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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 22 de outubro de 2017

Programa do PT para as eleicoes presidenciais de 2002 - comentarios PRA

Como em vários outros casos, não pude dar divulgação pública de minhas análises e comentários aos programas e plataformas eleitorais apresentados pelos diversos candidatos às eleições presidenciais de 2002, quando eu ocupava o cargo de ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Washington. Esses textos foram mais dirigidos aos programas e propostas do PT porque simplesmente se tratava do partido mais vocalmente dedicado à expressão pública de seus pontos de campanha, e também porque eu já pressentia que o partido iria ganhar as eleições.
Como nos aproximamos de novas eleições presidenciais, quando as mesmas propostas podem voltar a ser feitas, no mesmo tom demagógico e eleitoreiro, dou conhecimento de minhas críticas feitas 15 anos atrás. Quem sabe os candidatos melhoram suas propostas desta vez?
Paulo Roberto de Almeida


O Programa de Campanha do PT em 2002:
arredondando o quadrado ou ainda a quadratura do círculo?

Washington, 29/06/2002

Depois de muita discussão, alguma hesitação e certamente toneladas cúbicas de transpiração, o PT conseguiu finalizar e apresentar ao distinto público seu programa político para a campanha presidencial de 2002. A versão definitiva ainda está sendo trabalhada pelos líderes do Partido (que, espera-se, devem corrigir alguns erros de Português da versão resumida apresentada pelo jornal O Estado de São Paulo), mas o texto que foi transcrito no Estadão deste sábado 29 de junho já é suficiente para termos uma idéia do que vem pela frente em termos de propostas inovadoras e idéias criativas para tirar o Brasil do impasse e conduzi-lo a uma nova fase de crescimento com justiça social.
Se eu pudesse resumir o sentido geral do documento, ainda que correndo o risco de ser massacrado pelos meus amigos petistas, eu diria tão simplesmente: neoliberalismo envergonhado e compromisso retórico com o social. Senão vejamos.
A reportagem abre com uma síntese das boas intenções do PT: “O programa de governo do PT propõe crescimento econômico de 7% ao ano, garante que o partido não vai romper contratos nem revogar regras estabelecidas. Diz ainda que os compromissos internacionais serão respeitados e que as mudanças necessárias serão feitas “democraticamente, dentro dos marcos institucionais”.
Bem, se não há rompimento de contratos, nem revisão de regras e se as mudanças serão todas feitas dentro dos marcos institucionais, o que isto significa senão reformismo puro e simples? Algo de diferente ocorreria com o PSDB, com o PPS ou mesmo com o PFL? Provavelmente não, o que confirma a enorme evolução do PT desde as campanhas fracassadas de 1989, 1994 e 1998. Por outro lado, a “proposta” de crescer 7% não deve ser levada a sério, pois se trata… de simples proposta, sem garantia de concretização. Assim fica fácil montar programa, pois pode-se fazer um “caderno de desejos” e oferecer ao eleitor crédulo.
O objetivo é certamente nobre, pois como afirma o documento revelado pelo Estadão, o governo do PT “vai trabalhar dia e noite para que o País evolua da âncora fiscal para o motor de desenvolvimento”. Aqueles que apreciam raciocínios lógicos, isto é, um mínimo de correspondência conceitual entre os elementos de uma mesma equação, ficam se perguntando como é possível comparar “âncora fiscal” (um mero instrumento monetário e contábil) com “motor de desenvolvimento”, projeto grandioso que abarca praticamente todos os instrumentos de política econômica à disposição de um governo. Concedamos, porém, ao PT, o benefício da dúvida: ele quer colocar o desenvolvimento no centro das políticas econômicas, sem que ele diga exatamente como vai alcançar a taxa indicada (7%, indicada como “vocação histórica” do Brasil). Os economistas, como eu, sempre serão um pouco mais céticos em relação a essas metas pré-fixadas, mas vamos e venhamos: todos os economistas do Brasil não conformam sequer 1% da população, o que constitui, para todos os efeitos, um eleitorado insuficiente para definir qualquer tipo de votação (ainda que esse número seja suficiente para criar ou desfazer credibilidades). Primeira constatação, portanto: o PT já é um partido reformista, ainda que ele não se reconheça como tal.
Em segundo lugar, se diz que “A inflação será mantida sob controle, para que a poupança nacional seja orientada e estimulada, garante o PT.” Excelente, mas no mesmo dia em que aparece essa proposta inteligente, o “economista-chefe” do PT, professor Guido Mantega, deu entrevista ao mesmo jornal criticando o sistema de “metas de inflação” do governo e dizendo que um indice de “4% em 2003 ainda não é realista”. Depois de afirmar nominalmente que “A burrice gera inflação”, Mantega considerou que as metas de inflação num governo Lula serão mais realistas, dizendo o o seguinte: “Serão estabelecidas metas mais realistas, o que não significa frouxidão inflacionária. Não vou falar do próximo ano. Mas para este ano, 2002, eu diria que 5% ou 5,5% seria uma meta razoável.
Ora, um candidato ao cargo de ministro da Fazenda que já começa antecipando que a inflação está muito baixa e que ele se “contentaria” com um pouquinho mais, é porque pretende fazer o povo sofrer. Em primeiro lugar, nenhum ministro econômico são de espírito e nenhum presidente de Banco Central com os neurônios funcionando ficam expressando satisfação com um objetivo mais elevado para a inflação. Em segundo lugar, se esse desejo é tomado como “meta”, ele servirá certamente de piso para o novo patamar de crescimento de preços, o que atua seguramente em detrimento de todos aqueles que não têm condições de corrigir os seus “preços” de mercado (poupança, salários, rendimentos fixos etc.). Alguém já viu pobre ganhar da inflação? Segunda constatação, portanto: o PT gosta de fazer o povo sofrer.
Num terceiro conjunto de questões, conseguimos ficar mais perplexos do que o militante do PT que estava esperando uma ruptura com o capitalismo e com as políticas neoliberais. O partido confessa que não sabe o que colocar no lugar da “âncora fiscal”. O programa diz textualmente: “É preciso evitar que se consolide uma nova armadilha no País, aquela que estabiliza, mas impede o crescimento. Já tivemos a armadilha cambial. Saímos dela em 1999 com muitas dores, mas sobrevivemos. Agora, temos o dilema da âncora fiscal. A questão é como superá-la sem atentar contra a estabilidade da economia”. Trata-se de verdade de um dilema hamletiano: como fazer o país expandir a economia sem disparar a sineta dos desequilíbrios nas contas públicas. Crescer ou não crescer, eis a questão! Seria bom que o PT pudesse oferecer uma alternativa credível em termos do mecanismo que pretende colocar no lugar do superávit ou da “âncora fiscal”. Terceira constatação, portanto: o PT tem muitas dúvidas e poucas respostas. Como aliás a maioria dos economistas. Bem vindo à realidade!
Um bom exemplo desse tipo de dilema aparece na questão do volume necessário do superávit primário. Segundo o programa, “O nosso governo vai preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente em relação ao PIB e destrua a confiança na capacidade do governo de cumprir seus compromissos.” Mas se ele fizer apenas isso não vai conseguir baixar os juros. O que o PT deveria fazer, desde já, seria anunciar que pretende elevar o superávit para 5 ou 6% do PIB, pois isso significaria, de imediato, que o governo não precisará se abastecer no mercado, não vai concorrer com os particulares e portanto não vai pressionar os juros e, a rigor, terá recursos suficientes para recomprar uma parte dos títulos da dívida pública que ficam servindo de “prato feito” para esses verdadeiros gigolôs da despoupança estatal que são os banqueiros. Se o PT fizer apenas o necessário nessa área, seu governo vai continuar refém desses sanguessugas da economia nacional que são os banqueiros. Quarta constatação: o PT adora banqueiro (ainda que ele não desconfie disso).
