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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Espionagem: a xeretagem e' geral...

Sob o título acima, a revista Brasileiros (http://www.revistabrasileiros.com.br/), publicou uma série de matérias sobre a espionagem americana, tal como revelada por Edward Snowden (que pretenderia se asilar no Brasil, ao que parece, que ele julga ser um país amigável a pessoas como ele, já que os companheiros abrigam vários inimigos do Império), entre elas uma entrevista comigo, cujo registro faço abaixo.


Como a revista publicou apenas uma parte de minha entrevista, permito-me publicá-la na íntegra, mais abaixo.





2518. “Documentação diplomática e acesso público: uma entrevista para a revista Brasileiros”, Hartford, 12 Outubro 2013, 12 p. Entrevista concedida ao jornalista Gonçalo Silva Junior. Publicado parcialmente, sob o título de “Todos os países são hipócritas”, na revista Brasileiros (Brasília: n. 76, novembro 2013, p. 70-73; ISSN: 1981-5590; link: http://www.revistabrasileiros.com.br/tags/brasileiros-76/#.Uq_762RDtLQ). Relação de Publicados n. 1116.


Documentação diplomática e acesso público:
uma entrevista para a revista Brasileiros

Paulo Roberto de Almeida
Entrevista concedida ao jornalista
Gonçalo Silva Junior (goncalo.junior@gmail.com)
para a revista Brasileiros (http://www.revistabrasileiros.com.br/)

 
1 - Resumidamente, poderia explicar o trabalho que vocês fizeram para levantar os documentos produzidos pelo governo americano sobre o Brasil?

PRA: Eu assumi, como ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington em setembro de 1999, e ali permaneci até setembro de 2003, atravessando, portanto, a crise das “ponto.com”, em 2000, as eleições presidenciais desse mesmo ano, que resultaram na contestada vitória do candidato republicano George W. Bush contra o democrata, e vice-presidente do então presidente Bill Clinton, Al Gore (que teve mais votos populares do que Bush, mas perdeu numa decisão da Suprema Corte que interromper uma recontagem na Florida), e, mais do que tudo, os atentados terroristas de setembro de 2001, em New York e Washington, bem como a desastrosa invasão do Iraque pelo novo presidente, em março de 2003. Foram anos movimentados, e a embaixada ainda acompanhou, muito de perto, o processo de negociações comerciais hemisféricas em torno do projeto americano da Alca, assim como o infeliz episódio do afastamento do diretor brasileiro da Organização para a Proibição das Armas Químicas, embaixador José Mauricio Bustani, processo conduzido com uma inédita truculência pelos Estados Unidos.
À parte todos os afazeres típicos de uma embaixada, eu ainda seguia os assuntos financeiros, o que significava acompanhar, em diversas ocasiões o ministro da Fazenda Pedro Malan e o presidente do Banco Central Armínio Fraga, em contatos com autoridades americanas, bem como seguir esses temas no âmbito do FMI e do Banco Mundial, as duas instituições irmãs de Bretton Woods. Menciono ainda a conclusão do acordo de salvaguardas tecnológicas com os Estados Unidos sobre lançamento de satélites em Alcântara, infelizmente sabotado por diversos partidos oposicionistas no Congresso do Brasil, e que redundou em enorme atraso para o programa espacial brasileiro, em virtude, basicamente, da curta visão política (e, sem dúvida, também, de muito antiamericanismo) por parte de diversas forças congressuais.
Não satisfeito com todo esse trabalho, e consoante meu ânimo acadêmico, sugeri diversas iniciativas ao embaixador Rubens Barbosa, que as acolheu favoravelmente, entre elas a ideia de fazer reuniões com os brasilianistas americanos, sob a forma de seminários estruturados em torno dos estudos sobre o Brasil nos EUA, das quais resultaram, por exemplo, dois livros de balanço da produção brasilianista em diversas áreas: O Brasil dos brasilianistas (publicado no Brasil em 2202 pela Paz e Terra) e Envisaging Brazil (publicado pela Universidade do Wisconsin, em 2005). Mais importante ainda, conhecedor da imensa riqueza documental contida nos arquivos e instituições americanas sobre o Brasil, propus a continuidade do valioso trabalho de levantamento e microfilmagem desses fundos documentais, que tinha sido empreendido nos anos 1980, sobre uma importante parte dos acervos britânico e americano, pelo sociólogo Luciano Martins, com o apoio da Fapesp e do próprio Ministério das Relações Exteriores.
Dei início ao trabalho de levantamento dos fundos e instituições, com destaque para o NARA, os National Archives and Records Administration, ou seja, o Arquivo nacional americano, onde estão depositados todos os documentos históricos, não apenas diplomáticos, relativos não só à administração central do governo americano, mas também inúmeros fundos setoriais e privados – nos mais diversos suportes técnicos: papel, fotografias, recursos audiovisuais, etc. – que constituem uma riqueza inestimável para todo e qualquer pesquisador das mais diversas áreas. Junto com a Library of Congress – que dispõe de um acervo de milhões, zilhões de livros e documentos, bem como de mapas e gravações de todos os tipos – e com outras instituições prestigiosas, como os museus Smithsonian e os arquivos de fundações privadas e as bibliotecas universitárias e presidenciais, esse imenso acervo de fontes primárias contém igualmente uma parte muito importante, eu até diria essencial, da nossa memória histórica, não só político-diplomática (ou seja das relações bilaterais Brasil-EUA), mas também da história política e econômica, e registros culturais e científicos, desde o início do século 19 (e talvez mesmo antes) até os nossos dias.
Feito um primeiro levantamento, eu solicitei o apoio da Secretaria de Estado para um início de compilação de documentos diplomáticos no NARA, e era minha intenção encomendar, com base nos recursos disponíveis, a microfilmagem seletiva de uma série completa de documentos diplomáticos americanos sobre o Brasil, grosso modo o período 1945-1964. Não preciso dizer que não recebi nenhuma resposta, nem surtiram efeitos telefonemas para a área cultural do Ministério. Cabe recordar que cada microfilme – podendo abrigar várias centenas de páginas – não custava, unitariamente, muito caro, mas todas as séries demandadas poderiam ascender a algumas dezenas de milhares de dólares, ainda assim um preço razoável para tamanho acervo documental.
À falta de reações para o projeto dos arquivos diplomáticos, comecei a explorar outras possibilidades, como o arquivo de manuscritos do Brasil colonial e imperial constante da Biblioteca Oliveira Lima, junto à Universidade Católica de Washington. Solicitei, então, “apenas” 4 mil dólares, para fazer uma série de microfilmes com essa coleção mais restrita, ao que tampouco obtive resposta. Ou seja, eu estava cercado de documentos valiosos para a história do Brasil, ou mesmo para as relações contemporâneas com nosso principal parceiro econômico e político, mas não dispunha de recursos para copiar esses fundos valiosos para o estudo de nossa própria história. Explorei a possibilidade de o Arquivo Diplomático cobrir parte dessas pesquisas, mas ele tampouco possuía recursos disponíveis; uma consulta à Fapesp, redundou em tomar conhecimento de suas regras, ou seja, ela apenas poderia financiar projetos ligados ao próprio estado de São Paulo.

