Preservar a memória nacional
Rubens Antônio Barbosa, Ex-Embaixador em Washington
O Estado de S.Paulo, 27/09/2011
A preocupação com a preservação
da memória de fatos e de momentos históricos no Brasil ainda é incipiente e não
merece a atenção dos que militam na vida pública ou mesmo na atividade privada.
Poucos são os relatos existentes de personalidades que poderiam dar testemunho
relevante nesse sentido.
Não há uma contribuição significativa no gênero
de autobiografias ou de relatos de participantes que tiveram algum papel na
política, na economia ou na diplomacia para melhor entender a ação de
personagens ou para conhecer diferentes percepções da formulação de políticas
públicas. E também - porque não? - ficar sabendo de histórias curiosas e às
vezes picantes dos bastidores dos centros de poder.
Durante quase cinco anos como embaixador em
Washington, registrei, de forma sistemática, os principais acontecimentos em
que estive envolvido, direta ou indiretamente, ou em que acredito ter tido
algum tipo de influência. Com esses elementos informativos, decidi publicar um
depoimento sobre o trabalho que transcorreu num período especialmente movimentado
da vida diplomática na capital dos EUA.
O Dissenso de Washington, que será lançado hoje
na Livraria da Vila da Alameda Lorena, em São Paulo, procura retratar o
panorama das relações Brasil-EUA e os principais temas regionais e globais,
vistos daquele posto de observação. O livro busca também sintetizar os
conflitos políticos domésticos na dividida sociedade norte-americana e descreve
os muitos desencontros dos EUA em relação ao Brasil e à América Latina na
primeira metade da década inicial do século 21.
Nem sempre o trabalho de um embaixador, nos
postos de maior visibilidade política e diplomática, coincide com
acontecimentos especialmente marcantes na História do país onde está acreditado
e também de seu próprio. No período em que trabalhei em Washington, de 1999 a
2004, pude presenciar as eleições presidenciais com vitória do partido
oposicionista, tanto nos EUA quanto no Brasil, os ataques do 11 de Setembro e a
eclosão das guerras no Afeganistão e no Iraque.
Também vivi a excepcional experiência de
acompanhar de perto um longo período do relacionamento entre o Brasil e os EUA,
como embaixador dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e de Lula, em
governos que desenvolveram políticas externas bem distintas, o que, por vezes,
acarretou desencontros no entendimento entre os dois países.
Apesar das nossas boas relações com os EUA no
tocante aos temas políticos e diplomáticos, o diálogo com os membros do governo
americano tendeu a se limitar quase que exclusivamente a questões de natureza
bilateral, alguns problemas regionais, poucos assuntos globais e matérias
pontuais do interesse de Washington. O envolvimento do Brasil em temas mais
amplos de política internacional existia na época, mas era reduzido. Na
descrição que faço no livro, ficam evidentes as limitações do nosso país no
cenário internacional até 2004, apesar do visível aumento do nosso peso na
América Latina.
Não seria novidade dizer que o trabalho
diplomático num posto como Washington significa estabelecer uma interlocução
direta e desarmada com as autoridades locais e os formadores de opinião, assim
como buscar novas maneiras de projetar os interesses do Brasil na capital do
país mais poderoso do mundo.
Era muito gratificante trabalhar com esse
objetivo e perceber como gradativamente aumentava o interesse do governo local
em conhecer o pensamento e a posição do Brasil nos assuntos mundiais de maior
relevância. Era frustrante, no entanto, constatar que o Brasil ainda pouco
pesava no processo decisório internacional, ao contrário dos outros membros do
Bric - Rússia, Índia e China -, que, por circunstâncias históricas e
geográficas, são protagonistas em conflitos regionais, dispõem de arsenais
nucleares e ocupam posição de realce na política externa dos EUA.
No contato quase diário com colegas embaixadores
e nos relatos que ouvia sobre as discussões com autoridades norte-americanas
durante as visitas de chefes de Estado e ministeriais, ficava claro quão
distante ainda se encontrava o Brasil do centro das decisões globais. Em
conversas informais com os embaixadores dos principais países aliados dos EUA,
como Reino Unido, França, Alemanha e Japão, ou mesmo de países rivais, como a
China, podia-se perceber claramente que as questões e os temas de política
internacional tratados por eles com o governo americano eram de um nível a que
o Brasil ainda não tinha acesso.