No que se refere, por fim, à política externa ficamos avisados do seguinte: “A política externa será instrumento fundamental para que o governo implante um novo projeto de desenvolvimento nacional, diminuindo a vulnerabilidade do País frente à instabilidade dos mercados globais, agravada pelo crescente protecionismo e garantindo uma presença soberana do Brasil no mundo”.  Excelente como discurso grandiloquente, se não fosse pelo simples pormenor de que a intenção está completamente equivocada. Projeto de desenvolvimento nacional se define internamente, em função de instrumentos e políticas públicas de caráter interno, sendo a externa mera conseqüência daquela que se define no plano doméstico, não o contrário. O PT repete aqui o mesmo cacoete que parece ter atingido o presidente FHC quando este deblatera contra os “capitais voláteis” como fontes de instabilidade econômica e de crises financeiras.
Não parece passar pela cabeça desses senhores, FHC e Lula, que a instabilidade e os “ataques especulativos” não são seres alienígenas que resolvem um belo dia atacar algum país incauto, caindo sobre eles assim como um raio num céu azul de primavera. Não lhes vem à cachola que a instabilidade é um dado da realidade interna do País, não algo externo à ele, que o Brasil não é vulnerável porque os capitais americanos, europeus ou japoneses assim o decidiram, mas porque os fundamentos de sua economia não vão bem das pernas. Se isso não ficar claro, de uma vez por todas, o PT vai continuar disparando bobagens contra a “instabilidade dos mercados globais” e deixar de fazer o dever de casa, que é fortalecer a economia brasileira e torná-la assim menos suscetível de sucumbir aos ataques dos “capitais voláteis”. Os economistas do PT deveriam no entanto saber muito bem que não há capital volátil que resista a uma boa quarentena, ou a um imposto financeiro de 10 ou 15%, o que está inteiramente nas mãos do governo decidir.
Por que o governo brasileiro não o faz? Provavelmente porque não consegue se libertar da “drug addiction” do capital estrangeiro. E por que ele não consegue? Talvez porque tenha um desequilíbrio fundamental nas contas públicas, internas e externas. Essa equação vai ser resolvida externamente? Obviamente que não, daí a razão de porque o PT se equivoca completamente quando pretende atribuir à política externa uma missão que pertence inteiramente à política interna. Por outro lado, construir frases em torno do “crescente protecionismo” e pretender garantir “uma presença soberana do Brasil no mundo” não nos leva a lugar nenhum. Em primeiro lugar porque o protecionismo pode ser uma desculpa, ou no máximo uma explicação (parcial) para os nossos problemas, mas não uma solução. Em segundo lugar, porque soberania não se afirma, sobretudo de modo gratuito, sem definir seus instrumentos, mas ela se pratica, no dia a dia, determinando um IOF contra os “capitais especulativos”, por exemplo. Quinta constatação: o PT não sabe para que serve uma política externa ou quer fazê-la cumprir missões que pertencem ao terreno da política interna. Seu chanceler vai ter de passar por umas aulinhas no Instituto Rio Branco antes de poder se qualificar para o cargo…
Aprofundando no terreno da política externa, ficamos sabendo o que o PT pensa da Alca: “A implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos, e tendo em vista as recentes medidas protecionistas adotadas pelo governo daquele país pode representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente, especialmente do Brasil. Sem o abandono das recentes medidas protecionistas do governo norte-americano, a política de livre comércio fica inviabilizada”. Aqui podemos desde logo começar por uma sexta e importante constatação: o PT é a favor do livre comércio, o que é absolutamente surpreendente conhecendo-se sua trajetória anterior e sua retórica reincidente contra o livre-cambismo.
Mas, os economistas do PT não precisam ficar de modo algum envergonhados com essa afirmação “herética” do programa, pois um brilhante predecessor também era a favor do livre comércio: Karl Marx! Isso mesmo, o velho barbudo, inimigo visceral do capital e dos capitalistas. Quem conhece o seu discurso sobre o livre comércio, pronunciado em reunião da associação de trabalhadores de Bruxelas, em 1847, antes que ele redigisse com Engels o Manifesto do Partido Comunista, sabe do que estou falando. Quem não conhece (e suspeito que são maioria no PT), recomendo ler urgentemente esse “texto fundador”: ali pode-se encontrar argumentos edificantes sobre como conciliar a luta contra o capitalismo e a favor do livre comércio. Nenhum problema de angústia filosófica, portanto, ao promover ao mesmo tempo a construção da Alca e a derrubada do capitalismo no hemisfério. Duas citações de Marx curam o problema existencial.
Agora vejamos os equívocos do resto do programa “alcalino” do PT. Ele recusa a “implementação da Alca nos termos definidos pelo Senado dos Estados Unidos”, mas a menos que o PT pretenda negociar dentro do Senado americano, ele vai mesmo encontrar os burocratas de sempre, do USTR, dos departamentos do Comércio, de Estado ou da Agricultura, nas reuniões do processo negociador hemisférico. As negociações se fazem com base em documentos apresentados pelos países, de demandas de acesso a mercados, de concessão de ofertas de abertura de seus próprios mercados, de definição de normas relativas a políticas de concorrência, propriedade intelectual, fitossanitárias etc. Ou seja, nada está definido nos termos de nenhum país em particular, e será a barganha do “toma lá, dá cá” que permitira definir os “termos” do futuro (e ainda hipotético) acordo da Alca.
Por outro lado, achar que “medidas protecionistas adotadas pelo governo [dos EUA] podem representar a desestruturação do sistema produtivo dos países do continente” representa simplesmente confundir medidas de apoio interno com os resultados de um processo negociador que visa, justamente, desmantelar essas medidas protecionistas e assegurar o acesso ao mercado interno. Sem esse acesso, ou seja, sem o desmantelamento progressivo de barreiras e de fatores distorcivos do comércio, não existe acordo comercial digno desse nome. Creio que isto está bem claro para o governo atual e sua diplomacia, e tem sido repetido à exaustão pelos principais negociadores brasileiros, a começar pelo próprio presidente FHC em Québec. Mas, enfim, tomamos nota de que o PT pretende viabilizar o livre comércio desmantelando as “medidas protecionistas do governo norte-americano”, o que sem dúvida se encaixa na perspectiva da atual política externa. Onde está a novidade nas relações internacionais do PT, então?
Por fim, em relação à reforma da Previdência, a constatação é mais uma vez bem-vinda: “Os poucos menos de 1 milhão de aposentados do setor público, que se retiraram da ativa com salários integrais impõem as cofres públicos um déficit em torno de R$ 40 bilhões.” Mas, o governo atual vinha dizendo isto desde 1995 pelo menos, e pretendia justamente acabar com a iniquidade da desigualdade previdenciária, no que não contou, para dizer o mínimo, com o espírito de colaboração do PT. Será que, com o PT no governo, o PSDB vai se vingar e recusar a aprovação dessa reforma? Cruel dilema…
Última constatação, portanto: o PT é bem vindo ao neoliberalismo econômico e à responsabilidade fiscal. Com um programa tão ortodoxo (corrigido dos poucos equívocos que aqui apontamos), ele está pronto para fazer um grande programa de administração social-democrática do processo de reformas de que necessita o Brasil. Enfim, nada de muito diferente do que vinha tentando fazer a administração FHC, mas essas são as ironias da história.

