O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sábado, 16 de março de 2019

Metas na (e para a) educação brasileira - MEC apresenta um novo plano (sem ter cumprido o anterior)


O Plano Nacional de Educação foi aprovado em 2014, com inúmeras metas irrealistas, tendo-se em conta a notória incapacidade do MEC, do governo brasileiro em geral, e dos estados e municípios em cumprir metas, que são "para inglês ver", ficam no papel.
Em todo caso, cabe observar as metas e o seu cumprimento, começando pela última, a formação de professores, onde nada foi feito.
Paulo Roberto de Almeida

Metas na educação: veja comparativo das 7 prioridades do MEC com ações obrigatórias previstas na lei do PNE
G1, 16/03/2019

No fim de fevereiro, o ministro da Educação apresentou os sete pontos prioritários de sua gestão, que incluem uma nova política de alfabetização, mais disciplina na sala de aula e formação de mais intérpretes de Libras.
Sob o comando do presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Educação afirma que vai focar sua atuação em sete pontos prioritários. A lista foi apresentada pela primeira vez pelo ministro Ricardo Vélez Rodríguez a senadores no fim de fevereiro. Dos sete pontos, cinco abordam especificamente uma das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), consideradas por especialistas como a prioridade para a melhoria do ensino no país. 
Na audiência no Senado, o ministro não citou o plano em seu discurso e não chegou a responder às perguntas feitas por senadores e internautas durante a audiência a respeito do PNE – outras perguntas também ficaram sem resposta devido à falta de tempo. 
G1 também tentou entrevistar o ministro, e encaminhou perguntas por e-mail em 13 de fevereiro. As duas perguntas que mencionavam o PNE ficaram sem resposta – o MEC afirmou que estava "aguardando o levantamento das informações que está sendo feito pelas áreas técnicas", mas não apresentou prazo para respondê-las. 
  • O Plano Nacional de Educação (PNE) é uma lei de nível federal que foi aprovada em junho de 2014 por unanimidade no Congresso Nacional e à qual a União, os estados e municípios precisam cumprir;
  • Ele tem duração de 10 anos e 20 metas para a educação, desde o ensino infantil até o superior;
  • Algumas metas mais prioritárias já passaram do prazo, enquanto outras só precisam ser cumpridas em junho de 2024;
  • O órgão responsável por acompanhar o cumprimento das metas é o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), uma autarquia do próprio MEC;
  • Porém, até junho de 2018, o Brasil só havia alcançado uma das 20 metas e, segundo especialistas, o ritmo dos últimos anos mostram que a probabilidade de atingir as demais é cada vez menor.
Veja abaixo os sete pontos prioritários na ordem em que foram apresentados pelo ministro Vélez aos senadores, e leia a seguir o que disse o ministro sobre cada uma delas no Senado e na entrevista ao G1, além do que consta nas metas do PNE. 
  1. Política nacional de alfabetização
  2. Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
  3. Educação básica, com foco da renovação do Fundeb
  4. Novo ensino médio, com foco no ensino profissionalizante
  5. Escola cívico-militar
  6. Educação especial, com foco na formação de intérpretes de Libras
  7. Formação de professores
Dessas prioridades, a alfabetização, o Fundeb entre as fontes de financiamento da educação, o ensino profissionalizante, a educação especial e a formação de professores estão contempladas no PNE. 
1) Política nacional de alfabetização 
  • O QUE DISSE O MINISTRO: 
Vélez Rodríguez disse aos senadores que a alfabetização "é a cesta básica da educação" e ressaltou que os "índices muito ruins de alfabetização" do Brasil não têm como principal motivo a falta de acesso às escolas. "É um problema complexo que exige enfrentamentos em diferentes frentes. Tanto é que criei uma secretaria específica para a questão da alfabetização", afirmou ele. 
O novo ministro citou ainda dois relatórios da Câmara dos Deputados, de 2003 e 2007, que, segundo ele, concluíram que "as políticas e práticas de alfabetização, bem como a formação dos professores alfabetizadores, não acompanhavam o processo científico e metodológico que nas últimas décadas do século 20 ocorreu no campo do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita". 
Vélez Rodríguez disse que seu plano é evitar que isso aconteça. "A Política Nacional de Alfabetização terá em alta consideração as evidências e os critérios da ciência cognitiva da leitura." 
Nesta sexta-feira (15), em um comunicado, o MEC afirmou que um grupo de trabalho sobre a nova política de alfabetização foi criado em janeiro e, desde então, já realizou audiências com entidades e especialistas e redigiu a minuta do decreto sobre o tema, "que pretende tornar eficaz a alfabetização no Brasil, baseada em experiências bem-sucedidas em países como Inglaterra, EUA, Portugal e França". O teor do documento ainda não foi divulgado. 
Ainda segundo a nota, a nova Secretaria de Alfabetização do MEC (Sealf) vai iniciar a redação de um "caderno explicativo" sobre a nova política. 
A meta 5 estipula que, até 2024, o Brasil precisa "alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º ano do ensino fundamental".
Em junho de 2018, o relatório do Inep afirmou que, entre 2014 e 2016, houve "certa estagnação no desempenho dos alunos do 3º ano do ensino fundamental pela ANA [Avaliação Nacional de Alfabetização]." 
Segundo o Observatório do PNE, em 2016 66,1% dos alunos do 3º ano tinham aprendizagem adequada em escrita, 45,2% em leitura e 45,5% em matemática. 
O ministro não especificou se a alfabetização de adultos está incluída nessa nova política nacional, mas o PNE estipula que, até 2024, 100% dos jovens e adultos brasileiros estejam alfabetizados. Em 2015, esse índice era de 92%. 
2) Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
  • O QUE DISSE O MINISTRO: 
Depois de fatiada em duas, a BNCC deve entrar em vigor em todas as escolas brasileiras até o início do ano letivo de 2020. A Base para o ensino infantil e fundamental foi aprovada em dezembro de 2017, e a do ensino médio, em dezembro de 2018, ambas no governo Temer. O G1 perguntou ao ministro se sua gestão pretende revisar, mudar ou revogar as bases do ensino básico. Ele respondeu que "a BNCC está homologada". 
No Senado, ele afirmou que "para este ano de 2019 está prevista a formação de professores e a revisão dos projetos pedagógicos das escolas, conforme os novos currículos da educação infantil e do ensino fundamental. Para o ensino médio está prevista a elaboração dos novos currículos alinhados à própria Base Nacional Comum Curricular e aos referenciais para os itinerários formativos". 
O PNE não fala especificamente sobre currículo nacional ou a BNCC. A necessidade de o Brasil elaborar o documento, porém, é tida por especialistas como crucial para que o país avance na aprendizagem dos estudantes. A Base determina as habilidades e competências que todos os estudantes devem aprender em cada ano do ensino básico, e agora é a partir dela que as escolas devem elaborar seus próprios currículos. 
  • O QUE DISSE O MINISTRO: 
De acordo com a fala do ministro no Senado, o MEC pretende priorizar o avanço na educação básica por meio da renovação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). "Sabemos que há inúmeras desigualdades regionais no Brasil. O Fundeb cumpre um papel fundamental no financiamento da educação dos locais mais vulneráveis. A distribuição de recursos deve ser justa e inteligente para beneficiar aqueles que mais precisam." 
Vélez Rodríguez defendeu ainda que, na discussão sobre a renovação do Fundeb no Congresso Nacional, os principais atores da educação brasileira sejam ouvidos. 
