O texto abaixo constituiu, acredito, a gota d'água para que os acadêmicos responsáveis por uma revista notoriamente esquerdista se fastidiassem com minhas constantes provocações e decidissem, finalmente, expulsar-me da lista de colaboradores regulares.
Achei ótimo, pois depois de dez anos de contribuições, já estava ficando cansado daquela coisa de elaborar um bom artigo a cada mês.
Pouco antes eu tinha provocado de forma ainda mais contundente uns marxistas acadêmicos, ao criticar um livro de ensaios medíocres, dizendo que era melhor usar o dinheiro para comprar uma pizza. Causou uma série de ataques furibundos da parte de personalidades que ainda passam por sumidades no seio dessa tribo.
Vamos então reler o que eu escrevi, oito ou nove anos atrás...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de março de 2019
Pode uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?; Reflexões sobre um paradoxo acadêmico brasileiro (2011)
Brasília, 2 agosto 2011, 13 p.; trabalho no 2292. Crítica às crenças fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo, por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado. Revista Espaço Acadêmico (ano 11, n. 123, agosto 2011, p. 125-136). Relação de Publicados n. 1042.
Pode
uma pessoa inteligente pretender-se comunista, hoje em dia?
Reflexões
sobre um paradoxo acadêmico brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
1.
Introdução metodológica: uma tradição passadista que não passa
A pergunta do título não
pretende contrapor-se, em geral, a toda uma categoria de pessoas, nem visa interrogar
alguém, em particular. Sua intenção é a de questionar certas ideias bem delimitadas
no universo das ideologias, concentrando-se, em especial numa concepção
determinada: a ideologia do comunismo, que em grande medida confunde-se com a
teoria marxista (Por teoria marxista entenda-se o conjunto de escritos e
argumentos de Marx, Engels, Lênin e alguns outros, que são comumente utilizados
para fundamentar a validade empírica, a evolução lógica e a sustentação
material de sociedades comunistas.) A motivação deste artigo decorre do fato de
que existem pessoas, em pleno século 21, que nunca negaram sua adesão a essa
concepção vinda do século 19 e que tampouco fizeram qualquer trabalho de
revisão séria sobre as consequências práticas dessas ideias, tal como aplicadas
ao longo do século 20.
Vista pelo lado
afirmativo, a questão do título poderia indicar que qualquer pessoa que
pretenda, atualmente, afirmar-se comunista (ou socialista, na tradição marxista
ou leninista) corre o risco de ser considerada como singularmente carente de
inteligência mais sofisticada; ou poderia, pelo menos, ser vista como desprovida
de senso crítico mais agudo. Em muitos casos, na verdade, a origem da
autodesignação pode revelar apenas ignorância ingênua ou pura desinformação
juvenil. Nos casos mais renitentes, pode-se, talvez, classificar os mais
entusiastas da causa como fundamentalistas ilógicos, quando não se trata, no
caso dos mais velhos, de pura e simples desonestidade intelectual.
Sem pretender ofender
alguém em particular – muito embora eu tenha deparado com vários representantes
desse credo no decorrer de minhas peregrinações acadêmicas e alguns cruzamentos
político-partidários – o objetivo principal deste artigo é apenas o de examinar
um conceito, o do comunismo, em seus determinantes lógicos, em sua eventual
fundamentação empírica e, sobretudo, em suas consequências práticas, o que o
aproxima de qualquer ensaio acadêmico que pretenda tratar de questões reais das
sociedades existentes em nossa época. Não se pretende aqui tratar do sexo dos
anjos, e sim de uma questão que costuma estar presente em nossas academias –
com maior força nas áreas de humanidades – e também em algumas seitas
políticas, e que continua a mobilizar a atenção de certo número de pessoas, ainda
que, nos dias que correm, em proporção crescentemente diminuta (se me permitem
o paradoxo verbal).
