Quando o euro foi introduzido como moeda fiduciária – ou seja, em 1999, antes de sua introdução efetiva, como meio circulante, o que só ocorreu em 2002 – eu recebi um convite para fazer um verbete sobre o euro para uma Enciclopédia de Direito.
Agora que o euro já completou 20 anos, pode-se ler este meu ensaio com o olhar crítico do que deu certo e do que pode não dar certo. A integração tem muitos requerimentos e o da unificação monetária é um dos mais difíceis.
Eu provavelmente vou escrever um novo ensaio, com a experiência – êxitos e frustrações – das últimas duas décadas, e as falhas se devem mais a decisões políticas dos países membros do que a deficiências da própria moeda. Enquanto isso, vale ler o que eu escrevia no início de 2000, com uma pequena revisão alguns meses depois, apenas para contemplar a questão de uma eventual moeda comum no Mercosul, este sim uma grande frustração.
Mas, como no caso do euro, a culpa não é do Mercosul, e sim por causa de decisões políticas dos países membros.
Vamos reler e refletir.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14 de janeiro de 2019
O euro: a
moeda europeia
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 719: 14/01/2000
In Carlos Valder do Nascimento e Geraldo Magela Alves (coords.), Enciclopédia de Direito Brasileiro, 2º volume: Direito
Comunitário, de Integração e Internacional
(Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002; ISBN
85-309-0860-0), pp. 214-219.
A inauguração do
euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda sob forma
escritural até o final de 2001 — de onze dos quinze países-membros da União
Européia, seguida de sua introdução efetiva, a partir de janeiro de 2002, como
meio circulante único dos integrantes da chamada “Euroland”, representam, para
a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no
sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença dominante do
dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e unidade de
referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. Essa
etapa recente do movimento de unificação monetária na Europa ocidental deriva
de um longo processo de aproximação econômica que pode ser remontado à visão
integracionista de Jean Monnet, do final dos anos 1940, e à concepção política
que presidiu desde então, à integração européia.
Com efeito,
ainda que não mencionada expressamente nos primeiros instrumentos jurídicos da
integração européia – o Tratado da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951,
e os Tratados de Roma, de 1957 – o projeto de um “poder monetário”
estava implícito nos propósitos a vocação “unionista” que foram dando sustentação econômica
ao alargamento progressivo dos campos de intervenção da então Comunidade
Européia. Os primeiros seis países que assinaram os Tratados de Roma (Alemanha,
Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos) já previam trabalhar com
políticas econômicas comuns, nomeadamente no domínio da agricultura. Esses
campos foram sendo depois ampliados para novos domínios, como os da indústria e
da ciência e tecnologia, ainda que não com o monitoramento estrito em matéria
de organização da produção e da comercialização como na agricultura ou com o
abandono completo de soberania em matéria de política comercial que representou
a concretização da união aduaneira, em 1968, e do mercado comum pleno nas
etapas subsequentes.
O movimento “unificacionista” no campo monetário começa
efetivamente a caminhar em meados dos anos 1960 — em pleno regime de paridades
fixas do sistema de Bretton Woods –, a partir do plano Barre (1967-69) e do relatório Werner
de união monetária (de
1968, mas aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez
anos). Ambos foram tornados inexeqüíveis pelo desmantelamento, entre 1971 e
1973, do sistema de Bretton Woods que, ao operar a desvinculação do dólar de seu valor
fixo em ouro, significou igualmente a interrupção desse processo por etapas de
unificação das moedas nacionais da então Comunidade Européia.
No regime de
livre flutuação de moedas que se seguiu, os países europeus avançaram nos
esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel” e
depois, como
resposta política à crise do sistema monetário internacional, o Sistema
Monetário Europeu (1979). O SME – com um número variável de países participantes, segundo as
épocas – funcionava segundo um mecanismo de banda cambial ajustável
entre as moedas participantes (tendo o marco alemão como âncora), mas com paridades
estreitamente correlacionadas entre si. De fato, durante a maior parte de
existência do SME, o mundo viveu em constante turbulência monetária, ocorrendo grandes
variações nos valores respectivos das principais moedas, o deutsche mark, o iene japonês e o dólar
dos Estados Unidos. No interior do próprio SME, contudo, as margens de variação recíproca
estabelecidas para moedas como o marco alemão e o florim holandês eram,
obviamente, bem menores do que aquelas permitidas para a flutuação de moedas
mais “fracas” como a lira italiana.
