinhos, que produzem alguma coisa com eles e revendem a esses e outros vizinhos. Oito empanadas seriam um bom almoço, mas US$ 1 era preço fora do meu orçamento. Barbara me deu duas delas, e eu as demoli com uma mordida.

Ela ouviu com expressão neutra, quando expliquei minha tentativa de viver dentro dos limites do racionamento. "É um bom plano de dieta", comentou. Outro dissidente que estava visitando a casa, Richard Rosello, entrou na conversa. Ele tem um caderno no qual anota os preços dos produtos nos mercados paralelos, também conhecidos como mercados clandestinos ou mercados mala preta. "Um problema é a comida", disse Rosello. "Mas também temos o problema de como pagar a conta de luz, o gás, o aluguel. O preço da eletricidade está de quatro a sete vezes mais alto que no passado". Elizardo paga cerca de 150 pesos por mês de eletricidade --um quarto do salário médio cubano.

Como sobreviver, portanto? "Os cubanos inventam alguma coisa", disse Barbara. Um dos truques é vender os bens racionados, comprados a baixo preço, pelo valor de mercado. Foi assim que enfim consegui comprar minha porção de 10 ovos. Sem a caderneta de racionamento, não tinha como comprá-los legalmente. Mas ao anoitecer do dia anterior, eu havia esperado perto da loja de ovos local, onde troquei um olhar com uma mulher idosa que estava saindo com 30 ovos --um mês de suprimento para três pessoas. Ela os comprou a 1,5 peso por unidade, e me vendeu 10 deles por dois pesos cada. Voltou à loja e imediatamente comprou mais ovos, lucrando três ovos e alguma sobra de dinheiro com a transação. Os dois caminhamos de volta para nossas casas cuidadosamente, com medo de desperdiçar toda a ração mensal de proteína por conta de um único tropeço.

Barbara aproveitou para apontar um erro terrível em meu plano. Nos últimos anos, a maioria das fontes fora de Cuba reporta que a ração inclui 2,5 quilos de feijão preto. Mas há anos isso não é verdade. A porção do mês era de apenas 200 gramas.

Dez mil calorias haviam desaparecido do meu mês em um piscar de olhos.

Para atenuar o golpe, Barbara decidiu me convidar para um "típico" almoço cubano. O primeiro prato é arroz --a dois ou 2,5 quilos por mês, esse grão é o alimento básico da dieta cubana. A porção diária de arroz reservada a cada cidadão poderia ser guardada em uma lata de leite condensado. Trata-se de arroz vietnamita de baixa qualidade, conhecido como "creole", "feio" ou "microjet", este último termo uma referência zombeteira a um dos planos de Fidel para irrigar safras agrícolas por meio de um sistema de aspersão por gotas. O almoço típico inclui meia lata de arroz (a outra metade fica para o jantar); era uma massa grudenta, mas minha fome ajudou a considerá-lo saboroso.

Depois, uma terrina de sopa de feijão. Cada terrina continha apenas alguns feijões, mas o caldo era rico, reforçado com ossos de boi. ("20 pesos o quilo, para os ossos", disse Barbara. "Muita gente não tem como comprá-los".)

Eu não comia carne bovina havia seis dias.

Depois, ela me deu meia batata doce. "Muito melhor que a batata comum, em termos de nutrição!", disse Elizardo, de algum lugar do corredor.
Também me serviram um ovo frito, ainda que Elizardo tenha apontado, em novo grito, que "se você comer um ovo hoje, não poderá comer amanhã". Ou depois de amanhã.

O ovo caiu muito bem. Dadas as dimensões reduzidas do meu estômago, a refeição toda, incluindo as duas pequenas empanadas, pareceu perfeitamente adequada. Mastiguei os ossos, extraindo pequenos pedaços de carne. Era minha melhor refeição em alguns dias. Barbara guardou cuidadosamente o óleo da frigideira. Richard, com seu caderninho de preços, expôs a matemática dessa forma de alimentação.

Uma "cesta mensal" de comida racionada (que dura apenas 12 dias) custa 12 pesos por pessoa, de acordo com as contas do governo. Nos 10 dias seguintes de cada mês, as pessoas precisam comprar o mesmo volume de comida por 220 pesos, nos diversos mercados livres, paralelos e negros. E ainda assim isso só conduz o cidadão ao 22º dia do mês. As despesas mensais envolvidas em manter o mesmo padrão de alimentação seriam de 450 pesos --o que supera a renda de milhões de cubanos, e isso sem incluir roupas, transportes ou produtos para a casa.

Ninguém mais consegue comprar pratos e xícaras. Eles são roubados de empresas estatais, quando possível, e vendidos no mercado negro. Quanto a roupas, é preciso comprá-las usadas, em mercados de troca conhecidos como troppings, um trocadilho com o apelido das lojas que vendem em moeda forte. Pessoas cuja comida acaba vasculham latas de lixo ou se tornam alcoólatras para atenuar a dor, disse Richard.

Elizardo voltou à sala. "Não estamos falando do Haiti, ou do Sudão", disse. "As pessoas não caem nas ruas, mortas devido à fome. Por quê? Porque o governo garante dois ou 2,5 quilos de açúcar, que tem alto teor calórico, e uma porção diária de pão, e arroz suficiente. O problema em Cuba não é a comida ou as roupas. É a completa falta de liberdade cívica, e portanto de liberdade econômica, o que é exatamente o motivo para que exista a libreta, para começar".

Como no resto do mundo, o problema da comida na verdade é um problema de acesso, de dinheiro. E o problema de dinheiro é um problema político.