2 - Que período compreendeu sua pesquisa?

PRA: Ao iniciar o levantamento para a cópia ou microfilmagem de documentos relativos às relações diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos eu havia delimitado o período contemporâneo em diante, ou seja, pós-Segunda Guerra Mundial, até onde fosse possível obter livre acesso aos documentos mais recentes. Eu me interessava particularmente pelo período militar, desde o golpe de 1964 até onde as regras de sigilo permitissem o acesso. Mas justamente em relação ao período mais recente, por uma dessas ironias da história registrada, quanto mais próximos estivéssemos da contemporaneidade, maior o volume de documentos acessáveis ou mesmo sigilosos, podendo eventualmente ser desbloqueado o acesso através de uma lei americana de liberação de documentos, o FOIA, Freedom of Information Act: geralmente o documento é revelado, após curto período de revisão ou monitoramento, com eventuais partes e nomes tachadas em preto, para resguardar alguma informação mais sigilosa, ou não comprometer pessoas vivas ou tendo trabalhado junto ou para a comunidade de informações.
Interessado diretamente na participação americana no golpe militar de 1964, procurei saber o que o CIA – Central Intelligence Agency – poderia abrigar, e liberar em relação a isso. Contatei diretamente o Chief Historian of the CIA, ou seja, o historiador oficial, que por acaso era um brasilianista cuja obra eu já conhecia, mas não a ele pessoalmente: Gerald K. Heynes, que, como estudante de pós-graduação, havia defendido uma tese sobre – outra ironia da história – The Americanization of Brazil, cobrindo o período Dutra e o segundo Vargas, ou seja, a fase de maior influência americana sobre os negócios brasileiros, de todos os tipos. Lembro-me que ele era, como corresponde a qualquer funcionário da CIA, muito “secretive”, sem telefone e sem email. Tive de escrever cartas pelo correio normal e aguardar seu contato telefônico: combinamos um encontro num clube bastante restrito de Washington, mas que eu já conhecia, pois já tinha almoçado ali com o ex-embaixador Lincoln Gordon, justamente o embaixador do golpe de 1964, com quem desenvolvi boas relações, e até o incitei a terminar o seu livro sobre o Brasil – Brazil’s Second Chance – que fiz traduzir e publicar no Brasil, com um apêndice não constante da edição americana, sobre o golpe de 1964, e a participação americana, justamente (o que ele, obviamente, não admitia, dizendo que o golpe tinha sido 100% brasileiro; OK...).
Meu encontro com Gerald Haynes foi muito positivo e, mesmo sem prometer, ele sinalizou que iria trabalhar no assunto e me daria uma resposta mais adiante. Isso deve ter sido em meados de 2001, e eu aguardava ansiosamente poder “colocar as mãos” em alguns papeis da CIA sobre o golpe e seu imediato seguimento. Pouco depois, porém, fomos ambos surpreendidos com os terríveis atentados do Onze de Setembro, e como se revelou imediatamente, diretivas presidenciais decretaram imediatamente o aumento do sigilo, bem como de todas as regras de segurança, sobre papéis e instalações oficiais do governo americano. Foi uma ducha fria, e o historiador da CIA confessou-me que, naquelas circunstâncias, ficava difícil levar o projeto adiante. Compreendi, mas sempre esperei que pudéssemos reverter a situação em algum momento do futuro breve, o que, entretanto, jamais aconteceu.
As diretivas presidenciais impondo novas e severas restrições ao acesso a documentos sigilosos, ou mesmo a papéis que anteriormente já tinham sido liberados das regras de confidencialidade, foram tão drásticas que George Bush chegou a ser processado pela American Association of Historians, cujos resultados, porém, desconheço. Provavelmente os juízes devem ter julgado que a segurança do país exigia novas medidas de restrição.
Não sei exatamente o que ocorreu depois, mas suponho que as diretrizes devem ter sido abrandadas. Em todo caso, nesse mesmo período, o National Security Archive, entidade não governamental funcionando na Universidade George Washington, deu início à busca e liberação sistemática – através do chamado FOIA – de milhares de páginas de documentos sigilosos do período da guerra fria, entre eles papéis relativos à chamada Operação Condor, esquema cooperativo entre as agências de repressão e forças armadas de países do Cone Sul da época dos golpes militares em diversos desses países, com destaque para o Chile de Pinochet. Lembro-me, também, de ter sugerido que o Brasil fizesse oficialmente o pedido, ao NSA da GWU para que papeis relativos ao envolvimento do Brasil na operação fossem liberados; não logrei apoio para essa ideia, no entanto, embora muitos dos papeis liberados – relativos ao Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia – contivessem inúmeras referencias aos militares brasileiros e agentes civis da repressão.

3 - Quantos documentos foram copiados?