[Washington, 29/06/2002]

Carta ao Povo Brasileiro (Lula, 2002): comentarios PRA sobre temas de politica economica e externa

Como em diversos outros casos vinculados a temas de política externa e de relacões internacionais, eu, dada minha condição de diplomata, não podia ficar divulgando textos de análise e sobretudo de crítica. É o caso deste aqui, em que eu me permitir ironizar a ignorância econômica do redator – certamente não o Lula – da Carta ao Povo Brasileiro, altamente demagógica, mas suficiente para fazê-lo ganhar (por uma série de outros motivos.
Paulo Roberto de Almeida


Lula e as relações internacionais do Brasil

  Washington, 24 junho 2002

Destaco, da Carta ao Povo Brasileiro, emitida por Lula no último sábado (22 de junho de 2002) e transcrita em sua íntegra mais abaixo, os seguintes trechos que podem ser pertinentes para um debate sobre posições dos candidatos em temas de relações internacionais:

(Soberania comprometida):
Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
Comentário: Seria preciso esclarecer em que a soberania está comprometida. Entendo que Lula se refira a nossa dependência financeira externa, que de fato é muito alta.

(Restaurar nossa presença no mundo):
a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo
Comentário: Não creio que nossa presença soberana ou respeitada tenha sido ameaçada, mas entendo que os candidatos sempre precisam dramatizar a situação para dizer que eles são capazes de resgatar isso ou aquilo.

(Erro de Português???):
A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição que tem esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
Comentário: Parece-me que os redatores do PT esqueceram algum verbo ou complemento verbal nesta frase, pois ela não tem uma finalização correta. Será que eles precisam voltar para o supletivo?

(Exportar mais e mercado interno):
O povo brasileiro quer mudar para valer. (...) Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas.
Comentário: Estou de acordo com exportar mais, ainda que eu me lembre que alguns meses atrás o Lula tinha dito que era preciso parar de exportar alimentos ou produtos agrícolas em geral até que todo brasileiro pudesse comer. Ora, o problema da fome no Brasil não tem nada, ABSOLUTAMENTE NADA, a ver com exportação de alimentos. Trata-se de um problema distributivo, de renda, não de produção. Por outro lado, a criação de um “amplo mercado interno de consumo de massas” em nenhum momento reduz ou aumenta a vulnerabilidade externa, que é determinada por fatores ligados a balanço de pagamentos, não pela dimensão do mercado interno. Será que os economistas do PT precisam voltar a ler os seus manuais de economia. Eu, na Faculdade, li todo o meu Samuelson, e aprendi certas coisas que hoje os economistas do PT parecem ignorar. Alguém pode me explicar a diferença entre mercado interno e mercado externo?