O Fundeb é composto por recursos oriundos de impostos. Têm direito a receber verba do fundo estados (incluindo o Distrito Federal) e municípios que oferecerem atendimento na educação básica. A distribuição dos recursos leva em conta as matrículas nas escolas públicas apuradas no último censo escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Porém, ele vence em 2020, e o Congresso atualmente discute os novos parâmetros para torná-lo permanente. 
O PNE também não tem metas relacionadas diretamente ao Fundeb, mas ele é citado em uma das diretrizes. A meta 20, sobre o financiamento da educação, obriga o governo a "ampliar o investimento público em Educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do País no 5º ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio". 
Uma das diretrizes dessa meta é "garantir fontes de financiamento permanentes e sustentáveis para todos os níveis, etapas e modalidades da educação básica, observando-se as políticas de colaboração entre os entes federados". 
  • O QUE DISSE O MINISTRO:
O ensino médio faz parte do ensino fundamental, mas foi citado pelo ministro em um ponto prioritário exclusivo. Durante sua fala aos senadores, Vélez Rodríguez explicou que o foco da atuação do MEC será o ensino profissionalizante, seguindo a indicação da reforma do ensino médio do governo Temer. 
"O fortalecimento do quinto eixo formativo do novo ensino médio é estratégico para isso. Uma educação profissional e tecnológica robusta é o que marca as economias mais avançadas atualmente", disse o ministro. 
O ensino médio e a educação profissional são citados em mais de uma meta do PNE. A meta 3 estipula que o Brasil deve "universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%". Em 2015, 84,3% dos jovens de 15 a 17 anos estavam matriculados, e 62,7% dos jovens dessa idade estavam matriculados no ensino médio, ou seja, na idade esperada. 
Já na educação profissional, a meta 11 é "triplicar as matrículas da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a qualidade da oferta e pelo menos 50% da expansão no segmento público". O Brasil conseguiu bater a segunda parte da meta – 82,2% das matrículas estão na rede pública. Mas o país está longe de triplicar as matrículas. Em 2017, havia quase 1,8 milhões de alunos nessa modalidade, mas o avanço, até 2024, deve chegar a 5,2 milhões de matrículas. 
5) Escola cívico-militar
  • O QUE DISSE O MINISTRO:
Em sua fala aos senadores, Vélez destacou como ponto importante no âmbio da educação básica a criação da subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares. "Experiências já em andamento em diversos estados brasileiros têm mostrado que a presença de militares no espaço escolar é algo bem-visto pelas famílias. Os indicadores de aprendizagem melhoram e ocorre redução da criminalidade", afirmou ele, sem citar números ou exemplos específicos. 
Ao G1, ele explicou que o programa é de adesão voluntária das secretarias de Educação e que tem por objetivo a implementação de "novos modelos de gestão de alto nível, nos padrões empregados nos colégios militares, voltados à educação básica" e para fortalecer "valores cívicos, éticos e morais", mas disse que "a questão pedagógica de cumprimento aos currículos de ensino continuará sob a responsabilidade das secretarias de educação de cada localidade". 
Questionado sobre o repasse de recursos ao Exército Brasileiro e às polícias militares para o programa, ele afirmou que "o fomento para a implementação do modelo das escolas cívico-militares será voltado para o atendimento das necessidades das escolas e suas respectivas secretarias de educação". 
Nenhuma meta do plano fala sobre a ampliação do número de escolas cívico-militares no Brasil. 
  • O QUE DISSE O MINISTRO:
Segundo Vélez Rodríguez, a nova Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp) criada no MEC neste ano tem duas diretorias voltadas para a educação especial, uma delas especificamente para a educação bilíngue de surdos. "Priorizaremos a formação de tradutores de intérpretes de libras", afirmou ele. 
A educação especial está contemplada na meta 4 do PNE, que diz que o Brasil deve, até 2024, "universalizar, para a população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados". 
O Observatório do PNE afirma que o IBGE não tem pesquisas que permitem monitorar o cumprimento desta meta. Segundo o Censo 2010 do IBGE, cerca de 23% dos brasileiros têm pelo menos um tipo de deficiência, e os surdos integram o terceiro maior grupo populacional: 18,8% têm deficiência visual, 7% têm deficiência motora, 5,1% têm deficiência auditiva e 1,4% da população tem deficiência mental ou intelectual. 
7) Formação de professores
  • O QUE DISSE O MINISTRO:
Vélez Rodríguez listou, como sétima e última prioridade de sua gestão à frente do MEC, a formação dos professores. "Vamos investir na formação inicial e continuada de professores", disse ele, explicando que "valorização do professor vai além do salário". 
Segundo ele, "tornaram-se urgentes medidas que assegurem a disciplina dentro das escolas e a promoção de uma cultura de respeito e valorização da dignidade do professor". Na semana passada, o MEC afirmou que vai revisar a proposta da Base Nacional de Formação de Professores entregue ao Conselho Nacional de Educação (CNE) em dezembro pelo governo Temer. 
Os professores estão incluídos em 8 das 20 metas do PNE, que abordam tanto a formação inicial e continuada dos professores, quanto a valorização financeira da profissão docente. Veja o status de cada uma delas: 
  • Meta 13 - CUMPRIDA: Elevar a qualidade da educação superior pela ampliação da proporção de mestres e doutores do corpo docente em efetivo exercício no conjunto do sistema de educação superior para 75%, sendo, do total, no mínimo, 35% doutores. (Em 2016, essas porcentagens eram de 78,2% e 39%, respectivamente.)
  • Meta 14 - AINDA NÃO CUMPRIDA: Até 2024, elevar gradualmente o número de matrículas na pós-graduação stricto sensu, de modo a atingir a titulação anual de 60 mil mestres e 25 mil doutores. (Em 2016, esses números eram de 59,6 mil e 20,6 mil, respectivamente.)
  • Meta 15 - AINDA NÃO CUMPRIDA: Até 2014, garantir que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam. (Em 2017, 78,3% dos professores da educação básica tinham ensino superior, mas só 47,3% tinham formação na área em que lecionam.)
  • Meta 16 - AINDA NÃO CUMPRIDA: Formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da educação básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todos os(as) profissionais da educação básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino. (Em 2017, 36,2% dos professores da educação básica tinham pós-graduação, e 35,1% tinham feito formação continuada.)
  • Meta 17 - AINDA NÃO CUMPRIDA: Até 2020, equiparar o rendimento médio dos profissionais do magistério da educação básica pública, para que ele seja equiparado ao rendimento médio dos demais profissionais com escolaridade equivalente. (O rendimento médio bruto mensal dos profissionais do magistério é de 74,8% do que recebem os demais profissionais assalariados com o mesmo nível de escolaridade, de acordo com dados da Pnad Contínua em 2017.)
  • Meta 18 - NÃO CUMPRIDA: Até 2016, criar planos de carreira para os professores do ensino básico e superior das redes públicas, tomando como base o piso salarial nacional. (Há planos de carreiras em todos os estados e no Distrito Federal para os professores. Entre os municípios, o percentual é de 89,2%. De acordo com levantamento do Inep, em fevereiro de 2018, 66% dos municípios cumpriam o piso salarial nacional profissional.)