Por que o faço? A
resposta é complexa, mas vamos ficar com uma bem simples. As faculdades
brasileiras de humanidades estão povoadas, hoje em dia, de seres saídos de
antigas camadas geológicas da teoria social, algo como o pré-cambriano dos
estudos sobre a sociedade e suas transformações. Em lugar de focar os problemas
correntes, professores que aderem ao clero de maneira totalmente acrítica,
remetem os alunos a textos góticos do século 19 e os obrigam a interpretar a
economia atual com categorias defasadas, que nada têm a ver com as
características essenciais do capitalismo
globalizado. Como estou me colocando mais do lado dos alunos do que dos
professores, creio ser meu dever alertar aos primeiros que eles estão sendo
enganados – torturados seria uma expressão mais adequada – por mestres
preguiçosos que não fazem pesquisa e que preferem repisar e repassar velhos
textos que confortam certos preconceitos pessoais, mas que nada têm a ver com a
realidade vivida por alunos, ou pelas pessoas, em geral.
Pois bem, estou fazendo uma
pergunta, que é quase uma acusação, e o faço de forma consciente, esperando com
isso suscitar algum debate intelectual, o que pode revelar-se uma vã esperança.
A sugestão do título é a de que a pessoa que se afirma comunista, nos dias que
correm, renunciou a pensar de modo livre, está dominada por premissas
emboloradas, por preconceitos ideológicos ultrapassados, já que uma caracterização
desse tipo agride a lógica, a experiência histórica conhecida e a simples
realidade dos fatos. Este é o debate, aqui colocado em termos diretos.
Tenho plena consciência,
aliás uma quase certeza, de que não haverá debate, pois os “indiciados”, podem
sempre alegar que os estou ofendendo, que eles não aceitam o questionamento do
título, não cabendo, portanto, debate com uma pessoa tão arrogante e tão
desrespeitosa das crenças alheias. Voilà,
acho que encontrei o conceito correto: crença! Sim, estamos falando basicamente
de uma crença, já que não existem sociedades comunistas atualmente e desafio
qualquer um a provar que existem chances reais de que qualquer uma venha a
existir no futuro previsível. Quem desejar pode aceitar o desafio.
Como alguns dos espaços
e veículos em que escrevo é frequentado por pessoas que se intitulam
comunistas, que se pretendem comunistas e que defendem causas que elas
consideram ser comunistas, o desafio lhes é lançado diretamente, mas como disse
acima, duvido que elas venham a enfrentá-lo. Não obstante, formulo novamente o
tema deste artigo e o deixo como problema a ser debatido. Minha hipótese de
trabalho, a ser exposta nos parágrafos que seguem, é que nenhuma pessoa
inteligente pode, hoje em dia, razoavelmente falando, pretender-se comunista ou
defender causas comunistas.
Dito isto, vamos ao que
interessa, não sem antes um comentário inicial. O autor destas linhas também já
se proclamou comunista, em tempos idos, e conhece razoavelmente bem a
literatura marxista (e tudo o que circula em volta). Como membro da academia,
já leu, percorreu, repetiu os conceitos-chaves do credo e já pretendeu
transformar o Brasil num país socialista. De certa forma, é impossível ser
sociólogo, em qualquer sociedade contemporânea, sem ser também um pouco
marxista, uma vez que o marxismo integra a construção da moderna teoria social.
Quanto a ser comunista é outra questão, que remete a um conjunto de crenças,
que devem ser testadas contra a realidade.
Ao ter aderido ao
comunismo em fase ainda juvenil de sua vida, este autor percorreu depois a
realidade dos comunismos (ou socialismos) realmente existentes, praticamente
todos, ou pelo menos os mais importantes. Dessas visitas, ele retirou preciosas
reflexões que contribuíram para a revisão de algumas crenças juvenis; ele
também aprofundou seu conhecimento dos capitalismos realmente existentes – e de
muitos outros sistemas pré-capitalistas (como na maior parte da América Latina,
por exemplo), mediante viagens extensas de trabalho e de lazer, o que
contribuiu mais ainda para uma saudável revisão de suas velhas concepções.