No sétimo dia, eu repousei. Deitado na cama com Victor Hugo, perdido na contemplação daquele teste da bondade humana, era fácil esquecer por uma hora que minhas gengivas doíam, que minha garganta estava repleta de saliva.

Havana está mudando, como as cidades costumam. A região central foi colocada sob o controle de Eusebio Leal Spengler, o historiador da cidade. Leal recebeu prioridade especial para materiais de construção, mão de obra, caminhões, ferramentas, combustível, encanamentos e até mesmo torneiras e vasos sanitários. Mas não é por isso que as pessoas o amam. Em lugar disso, explicou meu amigo, o acesso "privilegiado" a suprimentos significa simplesmente que há mais para roubar.

Uma amiga estava reformando a casa na esperança de alugar aposentos para estrangeiros, e passados alguns minutos ouvimos um caminhão freando na rua, e o estrondo de uma grande buzina. O marido dela me fez um sinal apressado, e abrimos juntos a porta da frente. Havia um caminhão parado à porta. Em 60 segundos, três pessoas, entre as quais eu, descarregaram 250 quilos de sacos de cimento Portland. O marido passou algum dinheiro ao motorista, notas amarfanhadas, e o caminhão partiu imediatamente.

O caminhoneiro havia faturado com material de construção destinado a alguma obra. Passamos meia hora transferindo o cimento a um canto escuro de um quarto dos fundos, recobrindo os sacos com uma lona, porque as letras da embalagem eram impressas em azul, o que configura propriedade do Estado. Os sacos com letras verdes são destinados à construção de escolas. Os sacos reservados ao uso dos cidadãos comuns vêm impressos em vermelho, e custam US$ 6 a unidade, nas lojas do Estado.

Ao contrário da maioria dos funcionários cubanos, Leal de fato fez diferença na vida dos cidadãos. Reconstruiu os velhos hotéis; meus amigos roubaram 250 quilos de cimento para construir seu novo bangalô para turistas. Restaurou um museu, e meus amigos roubaram telhas de zinco para os telhados. Enviou caminhões carregados de madeira ao bairro, e metade da carga desapareceu.

Tudo é propriedade do Estado. As pessoas se apoderam de tudo. Um sistema de racionamento operando em modo reverso.

Ajudar no roubo do cimento foi meu primeiro grande sucesso. Por meia hora de trabalho, recebi um prato imenso de arroz com feijão vermelho, acompanhado por uma banana e uma porção de picadillo --pelo menos 800 calorias.

SEGUNDA SEMANA A segunda semana foi mais fácil. As duas pequenas prateleiras do apartamento estavam bem abastecidas de arroz e feijão, algumas batatas doces compradas por 1,70 peso o quilo, e minha garrafa de uísque contrabandeado, ainda pela metade. Eu tinha nove ovos, depois oito, e depois sete, ainda que a geladeira fora isso estivesse vazia.

Deixei de lado luxos como os sanduíches (ou sanduíche --comprei só um, e a despesa ainda me causava pesadelos). No décimo dia, constatei que me restavam 100 pesos. Como no caso dos ovos, eu era capaz de imaginar uma lenta e cuidadosa redução ao longo dos próximos 20 dias, mas tanto meu orçamento quanto minha dieta podiam ser arruinados caso eu tropeçasse e deixasse uma gema cair no chão.

Tudo dependia de quanto o arroz duraria. Já que só me restavam cinco pesos por dia para gastar, eu não poderia mais fazer compras grandes durante a minha estadia. Aprendi a controlar o apetite e a passar sem me deter pelas filas de cubanos que adquirem pequenas bolas de farinha frita a um peso. Meu único luxo foi uma barra de manteiga de amendoim endurecida, produzida artesanalmente por agricultores, que comprei por cinco pesos em um agro.

Com cuidado, essa barra de tamanho equivalente a seis colherinhas de amendoim moído rusticamente e pesadamente açucarado podia durar até dois dias. É normal ver os campesinos mais pobres mascando essas barras, que eles embrulham cuidadosamente e guardam depois de cada mordida.

TRABALHO Outra coisa que eu tinha em comum com a maioria dos cubanos é que absolutamente não trabalhei durante meus 30 dias. O que significa que trabalhei muito e com grande frequência em meus projetos pessoais.

Carreguei cimento e removi cascalho por dinheiro, e escrevi bastante, mas não se tratava de trabalho para o Estado, o tipo de trabalho computado nas contas da Cuba oficial, onde mais de 90% das pessoas são funcionários do Estado.

Por que procurar emprego? Ninguém leva seu trabalho a sério, e a piada mais velha de Havana continua a ser a melhor: "Eles fingem que nos pagam, nós fingimos que trabalhamos".

Os cubanos que ignoram convocações oficiais ao trabalho podem ser acusados de serem "elementos perigosos", um delito vago e passível de pena de até quatro anos de prisão. Ser um elemento perigoso é um "pré-crime", disse Elizardo Sánchez --como se a polícia tentasse cortar pela raiz as atitudes negativas antes que a pessoa tenha a oportunidade de cometer um crime real.

Há campanhas regulares para deter os jovens que tentem evitar o trabalho estatal e o serviço militar, e este ano elas se provaram especialmente vigorosas, um sinal de nervosismo. "Não é fácil se esconder do governo", disse Sánchez. "Os meninos precisam se registrar para futuro serviço militar aos 15 anos de idade. Às vezes tentam mudar de endereço, mas não funciona. Para um jovem, é difícil permanecer escondido. Cuba é uma sociedade de arquivos. Da primeira série em diante, a polícia para crianças nas ruas e lhes solicita documentos de identidade. Podem fazer contato pelo rádio e pegar a ficha completa".

