Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, em viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas.
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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
UFSC: Semana Academica de RI - Perguntas nao respondidas - Paulo Roberto de Almeida
Agradeci muito o convite e até fiz um esforço para comparecer, pois passei a semana em Maceió, onde tinha ido para as comemorações dos cem anos de nascimento de meu colega diplomata (que não conheci, pois ele se aposentou no ano em que eu ingressava no Itamaraty) Renato Firmino Maia de Mendonça. Acordei as 5hs da manhã, para viajar direto a Florianópolis e proferir a palestra no final do dia. Fui muito bem recebido, aliás, pelos alunos encarregados da excelente organização do evento, e não tenho nenhuma reclamação a fazer, a não ser duas:
1) Não me lembrei de pedir, antes da palestra, que eles escrevessem os nomes e e-mails nas perguntas escritas que encaminharam à mesa para que eu respondesse, ao final de minha exposição; falha minha, portanto, pois sempre peço, em circunstâncias similares, que os perguntadores formulem suas perguntas, com as devidas coordenadas, para que eu possa, justamente, encaminhar depois respostas mais estruturadas caso falte tempo para abordar todas as questões;
2) Não houve tempo hábil para responder a todas as questões, e isso eu imputo aos organizadores. Não me avisaram antecipadamente que tínhamos de encerrar as 20h30 (sendo que sempre se começa mais tarde do que a hora marcada), e eu me alonguei, seja na palestra, seja nas respostas às primeiras perguntas e depois fui "confrontado" com a falta de tempo, e não pude satisfazer aos demais. Ainda assim, terminei pedindo que me contatassem ao final da palestra, para passar os e-mails ou continuar a conversa, mas poucos o fizeram (enfim, preferiram comer os canapés e tomar os sucos, o que talvez tenha sido melhor: as causas alimentares sempre passam antes do intelecto).
Vou portanto, transcrever as perguntas feitas e tentar dar algumas indicações sobre elas, não sem antes informar aos navegantes, curiosos e interessados sobre a disponibilidade de alguns dos meus textos mais recentes que possam apresentar algum mérito para pesquisadores ou estudantes:
As relações Sul-Sul: um novo determinismo geográfico?
Renato Mendonça: um intelectual na diplomacia
Intervenção governamental: Von Mises e prática brasileira
A diplomacia da era Lula: balanço e avaliação
Falácias acadêmicas: ensaios sobre alguns mitos correntes
A Economia Política da Integração Latino-Americana
Uma história do Mercosul: evolução e situação atual
Vejamos agora o que eu poderia ter respondido e não respondi:
1) O Sr. acredita que o crescimento econômico dos países depende de fatores endógenos, como o fortalecimento das suas instituições, ou que tal situação dependa fundamentalmente dos cenários e interesses internacionais?
PRA: Em primeiro lugar, eu costumo não "acreditar" em fatores econômicos e sim consultar e constatar os dados empíricos, a pura materialidade das coisas. Claro, somos todos influenciados por uma ou outra teoria, inclusive na seleção e interpretação dos dados, mas o economista verdadeiro tenta ser o mais objetivo possível, sabedor, no entanto, que os homens atuam conscientemente (nem todos) e assim modificam sempre os dados do problema, já que reagem, racionalmente ou instintivamente, aos estímulos existentes, mudando, portanto, o comportamento dos agentes e consequentemente dos processos sociais, subjetiva ou objetivamente.
Dito isto, nas economias modernas, globalizadas, fatores externos sempre influenciam a conjuntura interna, e portanto o crescimento, que pode ser sustentado ou não, dependendo de um número muito grande de variáveis para podermos traçar uma lei da predominância de uns (externos, digamos) sobre outros (domésticos, por exemplo) fatores de crescimento. Normalmente, as economias mais abertas são mais suscetíveis a choques externos, mas também, por se abastecerem e venderem a um número maior de parceiros, podem diluir o caráter errático de conjunturas adversas, tanto internas, quanto externas, e aí depende da diversidade e da complexidade desses impactos.
Em qualquer hipótese, instituições sólidas, com normas claras, transparentes e estáveis são sempre melhores, MUITO melhores, do que alterações arbitrárias das regras que presidem ao jogo econômico.