A maior exposição externa nos últimos anos já
indicava que o Brasil tinha potencial enorme, não só para se destacar como
coadjuvante, mas também para ser atuante em qualquer questão na América Latina
e em outros assuntos econômicos e políticos internacionais, como ocorre nos
dias de hoje.
Em razão do crescente envolvimento nas questões
globais, intensificou-se a participação brasileira em alguns assuntos de nosso
interesse, como comércio, energia, meio ambiente, mudança de clima, agricultura
e integração regional, questões que estão hoje no topo da agenda internacional.
Atualmente, e cada vez mais, a voz do Brasil faz-se ouvir.
Como resultado de todas essas experiências, os
quase cinco anos passados em Washington reforçaram minha convicção de que a
nossa relação bilateral mais relevante é com os EUA, apesar das oportunidades
perdidas pelo Brasil. A importância dos EUA, evidentemente, não exclui a
necessidade de intensificar a aproximação com outros países, muito menos deixar
de lado nossos interesses maiores. A defesa do interesse nacional e o respeito
mútuo devem dar o tom do relacionamento entre os dois países.
Com essas notas que fiz na condição de
observador privilegiado, espero deixar minha singela contribuição para nossa
memória diplomática.
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Comando Sul provocou atritos entre EUA e Brasil
Claudia Antunes
Folha de S.Paulo, 26/09/2011
Revelação está em livro de Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos
EUA
"Dissenso de Washington" traz bastidores
da relação bilateral durante os governos FHC e Lula
O Comando Sul das Forças Armadas americanas foi fonte de atritos entre EUA e Brasil
depois do 11 de Setembro, segundo um livro que será lançado amanhã pelo
ex-embaixador em Washington Rubens Barbosa.
Além de alimentar a imprensa com boatos sobre terrorismo na Tríplice Fronteira
(Brasil, Argentina e Paraguai), a fim de "valorizar sua atuação", o
comando sediado em Miami treinava militares paraguaios propondo cenários em que
os "brasiguaios" provocavam a partição do país vizinho.
O então chefe da força, general James Hill, equiparou as drogas a "armas
de destruição em massa" e sugeriu que restrições legais ao uso dos
militares contra o tráfico fossem "eliminadas" na América Latina.
"Hill tentava vincular seu comando aos temas quentes da agenda de
segurança a fim de garantir sua fatia no orçamento do Pentágono", escreve
Barbosa em "Dissenso de Washington - Notas de um Observador Privilegiado
sobre as Relações Brasil-Estados Unidos".
O atual consultor e editor da revista "Interesse Nacional" relata sua
experiência nos EUA entre 1999 e 2004, período da eleição de George W. Bush e
do 11 de Setembro.
Ele esteve no Pentágono dois dias depois do local ter sido atacada. Foi o
primeiro a ser avisado por John Bolton, do Departamento de Estado, de que os
EUA queriam afastar o brasileiro José Maurício Bustani da Opaq (órgão da ONU
para a proscrição de armas químicas).
Bolton depois foi embaixador na ONU, entidade que Bush criticou, em encontro
com o presidente Lula, chamando-a de "shopping de boas ideias".
Barbosa traz os bastidores de uma relação bilateral que cresceu sob Fernando
Henrique Cardoso e Lula. O Brasil começa a ter reconhecido seu papel global e
não só regional, mas é um avanço aos trancos, como nos últimos 200 anos.
"O Brasil está empenhado em salvar o mundo dos EUA", queixaram-se
funcionários americanos aos brasileiros em 2002.
Na ocasião, os dois países divergiam sobre a criação da Alca (Área de Livre
Comércio das Américas).
Enterrada sob Lula, a proposta morreu antes, diz Barbosa, quando os EUA
retiraram da agenda temas de interesse brasileiro, como os subsídios agrícolas.
O livro, crítico à diplomacia lulista por não apostar na "parceria
estratégica" firmada em 2003, mostra a ação de José Dirceu, quando
presidente do PT, para tranquilizar os EUA sobre as intenções de Lula
recém-eleito.
Conta como Bush quase aceitou a proposta do Brasil de negociar um acordo
comercial entre EUA e Mercosul, via paralela à Alca.
Há muitos detalhes reveladores, como um diplomata americano que pergunta a um
assessor: "Quando mesmo foi nossa intervenção na República
Dominicana?"