Sobre isso, caberia acrescentar leituras variadas, e não apenas dentro do
universo conceitual do marxismo estabelecido, o que é sempre recomendável para
quem pretende aperfeiçoar seus conhecimentos sobre o mundo realmente existente,
além e acima de quaisquer crenças com base em sistemas fechados de ideias. Esta
é a base, portanto, da discussão que pode agora começar.
2. Um
exemplo, entre outros, da crença persistente: Antônio Cândido
Para não tornar esta
discussão muito abstrata, conviria ilustrá-la com declarações atuais sobre o
tema em questão partindo de um true
believer, na expressão coloquial retirada do inglês, ou seja, um verdadeiro
crente. O que tem a dizer sobre o assunto um intelectual respeitado na academia
brasileira, Antônio Cândido, cujos argumentos são recebidos com toda a
distinção que merecem as verdadeiras “vacas sagradas” da intelligentsia brasileira?
Entrevistado
recentemente por um jornal desse universo intelectual, Antônio Cândido assim
respondeu à pergunta de se era socialista (e, neste caso, e para todos os
efeitos, o adjetivo socialista é completamente similar à caracterização de
comunista, uma vez que baseado nos mesmos princípios ideológicos que sustentam
esse sistema de interpretação da realidade, que é a filosofia marxista):
Brasil de
Fato: O senhor é socialista?
AC: Ah, claro, inteiramente. Aliás,
eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é
paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram
juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no
começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de
madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a
aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o
homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não
pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo,
cristianismo social, cooperativismo... tudo isso.
O que surpreende nesse
tipo de manifestação, em primeiro lugar, é a total falta de consistência do
pensamento desse autor, cultuado na academia brasileira como um dos maiores
sociólogos da nacionalidade, quanto às necessárias distinções entre, de um
lado, processos reais, desenvolvidos ao longo dos séculos como resultado de
movimentos “tectônicos” no plano das forças produtivas e das relações de
produção (para ficar na terminologia habitual), e, de outro, construções
mentais, propostas ideológicas, projetos de engenharia social que só podem ser
plataformas políticas, ou programas partidários a serem debatidos pelos
movimentos sociais e agrupamentos políticos, mas que jamais poderiam ser colocados
no mesmo plano dos processos reais. O socialismo jamais poderia ter sido, e
nunca foi, o irmão-gêmeo do capitalismo pela simples razão de que se trata de
um sistema inventado pelo homem, não uma construção social, impessoal,
progressiva e absolutamente desprovida de qualquer senso de direção
pré-determinado.
O que o aclamado
sociólogo ignora completamente, em segundo lugar, é que todos os modos de
produção social existentes, passados ou presentes, inclusive os puramente
baseados num “arranjo político” (como o socialismo, portanto) se baseiam em
certa coerção ao trabalho, qualquer que sejam as formas peculiares que assumem
as relações de produção e as formas específicas de apropriação dos resultados
do processo de produção. Não existe nenhum sistema de produção um pouco mais
complexo do que a simples organização extrativista rudimentar que não se baseie
em divisão do trabalho (sexual ou social), em algum sistema de trocas
relativamente organizado (por forças que se destacaram do mundo do trabalho,
portanto) e em mecanismos de interação e de solução de litígios que já
impliquem uma autoridade qualquer baseada na dominação política e na exploração
econômica (inclusive, e sobretudo, no socialismo). Ou seja, a proposta quanto à
não-exploração, ou quanto à igualdade fundamental do ser humano, parte de
premissas totalmente descoladas da realidade dos processos produtivos e
absolutamente inaplicáveis em condições reais do mundo do trabalho e da
satisfação das necessidades humanas.