A despeito que se diga que os capitais financeiros externos produzem volatilidade, o que pode ser verdade, acredito que a volatilidade maior está embutida nas políticas econômicas nacionais.
2) Por que se, durante décadas o Brasil fez alianças/parcerias muitas vezes quase exclusivas com o Norte, não somos mais avançados, tecnologicamente, por exemplo?
PRA: Muito simples, e talvez mais complicado. Não se deve confundir relações de compra e venda, ou de participação nos mercados internacionais, com "parcerias" e muito menos com "alianças".
Uma colônia de exportação atua sob o chamado "pacto exclusivo", ou seja, totalmente dominada pela métropole. Mas mesmo um país independente, que só exporta matérias primas -- que podem ser absolutamente estratégicas para "parceiros" avançados, como o petróleo, por exemplo, inclusive com a "ajuda tecnológica" de empresas desses "parceiro" -- pode continuar durante séculos um mero exportador de produtos não processados, não absorvendo em nada essas tecnologias. Um país pode -- e muitos o fazem obviamente -- continuar durante 5 séculos a colher cana no machete, ou café e algodão manualmente, já que dispõe de uma mão de obra abundante e barata, o que não obriga à capitalização. O mesmo ocorre na extração, mineral ou outra.
Engano seu, portanto, achar que pelo fato de o Brasil ser um exportador de commodities a "parceiros" mais avançados durante os últimos 5 séculos, ele tenha de se qualificar tecnologicamente. O desempenho nessa área, ou seja, a transformação produtiva depende de que os agentes primários em cada setor se convençam de que é melhor exportar produtos processados do que commodities, cujos preços não são fixados pelo produtor (mas isso, mais uma vez, depende dos mercados, pois os fatores abundantes podem estar nos recursos naturais e na mão de obra, não havendo estímulo para a capitalização).
De toda forma, qualquer que seja a situação, isso não tem absolutamente nada a ver com Norte ou Sul, pois não é a relação Sul-Sul que vai mudar qualquer coisa no avanço tecnológico, e geralmente não o faz, pois de fato e historicamente o Sul é mais defasado tecnologicamente do que o Norte.
Elementar, não meu caro Watson?
3) Em seu blog, você mantém uma categoria de escritos chamada "falácias acadêmicas", onde se refere às distorções ideológicas que em sua opinião pululam pelas academias brasileiras. Um dos seus estudos lá presentes versa sobre o neoliberalismo, que você argumenta nunca ter existido em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.
Tendo em vista que esta casa (UFSC) orienta-se, em sua predominância, à esquerda, o que faz com que a palavra neoliberalismo seja sempre acompanhada dos piores adjetivos, você poderia falar um pouco sobre a sua visão da política "neoliberal" no Brasil, especificamente de temas como a privatização, abertura comercial e o governo FHC (grande vilão neoliberal segundo alguns)? Obrigado [O autor identificou-se depois, mas eu preservo seu nome para evitar dele ser crucificado pelos mais fanáticos anti-liberais, depois.]
PRA: Meu caro: Eu creio NUNCA ter falado que o neoliberalismo NUNCA existiu, no Brasil ou alhures. O "neoliberalismo" não existe, ou existe apenas como renascimento do velho liberalismo clássico. Não conheço economistas (ou outros) liberais que se classifiquem a si mesmos de "neoliberais". Um liberal consequente, e corajoso, diria, simplesmente: "Eu sou liberal!" (ponto, sem adjetivos).