(Respeito as obrigações e compromissos externos):
Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
Comentário: O PT reconhece que há uma instabilidade financeira, e se compromete a respeitar os contratos e obrigações externas do País. Trata-se de notável evolução em relação a campanha de 1989, por exemplo, quando Lula convidava os demais países em desenvolvimento a aplicar um calote na dívida externa. Vivendo e aprendendo...

(Duvidas na capacidade do Brasil de honrar seus compromissos):
À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Comentário: Sem duvida, devemos reconhecer que o Brasil está fragilizado interna e externamente, por uma enorme dívida global, privada (maior na parte externa) e pública (essencialmente interna). Sua origem é conhecida: nossa imensa capacidade de viver acima dos nossos meios, de gastar mais do que arrecadamos (até que produzimos superávit primário, mas por outro lado continuamos a tomar dinheiro para rolar a dívida, pagando, e muito caro, nossos juros). Precisamos saber também, antes de fazer demagogia, qual a origem dessa situação. Além do desequilíbrio histórico do estado brasileiro (que o governo tentou corrigir fazendo reforma previdenciária, por exemplo, sempre oposta pelo PT, que defende suas corporações de funcionários públicos), não se pode deixar de lembrar todos os “esqueletos” que o governo atual absorveu, sobretudo sob a forma de renegociação das dividas estaduais e municipais. Ou seja, esse endividamento não foi feito apenas para contentar banqueiros, como parece acreditar o PT, mas por causas objetivas, que são muito difíceis de corrigir, a começar pela baixa taxa de poupança interna.

(Jogando a responsabilidade da instabilidade no Governo:)
Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.
Comentário: Vamos ser claros: a responsabilidade é totalmente compartilhada. Nasce de dificuldades objetivas, como as relatadas em meu comentário anterior, que são de responsabilidade, mas não exclusiva, do atual governo, mas também nasce, quer queira ou não o PT, do temor natural de que uma mudança no comando econômico, em favor de quem até agora prometia “mudar tudo”, possa representar quebra de contratos e calote na divida interna e externa.

 (Qual é mesmo o modelo alternativo?):
Nascem, sim, da graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil. Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Comentário: Totalmente de acordo com o PT, mas se eles não apresentarem concretamente quais são esses caminhos alternativos, podemos considerar que se trata de demagogia barata. Ou o PT diz claramente o que pretende fazer ou então para de ficar fazendo crítica genérica.... Talvez eles queiram referir-se a Índia, China, Rússia. Esses países estão mesmo melhor do que o Brasil? Ou será que Lula vai apontar os exemplos dos EUA, da Inglaterra, da França, exemplos de democracias avançadas com grau razoável de bem estar para suas populações. Mas esses países são neoliberais, para dizer o mínimo. Como é mesmo que ficamos?

 (Populismo cambial):
Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas.
Comentário: Parece que só o PT não sabia que o real estava sobrevalorizado até o começo de 1999, pois dezenas de economistas de oposição, da situação, de direita mesmo (como o Delfim Netto), não cansavam de dizer isso todo dia, pela imprensa. No plano internacional, o índice BigMac do The Economist dava uma sobrevalorização de 15 a 20 por cento para o real e de 35 por cento para o peso argentino. Ou seja, não havia novidade nenhuma nisso. Só um governo imbecil poderia sair por aí dizendo que o câmbio está defasado e que seria preciso ajustá-lo à realidade econômica. Ou seja, nenhum governo responsável faz isso com uma “mercadoria” tão sensível como o câmbio e se o PT estivesse no governo naquela ocasião teria feito a mesma coisa.
O que o PT se esquece de dizer é que esse real sobrevalorizado foi essencial para combater a inflação e que sem ele a relativa redistribuição de renda que ocorreu no começo do Plano Real nunca teria ocorrido ou pelo menos não na mesma proporção. Ou o PT é contra consumo das massas e barateamento da produção interna? Isso só ocorreu graças ao populismo cambial . Como dizem meus colegas economistas, tudo tem o seu “trade-off”, ou seja, nada vem de graça, sempre há um preço a pagar pelas medidas econômicas que se adota para resolver este ou aquele problema. Naquela conjuntura, a quebra da espinha dorsal da inflação era o mais importante, daí o “populismo cambial”.

 (Esqueceram, outra vez, o manual de economia?):
Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo.
Comentário: Por que a âncora fiscal seria inerentemente frágil? Só porque o PT não gosta dela? Ele tem alguma outra ancora para propor, ou pretende dispensar qualquer âncora? Na verdade o que está sendo usado no lugar da ancora cambial é o sistema de “inflation targetting”, ou metas de inflação. Se o PT tem algo contra precisa dizer exatamente o que.
Agora achar que finanças públicas se resolve com “melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo” é de uma burrice tão atroz que dispensa comentários. Isso pode, se tanto, melhorar a situação das contas externas, mas nunca a das contas públicas, que dependem sim de algum tipo de equilíbrio fiscal. Parece que os economistas do PT precisam voltar a ler o Samuelson.... que esqueceram no caminho.