PRA: A rigor, os documentos copiados foram muito poucos, uma vez que não dispúnhamos de nenhum recurso oficial para a cópia sistemática ou a encomenda de microfilmagem de séries inteiras. Nunca recebi um tostão sequer do MRE para qualquer iniciativa que tomei para mapear, identificar e eventualmente copiar fundos documentais americanos sobre o Brasil. Lembro-me de pessoalmente ter pago do meu bolso algumas cópias xerox de documentos do NARA que achei mais interessantes. Um deles, por exemplo, relatava um encontro entre o Encarregado de Negócios Americano no Rio de Janeiro – o embaixador Lincoln Gordon já tinha então, 1966, voltado a Washington, onde assumira o Department of Western Hemisphere – e o então secretário-geral do Itamaraty, Manoel Pio Corrêa, um conhecido anti-comunista profissional (e que, naquela altura, teria sugerido a Vinicius de Morais pedir uma licença sem vencimentos, já que passava a noite numa boate do Rio, aparecendo para trabalhar só na parte da tarde); o Encarregado de Negócios registrou no seu telegrama a Washington o espanto com que recebeu a sugestão do SG-MRE para uma ação conjunta do Brasil e dos EUA no Chile, aquela altura dirigido pelo presidente democrata cristão Eduardo Frei; segundo ele, Pio Corrêa lhe disse, sem nenhuma restrição mental, que “agora que o problema na Argentina está resolvido [tinha sido logo depois do golpe do general Ongania contra o presidente legítimo do país], podemos tratar do caso do Chile, onde está aquele Kerensky chileno”, referindo-se, portanto, ao presidente provisório da Rússia, antes do golpe dos bolcheviques. Allende realmente assumiria o poder no Chile, depois de Frei, mas em eleições a rigor limpas, o que os EUA de Kissinger nunca aceitaram, juntos, aliás, com os militares brasileiros.
Mas não havia, como disse, condições de copiar muita coisa, pois a massa documental relativa aos anos 1960 e 1970, o que estava começando a ser liberado das regras de sigilo naquela época, era propriamente monumental, provavelmente zilhões de páginas, o que exigiria não só muito trabalho, mas também muito dinheiro. Teria de ser um projeto oficial, para o qual, infelizmente, nunca recebi apoio.

4 - Em sua maioria, quais os formatos desses documentos?

PRA: Nessas condições, adotei uma outra estratégia, bem menos custosa, e mais fácil de frutificar em curto prazo. Entre 1999 e 2000 começavam a ser publicados os primeiros catálogos dos arquivos europeus sobre o Brasil colonial e imperial, basicamente saídos da microfilmagem e reprodução digital dos arquivos portugueses e espanhóis, com alguma extensão para outros países da Europa, que também mantinham importantes coleções de documentos sobre o Brasil e a América Latina (essencialmente França, Holanda, Itália, Vaticano, Bélgica e Grã-Bretanha, e mais alguns outros). Tudo isso estava sendo conduzido em cooperação entre o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o Itamaraty, no âmbito do chamado Projeto Resgate Barão do Rio Branco, impulsionado no Ministério da Cultura pelo Embaixador Vladimir Murtinho e no Rio de Janeiro pela funcionária da Biblioteca Nacional, associada ao IHGB, Esther Caldas Bertoletti, coordenadora técnica do projeto.
Minha ideia era fazer para os Estados Unidos o que estava sendo feito em relação aos arquivos europeus, com algumas peculiaridades porém. Se na Europa, em especial em Portugal e Espanha, o fulcro da documentação era relativa ao período colonial, nos EUA teria de ser o período pós-independência e século XX; mais ainda: se na Europa, ainda que com um enorme volume documental, as coleções eram finitas, ou seja, a parte realmente histórica concentrava-se mais nos séculos anteriores ao Império, nos EUA, como já dito, a massa documental agigantava-se enormemente quanto mais chegássemos no período contemporâneo. Algum tipo de limitação era, assim, necessário.
Lembro-me de também ter telefonado ao Ministério da Cultura, para solicitar recursos ao Embaixador Murtinho para que pelo menos uma parte dos arquivos americanos pudesse ser copiada, chegando assim a integrar o projeto Resgate Barão do Rio Branco. A despeito de sua enorme boa vontade, tampouco logrei obter recursos dessa fonte, provavelmente esgotados com os projetos europeus e as comemorações luso-brasileiras em torno dos 500 anos dos descobrimentos. O que eu concebi, então, foi apenas um diretório, ou seja, um guia completo dos fundos documentais dos EUA disponíveis aos pesquisadores brasileiros. Tendo pesquisado um pouco em vários arquivos em coleções, sei o quanto é complicado para se orientar nos diferentes catálogos e tipos de classificação dos documentos para fins de depósito arquivístico: os métodos de classificação e os suportes materiais foram mudando ao longo dos tempos, e alguns arquivos mantém “segredos”, ou séries especiais, que só se descobrem depois de algum tempo manipulando catálogos e consultando os documentalistas locais.
Preparei um novo projeto, limitado, portanto, à mera descrição de todos os recursos disponíveis, a forma de acesso, e dos fundos sobre o Brasil constantes de todas as instituições possuindo coleções importantes sobre o Brasil, a começar pelo NARA, Library of Congress, Biblioteca Oliveira Lima e várias outras entidades. Sai novamente em busca de dinheiro, e mais uma vez encontrei portas fechadas nas instituições oficiais brasileiras. Por sorte minha, estava passando por Washington, naquele momento, o bibliófilo José Mindlin, o que homem que, possivelmente, reuniu a melhor brasiliana de todos os tempos, depois da própria Biblioteca Nacional e da Biblioteca Oliveira Lima, com milhares de volumes de obras preciosas, como primeiras edições de Camões, de Antonio Vieira, e outras preciosidades, reunidas ao longo de uma vida toda dedicada aos livros. Expus-lhe rapidamente o meu projeto, ao acompanhar-lhe numa palestra na Library of Congress, e ele imediatamente dispôs-se a me ajudar.
Por intermédio da Fundação Vitae, que ele animava – e que parece não mais existir, o que é uma pena – ele conseguiu enviar-me modestos 20 mil dólares, colocados sob administração do Brazilian Information Center, uma entidade civil, criada pela Embaixada em Washington justamente para facilitar a realização de projetos de interesse real, mas sem ter que passar pela imensa, difícil e ultra-burocrática administração pública brasileira. Com esse dinheiro, compre um laptop, um scanner, engajei um assistente historiador, Francisco Rogido, pagando-lhe um modesto estipêncio, e “desviei” diversos voluntários então trabalhando (de graça) na Embaixada em Washington, e coloquei-os imediatamente no trabalho. Eles passaram algumas semanas no NARA – um imenso local nas cercanias de Washington, em College Park, Maryland – e depois se alternaram entre a Library of Congress, Oliveira Lima Library, OEA e outras instituições de Washington, e também passaram várias horas ao telefone e na internet, mapeando o que havia fora de Washington.
O resultado – que fiz imediatamente reproduzir na Embaixada e apresentar num seminário de brasilianistas ali realizado em dezembro de 2001 – foi um “pequeno” grande diretório dos arquivos americanos sobre o Brasil, que chamei de “Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: coleções documentais sobre o Brasil nos Estados Unidos”. Ele descreve e apresenta, sistematicamente, uma grande parte desses recursos, dando todas as informações úteis para facilitar a vida e o trabalho dos pesquisadores profissionais (e não apenas em história, pois também fiz mapear as instituições ligadas aos museus Smithsonian, que contém muitos relatos e coleções de expedições científicas ao Brasil, e até algumas menos científicas, como a célebre viagem de Theodore Roosevelt, em companhia de Rondon, pelos rios amazônicos). Coloquei imediatamente o Guia à disposição dos pesquisadores no site da Embaixada e no meu site pessoal.
Continuei aperfeiçoando esse guia, aumentando as informações, corrigindo telefones e websites, descrevendo novas coleções de museus e bibliotecas americanas em outros estados, até praticamente o final de minha missão em Washington, e mesmo depois de sair, já no Brasil. Por um momento, o Guia deveria ter sido editado por uma editora universitária do interior de São Paulo, que estava reproduzindo documentos europeus do projeto Resgate Barão do Rio Branco, mas depois o acerto não pode ser concretizado. O fato é que, em 2005, apresentei o livro à Fundação Alexandre de Gusmão, para ser editado pelo Itamaraty. Por razões que desconheço, o livro adormeceu durante cinco anos nas gavetas da Funag, até que, finalmente, no final da gestão de um antigo presidente, resolveram desovar a obra. Mas fizeram sem me consultar novamente, sem que eu pudesse novamente atualizar os dados, preparar um novo prefácio, ou até discutir a capa, que pretendia ser alusiva aos arquivos diplomáticos em si, ou às relações Brasil-Estados Unidos. Enfim, saiu o livro, sem que eu possa dizer que me orgulhe realmente do resultado, pois ele deveria ter sido disponibilizado bem mais cedo (o que de toda forma continuei a fazer, por meio de edições pessoais em meu próprio site, e enviando para instituições que sabia terem interesse nesse tipo de material).
Em todo caso, aos interessados em saber do que se trata e o que contém esse Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil, eu convido a visitar o meu site, onde ele se encontra disponível sob dois links, o meu próprio e o da Funag. Não garanto o da Funag, mas o meu funciona (http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/66GuiaArquivos2010.html) e espero que ainda seja útil aos muitos pesquisadores das relações Brasil-Estados Unidos (e da própria história do Brasil, riquíssima nos arquivos americanos).