O que eu disse foi que o liberalismo NUNCA existiu no Brasil, e isso é muito fácil de provar. Dou um doce, ou melhor, dou metade da minha biblioteca, para algum desses fanáticos "anti-neoliberais" (eles mesmos se vêem assim, e podem ser professores ou não) se qualquer um deles conseguir me provar que em algum momento da história do Brasil, desde Cabral, algum governante, qualquer um, tenha pautado sua administração, e mais concretamente sua política econômica, pelos seguintes princípios: de agora em diante, o governo não interfere mais na economia, não impede a criação de nenhuma empresa, todos são livres para empreender e começar a trabalhar, sem qualquer permissão prévia do governo (salvo nos setores de defesa, justiça e policiamento), que o comércio é totalmente livre, com zero tarifas e zero proibições, que os capitais e as pessoas podem entrar e sair livremente, que todo mundo pode ser exercer em qualquer profissão (salvo naquelas que "matam" gente) sem qualquer tipo de regulamentação ou reserva de mercado, sem qualquer diploma, título ou certificado, que eu não preciso sequer de um diploma de alfabetização para prestar concurso público, bastando fazer concurso, com base no mérito, que nenhum governo jamais fixará taxa de juros ou taxa de câmbio, que eu posso usar a moeda que quiser nas minhas transações internas e externas, que eu posso ter contas em moedas estrangeiras no banco que eu escolher, que a carga fiscal que eu preciso pagar ao governo é a mais baixa possível, que a oferta de bens e serviços (salvo naqueles monopólios naturais, onde se atua por concessão regulada por agências públicas) é a mais livre e a mais competitiva possível, que eu tenho mil operadoras de telefonia e de televisão à minha disposição, que eu possa ler, assistir, ouvir qualquer livro, qualquer programa sem nenhum tipo de censura governamental, que nenhuma agência fascista de governo vai me dizer o que eu posso ou não consumir, enfim, que eu seja absolutamente livre de burocratas governamentais.
Isso é liberalismo, e se alguém conseguir me provar que alguma vez, algum governo, no Brasil, foi assim, eu entrego metade da minha biblioteca.
O que eu afirmo, com todas as letras, é que o tal de neoliberalismo é uma invenção de pessoas frustradas com a volta de uma economia não liberal, mas um pouco menos regulada, menos intervencionista do que a que existia até os aos 1970, e que essas pessoas têm saudados do socialismo (que na verdade elas nunca conheceram, para ver a miséria que era), que são na sua grande maioria preguiçosos que não gostam de competição, que gostam de empregos públicos bem remunerados (pelos capitalistas, claro), que eles adora redistribuição de renda a seu favor, que eles detestam os mercados e acham o capitalismo perverso.
O chamado "neoliberalismo" é o despeito dos ignorantes sobre as reais alavancas de funcionamento do jogo econômico, além de revelar, no plano daqueles que acham o governo FHC "neoliberal" uma desonestidade ideológica desprezível, pois o que ele fez foi simplesmente colocar em ordem uma economia absolutamente esquizofrênica e caótica por anos de estatismo e de intervencionismo governamental. Essas pessoas não mereciam dar aulas, pois estão simplesmente propagando mentiras.
Acho que está claro, não?
Mas se quiser saber mais, basta ir ao meu site e blogs, e clicar "neoliberalismo", ou suas derivações negativas e positivas, e haverá uma pletora de artigos meus sobre o assunto...
Existiram, também, perguntas que eu pude ler e responder, ainda que parcialmente e rapidamente. Quais eram?
4) Em 2006, você deu uma entrevista ao Estadão, que afirmava que os Brics eram uma mera construção intelectual...
PRA: Já respondi, mas também tenho, em meu site e blogs, muitos trabalhos e textos sobre essa questão, e portanto peço para ver lá.
5) A dinâmica da diplomacia brasileira desde a ascensão de Lula prioriza as relações Sul-Sul [como] resultado dos fracassos econômicos e políticos da década de 90... A política atual é soberana (...) e isso seria pragmatismo...
Bem, já remeti a um texto meu, acima, sobre a diplomacia de Lula, e tenho muitos outros disponíveis. Recomendo ler...
6) [Artigo] do Wall Street Journal sobre educação na China e na Índia, capaz de suplantar a norte-americano, e portanto seriam modelos a ponto de influenciar o Brasil...
PRA: Para mim, China e Índia não são modelos para absolutamente nada para o Brasil ou qualquer outro país, a não ser para o óbvio, quando ele existir: estudo de boa qualidade, abertura econômica, receptividade aos investimentos estrangeiros, estabilidade macroeconômica, competição microeconômica, boa governança, ou seja, puro bom senso, e apenas isto.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de outubro de 2012
A Historia do Zero - Nils-Bertil Wallin
The History of Zero
How was zero discovered?