 (Inconsistências várias:)
Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas.
Comentário: O agronegócio já contribui para diminuir nossa dependência externa e não foi preciso esperar o PT para sabermos disso. A agricultura familiar se insere nesse contexto, quando está ligada a uma cadeia produtiva, como é o caso dos estados do sul e sudeste. No resto do Brasil, geralmente agricultura familiar está mais ligada aos mercados locais, quando não é função de um sistema de mera subsistência. Reforma tributária ninguém é contra, mas o PT precisa dizer exatamente qual o seu modelo preferido e como pretende implementá-la. Política alfandegária quer dizer o que: modernizar as aduanas? Isso geralmente da mais despesa do que receita. Só se o PT quer falar de politica comercial, mas fazer isso sem referência ao Mercosul seria impossível. O PT já ouviu falar de Tarifa Externa Comum? Pretende mudá-la?
De resto, é bem vinda sua intenção de canalizar recursos para atividades capazes de gerar divisas. Ele antes tinha uma obsessão pelo mercado interno e era contra o mercado externo, sem que se consiga saber por que diabos tinha essa atitude. Deve ser parte do preconceito de muito esquerdista ingênuo contra os “mercados internacionais”.

(O PT parou de ler jornal?):
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Comentário: Ou muito estou enganado, ou o Itamaraty já vem fazendo isso que o Lula recomenda. Ele teria algo de novo a propor? Acha que o Itamaraty só serve para entregar flores e dar jantares para visitantes ocasionais?

 (Taxa de juros depende da “despoupança” estatal:)
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Comentário: A taxa de juros depende basicamente das necessidades de financiamento do setor público, que se abastece prioritariamente no mercado interno. Se o PT quer reduzir a chamada “vulnerabilidade externa”, deveria começar propondo um superávit primário de 5 ou 6 por cento do PIB, o que significa que o governo não precisaria mais ficar tomando dinheiro no mercado e mandaria o banqueiro deixar de ser gigolô do Estado e fazer o que ele fazer: emprestar dinheiro para o setor privado. Os juros baixariam rapidamente se o Governo parasse de concorrer com industriais e agricultores. Será que o PT vai fazer isso?

(Defendendo a burguesia nacional?:)
Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Comentário: Politica industrial é o que os industriais mais gostam: subsídio farto e barato, taxas de juros subsidiadas, dezenas de isenções fiscais, que vida boa... Parece que o PT herdou a mania do antigo Partidão (PCB) de querer ajudar a burguesia nacional... São os mesmos que colocam dinheiro em Miami  e praticam evasão e fraude fiscal. Acho que o comprometimento principal do PT deveria ser com a classe operária não com a burguesia...

(Então estamos de acordo: queremos crescer:)
Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.
Comentário: Certo, certo: é o que todo mundo quer. O PT tem a receita mágica do equilíbrio fiscal e do crescimento? Se tem precisa dizer, pois estamos há anos atolados no desequilíbrio e no baixo crescimento. Onde estão os gênios econômicos do PT? Se escondendo até depois das eleições? Mas, assim fica difícil ganhar eleição: se eles guardam as suas receitas geniais para depois, correm o risco de não ganharem as eleições por inconsistências eleitoreiras e timidez programática...

(Ufa: demorou para dizer isso...):
A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.
Comentário: Mas como é que passamos 7 ou 8 anos até o PT chegar a esta brilhante conclusão? Onde eles estavam este tempo todo? Brincando de esconde-esconde? Mas o governo vinha dizendo isso desde o começo, contra, aliás, a opinião do PT, que ainda há pouco dizia que um “pouquinho de inflação” era aceitável desde que aumentasse o crescimento... E a contestação da constitucionalidade da Lei de Responsabilidade Fiscal no STF? Como é que fica essa contradição pouco dialética?

 (Todo mundo de acordo?):
fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República.
Comentário: Parece que todos os candidatos propõem o mesmo, ao mesmo tempo. O Itamaraty vai ficar chupando o dedo?

Em síntese: bem vindo à realidade colegas do PT. Nada mais realista do que um economista de oposição no poder.

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São Paulo, 22 de junho de 2002

Carta ao povo brasileiro

O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político.
Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.
Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo.
A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer. A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição que tem esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país.
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública.
O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia par ao outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país.
Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.
Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.
Nascem, sim, da graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para a maioria da população. Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de manobra da política econômica no curto prazo é pequena.
O Banco Central acumulou um conjunto de equívocos que trouxeram perdas às aplicações financeiras de inúmeras famílias. Investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros, ficaram intranquilos. E os especuladores saíram à luz do dia, para pescar em águas turvas.
Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranquilidade e compromisso com o Brasil.
Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse. Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas.
Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo.
Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infraestrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas.
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo, de modo a evitar que a crise se agrave e traga mais aflição ao povo brasileiro.
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável.
Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.
Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos.
A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.
O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Exemplo maior foi o fracasso na construção e aprovação de uma reforma tributária que banisse o caráter regressivo e cumulativo dos impostos, fardo insuportável para o setor produtivo e para a exportação brasileira.
A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.
Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.
Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.
O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode revitalizar e impulsionar o conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o espaço da pequena e da microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar as exportações. Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República.
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça social.
O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a ideia de uma terceira década perdidas. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis.
Luiz Inácio Lula da Silva

Seguindo as disputas presidenciais: uma analise das eleicoes de 2002 em politica externa

O texto abaixo nunca foi publicado. Como nos aproximamos das eleições presidenciais de 2018, e eu vou continuar fazendo o que sempre fiz a cada escrutínio eleitoral – que é seguir as plataformas de campanha de cada candidato nos temas de política externa e de relações econômicas internacionais do Brasil – decidi ressucitar a análise que fiz naquela época, sem que ela pudesse ter sido divulgada.
Vou retomar o mesmo hábito em direção das eleições de 2018.
Paulo Roberto de Almeida