Um texto feito para irritar marxistas, socialistas, comunistas (2011) - Paulo Roberto de Almeida

O texto abaixo constituiu, acredito, a gota d'água para que os acadêmicos responsáveis por uma revista notoriamente esquerdista se fastidiassem com minhas constantes provocações e decidissem, finalmente, expulsar-me da lista de colaboradores regulares.
Achei ótimo, pois depois de dez anos de contribuições, já estava ficando cansado daquela coisa de elaborar um bom artigo a cada mês.
Pouco antes eu tinha provocado de forma ainda mais contundente uns marxistas acadêmicos, ao criticar um livro de ensaios medíocres, dizendo que era melhor usar o dinheiro para comprar uma pizza. Causou uma série de ataques furibundos da parte de personalidades que ainda passam por sumidades no seio dessa tribo.
Vamos então reler o que eu escrevi, oito ou nove anos atrás...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de março de 2019


Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro (2011)

Brasília, 2 agosto 2011, 13 p.; trabalho no 2292. Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado. Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 123, agosto 2011, p. 125-136). Relação de Publicados n. 1042.


Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?
Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro

Paulo Roberto de Almeida

1. Introdução metodológica: uma tradição passadista que não passa
A pergunta do título não pretende contrapor-se, em geral, a toda uma categoria de pessoas, nem visa interrogar alguém, em particular. Sua intenção é a de questionar certas ideias bem delimitadas no universo das ideologias, concentrando-se, em especial numa concepção determinada: a ideologia do comunismo, que em grande medida confunde-se com a teoria marxista (Por teoria marxista entenda-se o conjunto de escritos e argumentos de Marx, Engels, Lênin e alguns outros, que são comumente utilizados para fundamentar a validade empírica, a evolução lógica e a sustentação material de sociedades comunistas.) A motivação deste artigo decorre do fato de que existem pessoas, em pleno século 21, que nunca negaram sua adesão a essa concepção vinda do século 19 e que tampouco fizeram qualquer trabalho de revisão séria sobre as consequências práticas dessas ideias, tal como aplicadas ao longo do século 20.
Vista pelo lado afirmativo, a questão do título poderia indicar que qualquer pessoa que pretenda, atualmente, afirmar-se comunista (ou socialista, na tradição marxista ou leninista) corre o risco de ser considerada como singularmente carente de inteligência mais sofisticada; ou poderia, pelo menos, ser vista como desprovida de senso crítico mais agudo. Em muitos casos, na verdade, a origem da autodesignação pode revelar apenas ignorância ingênua ou pura desinformação juvenil. Nos casos mais renitentes, pode-se, talvez, classificar os mais entusiastas da causa como fundamentalistas ilógicos, quando não se trata, no caso dos mais velhos, de pura e simples desonestidade intelectual.
Sem pretender ofender alguém em particular – muito embora eu tenha deparado com vários representantes desse credo no decorrer de minhas peregrinações acadêmicas e alguns cruzamentos político-partidários – o objetivo principal deste artigo é apenas o de examinar um conceito, o do comunismo, em seus determinantes lógicos, em sua eventual fundamentação empírica e, sobretudo, em suas consequências práticas, o que o aproxima de qualquer ensaio acadêmico que pretenda tratar de questões reais das sociedades existentes em nossa época. Não se pretende aqui tratar do sexo dos anjos, e sim de uma questão que costuma estar presente em nossas academias – com maior força nas áreas de humanidades – e também em algumas seitas políticas, e que continua a mobilizar a atenção de certo número de pessoas, ainda que, nos dias que correm, em proporção crescentemente diminuta (se me permitem o paradoxo verbal).
Por que o faço? A resposta é complexa, mas vamos ficar com uma bem simples. As faculdades brasileiras de humanidades estão povoadas, hoje em dia, de seres saídos de antigas camadas geológicas da teoria social, algo como o pré-cambriano dos estudos sobre a sociedade e suas transformações. Em lugar de focar os problemas correntes, professores que aderem ao clero de maneira totalmente acrítica, remetem os alunos a textos góticos do século 19 e os obrigam a interpretar a economia atual com categorias defasadas, que nada têm a ver com as características essenciais do capitalismo globalizado. Como estou me colocando mais do lado dos alunos do que dos professores, creio ser meu dever alertar aos primeiros que eles estão sendo enganados – torturados seria uma expressão mais adequada – por mestres preguiçosos que não fazem pesquisa e que preferem repisar e repassar velhos textos que confortam certos preconceitos pessoais, mas que nada têm a ver com a realidade vivida por alunos, ou pelas pessoas, em geral.

Pois bem, estou fazendo uma pergunta, que é quase uma acusação, e o faço de forma consciente, esperando com isso suscitar algum debate intelectual, o que pode revelar-se uma vã esperança. A sugestão do título é a de que a pessoa que se afirma comunista, nos dias que correm, renunciou a pensar de modo livre, está dominada por premissas emboloradas, por preconceitos ideológicos ultrapassados, já que uma caracterização desse tipo agride a lógica, a experiência histórica conhecida e a simples realidade dos fatos. Este é o debate, aqui colocado em termos diretos.
Tenho plena consciência, aliás uma quase certeza, de que não haverá debate, pois os “indiciados”, podem sempre alegar que os estou ofendendo, que eles não aceitam o questionamento do título, não cabendo, portanto, debate com uma pessoa tão arrogante e tão desrespeitosa das crenças alheias. Voilà, acho que encontrei o conceito correto: crença! Sim, estamos falando basicamente de uma crença, já que não existem sociedades comunistas atualmente e desafio qualquer um a provar que existem chances reais de que qualquer uma venha a existir no futuro previsível. Quem desejar pode aceitar o desafio.
Como alguns dos espaços e veículos em que escrevo é frequentado por pessoas que se intitulam comunistas, que se pretendem comunistas e que defendem causas que elas consideram ser comunistas, o desafio lhes é lançado diretamente, mas como disse acima, duvido que elas venham a enfrentá-lo. Não obstante, formulo novamente o tema deste artigo e o deixo como problema a ser debatido. Minha hipótese de trabalho, a ser exposta nos parágrafos que seguem, é que nenhuma pessoa inteligente pode, hoje em dia, razoavelmente falando, pretender-se comunista ou defender causas comunistas.
Dito isto, vamos ao que interessa, não sem antes um comentário inicial. O autor destas linhas também já se proclamou comunista, em tempos idos, e conhece razoavelmente bem a literatura marxista (e tudo o que circula em volta). Como membro da academia, já leu, percorreu, repetiu os conceitos-chaves do credo e já pretendeu transformar o Brasil num país socialista. De certa forma, é impossível ser sociólogo, em qualquer sociedade contemporânea, sem ser também um pouco marxista, uma vez que o marxismo integra a construção da moderna teoria social. Quanto a ser comunista é outra questão, que remete a um conjunto de crenças, que devem ser testadas contra a realidade.
Ao ter aderido ao comunismo em fase ainda juvenil de sua vida, este autor percorreu depois a realidade dos comunismos (ou socialismos) realmente existentes, praticamente todos, ou pelo menos os mais importantes. Dessas visitas, ele retirou preciosas reflexões que contribuíram para a revisão de algumas crenças juvenis; ele também aprofundou seu conhecimento dos capitalismos realmente existentes – e de muitos outros sistemas pré-capitalistas (como na maior parte da América Latina, por exemplo), mediante viagens extensas de trabalho e de lazer, o que contribuiu mais ainda para uma saudável revisão de suas velhas concepções. Sobre isso, caberia acrescentar leituras variadas, e não apenas dentro do universo conceitual do marxismo estabelecido, o que é sempre recomendável para quem pretende aperfeiçoar seus conhecimentos sobre o mundo realmente existente, além e acima de quaisquer crenças com base em sistemas fechados de ideias. Esta é a base, portanto, da discussão que pode agora começar.