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Nils-Bertil Wallin
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YaleGlobal, 19 November 2002 | ||
The phenomenon of zero. |
From placeholder to the driver of calculus, zero has crossed the greatest minds and most diverse borders since it was born many centuries ago. Today, zero is perhaps the most pervasive global symbol known. In the story of zero, something can be made out of nothing.
1. Kaplan, Robert (2000). The Nothing that Is: A Natural History of Zero. New York: Oxford University Press.
© Copyright Yale Center for the Study of Globalization 2002
Intervencao dos governos na economia - Marcos Mendes
Por que o governo deve interferir na economia?
- veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
Sobre o Autor:
Recomendações de artigos:
- O que é economia verde e qual o papel do governo para sua implementação?
- Deve-se proibir a diferenciação de preços entre compras à vista e com cartão de crédito?
- Como as Leis e o Poder Judiciário afetam a Economia?
Produtividade, uma aula - Marcos Mendes (01/10)
O que é produtividade e como conseguir seu incremento?
- veja este artigo também em versão pdf (clique aqui).
- Marcos MendesDoutor em economia – USP. Editor do site "Brasil, economia e governo".
Governar o mundo?: uma idea liberal-utopista - book review
Yascha Mounk
The Wall Street Journal, October 7, 2012
Governing the World
(Penguin, 475 pages, $29.95)
8 de Outubro: Dia do Guerrilheiro Heroico - Che Guevara
Sim, estou falando do maior sucesso de marketing de todos os tempos. Qualquer microempresário esperto sabe que, se imprimir umas quantas camisetas e espalhar por alguns recintos universitários, venderá como pipoca, ou talvez melhor, como água. Finalmente, é a isso que foi reduzida a imagem e a lembrança do outrora guerrilheiro oficial da esquerda latino-americana e mundial, assassinado pelas forças militares bolivianos no povoado de La Higuera, no dia 8 de outubro de 1967, encerrando uma carreira que tinha começado, no seu lado guerrilheiro, dez anos antes no desembarque dos rebeldes cubanos que lutavam contra a ditadura de Fulgencio Batista, o fdp tolerado pelos americanos na ilha do Caribe que abrigava muitos investimentos americanos e permitia à máfia lavar um pouco de dinheiro nos cassinos de Havana.
O lado romântico começou alguns anos antes, e foi devidamente retratado em livros, no cinema, e não preciso retomar aqui sua carreira.
Confesso que fui um guevarista precoce, já que me politizei com a revolução cubana, e emprendi uma carreira de "guerrilheiro aprendiz" encerrada tão pronto cheguei à conclusão que aquele bang-bang perpetrado pelos grupos de resistência armada ao regime militar inaugurado em 1967 não iria dar em nada, dada a total inadequação das suas propostas à realidade política, social, econômica e militar do Brasil em meados daqueles anos. Mas, senti uma ponta de tristeza quando o comandante Guevara morreu nas selvas da Bolívia, pois esperávamos que o movimento pudesse se sustentar, até se transformar em mais um Vietnã, como havia demandado o comandante em uma de suas mensagens enviadas não se sabe de onde, e como tal derrotar o odiado imperialismo ianque em nosso continente.
Estávamos completamente iludidos, como logo vim a descobrir, tratando então de cuidar dos estudos fora do Brasil, onde continuei guevarista por algum tempo ainda, até descobrir que o "homem novo" preconizado por Guevara, e o socialismo preconizado por todos os marxistas não iria nos trazer exatamente liberdade e abundância.
Muitos outros continuaram guevaristas, no sentido prático da palavra, mas eles foram sendo reduzidos pela gradual erosão da ideia marxista e pelas derrotas práticas de todos os socialismos, tanto quanto pela miséria de fato da única ditadura marxista ainda em vigor deste lado do mundo.
Mas, os marxistas de camiseta, aqueles que repetem mecanicamente uma única frase do comandante (aliás, frase muito idiota), esses continuam, firmes e fortes, talvez em número até acrescido, pois a legião dos inconscientes, dos ingênuos e dos desinformados sempre cresce, sobretudo em torno de ideias equivocadas.