CARAMELO Com isso, eu tinha tempo de sobra. Naquela noite, ouvi música ao longe e encontrei uma série de palcos montados ao longo da rua 23, e assisti a um bom show de rock sob a luz da lua. Sentei-me no pedestal de alguma obscuridade heróica --uma mãe estendo os braços para entregar o filho à batalha. Depois de algum tempo, uma menininha de sete ou oito anos se aproximou e sentou perto de mim.

"Caramelo?", disse. (Doce?)

"Não tenho".

"Nenhum?"

"Nada".

"Mas nenhum, mesmo?"

"Não".

Então vieram as perguntas usuais: de onde você vem, onde mora, por que está por aqui. E de novo: "Não tem dinheiro nenhum?"

"Não tenho".

"Mas os estrangeiros sempre têm muito dinheiro".

"Sim, tenho dinheiro no meu pais. Aqui, vivo como se fosse cubano".
"Me dá um peso?"

Não posso. A verdade, pequena, é que estou no meio de um jogo. Estou fingindo ser pobre. Estou vivendo como seus pais, por algum tempo. Não como há nove horas. Nos 11 últimos dias, comi 12 mil calorias a menos do que minha dieta normal disporia. Meu dentes doem muito.

Ou, traduzido para o espanhol: "Não".

MIL CALORIAS Por fim, voltei para casa, onde uma celebração muito desejada me aguardava. Era sexta-feira, a noite da semana em que eu comeria carne. Ainda que o dia até aquele momento tivesse sido um de meus piores --apenas mil calorias até as 21h, e longas caminhadas-, estava determinado a compensar tudo aquilo com um banquete. Preparei arroz, e cozinhei uma batata doce na panela de pressão --que os cubanos apelidam de "aquela que Fidel nos deu", porque foram as panelas distribuídas como parte de um esquema de economia de energia. Também tomei uma preciosa dose de uísque com gelo (250 calorias), tudo isso acompanhado por arroz e feijão que sobraram do dia anterior. Por necessidade, servi apenas porções pequenas.

Do refrigerador, tirei minha proteína: um dos quatro filés de frango empanados a que tinha direito para o mês. Acendi o fogão com cuidado, e fritei o filé até que sua crosta ficasse escura, ainda que ao servi-lo o interior estivesse frio e úmido. Não era carne de frango. Não era nem mesmo a "mistura de frango" que a embalagem dizia ser. Os principais ingredientes mencionados eram pasta de soja e trigo. Uma inspeção mais cuidadosa revelou que o teor de carne de frango era zero. Eu estava comendo uma esponja empanada, com apenas 180 calorias. Ah, meu reino por um McNugget.

Por fim, cruzei a barreira das duas mil calorias pela primeira vez em 10 dias --por pouco. Descontando os muitos quilômetros de caminhadas e alguns minutos de dança, retornei à familiar referência das 1,7 mil calorias. Mas pelo menos estava de barriga cheia quando fui dormir.

Ou era o que eu imaginava. Depois de duas horas de sono, acordei com insônia, a companheira da fome. Fiquei na cama da uma da manhã até o alvorecer, cinco horas de briga contra mosquitos e de leitura de Victor Hugo e Alexandre Dumas père.

Ainda assim, não é possível comparar minha situação a uma fome real. Como aponta Hugo: "Por trás da arte de viver com muito pouco, está a arte de viver com nada". Mergulhei nos milhares de páginas da França do século 19, em dois escritores que descrevem revoluções, marchas forçadas e fome real. "Quando a pessoa não comeu", escreve Hugo, "a sensação é muito estranha... Ela rumina aquela coisa inexprimível, a amargura. Uma coisa horrível, que envolve dias sem pão e noites sem sono". E assim chegou a aurora, minha 12ª.

TELEFONEMA Repentinamente, sorte e felicidade. Na noite seguinte, eu estava sentado à porta do meu edifício, observando a rua, quando meu vizinho se aproximou vindo do beco, trazendo um telefone. Um telefonema. Para mim.

Era a amiga de um amigo, em visita a Cuba com seu namorado. Os dois eram claramente norte-americanos, do tipo "que bom que nós existimos", e eu imediatamente farejei a possibilidade de uma refeição grátis. O casal havia chegado a Havana e, porque não conheciam a cidade e nem falavam espanhol, me convidaram para jantar.

Saímos a passeio pelas ruas de Vedado, e eu evitei cuidadosamente pedir comida, tentando parecer estóico. Jantamos em um restaurante para turistas, e pela primeira vez desde minha chegada comi carne de porco.

Na tarde seguinte, voltamos a nos encontrar. Eu os levei a uma cerimônia de iniciação na Santería, uma hora de tambores e calor sufocante em um pequeno apartamento, durante a qual pelo menos três pessoas foram possuídas por espíritos. Depois, recebi novo convite para jantar em um restaurante elegante.

Mais carne de porco!

Os cubanos preparam lechón, um inocente leitãozinho, marinado em um molho de alho e laranjas azedas, e cozinham o prato por muitas horas; a carne fica macia a ponto de poder ser comida com a colher. Para acompanhar a reluzente proteína e gordura, serviram-nos arroz com feijão, exatamente aquilo que eu comia duas vezes por dia em meu apartamento. A porção servida equivalia a quatro refeições para mim, expliquei.
"Desculpe", disse o namorado enquanto se servia, "mas vou comer sua quinta-feira".