5 - Por quanto tempo o governo americano mantém em sigilo documentos sobre outros países?

PRA: O governo americano mantém regras muito liberais de acesso a documentos sigilosos, embora a documentação diplomática, pelo seu caráter mais sensível, possa sofrer algumas restrições maiores de acesso (sem falar dos papéis das agências de inteligência e de informação, que obviamente se submetem a outras regras). Em geral, os arquivos diplomáticos podem ser liberados em cinco anos, em média, um pouco mais para papéis secretos. Os pesquisadores interessados podem eles mesmos requisitar documentos sigilosos ao abrigo do Freedom of Information Act, e o processo é em geral rápido (pode levar em torno de 3 meses). O próprio National Security Archive, da Universidade George Washington, tem liberado milhares de papéis sigilosos, mesmo contra a vontade do governo americano.
Por outro lado, o Departamento de Estado – o Itamaraty deles – mantém uma instituição, ou uma divisão, que também deveríamos ter, e que vários das agências públicas americanas mantêm: um historiador oficial, mas dotado de ampla autonomia para decidir quais papéis devem ser liberados e como. Ele é responsável, entre outros encargos absolutamente meritórios, pela edição da US Foreign Relations Series, ou seja, uma compilação de documentos oficiais, geralmente diplomáticos – mas podendo envolver igualmente papéis de outros departamentos, como o US Trade Representative, encarregado das negociações comerciais internacionais – sobre determinados temas ou períodos específicos (na média, com vinte anos de recuo, algumas vezes mais). Quem quiser saber, por exemplo, sobre o envolvimento americano em golpes de estado (na Indonésia, no Irã, na América Latina) pode buscar que vai encontrar algum volume com papéis confidenciais nessa US Foreign Relations (a série está inteiramente disponível no site do Departamento de Estado).
Este é uma iniciativa e um tipo de trabalho que não só o Itamaraty, mas várias outras agências públicas do Brasil, deveriam manter: um historiador oficial, encarregado não só de preservar, classificar e guardar a documentação relevante, mas de divulgá-la também.

6 - Pode nos dar uma ideia do que ainda é mantido em segredo? O que há de mais antigo ainda vetado? Independência? Guerra do Paraguai? República?

PRA: Tudo, absolutamente tudo que se refere ao período anterior à Segunda Guerra Mundial está totalmente desclassificado, sendo de livre acesso. Em geral, a documentação sigilosa também passa a ser liberada em espaços de 5, 10 e 15 anos, com algumas restrições para os temas mais sensíveis de inteligência, mas que pode sofrer o chamado processo de “sanitization” e posterior liberação. Os Estados Unidos são, de longe, o país mais liberal do mundo no que se refere o acesso aos documentos oficiais. Segredos envolvem aqueles documentos típicos de inteligência, que podem sofrer restrições parciais ou totais. Mas, de vez em quando, algum “acidente” acaba ocorrendo, como verificado em eventos recentes, como os ligados aos Wikileaks ou ao caso Snowden. Esse é o preço a pagar por serem uma democracia na qual o processo decisório, e o acesso a informações sensíveis, estão abertos a um enorme número de pessoas, das mais diferentes agências, geralmente funcionários públicos, mas eventualmente também técnicos trabalhando sob contratos especiais.

7 - Por esses documentos, é possível ter uma ideia de como funcionava a engrenagem de espionagem dos Estados Unidos no caso do Brasil?

