O mistério dos Restos a Pagar Processados de 2014 e o Impacto no Primário.by mansueto |
Desde segunda-feira, a ONG Contas Abertas vem cuidadosamente levantando o saldo inscrito de restos apagar para este ano. Para que todos acompanhem este debate do zero, vou explicar cuidadosamente o que são restos a pagar, apesar de já ter escrito sobre isso (Restos a Pagar, Truques Fiscais e Orçamento Paralelo). Vou repetir parte daquele post aqui para comentar os dados deste ano.
Primeiro: o que são restos a pagar? O gasto público passa por várias fases: gasto planejado, autorizado, empenhado, liquidado e pago. Quando a despesa pública é liquidada, significa que o serviço que deu origem a esse gasto já foi efetuado e reconhecido pelo ordenador de despesas, faltando, apenas, o desembolso efetivo do dinheiro. É justamente esse tipo de despesa (liquidada mas ainda não paga) que dá origem aos Restos a Pagar Processados (RAP processados).
Já no caso de Restos a Pagar Não Processados (RAP não processados), a despesa foi planejada, autorizada e empenhada, mas o ordenador de despesas ainda não reconheceu a prestação do serviço ou a execução do investimento. Ou seja, o gasto ainda não foi liquidado nem pago.
Segundo, como os RAP podem ser utilizados para inflar, artificialmente, o resultado primário? De duas formas diferentes. Primeiro, quando a despesa já foi liquidada e o governo propositadamente posterga o pagamento (aumenta RAP processado), que foi o que ocorreu nessa virada de 2013 para 214, ou quando o ordenador de despesas atrasa o reconhecimento de um serviço já prestado ao governo ou de um investimento já executado (aumento do RAP não processado).
O problema maior nos últimos anos é o que vinha acontecendo com o saldo dos RAP não processados. Antes de 2006, o saldo dessa conta flutuava, em alguns anos aumentava, em outros diminuía, e a execução do pagamento desse tipo de despesa ficava na média em R$ 7,4 bilhões (média de pagamento dos RAP não processados de 2003 a 2005). Acontece que desde 2006 essa conta disparou –- ver tabela abaixo.
Tabela – Inscrição de Restos a Pagar – 2002-2014 – R$ bilhões correntes
Fonte: SIAFI. OBS: Dados de 2014 são preliminares. Elaboração Mansueto Almeida.
A novidade agora foi o forte crescimento do saldo de RAP processados de 2013 para 2014 que, segundo a ONG Contas Abertas, passou de R$ 26,28 bilhões para R$ 46,54 bilhões, o que corresponde a um crescimento de R$ 20 bilhões (crescimento de 77% no saldo) de uma despesa que já passou pela fase de liquidação, i.e. o gestor público já assinou o documento atestando que o serviço já foi prestado e/ou o investimento realizado, mas o mesmo ainda não foi pago.
Por que os Restos a Pagar processados cresceram 77% em 2014? Antes de explicar isso, vale lembrar que o forte crescimento dessa conta, em 2009, decorreu de uma mudança contábil que não afetou o calculo do primário. Naquele ano, a ultima folha do ano do INSS passou a se considerado Restos a Pagar Processados, mas essa mudança não afetou o cálculo do primário. Se abrirmos o crescimento do saldo de restos a pagar processados desde 2009, esse pulo no saldo concentrou-se no ministério da previdência e desde então essa conta se manteve estável.
Mas esse não é mais o caso. De acordo com o levantamento da ONG Contas Abertas, o crescimento dos saldo de restos apagar processados concentrou-se em três ministérios na seguinte ordem de importância: (i) ministério da fazenda (+R$ 9,3 bilhões); (ii) ministério das cidades (+R$ 5,6 bilhões); (iii) ministério da defesa (+R$ 2,4 bilhões), (iv) ministério da educação (R$ 1,9 bilhão). Esses cinco ministérios somam R$19,2 bilhões de crescimento de restos a pagar processados.
Há dois pontos adicionais importantes. Primeiro, desde o inicio do programa Minha Casa Minha Vida, o saldo de restos a pagar do ministério das cidades vinha crescendo (depois vou escrever um post específico sobre isso). Mas o saldo que crescia era de restos a pagar não processados – recurso foi empenhado mas o gasto não foi liquidado, i.e. gestor não reconheceu que o serviço foi realizado. Mas agora o crescimento foi em cima do RAP processado. Neste caso o governo não tem muito como segurar o pagamento além de alguns poucos meses de uma despesa já realizada, o que vai significar despesa adicional, 2014.
Segundo, uma fonte do ministério da fazenda falou para o repórter Ribamar Oliveira do VALOR que parte desse forte crescimento do RAP processado na conta do ministério da fazenda seria repartição de receita (que no SAIFI é um item do custeio: elemento 81). Explico. Quando uma empresa utiliza crédito tributário para pagar imposto de renda, o governo contabiliza tudo como sendo receita sua e apenas após alguns meses faz a repartição com estados e municípios. Assim, a conta “repartição de receita” tradicionalmente dá origem a restos a pagar que também afeta o primário: aumenta as transferências para estados e municípios e diminui a receita líquida do governo central. Mas não parece que foi isso que aconteceu.
Novamente, na abertura detalhada da várias tabelas que a turma dos Contas Abertas me enviou, nota-se que o forte aumento de restos a pagar processados na conta do ministério da fazenda parece ter como origem operações já realizadas e não pagas de equalizações de juros em cima do crédito agrícola e PRONAF.