O PROJETO EXTERNO COMO PROJETO NACIONAL

A política externa na campanha presidencial de 2002


31 de março de 2002

O Brasil prepara-se para atravessar, desde a redemocratização de 1985, o seu quarto escrutínio eleitoral geral envolvendo uma campanha presidencial. Na campanha de 2002 os temas de política externa estarão bem mais presentes do que em 1989, em 1994 ou em 1994.
Nas primeiras eleições livres para presidente, desde a de 1960, o debate eleitoral esteve dominado e dividido entre as promessas miríficas de um demagogo, Collor, e a utopia socialista de um candidato operário, Lula. Em 1989 defrontaram-se duas concepções do mundo: a modernização capitalista proposta por uma cidadão de baixa estatura moral e o distributivismo fácil de um despreparado bem intencionado. Ganhou a promessa de reformas capitalistas, mas o presidente revelou-se a maior fraude política já conhecida na história do Brasil.
Em 1994, quem ganhou não foi um candidato, mas uma promessa de estabilidade econômica. Levou fácil, no primeiro turno, contra a mesmice de todos os demais candidatos, inclusive o símbolo da classe operária, que continuava a apostar na redenção salvacionista do Estado distributivista. Em 1998, repetiu-se o mesmo cenário: o povo continuou a votar pela estabilidade econômica, contra todas as outras promessas mais ou menos demagógicas das quais ele aprendeu a desconfiar.
Em 2002, o cenário é um pouco diferente. A população continua a preferir a estabilidade econômica (contra as promessas salvacionistas e distributivistas do eterno candidato operário, que aliás está bem mais “neoliberal” desta vez), mas ela também quer dois produtos supervalorizados na atual campanha: emprego (ou pelo menos a perspectiva de) e segurança pessoal, contra a violência urbana e a deliquência. Os estrategistas de campanha terão portanto de conciliar as exigências da clientela eleitoral em matéria de emprego e de segurança com as parcas possibilidades de um orçamento engessado, comprometido em alto grau com o pagamento de juros por causa da dívida pública. Que tenham sorte nessa tarefa de Sísifo!
Um tema, porém, deve distinguir-se dos demais na campanha de 2002: o da política externa, pouco presente nos escrutínios anteriores. Por causa do desastre argentino, da crise do Mercosul, dos dilemas da Alca e das demais negociações em curso (com a União Européia e no âmbito da OMC), e agora com a falência da “democracia bolivariana” do caudilho Chavez da Venezuela, a política internacional do Brasil assumirá um papel jamais visto nas campanhas presidenciais brasileiras. Qual deveria ser a postura dos candidatos nesse terreno?
O candidato do PT, como em todos os escrutinios anteriores, saiu na frente de todos os demais. Muito embora ela ainda não tenha um programa oficial, já se sabe o que ele pensa em política externa: ele favorece uma política agrícola subvencionista e protecionista (como a PAC da UE), ele se posicionou a favor da aliança privilegiada do Brasil com outros grandes países da “periferia” (China, Índia, Rússia) e ele ja se declarou contrário à Alca e a favor de um acordo do Mercosul com a UE.
Não é preciso comentar as ilusões e equívocos de Lula em termos de política econômica internacional (revelada, entre outros, pela sua aversão infantil ao FMI e à globalização), mas uma coisa precisa ficar clara: se ele for eleito, a diplomacia brasileira se retirará das negociações da Alca, deixando vaga a cadeira da co-presidência do processo negociador que o Brasil assumirá com os Estados Unidos a partir de novembro. Ou seja, o Brasil abandona um importante foro negociador da liberalização comercial apenas porque a militância petista tem aversão à Alca (mas favorece um acordo de livre comércio com a UE, sem que se saiba a diferença exata entre um e outro) e acha que esse projeto hemisférico é mais de “anexação” do que de integração. Santa ingenuidade!
O candidato do PPS, Ciro Gomes, foi ainda mais rápido do que Lula e já liberou uma primeira versão do seu programa de campanha, na qual recomenda que o Brasil entre nas negociações da Alca “sem pressa e sem medo”, esquecendo (ou ignorando) que as negociações já começaram e não se sabe de nenhum temor paralizando a diplomacia brasileira (sabe-se de dúvidas e incertezas, mas não se detectou ainda esse medo apregoado). Ciro acredita ainda que o Brasil deve fortalecer seu poder de barganha nesse processo negociando simultaneamente com a UE, a China e a Índia, sem que se saiba como, exatamente, a multiplicação de foros de liberalização comercial com esse parceiros (admitindo-se que seja possível, além da UE, onde o processo envolve o Mercosul) possa alterar significativamente o curso do processo hemisférico.
“Never mind”, diria seu mentor intelectual de Harvard, Mangabeira Unger, pois o Brasil “rejeita a idéia de inevitabilidade da Alca” e acha que a “formação de um espaço das Américas transcende os interesses apenas comerciais”. Conforme essa idéia brilhante, a diplomacia brasileira “insistirá em condicionar a integração comercial a políticas igualizadoras seguindo nisso o modelo da UE e não o do Nafta”. Ele quer ainda livre direito de imigração como parte do acordo, assumindo aqui a causa de milhões de latino-americanos que lutam para entrar nos EUA e realizar seu “sonho americano”, ignorando que os uruguaios também podem temer afluxo similar de milhares de brasileiros. Santa ingenuidade!
O candidato do PSDB, Serra, não disse ainda a que veio, mas parece endossar a maior parte das posições de política econômica e de política externa do atual governo: globalização sim, desde que compatível com nossos interesses e possibilidades, Mercosul também, porque afinal é o que temos como bloco comercial, Alca talvez, desde que satisfeitas determinadas exigências em termos de abertura do mercado americano a nossos produtos competitivos. Ou seja, more of the same, com algumas tinturas desenvolvimentistas e dirigistas, com convém a um antigo expoente do pensamento cepalino.
Mas, precisaremos esperar pela divulgação do programa do candidato do PSDB, provavel vencedor nas eleições de outubro, para analisar com mais cuidado suas propostas de política externa. Pelo que se conhece, ele fará diplomacia como Monsieur Jourdain fazia prosa: de forma involuntária, no caso mediante políticas comercial, industrial e tributária, o que pode não ser de todo mau. Como os diplomatas dependem mesmo das tarifas, dos incentivos fiscais e das regras tributárias para saber até onde podem avançar nas negociações comerciais, Serra pode acabar definindo com clareza os limites e possibilidades de nossa política externa nos próximos anos.
A campanha presidencial de 2002 promete ser movimentada e inovadora, e nela os temas de política externa, a começar pela Alca, assumirão uma importância jamais vista em eleições anteriores. Bom sinal, uma vez que demonstra que o Brasil já está plenamente inserido nos “ares do tempo”, a despeito do que pensam os anti-globalizadores de todos as vertentes. Tanto Ciro Gomes como Serra, dois dos principais candidatos, parecem deixar em aberto as possibilidades do Brasil no processo da Alca, cujo destino será mais determinado pela atitude do Congresso americano do que pelo que digam ou façam os diplomatas.
Só o candidato do PT, Lula, tem uma posição fechada sobre a Alca: ele é contra e no máximo admite um plebiscito nacional, a ser organizado pela CUT, pelo MST e pela CNBB, com resultados mais do que previsíveis. Com esse tipo de atitude principista não é preciso ter política externa: basta providenciar meia duzia de porta-vozes e proclamar os velhos preconceitos de sempre contra o “imperialismo americano” e tudo estará resolvido. Pena que o mundo não é tão simples como apregoa a filosofia do PT. A inconsistência desse tipo de posicionamento em política externa também estará em julgamento nas eleições de outubro.