Como as centenas de cubanos a quem servi de anfitrião ao longo dos anos, tive de trabalhar pela minha comida. Falei sobre a história dos cultos afrocubanos. Sobre a história de edifícios que nunca visto. Sobre a ilha vista pelos olhos de Capone, Lansky, Churchill e Hemingway. Fiz piadas sobre o socialismo. Discorri sobre a arte do racionamento. O segredo do daiquiri. Nas duas noites, comi carne de porco, acompanhada por arroz e feijão e um par de coquetéis.

A despeito da carne, não registrei grande avanço nas calorias consumidas --apenas 2,1 mil ao dia, ante minhas 1,7 mil usuais. Mas as refeições ajudaram meu bem estar psicológico. Eu havia conseguido uma folga, como que um feriado, depois da ansiedade causada pela redução de meu estoque de alimentos básicos.

LIXO Na manhã seguinte, encontrei uma mulher vasculhando meu lixo. Ela estava em busca de garrafas de vidro ou qualquer outra coisa de valor. Dei-lhe minhas calças de zíper enguiçado. Ela tinha 84 anos, a idade de minha mãe, e vivia com uma aposentadoria de 212 pesos ao mês, ou pouco mais de US$ 8. Vasculhava latas de lixo em busca de produtos aproveitáveis --para fúria de minha faxineira, que considerava ter direito ao conteúdo das latas- e trabalhava como colera, ou profissional de espera em filas, para cinco famílias moradoras do quarteirão.

Ela levava suas cadernetas de racionamento à bodega, retirava e entregava os mantimentos a elas, e por esse trabalho recebia cerca de 133 pesos. Estava usando uma bombinha de asma que custava 20 pesos, ou cerca de 75 centavos de dólar, mas apenas a primeira dose era comprada a esse preço; se a pessoa precisasse de mais de uma ao mês, teria de recorrer ao mercado negro, pagando alguns dólares por unidade.

Para agradecer pelas minhas calças, ela informou que a padaria "livre" tinha estoque. Estava falando da padaria não racionada, onde qualquer pessoa está autorizada a comprar pão. O preço é quatro vezes mais alto que o das padarias racionadas, mas há muito mais pão. Apanhei uma sacola plástica e caminhei oito quarteirões (passando por três padarias racionadas que estavam fechadas) para comprar um pão inteiro por 10 pesos.

No meu caminho de volta, uma mulher que ia na direção oposta perguntou: "A padaria tem pão?", e acelerou o passo, diante da resposta.

Depois, quando passei por dois homens que jogavam xadrez sob uma figueira, um deles fez a mesma pergunta.

"Sim, há pão", respondi.

Os dois guardaram as peças, enrolaram o tabuleiro e se foram na direção da padaria.
Meu café da manhã havia sido uma pequena e dura banana da terra, comprada de um homem em um beco. Com café e açúcar, ela representava menos de 200 calorias. O almoço consistiu de um ovo acompanhado por duas fatias do pão que eu tinha comprado, ou seja, mais 380 calorias.

Eu tinha US$ 3 na carteira, e mais 17 dias para sobreviver.

Um erro catastrófico. Andei a tarde toda, e o teor de açúcar no meu sangue estava baixo. Quando passei por um beco curto no qual havia um cartaz com a palavra "pizza", parei e pedi uma. A pizza básica --um disco de 15 centímetros de massa tenuamente recoberto de ketchup e um pouquinho de queijo- custa 10 pesos, mas cedi a um impulso e pedi uma especial, com chorizo. Assim, meu lanche custaria 15 pesos.

No meu apartamento, coloquei a pizza na mesa e a contemplei, horrorizado. Os 15 pesos equivaliam a horríveis US$ 0,60, e estourariam meu orçamento. Pelo mesmo montante, eu poderia ter comprado quilos de arroz.

Contemplando a minúscula pizza, menor que uma fatia de pizza norte-americana, comecei a tremer e tive de me sentar. De repente, comecei a chorar. Por bons 10 minutos, solucei e me amaldiçoei. Imbecil! Tolo! Idiota!

TENSÃO Eu havia gasto um quinto do dinheiro que me restava por impulso, e agora só tinha 64 pesos para viver pelos próximos 17 dias. O que me aconteceria? O que eu comeria quando meus feijões, cujo estoque já estava baixo, acabassem? E se eu cometesse outro erro? E se fosse roubado? Como chegaria ao aeroporto no último dia se não tivesse nem mesmo alguns centavos para pagar o ônibus?

Chorar libera não só tensão e medo como endorfinas. A pizza e eu esfriamos juntos. Comi com cuidado, usando garfo e faca, e bebendo água gelada. A "refeição" durou menos de dois minutos. Foi o ponto mais baixo do meu mês.

Algum tempo depois, bateram à minha porta. A filha de um dos vizinhos estava do lado de fora. "Patri!", ela gritou. "Patri!"

Abri a porta e ela me entregou uma caixa de sapatos. Era pesada, e estava envolta em fita adesiva. Um visitante havia passado por lá --outro norte-americano que estava em visita a Cuba-, e quando a abri encontrei um bilhete da minha mulher e do meu filho pequeno, e três dúzias de biscoitos de chá feitos em casa.

Comi 10 deles. Da emboscada à fuga. Das lágrimas à paz. Da danação à alegria. Racionei o restante dos biscoitos: cinco ao dia até que o estoque se reduzisse, e depois dois ao dia; por fim, desmontei a caixa com uma faca e comi as migalhas que encontrei nos cantos.

ESPELHO Uma vez por dia, eu cedia à vaidade e me olhava no espelho sem camisa, vendo um homem que não contemplava há 15 anos. Eu havia perdido primeiro dois, depois três, por fim quatro quilos. Mas estômago e mente se ajustaram com facilidade assustadora.