2. Um exemplo, entre outros, da crença persistente: Antônio Cândido
Para não tornar esta discussão muito abstrata, conviria ilustrá-la com declarações atuais sobre o tema em questão partindo de um true believer, na expressão coloquial retirada do inglês, ou seja, um verdadeiro crente. O que tem a dizer sobre o assunto um intelectual respeitado na academia brasileira, Antônio Cândido, cujos argumentos são recebidos com toda a distinção que merecem as verdadeiras “vacas sagradas” da intelligentsia brasileira?
Entrevistado recentemente por um jornal desse universo intelectual, Antônio Cândido assim respondeu à pergunta de se era socialista (e, neste caso, e para todos os efeitos, o adjetivo socialista é completamente similar à caracterização de comunista, uma vez que baseado nos mesmos princípios ideológicos que sustentam esse sistema de interpretação da realidade, que é a filosofia marxista):
Brasil de Fato: O senhor é socialista?
AC: Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.[1]

O que surpreende nesse tipo de manifestação, em primeiro lugar, é a total falta de consistência do pensamento desse autor, cultuado na academia brasileira como um dos maiores sociólogos da nacionalidade, quanto às necessárias distinções entre, de um lado, processos reais, desenvolvidos ao longo dos séculos como resultado de movimentos “tectônicos” no plano das forças produtivas e das relações de produção (para ficar na terminologia habitual), e, de outro, construções mentais, propostas ideológicas, projetos de engenharia social que só podem ser plataformas políticas, ou programas partidários a serem debatidos pelos movimentos sociais e agrupamentos políticos, mas que jamais poderiam ser colocados no mesmo plano dos processos reais. O socialismo jamais poderia ter sido, e nunca foi, o irmão-gêmeo do capitalismo pela simples razão de que se trata de um sistema inventado pelo homem, não uma construção social, impessoal, progressiva e absolutamente desprovida de qualquer senso de direção pré-determinado.
O que o aclamado sociólogo ignora completamente, em segundo lugar, é que todos os modos de produção social existentes, passados ou presentes, inclusive os puramente baseados num “arranjo político” (como o socialismo, portanto) se baseiam em certa coerção ao trabalho, qualquer que sejam as formas peculiares que assumem as relações de produção e as formas específicas de apropriação dos resultados do processo de produção. Não existe nenhum sistema de produção um pouco mais complexo do que a simples organização extrativista rudimentar que não se baseie em divisão do trabalho (sexual ou social), em algum sistema de trocas relativamente organizado (por forças que se destacaram do mundo do trabalho, portanto) e em mecanismos de interação e de solução de litígios que já impliquem uma autoridade qualquer baseada na dominação política e na exploração econômica (inclusive, e sobretudo, no socialismo). Ou seja, a proposta quanto à não-exploração, ou quanto à igualdade fundamental do ser humano, parte de premissas totalmente descoladas da realidade dos processos produtivos e absolutamente inaplicáveis em condições reais do mundo do trabalho e da satisfação das necessidades humanas.
A falha metodológica revelada pelo mestre é particularmente grave, uma vez que ele confunde o movimento real das sociedades com o movimento das ideias que perpassam as sociedades, que podem, ou não, oferecer algum substrato real, ou serem apenas o reflexo de elaborações mentais que, por mais “geniais” que possam ser – e as contribuições de Marx constituem, de fato, poderosos instrumentos analíticos para a compreensão das sociedades burguesas e das economias capitalistas – não representam senão o fruto de uma construção intelectual não necessariamente compatível com os dados da realidade. Igualmente decepcionante é a sua compreensão do que seja o socialismo, pois revela um conhecimento deficiente, para não dizer ingênuo, das bases intelectuais da doutrina marxista sobre o socialismo. Perguntado pelo mesmo órgão de imprensa, sobre se “é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?”, o mestre respondeu o que segue:
AC: (...) Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o banqueiro, está bom, é o socialismo.[2]

Em outros termos, o professor aposentado pensa o socialismo como a realização da igualdade, ou mais exatamente, como a diminuição das desigualdades existentes. Ora, essa compreensão está em completo desacordo com a teoria marxista e com as premissas sobre as quais foram construídos os sistemas marxistas, ou dos socialismos realmente existentes, no século XX. Para os teóricos do marxismo, o socialismo – e, na sua sequência, o comunismo – seria a abolição das relações de produção capitalistas, não a simples aproximação dos rendimentos médios do trabalhador assalariado das categorias mais bem pagas da sociedade capitalista. A premissa básica seria a abolição do conceito mesmo de propriedade privada, com a socialização completa das forças produtivas, colocadas sob controle da categoria universal alegadamente detentora da solução final para as contradições fundamentais de toda sociedade de classes, e que por isso mesmo redundaria na abolição de todas as classes sociais, especificamente na dominação política de uma classe dominante sobre as demais. Quem não partilha dessas premissas não pode, legitimamente, pretender-se comunista, ou socialista marxista. A menos, claro, que pretenda na prática afirmar-se como social democrata, que seria a versão reformista, light, ou rósea, do socialismo marxista (e, como tal, denunciada em vários escritos dos que se pretendem comunistas verdadeiros).
O mais surpreendente, ainda, é que o velho mestre se mostra singularmente desinformado sobre as realidades do socialismo real ao redor do mundo, como também especialmente confuso sobre o tipo de sociedade existente sob o modo de produção capitalista. Perguntado sobre o que “o socialismo conseguiu no mundo de avanços?”, ele argumentou:
AC: O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social. [3]