PRA: Espionagem é um outro nome para a informação de caráter sensível. Todos os Estados organizados mantém serviços desse tipo, seja de tipo defensivo, como deve ser o do Brasil, seja de tipo ofensivo, como é o caso daquelas potências envolvidas em agendas conflituosas no terreno da sua própria segurança ou a dos aliados (e até mesmo “contra” os próprios aliados). Daí para a informação econômica, tecnologicamente estratégica, é um passo, já que a segurança envolve tanto saber o que outros Estados estão fazendo, o que eles pensam sobre um determinado item da agenda bilateral ou internacional, e o que eles pesquisam, o que pode apresentar relevância sob qualquer aspecto. Como toda burocracia estatal, os serviços de inteligência acabam criando sua própria razão de ser, muitas vezes distanciada até do que pensam os lideres ocasionais do governo, eventualmente considerados ingênuos demais pelos “velhos” espiões profissionais.
Desde a Guerra Fria e possivelmente até hoje, os EUA mantém um forte aparato de inteligência e informação no Brasil, na embaixada e em alguns consulados, o que pode ser considerado normal e esperado. Esses “espiões” geralmente fazem um trabalho muito aborrecido, não muito diferente do conduzido no âmbito de algumas instituições de pesquisa, e envolvidos numa burocracia quase kafkiana: informa-se porque é preciso informar, seja qual for o assunto ou a urgência da questão. Depois existem os pedidos especiais, que envolvem contato com locais, ou “penetração” adversa, o que também é absolutamente normal. O Brasil já foi penetrado pelos cubanos, pelos soviéticos, e deve estar sendo penetrado por diversos outros serviços, não apenas pelo império. Ou seja, não há o que se surpreender nessa matéria, todos fazem isso, inclusive o Brasil. E todos são absolutamente hipócritas a esse respeito, inclusive o Brasil.

8 - Em que momentos históricos o interesse dos Estados Unidos sobre o Brasil foi mais intenso, além do golpe de 1964?

PRA: O golpe militar foi um episódio circunscrito, e não o mais relevante. Mais importante foi o programa nuclear dos militares brasileiros, e o acordo bilateral nesse terreno com a Alemanha: as pressões, veladas e abertas, dos EUA foram intensas, durante vários anos, provavelmente com base em forte trabalho de inteligência. O programa espacial brasileiro também sempre foi objeto de seguimento, pois é a mesma tecnologia que permite fabricar mísseis balísticos. Outras tecnologias sensíveis, de caráter diretamente militar ou não, também devem estar sob constante escrutínio dos “arapongas” americanos.
Suponho que, depois do governo FHC, bastante amigável aos EUA, com o governo dos companheiros, bem mais amigos dos cubanos, venezuelanos, e outros inimigos dos EUA, o grau de vigilância americana sobre os dirigentes brasileiros tenha aumentado um pouco (ou muito), o que é compreensível dentro da lógica em que trabalham as grandes potências. Não devemos crer que os “parceiros estratégicos” do Brasil se eximam de perscrutar nossos segredos apenas porque eles são considerados “parceiros estratégicos” por alguns amadores no poder. O “problema” é que nas democracias é mais fácil de se ter trânsfugas eventuais, o que raramente ocorre no caso de algumas ditaduras supostamente amigas. Aliás, a verdade é esta: em algum momento, as democracias sempre acabam revelando seus mais íntimos segredos, o que nem sempre ocorreu, a não ser por traição, em ditaduras como a soviética ou do Leste Europeu. Aposto, por exemplo, que os companheiros cubanos já estejam destruindo arquivos, pois o fim daquele regime esclerosado é inevitável: o fim da Alemanha oriental, e a revelação dos papéis e dos informantes da Stasi, devem ter dado algumas lições aos comunistas cubanos. Eles não pretendem ser pegos de surpresa, e entre essas surpresas estão revelações embaraçosas para o Brasil, não só em relação a governos passados, mas provavelmente também sobre certos personagens do governo atual. Alguém seria ingênuo a esse respeito?

9 - Poderia citar alguns exemplos de documentos produzidos?

PRA: Não disponho em meu poder, como estou num Consulado nos Estados Unidos, de meus arquivos, que ficaram no Brasil, com alguns documentos copiados dos National Archives ou de outras instituições. Mas, não copiei nada de muito relevante, seja porque não tinha tempo para fazer pesquisa sistemática, seja porque esperava, justamente, dispor, em algum momento dessas condições, para fazer um trabalho mais meticuloso.

10 - Pode nos mandar alguns para reproduzirmos?

PRA: Impossível, pelas razões expostas acima. Mas muito pode ser encontrado sobre o Brasil (e sobre a América Latina), inclusive documentos sigilosos, nas páginas do National Security Archive. Os links estão disponíveis no meu Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/66GuiaArquivos2010.html.
Tem ali muito muito material para “diversão”, simplesmente, ou para matérias dignas do jornalismo investigativo. Mãos à obra, pois...

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 12 de outubro de 2013





Mentindo sobre o preco da conta de luz: uma pratica habitual de quem vc conhece... - Instituto Liberal

O ranking mentiroso do PT sobre a conta de luz

BERNARDO SANTORO*
Hoje recebi um banner virtual governamental mentiroso, feito pelo perfil oficial da Presidente Dilma no Facebook. Segue:
luz dilma
Essa afirmação, de que o Brasil tem a quarta energia residencial mais barata do mundo, é feita pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica, ou seja, pelos vendedores dessa energia! Sem uma fonte imparcial, esse ranking já não tem crédito por si só. Isso não é ranking científico, é peça publicitária!
Não há possibilidade da energia elétrica ser barata no Brasil porque não há concorrência na distribuição de energia, assim como todo o processo de produção é regulamentado e subsidiado. Sem competição não há a pressão natural para redução de preços, que deixam de seguir as leis de mercado e passam a seguir critérios políticos.
Duvida?
Atualmente acima da barreira de R$ 2 trilhões, a Dívida Pública Federal (DPF) cresceu em 2013 não apenas por causa dos juros e da necessidade de financiar os compromissos de curto prazo do governo. Destinadas a capitalizar bancos oficiais e a bancar a redução da tarifa de energia, as emissões diretas aumentaram o endividamento federal em R$ 31,368 bilhões este ano.
As maiores emissões diretas este ano foram os R$ 15 bilhões para irrigar o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e R$ 8 bilhões injetados na Caixa Econômica Federal para viabilizar o Programa Minha Casa Melhor, que financia a compra de móveis e eletrodomésticos para os beneficiários do Minha Casa, Minha Vida. Por meio dessas operações, o Tesouro emite títulos e repassa os papéis às instituições financeiras, que os revendem no mercado conforme a necessidade de ampliarem o capital.
Em relação ao BNDES, o Tesouro emitiu R$ 280 bilhões nos últimos quatro anos. Os aportes, no entanto, estão diminuindo ano a ano. Nos dez primeiros meses de 2012, as emissões diretas somavam R$ 61,8 bilhões.
No segundo semestre deste ano, o Tesouro também passou a emitir títulos para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), fundo que indeniza as concessionárias de energia pela redução média de 20% nas tarifas de luz, que entrou em vigor no início do ano. Desde julho, essas operações somaram cerca de R$ 6 bilhões. O governo decidiu lançar os papéis depois de críticas por usar recebíveis (direito de receber recursos) da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Volto…
Convenientemente, esse subsídio não entra na conta da tarifa. Se o subsídio direto é de 20% sobre o valor da conta, então, para fazer a matemática reversa, basta multiplicar a tarifa média atual por 1,25. Com isso encontraremos o verdadeiro valor da tarifa. E isso é só pelo subsidio direto, pois temos que considerar ainda outros subsídios e descontos tributários.
Só com essa multiplicação, o Brasil cairia várias posições nesse ranking governamental, sempre lembrando que tal ranking não é idôneo, pois é feito pela Associação dos Distribuidores de Energia.
O pior é ver pessoas humildes caindo nesse golpe publicitário, achando que nossa conta de luz é barata. Praticamente nada no Brasil é barato em relação ao resto do mundo. Os custos de transação, com a burocracia e os tributos, são altos demais e se internalizam no preço final. A conta de luz não é diferente.
Tentar vender peça publicitária como pesquisa séria é um dos vários motivos pelo qual esse governo encontra-se nas trevas.
*DIRETOR DO INSTITUTO LIBERAL