Minha primeira semana havia sido dolorosa e acompanhada por uma fome mortal. A segunda, dolorosa e apenas moderadamente faminta. Agora, na terceira, ainda que estivesse comendo menos que nunca, me sentia tranquilo, tanto física quanto mentalmente.
O dia havia sido o pior da viagem até aquele momento, com apenas 1,2 mil calorias consumidas, o equivalente ao que os prisioneiros norte-americanos recebiam dos japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.
Voltei à casa dos meus amigos ladrões de cimento e, depois de uma longa espera, a mulher me cozinhou um jantar generoso, rolando de rir da minha "experiência". Ela fritou (em óleo roubado de uma escola) uma porção de carne de frango moída (comprada de um amigo que a roubara), e serviu com arroz "feio" da ração e uma pequena beterraba. Depois da refeição, ela até me fez gemada, mas em porção cubana --um golinho, em uma xícara pequena de café. Também comi algumas colheradas de papaia (um peso a porção, em um mercado barato que ela recomendou), cozido com xarope de açúcar.

"É impossível", ela disse, sobre minha tentativa de ser oficialmente cubano. Para sobreviver, todo mundo precisa de "algo extra", alguma renda excluída do sistema. O marido dela alugava um quarto para um turista sexual norueguês. A vizinha vendia almoços a trabalhadores de uma empresa cujo refeitório fora fechado recentemente. A mãe dela caminhava pelas ruas com uma garrafa térmica e xícara, vendendo cafezinhos. Uma vizinha na rua ao lado roubava óleo de cozinha e revendia por 20 pesos a garrafa de meio litro. Outra vizinha roubava carne de frango e a vendia por 33 pesos o quilo. ("Boa qualidade, preço muito bom, você devia comprar", ela aconselhou.)

A refeição que ela serviu foi a única que comi naquela dia, e as calorias consumidas foram compensadas por uma espantosa caminhada não através de Havana mas em torno da cidade, um circuito extenso pelas ruas carcomidas, passando por grandes hotéis, casas encardidas, pessoas dormindo sem teto e sentadas em caixotes, sem descanso, as horas da manhã, tarde e noitinha girando, pelas largas avenidas e becos estreitos, passando por Plaza, Vedado, Centro, Velha Havana e chegando a Cerro antes de voltar a Plaza de novo, três, seis, 10, 13 quilômetros, passando pela estação rodoviária, estádio de futebol, os sapatos furados de tanto andar, até que voltei para dormir.

Meus pés estavam doloridos. Mas meu estômago não tinha queixas.

Eu costumava dizer que, em Cuba, 10% de tudo era roubado, para revenda ou reaproveitamento. Agora creio que a proporção real seja de 50%. O crime é o sistema.
Na calçada diante da minha loja de produtos racionados, um dia, vi um adolescente com cabelo cortado em estilo punk, sentado em seu reluzente Mitsubishi Lancer, de motor ligado, e brincando com o que achei ser um iPhone. "Não é um iPhone", ele me corrigiu. "É um iPod Touch".

O aparelho é vendido por US$ 200, ou 5,3 mil pesos. Algumas pessoas têm dinheiro, mesmo aqui. A única certeza é a de que não ganham esse dinheiro de nenhuma maneira legítima.

Caminhei até o amplo hotel Riviera, cujo salão de jogos de azar foi fechado devido à nacionalização apenas um ano depois de inaugurado. (O proprietário, Meyer Lanski, disse, famosamente, que "tive azar nos dados".) Pesei-me na balança da academia de ginástica: 90 quilos. Em 18 dias, eu havia perdido quase cinco quilos, um ritmo de redução de peso que teria resultado em hospitalização nos Estados Unidos.

A caminho de casa, uma mulher perguntou onde passava o ônibus P2. Atrapalhei-me para responder. "Ah, achei que você fosse cubano", ela disse. Mude de peso, mude de nacionalidade. Ri de seu engano e continuei andando, mas não demorou um minuto para que ela me seguisse.

"Ei, me leve para almoçar", ela disse. "Onde você quiser". Fiz que não com a cabeça. "Almoço", ela disse, enquanto eu me afastava. "Jantar. Como preferir".

Em casa, abri a geladeira e contei os cinco ovos que me restavam.

Como a mulher em busca do P2, eu havia me tornado direto. Caminhei três quilômetros até Cerro, um bairro perigoso. Passei por um beco no qual restos enferrujados de caminhões repousavam, por um estádio esportivo derruído, por um parque de vegetação descuidada, por um bosque, e cheguei à porta de entrada do Ministério do Interior. É o famoso edifício com uma estátua gigante de Che Guevara. Dois soldados de boinas vermelhas estavam de guarda.

O edifício do Minint costuma ser fotografado o tempo todo, devido à escultura de Che que o tornou famoso, mas ninguém quer entrar. Ignorei os guardas e continuei caminhando pelo asfalto rachado da imensa Plaza da Revolución. Do lado oposto, caminhando com cuidado, passei pela entrada de um edifício baixo mas colossal, posicionado ao final de uma larga esplanada. Era o Conselho de Estado, o núcleo do sistema revolucionário; nele, Raúl Castro comanda o trabalho dos principais funcionários cubanos. Soldados das forças especiais armados de pistolas e cassetetes protegem a entrada; o governo se sente seguro a ponto de ter apenas um par de pistolas me separando de Raúl.