A falha metodológica
revelada pelo mestre é particularmente grave, uma vez que ele confunde o
movimento real das sociedades com o movimento das ideias que perpassam as
sociedades, que podem, ou não, oferecer algum substrato real, ou serem apenas o
reflexo de elaborações mentais que, por mais “geniais” que possam ser – e as
contribuições de Marx constituem, de fato, poderosos instrumentos analíticos
para a compreensão das sociedades burguesas e das economias capitalistas – não
representam senão o fruto de uma construção intelectual não necessariamente
compatível com os dados da realidade. Igualmente decepcionante é a sua
compreensão do que seja o socialismo, pois revela um conhecimento deficiente,
para não dizer ingênuo, das bases intelectuais da doutrina marxista sobre o
socialismo. Perguntado pelo mesmo órgão de imprensa, sobre se “é possível o
socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?”, o mestre respondeu o que
segue:
AC: (...) Digo que o socialismo é
uma doutrina triunfante porque suas reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas.
Não tenho cabeça teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi
extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão eficiente
para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais eficiente, porque
tem o lucro. Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso
conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como tem
ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens materiais – com a
igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o socialismo, disso não
tenho a menor dúvida. Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o
socialismo acadêmico típico, a gente não sabe o que vai ser... o que é o
socialismo? É o máximo de igualdade econômica. Por exemplo, sou um professor
aposentado da Universidade de São Paulo e ganho muito bem, ganho provavelmente
50, 100 vezes mais que um trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no
Brasil, o trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o
banqueiro, está bom, é o socialismo.
Em outros termos, o
professor aposentado pensa o socialismo como a realização da igualdade, ou mais
exatamente, como a diminuição das desigualdades existentes. Ora, essa
compreensão está em completo desacordo com a teoria marxista e com as premissas
sobre as quais foram construídos os sistemas marxistas, ou dos socialismos
realmente existentes, no século XX. Para os teóricos do marxismo, o socialismo
– e, na sua sequência, o comunismo – seria a abolição das relações de produção
capitalistas, não a simples aproximação dos rendimentos médios do trabalhador
assalariado das categorias mais bem pagas da sociedade capitalista. A premissa
básica seria a abolição do conceito mesmo de propriedade privada, com a
socialização completa das forças produtivas, colocadas sob controle da
categoria universal alegadamente detentora da solução final para as
contradições fundamentais de toda sociedade de classes, e que por isso mesmo
redundaria na abolição de todas as classes sociais, especificamente na dominação
política de uma classe dominante sobre as demais. Quem não partilha dessas
premissas não pode, legitimamente, pretender-se comunista, ou socialista
marxista. A menos, claro, que pretenda na prática afirmar-se como social
democrata, que seria a versão reformista, light, ou rósea, do socialismo
marxista (e, como tal, denunciada em vários escritos dos que se pretendem
comunistas verdadeiros).
O mais surpreendente,
ainda, é que o velho mestre se mostra singularmente desinformado sobre as
realidades do socialismo real ao redor do mundo, como também especialmente
confuso sobre o tipo de sociedade existente sob o modo de produção capitalista.
Perguntado sobre o que “o socialismo conseguiu no mundo de avanços?”, ele
argumentou:
AC: O socialismo é o cavalo de
Troia dentro do capitalismo. Se você tira os rótulos e vê as realidades, vê
como o socialismo humanizou o mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do
socialismo. Cuba é uma coisa formidável, o mais próximo da justiça social.