Pronunciando-se, logo em seguida, sobre como ele via a sociedade capitalista, o mestre consegue, em poucas frases desvendar sua incompreensão total do que seja uma sociedade de mercado – que pode ser, ou não, capitalista – e de como funciona, de fato, a sociedade de consumo; ele revela, ademais, uma ignorância fundamental sobre a própria natureza do processo produtivo – sob qualquer modo de produção, registre-se –, já opondo-se, de fato, a qualquer avanço tecnológico, sob qualquer pretexto. A ingenuidade, ou ignorância, é abissal, e surpreende que banalidades desse tipo sejam recebidas sem qualquer comentário crítico por marxistas e não marxistas da academia, que teriam, pelo menos, a obrigação da coerência epistemológica e da adequação dos argumentos aos fatos materiais da vida como ela é. Registre-se alguns extratos finais, portanto:
AC: A coisa mais pérfida do capitalismo –por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar [sic] de dez em dez minutos, na cabeça de todos (...) imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar, essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.[4]

Os dois conjuntos de argumentos são propriamente inaceitáveis por quem quer que examine o mundo real, seja a situação efetiva na Cuba “socialista”, seja as formas pelas quais está organizada a sociedade de consumo – que pressupõe uma sociedade produtiva, em primeiro lugar – em qualquer regime imaginável de organização social da produção, inclusive o da produção “artesanal”. Tomar suas palavras como possuindo um grau mínimo de aderência à realidade – o que elas não possuem, obviamente –, seria como se em Cuba não existisse sociedade de consumo, como se os cidadãos cubanos não consumissem produtos – de quaisquer origens – e como se a ausência de uma maior variedade de produtos, ou até a existência concreta de um regime de penúrias, como aquele registrado na Cuba socialista, fosse a realização suprema da “justiça social”. O consumo existe em qualquer sociedade do mundo, de qualquer época histórica e de qualquer sistema produtivo, sendo aliás inerente à natureza do ser socialmente produtivo que é o homem – e isto é puro marxismo, estando mais explícito em textos de Engels -- o fato de se estar sempre avançando na escala produtiva, pela inovação de produtos ou de processos que permitam oferecer os bens essenciais e, depois, vários bens “supérfluos”, aos melhores preços possíveis para o consumo da maior parte da sociedade.
No decorrer de um longo processo histórico, o sistema produtivo que mais próximo se acercou desse ideal de crescimento sustentado com base em transformações produtivas incrementais – algumas delas, aliás, revolucionariamente inovadoras – e na distribuição social dos benefícios desse crescimento foi justamente o capitalismo, não o socialismo. Daí a resiliência do capitalismo aos desafios revolucionários que ele enfrentou ao longo do tempo, advindo não apenas de contradições sociais que são inerentes a toda e qualquer forma de organização social da produção, mas igualmente de alternativas ideológicas que foram sendo servidas ao longo da história para tentar conceber um sistema que fosse ou mais eficiente, ou mais justo e igualitário, ou ambos.
Não é preciso retomar aqui o resultado efetivo dessa competição entre sistemas e ideias, pois sabemos que a forma mais disseminada nos supermercados da história foi mesmo, anda que temporariamente, a do capitalismo, que nada mais é do que uma das formas da economia de mercado, aparentemente tão desprezada pelo velho mestre Antônio Cândido. Chega a ser, assim, patético, ler suas considerações sobre a sociedade de consumo ou sobre o capitalismo, pois elas nada mais revelam do que uma incompreensão fundamental quanto ao modo de funcionamento das sociedades – de qualquer sociedade – e do sistema de produção de mercado, inclusive suas formas capitalistas ou proto-capitalistas. O silêncio de marxistas, de socialistas, ou de comunistas – assumidos como tais – sobre tais tipos de argumentos pode representar concordância básica quanto às suas premissas, discordância discreta e não explicitada quanto aos fundamentos históricos de afirmações tão absurdamente equivocadas, ou simplesmente incapacidade de raciocinar com base na lógica elementar e nos princípios da coerência epistemológica. Em qualquer dos casos, parece suficientemente grave, pois materiais desse tipo do registrado neste texto elementar de crítica acadêmica circulam de modo amplo pelas salas e corredores das universidades públicas brasileiras e são comentados nos sites e blogs mais vinculados a esse universo mental.