Caminhando a esmo, e ocasionalmente em círculos, passei por Cerro e outros bairros até encontrar a casa de Oswaldo Payá, um dos mais importantes dissidentes de Cuba. Falamos de política, cultura, neoliberalismo e direitos humanos, mas o que me chamou a atenção foi sua situação econômica pessoal. "Meu salário é de 495 pesos por mês", disse. "Isso equivale a cerca de 10 refeições para quatro ou cinco pessoas. Os salários não cobrem um quinto de nossas necessidades alimentícias.

Um sanduíche de 10 pesos e um refrigerante de um peso consomem metade do meu salário diário. Se somarmos a despesa de ir ao trabalho e voltar para casa, e os meus três filhos que estão na escola, precisamos de 10 a 12 pesos por dia para transporte --ou seja, 50% a 60% da renda familiar total". Ele sobrevive graças a um irmão que vive na Espanha e envia dinheiro.

"O paradoxo é que os trabalhadores são as pessoas mais pobres de Cuba. Vivemos todos pior que o sujeito que vende cachorro quente no posto de gasolina da esquina" (uma empresa autorizada a vender em moeda forte). A maioria das pessoas não tem CUC, e voltam para casa famintas a cada noite.

"Não digo que tudo em Cuba seja ruim, ou terrível. Temos esquemas de distribuição para alimentar os pobres, para conceder benefícios. Mas essa é outra forma de dominação, mantendo as pessoas pobres para sempre. Se minhas mãos estivessem livres, eu abriria um negócio e me sustentaria sozinho".

Perguntei-lhe onde alguém poderia conseguir dinheiro para um iPod Touch ou qualquer das outras engenhocas, produtos de luxo, carros moderno, aparelhos de som e roupas elegantes que são cada vez mais comuns em Cuba. "Viver de salário equivale a ser pobre", disse. "Todos precisam roubar o sistema para sobreviver. É a corrupção tolerada da sobrevivência". Uma minúscula classe média emergiu: "Empresários, quase todos antigos funcionários do governo, pessoas que operam restaurantes. São todos ligados ao regime.

A maioria ex-militares ou funcionários do Ministério do Exterior, e assim por diante. Pessoas bem conectadas. Estão dentro do sistema. São intocáveis". E existe um terceiro grupo, incrivelmente pequeno e "indescritivelmente" próspero, dentro da liderança, "com casas grandes, viagens ao exterior, tudo. O povo cubano sabe que esse grupo existe, mas ninguém jamais os vê, não há como".

Ao longo de uma hora de conversa, sua mulher, Ofelia, empregada doméstica e também ativista dos direitos humanos, me serviu um copo de suco de abacaxi. Quando o assunto estava se esgotando, Oswaldo insistiu que eu voltasse para uma refeição e um mojito, "quando quiser".

Não saí da cadeira. A conversa sobre futuras refeições me deixou com água na boca. Ofelia percebeu, e logo ouvi o ruído de fritura na cozinha. Comemos sopa de tomate, arroz e lentilhas amarelas. Ela serviu uma porção de proteína, uma mistura cinzenta que pensei ser picadillo do governo porque tinha gosto de soja e restos de alguma coisa que um dia tivesse sido um animal.

Mas Ofelia tirou a embalagem da cesta de lixo. Era carne de peru "separada mecanicamente" produzida pela Cargill, dos Estados Unidos, parte das centenas de milhões de dólares em produtos agrícolas vendidos a Cuba a cada ano sob uma cláusula de isenção do embargo. Era quase intragável, mesmo com a fome que eu sentia, mas Ofelia tinha um sorriso largo nos lábios. "Muito melhor que o peru que comprávamos antes", disse.

Quando eu estava saindo, Oswaldo tentou me dar 10 pesos. "Qualquer cubano faria isso por você", disse. Ele me aconselhou a gastar o dinheiro em comida, mas recusei, devolvendo as notas. Não podia aceitar dinheiro de uma fonte, ainda que meus escrúpulos não se estendessem a recusar uma refeição. Ele insistiu. No final, para evitar a caminhada de volta à minha casa, aceitei uma moeda de um peso para o ônibus.

Oswaldo caminhou comigo pelas ruas de seu bairro perigoso, repletas de adolescentes que nos encaravam, e me levou ao ponto de ônibus.

"Use calças compridas", foi seu conselho final. Só turistas circulam de shorts.

BEBIDA Fazia tempo que meu uísque havia acabado, e era difícil apreciar Cuba sem beber. Oswaldo Payá reforçou essa sensação ao dizer que "uma boa bebida é um dos direitos que todos temos". Era hora de fazer algo para beber.

O único alimento que eu tinha de sobra era açúcar --eu nem me dera ao trabalho de comprar minha cota de açúcar bruto, porque em três semanas havia consumido menos da metade de meus 2,5 quilos de açúcar refinado.

Fazer rum é um processo simples, ao menos em teoria. Açúcar mais fermento resultam em álcool. Destilar o produto resulta em álcool ainda mais forte. Eu jamais havia destilado álcool, mas tinha visitado a destilaria Bushmills, na Irlanda do Norte, pouco antes da viagem a Cuba e, reforçado com anotações baseadas no livro "Chasing the White Dog", de Max Watman, decidi que procuraria a felicidade alcoólica, mesmo que aos tropeços.

O primeiro passo é produzir um mosto, ou solução de baixo teor alcoólico. Eu já tinha o açúcar. Fui a uma padaria livre, onde uma multidão de consumidores desapontados esperava que as máquinas produzissem uma nova fornada de pães. Na porta dos fundos, chamei uma padeira com um gesto e perguntei se podia comprar fermento.