Pronunciando-se, logo em
seguida, sobre como ele via a sociedade capitalista, o mestre consegue, em
poucas frases desvendar sua incompreensão total do que seja uma sociedade de
mercado – que pode ser, ou não, capitalista – e de como funciona, de fato, a
sociedade de consumo; ele revela, ademais, uma ignorância fundamental sobre a
própria natureza do processo produtivo – sob qualquer modo de produção,
registre-se –, já opondo-se, de fato, a qualquer avanço tecnológico, sob
qualquer pretexto. A ingenuidade, ou ignorância, é abissal, e surpreende que
banalidades desse tipo sejam recebidas sem qualquer comentário crítico por
marxistas e não marxistas da academia, que teriam, pelo menos, a obrigação da
coerência epistemológica e da adequação dos argumentos aos fatos materiais da
vida como ela é. Registre-se alguns extratos finais, portanto:
AC: A coisa mais pérfida do
capitalismo –por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a sociedade
de consumo. Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um inculcamento sublimar [sic] de dez em
dez minutos, na cabeça de todos (...) imagens de whisky, automóvel, casa,
roupa, viagem à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para
concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades artificiais e
está levando os que não têm ao desespero, à droga, miséria... Esse desejo da
coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo descobriu isso graças ao Henry
Ford. O Ford tirou o automóvel da granfinagem e fez carro popular, vendia a 500
dólares. Estados Unidos inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi
ficando milionário. De repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado,
chamou os economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o
carro não acaba”. O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal
é feito para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar,
essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso, passou a
mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais socialista
seria preciso encontrar uma maneira de não falir as empresas, mas tornar os
produtos duráveis, acabar com essa loucura da renovação. Hoje um automóvel é
feito para acabar, a moda é feita para mudar. Essa ideia tem como miragem o
lucro infinito. Enquanto a verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do
bem-estar infinito.
Os dois conjuntos de
argumentos são propriamente inaceitáveis por quem quer que examine o mundo
real, seja a situação efetiva na Cuba “socialista”, seja as formas pelas quais
está organizada a sociedade de consumo – que pressupõe uma sociedade produtiva,
em primeiro lugar – em qualquer regime imaginável de organização social da
produção, inclusive o da produção “artesanal”. Tomar suas palavras como
possuindo um grau mínimo de aderência à realidade – o que elas não possuem,
obviamente –, seria como se em Cuba não existisse sociedade de consumo, como se
os cidadãos cubanos não consumissem produtos – de quaisquer origens – e como se
a ausência de uma maior variedade de produtos, ou até a existência concreta de
um regime de penúrias, como aquele registrado na Cuba socialista, fosse a
realização suprema da “justiça social”. O consumo existe em qualquer sociedade
do mundo, de qualquer época histórica e de qualquer sistema produtivo, sendo
aliás inerente à natureza do ser socialmente produtivo que é o homem – e isto é
puro marxismo, estando mais explícito em textos de Engels -- o fato de se estar
sempre avançando na escala produtiva, pela inovação de produtos ou de processos
que permitam oferecer os bens essenciais e, depois, vários bens “supérfluos”,
aos melhores preços possíveis para o consumo da maior parte da sociedade.
No decorrer de um longo
processo histórico, o sistema produtivo que mais próximo se acercou desse ideal
de crescimento sustentado com base em transformações produtivas incrementais –
algumas delas, aliás, revolucionariamente inovadoras – e na distribuição social
dos benefícios desse crescimento foi justamente o capitalismo, não o
socialismo. Daí a resiliência do capitalismo aos desafios revolucionários que
ele enfrentou ao longo do tempo, advindo não apenas de contradições sociais que
são inerentes a toda e qualquer forma de organização social da produção, mas
igualmente de alternativas ideológicas que foram sendo servidas ao longo da
história para tentar conceber um sistema que fosse ou mais eficiente, ou mais
justo e igualitário, ou ambos.