3. Comunismo: apenas um sistema de crenças, sem consistência real
Retomemos, aqui, a questão central do que pretende ser um debate atinente aos cursos de ciências sociais de nossas academias: qual é o estatuto social, ou ideológico, dos argumentos em defesa do socialismo – e por extensão do comunismo – que continuam a impregnar não só a didática e a docência no universo das humanidades, como também a estruturação de movimentos políticos que pretendem oferecer um tipo qualquer de alternativa ao capitalismo realmente existente? A postura deste autor já foi colocada na seção introdutória, qual seja: o conjunto de argumentos que sustenta a defesa da doutrina – e das propostas de organização social e econômica – do comunismo (em seus fundamentos marxistas) remete a um universo mental que poderia ser chamado de crença ou assimilado às crenças. Estas constituem uma assemblagem de “explicações mágicas” sobre a realidade que não respondem a quaisquer testes provados no mundo real, ou seja, que não sustentam o teste da realidade, mas que ainda assim continuam, como todas as crenças, a suscitar adesões inquestionadas a suas premissas equivocadas por alguma necessidade psicológica de seus aderentes de não enfrentar o mundo real.
Resumindo: a pessoa que, hoje em dia, se proclama comunista – algumas até orgulhosamente – está demonstrando uma crença num conjunto de preceitos que remete a um universo especial, o do salvacionismo, um movimento vinculado ao utopismo e a todas as seitas que pretendem ter a chave mágica do universo, para a salvação da humanidade, com base num conjunto de princípios de “engenharia social” e de valores não testados nos laboratórios da realidade. O comunismo (e não apenas hoje em dia) é parente direto das concepções utópicas sobre a organização social e econômica das sociedades, não obstante a pretensão de seus proponentes e seguidores de insistir em seu “caráter científico”. A lógica elementar e confronto com os dados da história permitem esclarecer e descartar suas afirmações muito rapidamente, ainda mais facilmente no caso de frases sem sentido como as transcritas aqui de um respeitado intelectual brasileiro. Uma discussão final, atinente ao problema da apreensão do mundo real e à questão do registro histórico, tocará nestes pontos, ainda que de modo sumário.
O próprio da ciência é trabalhar com um conjunto de hipóteses que deverão, em seguida, ser testadas para que se comprove sua fiabilidade em face dos dados do real. Pode até existir uma teoria prévia à formulação das hipóteses, mas o mais comum é que a teoria apareça após testes repetidos das concepções iniciais, para que daí se extraiam regras gerais e, portanto, “leis” quase invariáveis de desenvolvimento. Nem sempre é assim, e algumas teorias sobrevivem mesmo na ausência de testes comprobatórios, mas pode-se deduzir a fiabilidade de uma teoria por meio de deduções inteligentes. Por exemplo, é muito difícil observar a “evolução”, mas é possível aderir à teoria da seleção natural darwiniana, com base nos registros geológicos e nos dados da história natural (para isso basta visitar qualquer museu de história natural). Aliás, seria impossível trabalhar de modo adequado nas ciências geológicas e nas biológicas sem a aceitação dos princípios básicos da seleção natural. O trabalho de laboratório é todo ele fundamentado nas ideias darwinianas, que sustentaram gloriosamente os testes do tempo e da realidade.
Pode-se, por acaso, dizer o mesmo do conjunto de afirmações que sustentam a crença na “teoria materialista da história”, na luta de classes como fundamento da evolução das sociedades humanas? É possível acreditar na “evolução” determinista das sociedades existentes em direção ao comunismo, como apregoado pela “teoria marxista”? Por fim: existe alguma base real para confirmar as predições de Marx e seguidores sobre o “curso inevitável” das sociedades capitalistas em direção ao comunismo?
Os “testes” do tempo e da realidade, efetuados até aqui nos “laboratórios” dos capitalismos e dos socialismos realmente existentes, desmentem – não apenas uma ou outra, mas – todas as afirmações marxistas e leninistas sobre a marcha da história e a evolução das sociedades. O registro “geológico” do longo – segundo as concepções arrighianas – ou “breve” – de acordo com Hobsbawm – século XX não permite sustentar, apoiar, comprovar, de alguma forma corroborar qualquer uma das premissas e previsões marxistas, que sustentam a fé – não existe outro conceito – no ideal socialista ou do modelo comunista de sociedade e de organização social da produção.