"Não", ela disse. "Não temos o suficiente nem para nós". Seguindo o ritual ao qual já me acostumara, continuei a conversa, tentando conquistar sua atenção, e não demorou para que ela esticasse o braço pela cerca e me desse meio saco de fermento --fabricado na Inglaterra. Tentei pagar, mas ela recusou.

Depois de submeter a prosa de Watman a engenharia reversa com a ajuda de uma calculadora, só me restava esperar que minhas contas estivessem mais ou menos certas. Um quilo de açúcar requereria cerca de quatro litros de água. Bem ao estilo de Havana, a água provou ser o maior obstáculo: a água encanada da cidade vem repleta de magnésio. Meu senhorio tinha um filtro de água coreana, mas estava quebrado.

DESTILAÇÃO Demorei 36 horas para conseguir um galão de água purificada. Em seguida, poli minha panela de pressão, testei e remendei suas vedações de borracha; submeti a panela a uma esterilização e coloquei água e açúcar lá dentro. Misturei, fechei e esperei. Passadas quatro horas, a panela de pressão estava borbulhando com uma espuma turva de tom marrom e cheiro mortífero.

Destilar requer uma mangueira. Tentei uma loja de artigos para a casa em um shopping center que vende em moeda forte, em Malecón, e depois uma loja de ferramentas. Por fim, perguntei a um frentista em um posto de gasolina. Ele me aconselhou a procurar um homem que fica posicionado na 3ª Avenida, ao lado de uma mesinha dobrável.

Depois de muita discussão sobre álcool, esse homem de mãos e feições encobertas pela graxa, um encanador clandestino vindo do Brasil, me deu uma mangueira de cerca de um metro, bem suja. Tentei por duas horas remover a graxa endurecida do interior do tubo. Usei calor, sabão, um trapo e um cabide de roupas retorcido, mas sem resultado.

Por fim, pedi a um jardineiro que trabalhava em um jardim do bairro se ele podia me conseguir uma mangueira apropriada à destilação de aguardente. O pedido lhe pareceu a coisa mais natural do mundo e, meia hora depois, ele me entregou um metro de mangueira cortado do jardim de alguém.

Pelos dois dias seguintes, verifiquei o líquido na panela de pressão. A mistura estava atraindo drosófilas e borbulhava baixinho.

Os deuses estavam sorrindo, e também as prostitutas. Eu vinha há mais de uma semana me esquivando às atenções de uma jovem que caminhava pelas ruas próximas de meu apartamento. Era um exemplo clássico da economia cubana em ação: calças justíssimas, correntes douradas, sombra azul nos olhos, sandálias com salto plataforma e unhas postiças de acrílico pintadas nas cores da bandeira cubana.

"Psst", ela dizia ao passar, chamando minha atenção para esses atributos. Eu muitas vezes costumava me sentar na escadaria do meu prédio, a fim de aliviar a sensação de estar aprisionado no pequeno apartamento. Ela me olhava pelo portão de ferro, ao passar, e me chamava. Psst.

Eu resistia ao apelo. Mas a jovem, como muitas prostitutas cubanas com quem conversei, era uma mulher charmosa e inteligente lutando para sobreviver, por sob as propostas do tipo "jewwannafuckeefuckee". Conversamos uma vez, e voltamos a fazê-lo dias mais tarde. Nossa terceira conversa foi longa. Ela tentava o tempo todo ser convidada a entrar no meu apartamento --eu tinha fogo para seu cigarro? Um cafezinho? Uma cerveja ou refrigerante?- e eu nem cedia e nem recusava, porque as histórias dela me divertiam.

Em dado momento, o som de um celular surgiu de seu decote. Ela atendeu, e travou uma conversação tendenciosa, em inglês. Quando desligou, ela disse: "Ele quer comer meu rabo". Cogerme em el culo. Os cubanos, especialmente as prostitutas, não fazem rodeios quanto a sexo. Ou raça. "Os negros sempre querem sexo anal", ela continuou. "Não gosto de negros, mesmo que me considere negra, e minha irmã é negra, mas acho que os negros cheiram mal. O sujeito tem muito dinheiro. É um homem importante nas ilhas Cayman, e rico de verdade. Ele me ofereceu US$ 150, e eu recusei. Agora disse que quer me pagar US$ 300 só por um jantar".

"Duvido muito", eu disse.

"Pois é. Sempre digo a ele para ligar para minha prima. Ela adora negros".

Todas as nossas conversas tanto começavam quanto se encerravam com uma proposta. Porque, ao longo de uma semana, eu havia recusado repetidamente os seus convites, ela disse: "Eu achei que você fosse pato". O quê? "Você sabe, maricón. Um gay. Homossexual".

Ela é enfermeira, tem 24 anos, vive em Holguín. Para conseguir mais tempo de férias, trabalha turnos de 12 horas, e depois, a cada quatro ou seis meses, vai a Havana para um longo intervalo "no qual me dedico a isso", disse. Em um raro momento de eufemismo, se definiu como dama de acompañamiento.

"A maioria das meninas tem cafetões, mas eu não; preciso me defender sozinha". Além do celular, seu decote oculta uma pequena faca serrilhada, cuja lâmina ela estendeu e exibiu.

"Você sabe por que fazemos isso", disse, "não é? É a única maneira de sobreviver. Tenho uma filha e a amo muito. É uma menina preciosa. Sinto muito sua falta. É por ela que faço isso. Que tal me dar US$ 100 e a gente sobe agora?" (Ela mais tarde me ofereceria o "preço cubano" de US$ 50.)