Percival Puggina (6): anistia e deformacao da historia

Mandela e Anistia: Lá e Cá
Percival Puggina


Em abril, Lula e Bono encontraram-se em Londres. Elogios recíprocos levaram o cantor a afirmar que Lula é o herdeiro de Mandela como interlocutor dos pobres. Essa matéria foi recuperada nos últimos dias em virtude do falecimento do sul-africano. Bono não sabe que Lula, há muito tempo, deixou de ser pai dos pobres, se um dia o foi, para se tornar prestativo parceiro dos mais ricos. Mas o que me interessa aqui são outros paralelismos.

            Mandela ficou quase trinta anos preso e, ao sair, empenhou-se em construir a unidade nacional sul-africana. Lula ficou trinta dias na cadeia, como grevista e, quando pode, cobrou pensão vitalícia, dizendo-se perseguido da ditadura. Mandela recebeu formação de guerrilha e terrorismo em países comunistas. Sua militância afinava-se com a geopolítica soviética. Foi treinado no uso de bombas e minas terrestres. O MK, organização terrorista que comandou, era, ao mesmo tempo, a mão pesada do CNA (partido clandestino, opositor ao Apartheid) e do também proibido PC sul-africano. Depois que chegou à presidência, em 1994, seu partido nunca mais saiu do poder. Mandela usou a retórica, o exemplo e a força para construir a unidade nacional e superar o racismo num país que, em matéria de discriminação, só perdeu para a Alemanha nazista. Lula criou o PT, em 1980, como um partido socialista e tem sido permanente aliado do PCdoB. Sua legenda conquistou o poder em 2003 e se prendeu à cadeira com tarraxa, parafuso e contraporca. Tanto o CNA quanto o PT mancham suas imagens no longevo exercício do poder com estratégias de aparelhamento das instituições e casos de por corrupção ativa e passiva.

            Mandela, glamourizado pelo cinema, recebeu sozinho méritos que também são de Federik De Klerk. Era dele o poder e foi dele a decisão de acabar com o Apartheid, legalizar o CNA e libertar Mandela. Lula, cuidou pessoalmente de transformar em bônus seu o produto das políticas de seus antecessores, cuja vida, anteriormente, infernizou tanto quanto pôde.

            A presidente Dilma, ao falar no FNB Stadium, proclamou: "Mandela é um exemplo e referência para todos nós!". A transmissão não tinha o áudio ambiental, mas imagino que aquela inaudita revelação, apregoada assim, de súbito, tenha provocado comoção nacional e arrancado um prolongado "oooooh!" do público presente. Pus-me a pensar. Se Dilma, de fato, considera Mandela um exemplo, por que, raios, ela, Lula e seu partido não recolhem dele o que de positivo poderiam recolher? Por que não aprendem com Mandela a parar de falar em raça, em cotas, em cor da pele e dos olhos? E por que não aprendem dele que ajustes de contas e revanchismo não resolvem o passado e atrapalham o futuro?
           
            Existem duas saídas quando se deseja pacificar um país após longos conflitos: a primeira é esquecer, a segunda é lembrar. O esquecer conduz à anistia. O lembrar induz ao julgar, mas não é incompatível com a anistia. Na África do Sul, ao fim do apartheid, ocorreu um processo bilateral, com confissões públicas e pedidos de perdão, seguidos de anistia e reparação. Funcionou? Mais ou menos. A longa tradição brasileira é outra. Pesquisando, encontrei, no período republicano, 15 anistias políticas implicando esquecimento, perdão e, muitas vezes, reparação. Mas já li que houve mais de 40! O que não conheço é outro país onde, tendo-se produzido anistia, perdão e reparação, transcorrido um quarto de século se insiste em pealar bruxas do passado! E de um único ninho de bruxas.

Zero Hora, 15 de dezembro de 2013

Percival Puggina (5): vendendo a consciencia, e todo o mais...

Na Igreja do Diabo
Percival Puggina


"A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?"

            Puxei ao acaso da estante, anteontem, o livro de contos "Histórias sem data" de Machado de Assis. A narrativa que abre a coletânea chama-se "A igreja do Diabo". Ao folheá-lo, me deparei com o período transcrito acima, sublinhado pela mão de minha mãe, que o lera em 1939. Tenho certeza de que a diabólica construção mental que o Capeta, entre outras igualmente criativas, urdira para atrair fieis à sua igreja surpreendeu mais a jovem Eloah do que a mim. A ela, encantou a originalidade do raciocínio do Diabo. A mim, que me tocou viver no Brasil nestes anos de moral gelatinosa, aquelas palavras pareceram proféticas. O que era raciocínio satânico, obra de um finório Belzebu, apresentado aos leitores do século 19, chega-nos agora aos olhos como expressão de conduta corrente. Onde? Precisamente nos circuitos onde a opinião, o voto, a palavra e a fé tem valor. Valor que pode ser convertido em moeda corrente.