Pode-se, assim, desafiar os marxistas, em geral, a retomar qualquer uma das análises de Marx e de Lênin sobre o desenvolvimento do capitalismo, ou qualquer uma das suas “hipóteses de trabalho” sobre a emergência das sociedades comunistas, e, com base nelas, comprovar que estas análises e hipóteses são, não apenas logicamente dedutíveis de suas premissas (como ocorre, por exemplo, com a “teoria” da seleção natural), mas materialmente possíveis a partir de desenvolvimentos empíricos aferíveis (da mesma forma como ocorre em laboratórios de biologia com as manipulações de espécies, no caso em exame). Ou seja, pode-se esperar que o socialismo seja o resultado natural, quase automático, do desenvolvimento e das contradições internas do modo de produção capitalista e que sua eficácia produtiva seja comparável ou superior ao do modo imediatamente anterior? Com base em qual tipo de raciocínio lógico, pode-se afirmar que o “socialismo”, se efetivado, conseguiria superar contradições inerentes às economias de mercado, em sua aparente “anarquia” produtiva?
Independentemente, porém, do registro histórico que comprova o tremendo fracasso material do socialismo marxista, e do comunismo, no século XX, na tentativa de se criar um modo de produção “superior”, ou “harmônico”, existe um outro conjunto de testes que se vinculam ao modo de organização interna de qualquer regime socialista, ou seja, a seus fundamentos materiais, o que também envolve o aspecto puramente lógico sobre as formas de estruturação e de funcionamento de qualquer sistema produtivo baseado nas premissas “econômicas” marxistas. Essa questão tem a ver com o problema fundamental do cálculo econômico, e com a função dos preços – como sinalizadores da escassez relativa – num sistema de organização da produção para o mercado, ou seja, o de qualquer modo de produção concebível em uma sociedade complexa, seja ela escravocrata, feudal, capitalista ou “socialista”. Esse problema, insolúvel num sistema socialista puramente marxista – ou seja, comunista –, já tinha sido tratado desde os primórdios da revolução bolchevique por um jovem economista austríaco, Ludwig Von Mises, que, com base numa análise puramente racional dos fundamentos “lógicos” da economia socialista, concluiu que esta não conseguiria funcionar, justamente, por falharem princípios básicos da organização racional da produção e distribuição de insumos, de bens intermediários e de bens finais.[5]
E, no entanto, diriam os true believers da causa socialista e comunista, a despeito de todas essas “previsões” catastrofistas e condenatórias do socialismo enquanto doutrina e enquanto forma alternativa de organização social da produção, o fato é que o socialismo “funcionou” durante setenta anos, e nada impediria, em princípio, que ele voltasse a funcionar em novas bases, corrigidos alguns “pequenos erros” que impediram seu funcionamento mais eficiente da “primeira vez”. Como as apostas e as esperanças dos verdadeiros crentes na causa socialista não se apoiam em evidências de fato, mas justamente num sistema de crenças que demanda adesão inquestionada – sem que eles sejam chamados comprovar suas teorias, um pouco como os criacionistas – não se prevê o desaparecimento fácil ou imediato desse tipo de falácia fundamentalista.
Não seria, na verdade, a primeira, nem a última vez, que crenças equivocadas conseguem manter-se durante tanto tempo no circuito das teorias possíveis: a “teoria geocêntrica”, por exemplo, comandou durante séculos as reflexões dos homens e as explicações geográficas, até ser superada por uma melhor explicação, com base na observação direta da realidade e na experimentação empírica. O socialismo já teve sua fase de experimentação empírica – que foram as sete décadas de experimentos de engenharia social desde o advento do modelo bolchevique de organização social da produção e suas diversas variantes ao longo do tempo – mas seu rotundo fracasso não parece ainda ter conseguido alterar o conjunto de crenças mantidas pelos true believers.
Uma das razões possíveis pode ser o fato que a maior parte dos aderentes ao credo não conheceu, não visitou, não conviveu, não experimentou, de fato, o “modo socialista de produção”, cujas bases de funcionamento são desconhecidas aos true believers, que continuam a repetir algumas fórmulas “sagradas” da doutrina original. Nenhum deles, por exemplo, parece próximo de acreditar que o socialismo marxista, tal como materializado na Eurásia, constituiu o equivalente funcional de formas modernas do escravagismo antigo ou do despotismo oriental. Aparentemente, evidências não bastam, quando se decide não aceitar evidências concretas que vão contra as crenças.[6]
Em todo caso, o autor destas linhas acredita que um trabalho sério de pesquisa histórica, de constatação de evidências materiais e alguns poucos raciocínios lógicos poderia ajudar a desmontar o grau de irracionalidade conceitual e de não adequação material que caracterizam as crenças socialistas, tal como consubstanciadas em sua vertente marxista clássica. Ele não tem, entretanto, nenhuma ilusão de que “velhos socialistas” ou de que acadêmicos enviesados venham a recompor sua estrutura mental e suas posturas sociais e políticas a partir dessas constatações de fato e de raciocínio. Ele espera, pelo menos, que um número maior de alunos, talvez entediados pela repetição aborrecida das mesmas velhas fórmulas ultrapassadas, possa encontrar um novo campo teórico de explicações científicas que escape do terreno das crenças para o mais modesto das explicações possíveis em torno da modernidade capitalista.