Não é preciso retomar
aqui o resultado efetivo dessa competição entre sistemas e ideias, pois sabemos
que a forma mais disseminada nos supermercados da história foi mesmo, anda que
temporariamente, a do capitalismo, que nada mais é do que uma das formas da
economia de mercado, aparentemente tão desprezada pelo velho mestre Antônio
Cândido. Chega a ser, assim, patético, ler suas considerações sobre a sociedade
de consumo ou sobre o capitalismo, pois elas nada mais revelam do que uma
incompreensão fundamental quanto ao modo de funcionamento das sociedades – de
qualquer sociedade – e do sistema de produção de mercado, inclusive suas formas
capitalistas ou proto-capitalistas. O silêncio de marxistas, de socialistas, ou
de comunistas – assumidos como tais – sobre tais tipos de argumentos pode
representar concordância básica quanto às suas premissas, discordância discreta
e não explicitada quanto aos fundamentos históricos de afirmações tão
absurdamente equivocadas, ou simplesmente incapacidade de raciocinar com base
na lógica elementar e nos princípios da coerência epistemológica. Em qualquer
dos casos, parece suficientemente grave, pois materiais desse tipo do
registrado neste texto elementar de crítica acadêmica circulam de modo amplo pelas
salas e corredores das universidades públicas brasileiras e são comentados nos
sites e blogs mais vinculados a esse universo mental.
3. Comunismo:
apenas um sistema de crenças, sem consistência real
Retomemos, aqui, a
questão central do que pretende ser um debate atinente aos cursos de ciências
sociais de nossas academias: qual é o estatuto social, ou ideológico, dos
argumentos em defesa do socialismo – e por extensão do comunismo – que
continuam a impregnar não só a didática e a docência no universo das
humanidades, como também a estruturação de movimentos políticos que pretendem
oferecer um tipo qualquer de alternativa ao capitalismo realmente existente? A
postura deste autor já foi colocada na seção introdutória, qual seja: o
conjunto de argumentos que sustenta a defesa da doutrina – e das propostas de
organização social e econômica – do comunismo (em seus fundamentos marxistas)
remete a um universo mental que poderia ser chamado de crença ou assimilado às
crenças. Estas constituem uma assemblagem de “explicações mágicas” sobre a
realidade que não respondem a quaisquer testes provados no mundo real, ou seja,
que não sustentam o teste da realidade, mas que ainda assim continuam, como
todas as crenças, a suscitar adesões inquestionadas a suas premissas
equivocadas por alguma necessidade psicológica de seus aderentes de não
enfrentar o mundo real.
Resumindo: a pessoa que,
hoje em dia, se proclama comunista – algumas até orgulhosamente – está
demonstrando uma crença num conjunto de preceitos que remete a um universo
especial, o do salvacionismo, um movimento vinculado ao utopismo e a todas as
seitas que pretendem ter a chave mágica do universo, para a salvação da
humanidade, com base num conjunto de princípios de “engenharia social” e de valores
não testados nos laboratórios da realidade. O comunismo (e não apenas hoje em
dia) é parente direto das concepções utópicas sobre a organização social e
econômica das sociedades, não obstante a pretensão de seus proponentes e
seguidores de insistir em seu “caráter científico”. A lógica elementar e
confronto com os dados da história permitem esclarecer e descartar suas
afirmações muito rapidamente, ainda mais facilmente no caso de frases sem
sentido como as transcritas aqui de um respeitado intelectual brasileiro. Uma
discussão final, atinente ao problema da apreensão do mundo real e à questão do
registro histórico, tocará nestes pontos, ainda que de modo sumário.
O próprio da ciência é
trabalhar com um conjunto de hipóteses que deverão, em seguida, ser testadas
para que se comprove sua fiabilidade em face dos dados do real. Pode até
existir uma teoria prévia à formulação das hipóteses, mas o mais comum é que a
teoria apareça após testes repetidos das concepções iniciais, para que daí se
extraiam regras gerais e, portanto, “leis” quase invariáveis de
desenvolvimento. Nem sempre é assim, e algumas teorias sobrevivem mesmo na
ausência de testes comprobatórios, mas pode-se deduzir a fiabilidade de uma
teoria por meio de deduções inteligentes. Por exemplo, é muito difícil observar
a “evolução”, mas é possível aderir à teoria da seleção natural darwiniana, com
base nos registros geológicos e nos dados da história natural (para isso basta
visitar qualquer museu de história natural). Aliás, seria impossível trabalhar
de modo adequado nas ciências geológicas e nas biológicas sem a aceitação dos
princípios básicos da seleção natural. O trabalho de laboratório é todo ele
fundamentado nas ideias darwinianas, que sustentaram gloriosamente os testes do
tempo e da realidade.