Portanto, aqui fica a minha mensagem: se você quiser ganhar uns trocados, copie da internet aquela foto famoso do Ché, de boina e cabelos sujos, e cole em alguma coisa. Depois pode vender por aí, que é sucesso garantido. Você pode não acreditar nas promessas do socialismo, e nem deve conhecer qualquer coisa que o Ché tenha escrito, mas certamente acredita no dinheiro...
Viva Ché Guevara: o maior sucesso de publicidade capitalista de todos os tempos...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de outubro de 2012
A lógica política do 'mensalão' - Sergio Fausto
A lógica política do 'mensalão'
Eric Hobsbawm: uma palavra (ou duas) sobre ele... - Paulo Roberto de Almeida
Como qualquer acadêmico bem informado, eu conhecia a obra de Hobsbawm, obviamente, inclusive porque, em um dado momento de minha vida, eu também partilhei das mesmas crenças no "poder liberador" do socialismo, a partir da justeza das teses marxistas sobre a perversidade natural do capitalismo e a inevitável sucessão dos modos de produção, que deveria jogar na lata de lixo da história o modo fundado na extração de mais valia e na exploração dos trabalhadores.
Bem, confesso que fui marxista, mas nunca fui religioso, ou seja: nunca me deixei engabelar pelos "livros sagrados". Assim, fui buscar na realidade, em outros livros, na observação honesta dos modos existentes de produção a comprovação, ou não, dos argumentos originais marxianos e suas derivações leninistas, stalinistas, gramscianas, fidelistas, guevaristas e outras (bem, acho que nunca fui stalinista, mas pratiquei um pouco todos os outros pecados). O que eu vi, visitando todos os socialismos reais, surreais e esquizofrênicos, foi um sistema de penúria, caracterizado por muita miséria material, mas ainda mais miséria moral, um sistema baseado em fraude, mentiras, violência, desonestidade, ou simplesmente na escravidão humana.
Enfim, o que tem isso a ver com Eric Hobsbawm?
Li seus livros de história, um pouco em várias edições: inglês, espanhol, francês, italiano e, também em português. Aqueles que tem como partida épocas pregressas, ou seja séculos 15 a 19, confirmaram bastante a visão marxista do mundo, que é a usual no meio acadêmico: exploração capitalista, miséria dos trabalhadores, crises, colonialismo, imperialismo, isto é, nosso menu habitual de condenação do capitalismo e da burguesia. Normal, não é?
A coisa se complica um pouco quando chegamos no século 20, o século por excelência do capitalismo triunfante, logo depois em crise, e o da ascensão do socialismo e seu desafio ao primeiro, quase vitorioso, mas finalmente derrotado, para desgosto de Hobsbawm (e de todos os órfãos e viúvas do socialismo).
O que eu teria a criticar em Hobsbawm?
Primeiro, deixe-me dizer o que eu achei correto, em sua análise da Revolução francesa. Ele disse que ela atrasou o capitalismo na França, pois impediu o imediato triunfo do capitalismo no campo, como ocorreu na Inglaterra, com a concentração de terras e a expulsão dos camponeses para as cidades, onde foram obrigados a trabalhar para os capitalistas fabris. Acho isso basicamente correto, e não tenho objeções a sua tese.
Do que discordo, em sua análise?
Na monumental coleção "História do Marxismo", que ele dirigiu, editada originalmente em italiano pela Einaudi (que eu tenho), ele convidou basicamente marxistas; enfim, um pouco como pedir a cardeais da Igreja Católica para escrever a história do cristianismo. Alguns italianos, já aderindo ao chamado eurocomunismo, foram bastante independentes, como Massimo Salvadori, por exemplo, mas o tom geral era de "ode ao marxismo", como aliás convinha no período que antecedeu à derrocada completa do sistema que se buscava "elucidar".
De sua obra histórica cobrindo o período anterior ao século 20, se destaca uma importância exagerada ao marxismo, como sistema filosófico capaz de fundar uma nova era. De fato, o marxismo cresceu muito acima de suas possibilidades teóricas e de sua capacidade prática de resolver os problemas detectados por Marx no capitalismo. Ele foi oversold, de certa forma, e Hobsbawm foi um dos que participaram dessa operação de legitimação de um sistema que sempre apresentou falhas estruturais, ademais de uma monumental inconsistência intrínseca, para não falar de seu profetismo indiferente aos dados da realidade.