Eu disse a ela que não tinha dinheiro. Expliquei o que estava fazendo. A ração. O salário. Os cinco quilos que eu tinha perdido. "Não tenho nem um peso", disse. Ela pediu uma caneta, anotou seu telefone e me entregou o papel. Depois, tirou de um dos bolsos minúsculos de sua calça justa uma moeda de um peso, e me entregou.

"Para você me telefonar", disse.

Foi mais um dia terrível no que tange à comida, meu pior até aquele momento. Do alvorecer à meia-noite, comi arroz, feijão e açúcar em valor nutritivo de pouco mais de mil calorias. Acordei às três da manhã seguinte e terminei o arroz. Só me restava um pouco de feijão, duas batatas doces, algumas bananas da terra mirradas, três ovos e um quarto de repolho. Faltavam nove dias.

Fui à loja de produtos racionados, procurei Jesús e comprei café, meio quilo de arroz e um pouco de pão --tudo a preços cubanos, um total de 14 pesos, ou cerca de US$ 0,60. Com isso meu dinheiro acabou. Mas essas sobras de comida, a generosidade de diversos cubanos e meu estômago contraído para o tamanho de uma noz garantiram que fosse o bastante. Eu sabia que cumpriria meu plano até o fim.

No dia seguinte, fui a pé até a casa de Elizardo Sánchez, o ativista dos direitos humanos. Setenta minutos de caminhada para ir e 70 para voltar. "Tudo está bem, agora", eu lhe disse, delirando com a falta de açúcar no sangue. "Até prostitutas estão me dando dinheiro".

Passei uma hora em sua casa. Ele me ofereceu um copo de água.

Por fim chegou o grande dia da fuga. Não minha partida, que só aconteceria oito dias mais tarde, mas sim o álcool. O líquido marrom parara de borbulhar depois de quatro dias --quando o teor alcoólico atinge os 13%, o fermento remanescente morre.

Esterilizei a mangueira e, dobrando um cabide, afixei-a à válvula no topo da panela de pressão. Acendi um fósforo e, em 10 minutos, tinha vapor de álcool, transferido pela mangueira para se condensar em forma líquida na garrafa vazia de uísque, posicionada em uma vasilha cheia de gelo.

ÁLCOOL TÓXICO Demonstrando minha ignorância, e desonrando minhas origens na Virgínia, eu havia cozinhado a mistura a uma temperatura alta demais, e não removi a camada inicial de álcool de baixa qualidade, ou até mesmo tóxico. Mas quatro horas de cozimento produziram um litro de uma bebida leitosa, e em minha ingenuidade decidi suspender o processo antes que os restos caíssem na garrafa e estragassem o sabor.

Eu deveria ter feito uma segunda destilação, para produzir um rum mais fino, mas nem tentei. Às quatro da tarde, por fim pude me sentar, tendo em mãos um copo de rum esbranquiçado e quente.

Comecei a beber e em 30 segundos já estava com dor de estômago. O teor alcoólico da bebida era baixo, mas minha tolerância também, e não demorou muito para que eu começasse a rir à toa. O jardineiro veio para provar uma dose, com um ar tristonho no rosto. Acordei à meia-noite, de ressaca, e o padrão se manteve durante minha semana final de estadia. Dor de estômago instantânea, embriaguez amena, dor de cabeça. Mas as duas ou três horas que separavam esses estados valiam muito a pena. Quando saí de Havana, não restava nem uma gota de aguardente.
Tampouco restava muito de mim. Na metade de fevereiro, caminhei pela última vez até o Riviera e me pesei na academia. Estava mais de cinco quilos abaixo do peso que tinha ao chegar.

Mais de cinco quilos perdidos em 30 dias. Eu tinha consumido 40 mil calorias a menos do que estava acostumado. A esse ritmo, eu estaria magro como um cubano por volta do segundo trimestre; e morto antes do final do ano.

Concluí a estadia com algumas refeições minúsculas --acabei com o arroz feio, comi a última batata doce e um quarto de repolho. No dia anterior à partida, recorri à reserva para emergências e comi os palitos de gergelim do avião (60 calorias), acompanhados pela lata de suco de frutas contrabandeada das Bahamas (180). O sabor do líquido vermelho foi um choque: amargo por conta do ácido ascórbico e repleto de açúcar, a fim de imitar o sabor de um suco real. Foi como beber plástico.

FIM Meus gastos totais com comida foram de US$ 15,08 ao longo do mês. Ao final, eu tinha lido nove livros, dois dos quais com mais de mil páginas, e escrito boa parte deste artigo. Vivi com o salário de um intelectual cubano e, de fato, sempre escrevo melhor, ou ao menos mais rápido, se estou sem grana.

Minha última manhã: sem desjejum, para complementar o jantar que não tive na noite anterior. Usei a moeda que ganhei de uma prostituta para apanhar um ônibus até perto do aeroporto. Tive de caminhar os 45 minutos finais até o terminal; quase desmaiei no caminho.

Houve um momento tragicômico, no qual homens uniformizados me tiraram da fila do detector de metais porque um agente da imigração achou que eu tinha excedido os 30 dias de permanência do meu visto. Foi preciso três pessoas, contando repetidamente nos dedos, para provar que aquele era o 30º dia.

Jantei e almocei nas Bahamas e engordei quase dois quilos. De volta aos EUA, ganhei mais três quilos antes que o mês acabasse. Estava de volta à minha nacionalidade --e ao meu peso.

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Recomendação final (PRA):
Sugiro que os amigos do regime comunista cubano repitam a experiência deste jornalista americano. Ele, ao que parece, foi pelo menos honesto em cumprir o prometido, e contar como fez.