Pode-se, por acaso,
dizer o mesmo do conjunto de afirmações que sustentam a crença na “teoria
materialista da história”, na luta de classes como fundamento da evolução das
sociedades humanas? É possível acreditar na “evolução” determinista das
sociedades existentes em direção ao comunismo, como apregoado pela “teoria
marxista”? Por fim: existe alguma base real para confirmar as predições de Marx
e seguidores sobre o “curso inevitável” das sociedades capitalistas em direção
ao comunismo?
Os “testes” do tempo e
da realidade, efetuados até aqui nos “laboratórios” dos capitalismos e dos
socialismos realmente existentes, desmentem – não apenas uma ou outra, mas – todas
as afirmações marxistas e leninistas sobre a marcha da história e a evolução
das sociedades. O registro “geológico” do longo – segundo as concepções
arrighianas – ou “breve” – de acordo com Hobsbawm – século XX não permite
sustentar, apoiar, comprovar, de alguma forma corroborar qualquer uma das premissas
e previsões marxistas, que sustentam a fé – não existe outro conceito – no
ideal socialista ou do modelo comunista de sociedade e de organização social da
produção.
Pode-se, assim, desafiar
os marxistas, em geral, a retomar qualquer uma das análises de Marx e de Lênin
sobre o desenvolvimento do capitalismo, ou qualquer uma das suas “hipóteses de
trabalho” sobre a emergência das sociedades comunistas, e, com base nelas, comprovar
que estas análises e hipóteses são, não apenas logicamente dedutíveis de suas
premissas (como ocorre, por exemplo, com a “teoria” da seleção natural), mas
materialmente possíveis a partir de desenvolvimentos empíricos aferíveis (da
mesma forma como ocorre em laboratórios de biologia com as manipulações de
espécies, no caso em exame). Ou seja, pode-se esperar que o socialismo seja o
resultado natural, quase automático, do desenvolvimento e das contradições
internas do modo de produção capitalista e que sua eficácia produtiva seja
comparável ou superior ao do modo imediatamente anterior? Com base em qual tipo
de raciocínio lógico, pode-se afirmar que o “socialismo”, se efetivado, conseguiria
superar contradições inerentes às economias de mercado, em sua aparente
“anarquia” produtiva?
Independentemente,
porém, do registro histórico que comprova o tremendo fracasso material do
socialismo marxista, e do comunismo, no século XX, na tentativa de se criar um
modo de produção “superior”, ou “harmônico”, existe um outro conjunto de testes
que se vinculam ao modo de organização interna de qualquer regime socialista,
ou seja, a seus fundamentos materiais, o que também envolve o aspecto puramente
lógico sobre as formas de estruturação e de funcionamento de qualquer sistema
produtivo baseado nas premissas “econômicas” marxistas. Essa questão tem a ver
com o problema fundamental do cálculo econômico, e com a função dos preços –
como sinalizadores da escassez relativa – num sistema de organização da
produção para o mercado, ou seja, o de qualquer modo de produção concebível em
uma sociedade complexa, seja ela escravocrata, feudal, capitalista ou
“socialista”. Esse problema, insolúvel num sistema socialista puramente
marxista – ou seja, comunista –, já tinha sido tratado desde os primórdios da
revolução bolchevique por um jovem economista austríaco, Ludwig Von Mises, que,
com base numa análise puramente racional dos fundamentos “lógicos” da economia socialista,
concluiu que esta não conseguiria funcionar, justamente, por falharem
princípios básicos da organização racional da produção e distribuição de
insumos, de bens intermediários e de bens finais.