Em 1986, a adoção do acordo conhecido como “Ato
Único Europeu” deslancha o processo de unificação definitiva do mercado comum,
instituindo uma série de medidas adicionais de liberalização econômica, em
especial na prestação de serviços, inclusive financeiros, e na circulação de
capitais. Em 1989, o relatório Delors já proclamava o objetivo de uma futura
moeda comum, podendo-se considerar o ecu
– European currency unit, até então
um simples instrumento de contabilidade orçamentária – como o antecessor do
euro. Mas é o Tratado de Maastricht sobre a União Européia, de 1992, que dá os
fundamentos jurídicos da união econômica e monetária (UEM) e da moeda única
européia.
O Tratado de Maastricht, que entrou em vigor em
novembro de 1993, estabeleceu três fases para a concretização da UEM: a
primeira, com início em 1º de Julho de 1990, permitiu a livre circulação de
capitais e o oferecimento de serviços bancários além-fronteiras; a segunda, começando
em 1º de Janeiro de 1994, constituiu uma fase intermediária de preparação para
a moeda única, tendo assistido ao estabelecimento da independência dos bancos
centrais nacionais e à criação do Instituto Monetário Europeu, já com sede em
Frankfurt. A terceira fase, que começou em 1º de Janeiro de 1999, viu o
estabelecimento do Banco Central Europeu — no lugar do IME – e o lançamento da
moeda única (cujo nome, euro, tinha sido escolhido dois anos antes).
No decurso da
segunda fase seriam definidos os países habilitados a entrar na terceira fase
da união monetária, segundo rígidos requisitos de “bom comportamento
macroeconômico”, o que significou a instauração de uma coordenação reforçada
das políticas econômicas nacionais, visando a reduzir a inflação, as taxas de
juros e as flutuações cambiais, assim como os déficits e a dívida pública dos
Estados. Os
principais critérios de convergência definidos pelo Tratado de Maastricht
referiam-se à estabilidade dos preços, à disciplina orçamentária, às contas
públicas, à convergência das taxas de juros e à estabilidade das taxas de
câmbio. Concretamente, eles significaram que os países desejosos de aderir à
moeda comum necessitariam cumprir os requisitos seguintes: a taxa de inflação
não poderia ser superior em mais de um ponto e meio percentual à média dos três
Estados-membros com as taxas menos elevadas de inflação; o déficit público não
deveria ultrapassar 3% do PIB e a dívida pública não poderia ultrapassar 60% do
PIB; a taxa de juros de longo prazo não poderia ser superior em mais de dois
pontos percentuais à média dos três Estados-membros com as taxas menos
elevadas; no plano cambial, deveriam ser observadas, durante dois anos, as
margens normais do SME, sem tensões graves nem desvalorizações, o que nem
sempre pôde ser alcançado.
Com uma
avaliação algo mais política do que estritamente econômica dos critérios de
Maastricht (uma vez que nem a Bélgica nem a Itália, por exemplo, se
qualificavam do ponto de vista da dívida pública), em 1998 foram definidos os Estados-membros que
participariam do euro a partir de 1º de Janeiro seguinte. O Conselho Europeu de
Bruxelas (Maio de 1998) determinou que os Estados-membros participantes seriam
em número de onze: Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia França,
Irlanda, Itália, Luxemburgo, Países Baixos e Portugal. Três outros membros da
UE, Dinamarca, Reino Unido e Suécia, decidiram, por escolha própria, permanecer
à margem do novo esquema monetário e apenas um, a Grécia, não conseguiu se
qualificar em diversos critérios importantes. No final de 1998, foram fixadas
irrevogavelmente as taxas de câmbio entre o euro e as moedas nacionais, bem
como entrou em vigor a legislação sobre o euro, com o que os mercados
monetários e cambiais passaram a poder operar com euros.
A opção dos
Estados-membros da UE pela renúncia à soberania monetária e em favor da
administração coletiva da coordenação macroeconômica apresenta forte conteúdo
emblemático para a Europa unida do século XXI e para seu subsequente papel
internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais
estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a
ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevogável dos países membros com
uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente.
Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda
mundial” e seu papel eventual de desafio à hegemonia internacional do dólar
representarão a conseqüência natural da afirmação ulterior do poder econômico
da União Européia no plano internacional.
De fato, o euro
confirma uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em
curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90,
movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de
alguns global players e vincular
estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as
tendências à estabilidade do processo de integração européia no que se refere
aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas –
o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria
supostamente o caso do Mercosul –, ainda que a adesão permanente das
autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários,
por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e
Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse último acordo representou, como
se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada,
a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e
outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel
“social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de
estímulo à criação de empregos, como os franceses e italianos. Cabe recordar a
esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht,
as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits
orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles
Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de
Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e
compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).
