Um funeral em Caracas
Gesto brasileiro por reunião com opositora de Maduro formaria um anel de proteção
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Folha de S. Paulo, 9 de agosto de 2024
Inutilmente, Lula exibiu-se como mediador ideal na Ucrânia e no Oriente Médio, esferas fora do alcance da política externa brasileira. A prova de fogo chegou na Venezuela, desenrolando-se como espetáculo humilhante: em Caracas, junto com a esperança de transição democrática, enterra-se a credibilidade da palavra do Brasil.
Celso Amorim fala como enviado diplomático de Maduro ao mundo democrático. "A oposição coloca dúvidas, mas não consegue provar o contrário." Falso: a oposição publicou as atas de votação escondidas pelo ditador —e a autenticidade delas foi confirmada por especialistas independentes.
Diante disso, EUA, Argentina, Uruguai, Peru, Equador e Costa Rica reconheceram o triunfo de Urrutia. Boric chegou perto da conclusão factual, declarando que "o Chile não reconhece a vitória autoproclamada de Maduro". Na direção contrária, o Brasil articulou com México e Colômbia um bloco negacionista que, simulando cautela, oferece à ditadura o intervalo indispensável para consolidar a fraude por meio da repressão generalizada.
Circula, nas chancelarias, o desenho de uma solução negociada: a formação de um governo provisório de união nacional com a missão de promover novas eleições. A ideia inspira-se no precedente da Polônia, em 1989, cuja transição começou com a derrota eleitoral do regime autoritário. No governo unitário venezuelano, o chavismo controlaria os ministérios da segurança, enquanto a oposição teria as pastas econômicas. Uma anistia ampla e a criação de instituições eleitorais imparciais preparariam o terreno para eleições gerais livres.
A solução não é justa, pois o povo já votou, mas é realista. Sem a força das armas, a oposição teria que aceitá-la. Mas a chance de impor à ditadura uma saída negociada depende da intensidade das pressões diplomáticas —e, em especial, da rejeição regional à autoproclamada vitória de Maduro.
Regimes ditatoriais começam a desabar quando sofrem fraturas internas. A aposta na pressão diplomática, combinada com garantias de impunidade à máfia chavista, oferece oportunidade a potenciais dissidentes. É precisamente para sabotá-la que o governo brasileiro costurou o bloco tripartite da protelação. Maduro precisa mais do amparo sinuoso do Brasil que do apoio efusivo de Cuba ou da Nicarágua.
O fracasso diplomático estende-se às obrigações mínimas. O Brasil foi um dos fiadores do Acordo de Barbados. Calou-se, repetidamente, frente às violações sistemáticas do compromisso de eleições democráticas. Hoje, avança um pouco mais na via da desonra, virando as costas à selvagem repressão desencadeada contra os oposicionistas vitoriosos no voto popular.
Amorim justificou a resistência brasileira a condenar a fraude alertando para a iminência de um "conflito muito grave", quase uma "guerra civil", que seria caso único de guerra entre uma ditadura armada e uma oposição desarmada. Antes, em entrevista a um jornalista beija-mão, enquanto o regime encarcerava opositores em massa, o mesmo Amorim exprimiu sua "preocupação" com "a hipótese de perseguição aos chavistas caso a oposição chegue ao poder". Entre uma entrevista e outra, esclareceu que o Brasil dialoga com todos os lados —exceto, apenas, com María Corina Machado.
A ditadura acusa a oposição do crime de lesa-pátria de divulgação das atas eleitorais autênticas, que pela lei venezuelana são documentos públicos, qualificando-as como "forjadas". Nada pode impedir a prisão de Corina Machado, mas o gesto brasileiro de enviar um representante de alto nível para reunir-se com ela, sob a luz das câmeras, formaria um anel de proteção. O Brasil, porém, prefere deixá-la exposta.
Na avenida central de Caracas, evolui o cortejo fúnebre das expectativas de transição democrática. Maduro segura uma das alças do caixão. Brasil, México e Colômbia sustentam as outras três.