Quanto ao século 20, ele também deu uma importância exagerada ao socialismo, e quero me expressar muito bem quanto a isso.
A Rússia era um grande país, que conduziu guerras contra o Império Otomano, contra outros reinos na Ásia central e meridional, contra a China, a Polônia, a Áustria e a Alemanha, confirmando sua vocação ao imperialismo. Não se tratava obviamente de socialismo, mas o socialismo bolchevique continuou essa tradição, e o fez com um sentido internacionalista que ultrapassava barreiras nacionais, as fronteiras jurídicas dos Estados burgueses, para se exercer, depois, como força material e política importante em várias democracias burguesas da Europa ocidental e do resto do mundo. Isso não tem nada a ver com o socialismo, e sim com uma política de poder, com a razão de Estado, no caso, o Estado stalinista.
Hobsbawm confundiu esse poder do Estado soviético com o triunfo do socialismo, ainda que a ideia socialista tenha conseguido conquistar corações e mentes de intelectuais dos países capitalistas, além de muitas forças sindicais. Mas ele confundiu os processos históricos e equiparou o triunfo intelectual do marxismo com o triunfo estrutural do socialismo, no processo mais vasto dos "modos de produção" em vigor durante o século 20. Bem, a CIA também considerava que o socialismo crescia mais do que o capitalismo, e que a União Soviética seria um formidável oponente, militar, econômico, tecnológico, cultural e político.
Todos erraram, mas Hobsbawm errou muito mais, pois ele mesmo, ainda que reconhecendo que o socialismo representava uma parte pequena do PIB mundial (mesmo com grandes recursos naturais), uma parte ainda menor do comércio internacional, uma parte ínfima dos fluxos de capitais, e uma parte ainda menos expressiva das inovações tecnológicas, ainda assim ele continuou a atribuir ao socialismo um poder transformador que ele de fato não tinha.
Hobsbawm também errou ao preservar o limitado molde marxista em suas análises do sistema econômico dos países, e, portanto, em crer que o capitalismo estava condenado a crises irremediáveis, condutoras a seu fracasso enquanto sistema.
Ele pelo menos tinha alguma sofisticação em suas análises, ao passo que os marxistas vulgares se agitavam alegremente cada vez que ocorria uma crise setorial nos sistemas capitalistas.
Em resumo, Hobsbawm foi um bom historiador "pré-capitalista", mas um péssimo historiador "socialista", e deixou sua fé no marxismo embotar suas análises dos processos econômicos e políticos dos séculos 19 e 20.
Deixo de lado sua condescendência com os crimes dos socialismos reais do século 20, o stalinista e o maoísta, pois nesse quesito ele teria de ser condenado pelo lado moral, algo relativo nos marxistas.
Eu estava apenas considerando seu trabalho como historiador. Ele falhou, como falharam muitos outros intelectuais. Que tenha demorado tanto tempo em reconhecer seus erros, conta em seu desfavor, mas de fato ele nunca renunciou a seu anticapitalismo visceral e a seu socialismo ingênuo.
Descanse em paz, é o que lhe desejo.
O problema, para nós acadêmicos, é que suas análises vão continuar contaminando com seus equívocos os trabalhos nas nossas universidades por muito tempo ainda, pois seus livros são cultuados e seguidos nas Humanidades. A cegueira voluntária demora muito para se dissipar, se é que isso ocorre: muitos são infensos aos dados da realidade, e preferem continuar se alimentando de ilusões.
Eric Hobsbawm foi um dos grandes ilusionistas do século 20.
Não será certamente o último, mas ele era um dos mais importantes.
Talvez voltemos agora a explicações mais razoáveis, como as de um Paul Johnson, de um Niall Ferguson, de um David Landes. Pelo menos, são os que me ocorrem de sugerir a alunos em busca de historiadores mais razoáveis (e honestos).
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 8 de outubro de 2012