No plano
interno, as vantagens do euro parecem evidentes: ele simplesmente suprime os riscos de
câmbio, reforça o mercado único e a convergência das economias e favorece o investimento
na zona do euro. Suas vantagens microeconômicas também são facilmente
demonstráveis, sobretudo do ponto de vista do viajante e do consumidor, ao facilitar as operações
financeiras transfronteiras, eliminar os encargos relacionados com as operações
cambiais e tornar totalmente transparente a comparação dos preços entre países
e mais especialmente regiões fronteiriças (e portanto a eventual punção fiscal
exercida por alguns Estados).
O período de transição, que vai de 1º de Janeiro
de 1999 a 31 de Dezembro de 2001, assiste ao desenvolvimento de processos
importantes do ponto de vista da implantação da nova moeda: os principais
agregados monetários e a emissões passam a ser de responsabilidade exclusiva do
BCE, os mercados financeiros passam a operar em euros, ainda que do ponto de
vista prático o euro só pode ser utilizado sob forma escritural (mas qualquer
pessoa passa a poder ter uma conta bancária em euros e emitir cheques nessa
moeda). Finalmente, no primeiro semestre de 2002, se terá a circulação das
notas e das moedas de euros, de modo concomitante à retirada progressiva das
notas e das moedas nacionais. O mais tardar em 1º de Julho de 2002 se assistirá
à supressão do curso legal das notas e moedas nacionais e passam a circular
unicamente notas e moedas de euro. Entretempos, outros candidatos – os atuais
ou futuros países membros da UE – poderão decidir-se por sua incorporação à
UEM.
Do ponto de
vista da “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será,
inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora
marginalmente complementado pelo deutsche
mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de
ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas
áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de
portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das
reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema
monetário internacional, o que está vinculado ao poder econômico da União Européia.
A importância da
União Européia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos. Com
uma população de aproximadamente 300 milhões de pessoas, o PIB comunitário de
cerca de 9 trilhões de dólares — similar ao norte-americano — cai ligeiramente
quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes
quando os países hoje ausentes da união monetária a ela aderirem numa fase
seguinte. A Europa mobiliza parte significativa – perto de um terço – do
comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de
capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados
emergentes. Seria de se esperar, por exemplo, que com base na política
conservadora do Banco Central Europeu, o euro contribua para a estabilização
dos mercados financeiros globais, ao lado do papel ainda dominante do dólar e
da importância reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras
internacionais. Não há, entretanto, nenhum acordo de princípio entre as
autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a
manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que
indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará
a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do
padrão-ouro ao final da belle époque
e do desmantelamento do regime de Bretton Woods nos anos 1970.
O fato inédito é
que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se —
da hegemonia do dólar no sistema financeiro internacional. Esse declínio da
predominância absoluta do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os
elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma
ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s
banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a
ganhar por inércia. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade
intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração
regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer,
quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá
atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior
da União Européia.
O comportamento
de uma moeda, contudo, é tanto a expressão das condições objetivas da economia
que a sustenta quanto o resultado de fatores sociais e psicológicos
subjacentes, basicamente a confiança dos detentores em seu futuro poder de
compra. Desse ponto de vista, o euro (ainda que apenas virtual) sofreu, desde
sua introdução, alguns percalços monetários e políticos: ele não apenas
enfrentou, em 2000, uma inesperada desvalorização de 25% frente ao dólar, em
vista de um desempenho econômico mais fraco (e da maior taxa de desemprego) na
Europa, como manifestou-se uma certa desafeição dos cidadãos em relação ao que
é percebido como um excesso de centralismo legislativo e de controles
burocráticos por parte de Bruxelas. Com efeito, a despeito dos progressos
efetuados pela Grécia no sentido de sua incorporação à UEM (a partir de 2001) e
da campanha favorável conduzida pelo big
business nos prováveis membros, em especial na Grã-Bretanha, o plebiscito
dinamarquês sobre a introdução do euro, efetuado em setembro de 2000, com
resultados negativos, pode sinalizar o reforço das correntes contrárias à
unificação monetária nos demais países e o aparecimento de uma espécie de
“marcha lenta” no processo de integração européia.
Que ensinamentos
ou que conseqüências poderiam ser extraídos a partir da experiência européia
para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum
como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer uma simples zona
de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da
moeda única deve ser colocada como objetivo final, ainda que longínquo. Um mercado
comum pleno, repita-se, pede naturalmente a moeda única. Atualmente, contudo,
parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas
simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é
um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não
introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos
potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras
dos países-membros do Mercosul devem reconhecer, antes de mais nada, que as
políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação
constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de
informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a
coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve
ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de
não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser
considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um
passaporte para a estabilidade.
Referência: A principal fonte
de informação sobre o euro e as economia dos países membros é a página do banco
Central Europeu, que comporta textos em português: http://www.ecb.int.
Paulo Roberto de Almeida
[Washington, 719: 14.01.2000]
[Revisão, 719b: 30.09.2000]