            O Maligno não reúne freguesia tão numerosa e influente, num país vasto como o Brasil, sem antes haver percorrido laboriosos caminhos na deformação das consciências. E não executa sua obra de demolição à base de trombadas e atropelamentos, mas com sutileza que convém identificar. Tanto na literatura quanto na vida das pessoas, a religiosidade (e no Ocidente, de modo especial, o Cristianismo) exercia no tempo de Machado grande influência sobre a cultura e os valores morais. Assim, para atrair fieis à sua paróquia, o Diabo do conto machadiano não cuidou de arrancar a fé do coração dos indivíduos. Não, isso é muito difícil e custoso. As pessoas, a imensa maioria delas, se recusa a acreditar em nada ou no Absoluto Nada. O Diabo tem razões que a razão conhece.

            E a razão dele é conhecida, mesmo. Muito mais fácil do que retirar do coração das pessoas a ideia de Deus e de uma ordem moral, é transmitir a elas um - digamos assim, por falta de algo melhor - "princípio regrador", facilmente aceito pelas mentes da pós-modernidade: o Estado deve ser laico e a religião tema de foro íntimo, para ser exercitado nos recessos dos lares e dos templos. A portas fechadas, cortinas corridas, com produção de um mínimo de decibéis.

            Fácil como comprar maconha no Uruguai. Basta, depois, mostrar às pessoas que os valores e princípios que elas adotam decorrem de uma moral de base religiosa. E menos de meio sermão será suficiente para extrair dessa evidência uma conclusão de lógica satânica:  também ela, a moral, com vistas ao bem da laicidade do Estado, deve ser expurgada para aqueles mesmos compartimentos estanques e privados onde jazem os cultos e as expressões de fé.

            No conto de Machado, a igreja do Diabo acaba perdendo seu público. No Brasil, por enquanto, ela vai como o Diabo gosta

Percival Puggina (4): o Apartheid oficial dos racistas no poder


Corredores do Passado
Percival Puggina
Zero Hora, 1º de dezembro de 2013

Esses brasileiros são como filhos de novela, do tipo que rejeita a mãe. Embora o tempo presente os condene, veem-se como corregedores do passado. Incapazes perante o futuro, dedicam-se a amaldiçoar os que vieram antes. Obviamente, serão sucedidos por aqueles que os amaldiçoarão. O século 20, leitor amigo, jogou o Brasil num torvelinho de lamúrias e malquerenças, num imprescritível ajuste de infinitas contas.

            Há alguns anos, conversando aqui em Porto Alegre com destacado empresário mexicano, num evento da ADCE, perguntei a ele sobre a situação dos astecas na contemporânea sociedade de seu país. Meu interlocutor era um homem alto, desempenado. Com sua tez avermelhada faria bom papel representando um índio do oeste norte-americano em filmes da década de 50. Olhou-me surpreso e respondeu com outra pergunta: "E eu tenho cara de espanhol?". Não, ele não tinha cara de espanhol, nem eu tinha mais perguntas a fazer. Fui. Serviu-me a lição e a tenho sempre em mente quando se fala sobre a questão do índio e do negro no Brasil.

            Estimam os estudiosos, sabe-se lá como, que havia cerca de 3 milhões de índios por estas bandas, no ano do Descobrimento. Hoje restam 896 mil "puros", contados e recontados. Isso é bom ou ruim? O Brasil é um país por todos os motivos destinado à miscigenação. E o pequeno número de índios puros é, ainda assim, certamente maior do que o número de portugueses da gema. Percorre-se o Brasil e é visível, onde se vá, a existência de dezenas e dezenas de milhões de caboclos, cafuzos, mulatos. São empresários, acadêmicos, jornalistas, artistas, operários, agricultores, integrados à nação e expressando sua realidade social. Numa sessão do Congresso Nacional, em dia de votação importante, a câmera da tevê passeia sobre um plenário onde os pardos talvez formem a bancada majoritária, notadamente quando das regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste.

            O governo da União, dominado por corregedores do passado, acaba de enviar ao Congresso uma lei determinando que todos os concursos públicos para provimento de cargos federais reservem 20% das vagas para negros e pardos. Com isso - suponho que pensem assim - está feita justiça. Um tipo de  "justiça" sempre proposta para viger contra o direito alheio. Nunca com renúncia a qualquer direito de quem decide. Já tramita na Câmara, por exemplo, projeto que pretende criar cotas raciais nas eleições parlamentares. Não o aprovarão porque isso afeta as próprias reeleições. Será que o STF ou o CNJ aprovariam cotas nos concursos para a magistratura? E o governo? O governo, que propõe a lei, tem uma única e solitária ministra negra entre 40 pastas e secretarias com status de ministério.

            O grande Chesterton dedica um capítulo de Os Hereges à questão das raças. Lá pelas tantas, escreve: "Todos os mais autênticos ingleses se aborreceriam ou escarneceriam abertamente se começássemos a falar sobre anglo-saxões. (...) A verdade disso tudo é muito simples. A nacionalidade existe, e nada neste mundo a relaciona a raça". E cita Timothy Healey: "Nacionalidade é algo pelo que as pessoas morrem".  O Brasil, porém, vai deixando de ser a nação pela qual morreram tantos antepassados nossos para se tornar um amontoado de corpos sociais em conflito, sob a fraudulenta reengenharia social dos corregedores do passado. Está se oficializando como um país racista, onde a identidade fundamental passa a ser a cor da pele.

Zero Hora, 1º de dezembro de 2013

Percival Puggina (3): partido que defende criminosos e quadrilheiros

No País da Impunidade
Percival Puggina


Você está surpreso? Eu não. Nunca levei a sério políticos e partidos que centravam sua estratégia rumo ao poder no ataque impiedoso à honra dos adversários e na afetação de virtudes excelsas. Muito escrevi sobre a conduta irresponsável dos que, sem qualquer escrúpulo ou discernimento, se apresentavam com lança-chamas e tonéis de gasolina ao menor sinal de fumaça que surgisse nas proximidades de seus oponentes. Mas a estratégia foi exitosa. A sociedade sentiu-se inclinada a crer na virtude dos acusadores, desatenta para o fato de que onde estiver o ser humano estarão presentes as potências do mal e do bem. E o que melhor detém a ação do mal é a certeza da punição. Na política não existe imunidade natural frente ao poder de corrupção. Nem frente à corrupção nos escalões do poder. O que funciona é a certeza de que as instituições estão moldadas de forma a identificar e punir os culpados. E o Brasil não chega em 63º lugar no ranking da honestidade sem uma bem consolidada cultura de impunidade.