31/03/2002

sábado, 21 de outubro de 2017

Meu primeiro texto contra os antiglobalizadores - Paulo Roberto de Almeida

Retornando de Paris no final de 1995, terra dos antiglobalizadores por excelência, desde sempre, encontrei os primeiros representantes da espécie brasileira entre os simpatizantes do PT, numa época em que ainda não existia o Fórum Social Mundial, mas já se desenhavam as estratégias dos chamados altermundialistas, ou antiglobalizadores, e sua busca por um mundo impossível, no qual a globalização não existiria.
Este foi provavelmente o primeiro artigo que escrevi a respeito, datado de fevereiro de 1996, mas que ficou inédito desde então.


As contradições da antiglobalização:
uma ordem internacional alternativa é possível ?

Paulo Roberto de Almeida

 
Comentando a conferência pronunciada na Índia pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso sobre as conseqüências sociais da globalização, o economista e professor da USP Paul Singer (em artigo publicado nesta Folha em 11.02.96, “O fim forçado das contradições”), tece algumas considerações sobre o suposto conformismo do Presidente em relação a propostas alternativas que o Brasil ou outros países poderiam eventualmente promover para escapar ou minimizar os efeitos nefastos que aquele processo acarreta. O lado negativo da globalização implica desemprego crescente, perda de soberania estatal sobre os processos produtivos, ausência de controle sobre os fluxos financeiros e, de modo geral, uma diminuição do bem-estar social para amplas camadas da população, quando não para países inteiros.
O pressuposto de Singer é o de que o Presidente tenta conciliar a realidade da globalização, considerada inevitável e incontornável, com os “velhos ideais da esquerda”, supostamente comprometidos com maior justiça social, objetivos distributivistas e um controle mais afirmado sobre o capital privado, de maneira a assegurar o predomínio dos “interesses nacionais” sobre os fins predominantemente egoístas do capitalismo internacional. Subjacente à sua argumentação está a idéia de que existe uma categoria de pessoas ou entidades que “manejam o capital global” ou que “selecionam vantagens comparativas” dos diversos países de forma a maximizar sua taxa de lucro. Aos países individualmente não restaria outra opção senão dobrar-se ao “arcabouço institucional e [ao] quadro regulatório [que] agradam [a]os dirigentes das grandes corporações”.
Voltamos assim a um dos mais velhos fantasmas da esquerda, que tende a conceber a ordem internacional como o resultado intencional de um grupo de países ricos ou de poderosas corporações multinacionais, organizando a seu bel-prazer - na calada da noite e ao abrigo de olhares indiscretos, geralmente nos salões acarpetados do mundo desenvolvido - a divisão internacional do trabalho e o papel que nela devem desempenhar os demais participantes do sistema global. É o que Marx chamaria de teoria conspiratória da história, ou seja, uma visão que coloca processos estruturais de largo prazo e de evidente complexidade intrínseca na dependência da vontade individual ou coletiva de alguns poucos atores desse atomizado mercado capitalista. Singer afirma, por exemplo, que a “globalização resultante da contra-revolução liberal do último quarto de século não precisa ser irreversível”, sem que ele diga exatamente quais seriam os mecanismos de reversibilidade desse fenômeno que vem se arrastando desde os tempos em que Marx e Engels escreviam o Manifesto do Partido Comunista, ou seja 150 anos atrás. Ele acredita ainda que “se houver vontade política por parte de alguns governos, a globalização poderá [a afirmação é peremptória] ser reorientada, deixando de estar submetida à hegemonia do capital privado”. Mais otimisticamente, ele proclama que “sempre será possível reinstaurar algum controle intergovernamental do movimento internacional do capital financeiro e produtivo, seja pela ação de um agrupamento informal de economias poderosas, como o G-7, por exemplo, ou de algum organismo multilateral, como o FMI ou o Banco Mundial”.
O Professor Singer não parece ter-se dado conta de que, nos tempos que correm, o G-7 controla uma parte progressivamente menor das riquezas ou fluxos financeiros e comerciais do planeta, que sua influência real sobre as transferências maciças de capital entre as economias chega a ser quase irrelevante ou que seus dirigentes, em cada encontro anual, estão mais preocupados com o estado calamitoso das finanças públicas em seus respectivos países (que influenciam os movimentos cambiais e a especulação contra suas moedas) do que com a suposta margem de liberdade deixada aos mercados e capitais privados. O G-7 é apenas uma tentativa (largamente insatisfatória) de conciliar objetivos internos e interesses nacionais das economias autoproclamadas mais poderosas e não um diretório internacional do sistema capitalista que, como Marx ensina, é absolutamente anárquico em suas formas de organização e distribuição. Singer também não percebeu que os volumes de recursos manipulados atualmente pelas instituições de Bretton Woods são ridiculamente pequenos comparados à enormidade dos fluxos transfronteiriços de capital, que se situam na faixa dos trilhões de dólares. O FMI, por exemplo, jamais teria conseguido organizar um pacote de ajuda ao México sem os “generosos” fundos aportados pelo governo dos EUA e é também conhecido que suas disponibilidades financeiras efetivas para sustentação de programas de ajuste estrutural ou de desequilíbrios em balanças de pagamentos são notoriamente insuficientes. Quanto ao Banco Mundial, sua carteira de empréstimos para o conjunto do planeta em 1996 é inferior ao volume de recursos que o BNDES pensa injetar (11 bilhões de dólares) na economia brasileira neste ano.