Um das coisas mais absurda que aconteceu, em 2013, foi a forte queda das despesas do governo federal com subsídios e subvenções econômicas, queda de 8% de janeiro a novembro de 2013 frente ao mesmo período de 2012, em um momento no qual a taxa de juros estava em alta e o volume de crédito subsidiado aumentando cada vez mais. É claro que esses subsídio não estavam sendo pagos e, agora, está explicado.
O que surpreende, novamente, é que essa conta de equalização de juros geralmente afetava o RAP não processado, o governo atrasava a liquidação do gasto com equalização de juros. Agora, por algum motivo (talvez por pressão dos bancos credores muito dos quais são estatais) o governo passou a liquidar o gasto, apesar de o pagamento (efeito caixa) ainda não ter ocorrido.
O que tudo isso significa? Duas coisas. Primeiro, que a despesa primária do governo federal, em 2013, foi R$ 20 bilhões acima do que vai aparecer na tabela do Tesouro Nacional que será divulgada no final deste mês. Em outras palavras, que pelo efeito restos a pagar, o superávit primário foi R$ 20 bilhões a menos do que foi divulgado.
Segundo, de janeiro a novembro de 2013, o governo teve duas receitas atípicas, não recorrente, no valor de R$ 35 bilhões que "salvou a lavoura" em 2013. Essas duas receitas como todos sabem foram: (i) o bônus de concessão do campo de libra do pré-sal no valor de R$ 15 bilhões; e (ii) a receita extra do programa de refinanciamento de dividas (REFIS) no valor de R$ 20 bilhões.
Em resumo, dos R$ 75 bilhões de cumprimento da meta do governo federal de superávit primário (ver matéria do ministério da fazenda aqui), R$ 55 bilhões decorreram de coisas atípicas que não melhoram o fluxo das contas fiscais: (i) R$ 20 bi uma falsa economia decorrente do crescimento do saldo de RAP processado, (ii) R$ 15 bi receita atípica do leilão de libra; e (iii) R$ 20 bi do REFIS. Restam portanto R$ 20 bilhões, ou 0,4% do PIB, de superávit do governo federal que não decorreu de eventos atípicos. Por que o ministro não explicou isso na sua entrevista coletiva do dia 3 de janeiro de 2014?
Dado que a conta dos estados e municípios ainda será divulgada, mas todo mundo espera que seja algo perto de 0,4% do PIB, é possível que o superávit real do setor público consolidado, em 2013, tenha sido algo mais próximo de 0,8% do PIB. Isso significa que, se não houver um forte aumento da receita, em 2014, a situação vai continuar ruim e o ajuste para 2015 será ainda mais difícil.
O meu diagnóstico? Quem for nervosinho tem motivos para ficar mais nervosinho, pois quanto ao suposto superávit primário acima da meta divulgado recentemente pelo Ministério da Fazenda, o vento levou. Há chances de o que falei acima estar errado? Sim, se os dados do SIAFI puxados pela turma das Contas Abertas estiverem errados. Mas neste caso, se os números do SIAFI estiverem errados, eu ficaria mais e não menos preocupado. Agora, vou voltar para as minhas férias.
Acabei de saber que o governo está revisando vários itens do SIAFI e que o saldo de restos a pagar processados de R$ 46,5 bilhões (ver post anterior) levantado pela ONG Contas Abertas já foi reduzido para R$ 30 bilhões. Apenas no final do mês teremos certeza absoluta desses valores. Mas se isso acontecer, se a revisão dessa conta cair, isso muda algum coisa substancial da minha análise anterior? Praticamente não e vou explicar porque.
As contas que mais cresceram no levantamento dos Restos a Pagar Processados foram contas dos Ministério das Cidades e da Fazenda em cima dos programas que envolvem subsídios. Tradicionalmente, para esses programas os credores são bancos públicos e o governo tem certa flexibilidade para atrasar a liquidação da despesa. São exatamente essas contas que puxam o saldo de restos a pagar não processados de custeio.
Por que agora essas contas passaram a ser liquidadas e afetar o saldo de restos a pagar processados agora? Não sei. Como mostrei no post anterior, levantei a hipótese que os bancos estatais estariam pressionando o Tesouro. Mas o bancos podem colocar essa receita que eles têm junto ao Tesouro como receita a receber independentemente da liquidação do gasto.
Em resumo, é muito provável como já está acontecendo hoje que o saldo de RAP processado diminua e que as despesas que foram contabilizadas como liquidadas sejam reclassificadas como não liquidadas e classificadas apenas como empenhadas, dando origem a restos a pagar não processados. Vamos esperar os dados definitivos e quando saírem vou fazer vários posts sobre esse assunto.
Por enquanto, a única coisa com certeza que podemos afirmar além do que falei no post anterior é que, independentemente da classificação do RAP, não faz o mínimo sentido a conta de subsídios e subvenção econômica cair quando o volume do crédito subsidiado aumentou e os juros de captação do Tesouro também. Mas essa conta está em queda até novembro como mostra dado oficial do Tesouro Nacional.
Ainda acredito que, independentemente da classificação do RAP, o nosso superávit primário real é menor do que o divulgado com a ressalva que o efeito real de despesas não liquidadas e não pagas no fluxo do ano talvez seja menor que os R$ 20 bilhões apurados inicialmente pela ONG Contas Abertas. Há alguma chance da revisão do SAIFI ser fruto da matéria de hoje publicada no VALOR? Eu não acredito, porque seria um enorme tiro no pé porque essas coisas se descobre. Acho que foi mesmo erro do sistema, o que também me preocupa, mas não é a primeira vez que acontece. Agora, vou voltar para as minhas férias.
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