            Em nosso país, a mentira é direito humano. A impunidade é cuidadosa construção. Lança fundações nos meandros de leis e códigos em cujos labirintos se orientam os bons advogados. Ergue paredes nos flagrantes não homologados por motivos irrelevantes. Lança pilares e vigas na permissividade das execuções penais e na benevolente progressão das penas. Ganha telhado quando a criminalidade é tanta que muitos delitos ficam banalizados, inclusive sob a ótica da sociedade e de seus julgadores. A maioria dos crimes praticados no país sequer é notificada pelas vítimas. O telhado protetor da impunidade foi, assim, posto e bem posto. Somos um estranho país onde é acusado de criminalizar os movimentos sociais quem comete a inaudita violência de descrever o que fazem. Somos um país onde condenados passeiam livremente nas ruas porque não há vaga nos presídios. E não se constroem presídios.

            Pois o rumoroso processo do Mensalão realiza a façanha, depois de sete longos anos, de chegar ao período de sentenças definitivas, transitadas em julgado. Não faria o menor sentido discutir, aqui, a correção das condenações. Quase todas foram proferidas por ministros do STF indicados pelo governo do partido dos réus. Ambos, governo e partido reconheceram os crimes. O próprio Lula, em 12 de agosto de 2005, no auge do escândalo, falou à nação: "Eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis, das quais nunca tive conhecimento. (...) Não tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir desculpas. O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas" (há vídeo no YouTube com o título "Lula pede desculpas"). No mesmo dia, Tarso Genro, no exercício da presidência do PT, anunciou a refundação do partido e disse que este iria punir cada um dos envolvidos em denúncias de corrupção e caixa dois para financiamento de campanhas (Agência Brasil, 12/08/2005). O atual Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, na edição da revista Veja de 20/02/2008, em longa entrevista às Páginas Amarelas, reconheceu: "Teve pagamento ilegal de recursos a partidos aliados? Teve. Ponto Final. É ilegal? É. É indiscutível? É. Nós não podemos esconder esse fato da sociedade".

            Agora, desmentem a si mesmos! Adotam uma estratégia desesperada, que fala em "presos políticos", tenta criminalizar o STF, pretende denegrir a imagem do ministro Joaquim Barbosa, e deseja vitimizar os presos perante a opinião pública. É o derradeiro desserviço prestado pelos réus do Mensalão e seus companheiros a uma nação que precisa vencer a impunidade. Talvez pretendessem sair deste processo sentenciados a fazer o que melhor fazem: distribuir algumas cestas-básicas ao povo.

Percival Puggina (2): o petroleo dos companheiros, esse liquido nauseabundo...

No país da petrodemagogia
Percival Puggina
Zero Hora, 03 de novembro de 2013

Em 2007, foi anunciada pela Petrobrás a descoberta de um megacampo, batizado com o nome de Tupi. Passados três anos, depois de muito Tupi para cá, Tupi para lá, o alto comando da Petrobrás resolveu trocar o nome do campo para... para que outro nome, mesmo? Adivinhe! Pois é, depois de guri grande, o campo de Tupi virou Campo de Lula. Há, em nosso país, uma histórica e bem sucedida petrodemagogia. Quem entra no Portal Brasil, por exemplo, e lê a nota do governo sobre o Campo de Libra e o Pré-sal vai pedir para ser congelado hoje e levado ao microondas daqui a alguns anos. No entanto, é importante para a política do poder que essas riquezas minerais, sepultadas sob quilômetros de coluna d'água e ainda mais espessas camadas geológicas, rendam votos no curtíssimo prazo.
Esse é o raciocínio que explica os abusos políticos e de informação envolvendo a Petrobrás. Em 2006, o ex-presidente Luiz Inácio pousou na plataforma P-50 e, minutos após, exibiu para os fotógrafos as mãos lambuzadas de óleo extraído da Bacia de Campos. O fato foi comunicado à nação como início da autossuficiência. O Brasil se tornaria exportador. A vaga na OPEP estava logo ali, provavelmente ao lado da cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Mas o dito logo ficou pelo não dito. Os anunciados saldos positivos que viriam para a balança comercial do país a partir de 2010 viraram saldos negativos e assim se mantêm. Até o passado mês de agosto o Brasil já gastara, só neste ano, US$ 28 bilhões em importação de petróleo e derivados e essa conta joga no vermelho a balança comercial de 2013
            Pensando sobre isso, e já sabendo que quatro empresas haviam desistido de participar, acomodei-me diante da tevê para assistir ao leilão do Campo de Libra. A Globo News, sei lá por quê, demonstrava imenso interesse em duas pacíficas e ociosas barreiras que se entreolhavam no meio da avenida. Numa estavam alinhadas tropas militares. Noutra, pequeno grupo de manifestantes. A tranquila cena atraía tanto a atenção da emissora que ela repartia igualitariamente: meia tela para cada evento.

            Assistir o leilão do campo de Libra me fez lembrar aqueles filmes nos quais nada acontece e a gente resiste teimosamente só para saber onde aquilo vai dar. E dá em nada mesmo. Perdi meu tempo testemunhando um conflito que felizmente não houve e um leilão que infelizmente não aconteceu. O único consórcio que apresentou proposta tinha a Petrobrás como líder e foi declarado vencedor pelo lance mínimo admitido. Isso é leilão que se apresente num negócio de tamanho porte? Por que tanto desinteresse mundial em riquezas que o governo anuncia tão promissoras e pródigas? Mesmo assim, horas após, a presidente veio a público festejar o resultado do evento e partilhar hipotéticos trilhões de reais que sanearão todas as carências do país. É a arte de gastar, retoricamente, recursos talvez alcançáveis em futuro remoto, convertendo-os em votos na urna de logo mais.

            No dia seguinte, ainda ponderando as patéticas cenas da véspera, abro minha caixa de e-mails e o primeiro que me cai sob os olhos dizia assim: "O Brasil comprou do Brasil uma reserva de petróleo para ficar com 40% para o Brasil". Disse tudo.