Brasília, 2 de agosto de 2011

Resumo: Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado.

Palavras-chave: Marxismo; Socialismo; Comunismo; Fundamentalismo; Capitalismo.




[1] Ver “O socialismo é uma doutrina triunfante”; Antônio Candido, entrevistado por Joana Tavares, Brasil de Fato, edição 435, 12/07/2011 (disponível: http://www.brasildefato.com.br/node/6819; acesso em 31/07/2011).
[2] “O socialismo é uma doutrina triunfante”, entrevista com Antônio Candido, op. cit.
[3] Idem, loc. cit.
[4] Idem, loc. cit.
[5] Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920), disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista: www.vonmises.org. Para maiores elaborações em torno do mesmo tema, ver meus ensaios: “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 96, maio 2009; disponível no volume compilado como edição de autor:  https://www.academia.edu/38521549/Falacias_Academicas_um_livro_incompleto_2010_); “A resistível decadência do marxismo teórico e do socialismo prático: um balanço objetivo e algumas considerações subjetivas”, Espaço Acadêmico (ano 9, n. 106, março 2010; ISSN: 1519-6186; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9502/5321).
[6] Ver meu trabalho “A cultura da esquerda: sete pecados dialéticos que atrapalham seu desenvolvimento”, Espaço Acadêmico (ano 4, n. 47, abril 2005; link: http://www.espacoacademico.com.br/047/47pra.htm).



PS.: texto disponível no seguinte link: 
https://www.academia.edu/5961515/2292_Pode_uma_pessoa_inteligente_pretender-se_comunista_hoje_em_dia_Reflex%C3%B5es_sobre_um_paradoxo_acad%C3%AAmico_brasileiro_2011_