Acreditar que, nessas condições, esses governos ou entidades possam desviar o curso da globalização e suas exigências implacáveis é uma manifestação exagerada de otimismo, que não condiz com os dados do problema. O Professor Singer proclama, ainda assim, que “é mister que a esquerda e o movimento operário desenvolvam sua alternativa própria para a globalização, não para abolí-la mas para compatibilizá-la com os interesses das maiorias nacionais”. Curiosa manifestação de chauvinismo nacional num representante do pensamento marxista, supostamente comprometido com as virtudes do “internacionalismo proletário” que Marx empunhava naquele mesmo texto de 1848.
O Manifesto do Partido Comunista, como não deve ignorar o Professor Singer, é uma espécie de hino em louvor à burguesia revolucionária e ao poder propriamente avassalador do capitalismo modernizador. Cabia a este a imensa tarefa - propriamente revolucionária, na linguagem de Marx - de unificar os modos de produção arcaicos (feudais, asiáticos, pré-capitalistas, em suma) ainda em vigor em boa parte do planeta naquele período, aniquilando os “regimes bárbaros” que impediam a dominação do capital e a constituição de uma classe operária vigorosa que um dia, chegada à sua maturidade, colocaria em cheque a apropriação privada dos meios de produção. A esse processo, analisado em primeira mão por Marx, chamamos hoje eufemisticamente de “globalização”, ou seja, a homogeneização das condições produtivas pelas forças de mercado e a circulação irrestrita de bens e serviços num mundo sem fronteiras, quando ele nada mais é do que a realização final dos processos “inevitáveis” anunciados no Manifesto de 1848.
É verdade que o “programa marxista” de unificação do mundo sob as regras do capital foi interrompido por algumas décadas, seja em virtude de comoções políticas e militares (guerras “inter-capitalistas” de 1914 e 1939), de crises temporárias de mercado como a dos anos 30 (que determinaram o fechamento da América Latina e a aplicação de modelos protecionistas de industrialização) ou ainda de alternativas “econômicas” ao capitalismo realmente existente, como foi a experiência leninista de planejamento estatal, aplicada nos modelos soviético e chinês de coletivização forçada dos meios de produção. Mas, esse curto parêntese histórico de sete décadas encerrou-se recentemente com a derrocada final do socialismo, e o capital retoma agora o curso “marxista” da história sem inimigos aparentes ou alternativas viáveis de organização social da produção.
Para não eludir o problema real colocado no artigo do Professor Singer, caberiam portanto algumas perguntas. Existem, efetivamente, alternativas ao capitalismo “predatório” atualmente em ação nos mais diferentes quadrantes do planeta? Seria possível, às economias e governos nacionais, subtrair-se individualmente ou em grupos de países às exigências da competitividade e do equilíbrio fiscal, convertidos, como bem salientou Singer, em novos dogmas da política econômica? Haveria condições de aplicar uma política econômica “não ortodoxa”, como parece pretender o professor da USP?
As respostas correm o risco de decepcionar nossos amigos da esquerda, na medida em que todos os esforços nacionais de adaptação às novas exigências da economia global parecem ser singularmente cruéis do ponto de vista social e político: aumento da produtividade do trabalho, diminuição das expectativas de emprego assegurado, redução de benefícios sociais em face dos enormes desquilíbrios fiscais enfrentados por todos os governos (desenvolvidos ou em desenvolvimento), flexibilização, enfim, dos controles governamentais sobre uma série de variáveis econômicas com vistas à adequação das unidades produtivas e empresas de serviços ao livre jogo das forças do mercado. Nenhuma ação individual ou articulada em bases geográficas restritas conseguirá deter a marcha da unificação planetária sob a égide do capital que, repita-se, não é governado por nenhuma força conspiratória a serviço de alguns poucos países dominantes ou de executivos de gigantescas transnacionais. O processo é impessoal, avassalador e propriamente irrefreável, podendo apenas ser colocado a serviço de objetivos nacionais de desenvolvimento econômico e social na medida em que o país se capacita tecnologicamente e em termos organizacionais (recursos humanos e em know-how) para poder competir no mercado selvagem que aí está.
Em última instância, não se trata de afirmar que fora da globalização não há solução, mas em reconhecer que a saída não está no isolamento soberano em relação às forças que moldam atualmente o sistema econômico internacional e sim na adaptação contínua das forças produtivas e das relações de trabalho de um país às novas condições da ordem internacional. A solução não passa pela diminuição da interdependência global, mas na crescente inserção do país na economia mundial, dando-lhe condições de competir vantajosamente nos mercados globais. Essas condições não são determinadas de fora, mas dependem inteiramente de nossa própria vontade política em reformar continuamente os processos produtivos e o sistema educacional do País, sem o que não há esperança de atenuar o impacto negativo da globalização. Parafraseando Orwell, poderíamos dizer que todos os países são interdependentes, muito embora alguns sejam mais interdependentes que outros.

Paulo Roberto de Almeida.
[Brasília, 14/02/1996]