E, no entanto, diriam os
true believers da causa socialista e
comunista, a despeito de todas essas “previsões” catastrofistas e condenatórias
do socialismo enquanto doutrina e enquanto forma alternativa de organização
social da produção, o fato é que o socialismo “funcionou” durante setenta anos,
e nada impediria, em princípio, que ele voltasse a funcionar em novas bases,
corrigidos alguns “pequenos erros” que impediram seu funcionamento mais
eficiente da “primeira vez”. Como as apostas e as esperanças dos verdadeiros
crentes na causa socialista não se apoiam em evidências de fato, mas justamente
num sistema de crenças que demanda adesão inquestionada – sem que eles sejam
chamados comprovar suas teorias, um pouco como os criacionistas – não se prevê
o desaparecimento fácil ou imediato desse tipo de falácia fundamentalista.
Não seria, na verdade, a
primeira, nem a última vez, que crenças equivocadas conseguem manter-se durante
tanto tempo no circuito das teorias possíveis: a “teoria geocêntrica”, por
exemplo, comandou durante séculos as reflexões dos homens e as explicações
geográficas, até ser superada por uma melhor explicação, com base na observação
direta da realidade e na experimentação empírica. O socialismo já teve sua fase
de experimentação empírica – que foram as sete décadas de experimentos de engenharia
social desde o advento do modelo bolchevique de organização social da produção
e suas diversas variantes ao longo do tempo – mas seu rotundo fracasso não
parece ainda ter conseguido alterar o conjunto de crenças mantidas pelos true believers.
Uma das razões possíveis
pode ser o fato que a maior parte dos aderentes ao credo não conheceu, não
visitou, não conviveu, não experimentou, de fato, o “modo socialista de
produção”, cujas bases de funcionamento são desconhecidas aos true believers, que continuam a repetir
algumas fórmulas “sagradas” da doutrina original. Nenhum deles, por exemplo,
parece próximo de acreditar que o socialismo marxista, tal como materializado
na Eurásia, constituiu o equivalente funcional de formas modernas do
escravagismo antigo ou do despotismo oriental. Aparentemente, evidências não
bastam, quando se decide não aceitar evidências concretas que vão contra as
crenças.
Em todo caso, o autor
destas linhas acredita que um trabalho sério de pesquisa histórica, de
constatação de evidências materiais e alguns poucos raciocínios lógicos poderia
ajudar a desmontar o grau de irracionalidade conceitual e de não adequação
material que caracterizam as crenças socialistas, tal como consubstanciadas em
sua vertente marxista clássica. Ele não tem, entretanto, nenhuma ilusão de que
“velhos socialistas” ou de que acadêmicos enviesados venham a recompor sua
estrutura mental e suas posturas sociais e políticas a partir dessas
constatações de fato e de raciocínio. Ele espera, pelo menos, que um número
maior de alunos, talvez entediados pela repetição aborrecida das mesmas velhas
fórmulas ultrapassadas, possa encontrar um novo campo teórico de explicações
científicas que escape do terreno das crenças para o mais modesto das
explicações possíveis em torno da modernidade capitalista.
Brasília, 2 de agosto de 2011
Resumo: Crítica às crenças
fundamentalistas do socialismo marxista na substituição de um modo de produção
resultante de processos sociais incontrolados e impessoais, como o capitalismo,
por um outro, concebido de maneira ideológica e pretendendo operar um exercício
de engenharia social com base em premissas equivocadas e pressupostos
equivocados sobre o funcionamento de uma economia de mercado.
Palavras-chave: Marxismo; Socialismo;
Comunismo; Fundamentalismo; Capitalismo.
PS.: texto disponível no seguinte link:
https://www.academia.edu/5961515/2292_Pode_uma_pessoa_inteligente_pretender-se_comunista_hoje_em_dia_Reflex%C3%B5es_sobre_um_paradoxo_acad%C3%AAmico_brasileiro_2011_
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