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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 28 de abril de 2019

O desafio do movimento revolucionário-reacionário do olavismo-bolsonarismo - Augusto de Franco (Dagobah)

Um importante artigo, conceitual e de natureza tático-estratégica, sobre o movimento revolucionário-reacionário representado pelo olavismo-bolsonarismo. Ele não é tão desprovido de doutrina quanto parece: tem narrativa, tem estratégia, tem metas e objetivos, assim como métodos e ferramentas para alcançá-los, enfim representa um poderoso desafio ao caráter democrático (mas de baixíssima qualidade) de nosso sistema político. Ler, refletir e, portanto, levar a sério o movimento reacionário em curso. Não subestimem a capacidade dos atuais inimigos da democracia, ainda que eles sejam toscos, rústicos, intelectualmente medíocres e culturalmente paupérrimos, mas eles têm uma imensa sede de poder e nenhum escrúpulo.
Paulo Roberto de Almeida
Uberlândia, 28/04/2019

Está em curso, no Brasil, um movimento revolucionário (para trás) contra a democracia

Alguém tem de dizer o óbvio (que, frequentemente, não é percebido em toda sua crueza). Há em curso, no Brasil atual, um movimento revolucionário (para trás) contra a democracia. O próprio presidente, seus filhos, seu guru e seus sequazes alimentam, ostensiva ou ocultamente, esse movimento bolsonarista.
Isso não significa dizer que esse movimento vai prosperar, mas que há um movimento, há. Negar o que é evidente é sucumbir diante da ameaça. Para os democratas equivale a um suicídio político.
Vejamos agora as características desse movimento revolucionário (para trás) bolsonarista.
1 – Qual é a sua narrativa?
2 – Qual é a sua estratégia?
3 – Quem são os seus principais agentes?
4 – Como se configuraram as condições para que tal movimento vicejasse?
5 – Por que e como esse movimento ameaça a democracia?
6 – Qual deve ser a atitude dos democratas diante da revolução bolsonarista?
A NARRATIVA
A narrativa bolsonarista (na verdade, olavista) começou a ser formulada durante o processo de impeachment e foi estruturada e codificada durante a campanha eleitoral de 2018. O encadeamento da narrativa olavista-bolsonarista é tão simplório que acaba colando em mentes rudes e nas pessoas sem experiência política. Neste sentido, é uma boa narrativa do ponto de vista da propaganda. Ela pode ser resumida em 7 pontos (tal como formulada durante a campanha eleitoral):
1 – Os comunistas querem destruir a religião, a família, a nação, a pátria, enfim, a civilização ocidental cristã e seus valores (a ordem, a hierarquia, a disciplina, a obediência, o comando-e-controle, a fidelidade). Eles são o inimigo.
2 – Os comunistas dominaram o Brasil e ensejaram a corrupção. Os comunistas são corruptos e os corruptos são comunistas. Todos os políticos e os partidos da (falsa) democracia brasileira são comunistas-corruptos ou corruptos-comunistas. É tudo a mesma coisa.
3 – Só não vivemos numa ditadura comunista graças aos militares que fizeram a revolução redentora de 1964 (já na antessala da ditadura do proletariado que seria instalada pela esquerda). Houve uma guerra civil entre 1967 e 1977 que, felizmente, foi vencida pelos militares patriotas. Não houve ditadura militar: os militares fizeram uma intervenção saneadora atendendo ao clamor da maioria da população.
4 – Os comunistas assumiram o governo após o impeachment de Collor, colocaram no poder FHC (também comunista e corrupto) que, como um Kerenski brasileiro, preparou o caminho para a ascensão de Lula (outro comunista-corrupto). Neste período, a esquerda subsidiada, com o apoio da mídia comprada, satisfez os interesses da elite bilionária globalista e antinacional. Para tanto, desarmaram o povo, tentaram sexualizar e tirar a pureza de nossas crianças (induzindo-as para que elas sejam gays) e estimularam a bandidagem geral na sociedade (o objetivo principal dos comunistas-corruptos, não se pode esquecer, é destruir a civilização ocidental cristã).
5 – Os comunistas-corruptos continuaram organizados antes, durante e após o impeachment de Dilma. E querem voltar ao poder, seja por meio de alguém do PT, seja por meio dos demais candidatos do campo democrático, que são todos comunistas ou corruptos ou ligados à elite globalista: Álvaro, Alckmin, Amoedo, Marina ou Meirelles – todos são a mesma coisa. O único diferente, não-contaminado pela ideologia comunista ou globalista ou pela corrupção, o único verdadeiro patriota, é Bolsonaro.
6 – Eleger Bolsonaro em 2018 é a última chance de acabar com a patifaria dos políticos e botar ordem na casa. Só Bolsonaro pode fazer isso, evitando a volta dos esquerdistas. Do contrário os comunistas, globalistas e corruptos predominarão e acabaremos virando uma Venezuela ou coisa pior.
7 – Foram os mesmos comunistas e corruptos, a serviço das elites globalistas, os mandantes da facada contra Bolsonaro. Votar em Bolsonaro é votar contra os comunistas, globalistas e corruptos, que além de tudo são assassinos – tanto é assim que, diante do medo da vitória de Bolsonaro, não hesitaram em mandar esfaquear o único candidato honesto e patriota. São, aliás, os mesmos que estão planejando fraudar as eleições manipulando as urnas eletrônicas – único meio de impedir a vitória de Bolsonaro.
As respostas para tais alegações piradas já foram apresentadas no artigo A narrativa olavista-bolsonarista em 7 pontos.
Depois da campanha, com a vitória de Bolsonaro, a narrativa permaneceu basicamente a mesma, com pequenas adaptações e acréscimos:
8 – Toda a imprensa é comunista (é a “extrema-imprensa”) e ataca Bolsonaro, publica fake news para destruir seu governo, por ideologia e porque sabe que a fonte de recursos públicos vai secar.
9 – Articulação com partidos e parlamentares significa negociação espúria, velha política, troca de votos por cargos ou dinheiro.
10 – O Congresso ameaça não aprovar as reformas porque está querendo aprisionar Bolsonaro na sua dinâmica corrupta e enlameá-lo com a velha política do toma-lá-dá-cá.
11 – Os elementos do parlamento que se opõem a Bolsonaro devem ser denunciados, se possível perseguidos e processados pelos justiceiros lavajatistas (com o fim do foro privilegiado).
12 – O STF é a principal instituição que protege os comunistas-corruptos e, por isso, deve ser desmoralizado, neutralizado, reformado ou destruído.
A ESTRATÉGIA
Em primeiro lugar é preciso entender que o bolsonarismo é um populismo. A estratégia bolsonarista (quer dizer, olavista) só poderia ser uma estratégia populista, ainda que acentuadamente autoritária. O seu objetivo é tornar a nossa democracia menos liberal e, em seguida, pervertê-la de democracia eleitoral em autocracia eleitoral (ou seja, em um regime claramente i-liberal). O objetivo dos bolsonaristas nunca foi trocar de governo nos marcos da democracia realmente existente e sim operar uma mudança no regime político. Este é o propósito comum do populismo-autoritário que viceja em várias partes do mundo nesta segunda década do século 21.
Para tanto, tal como em outros países estão procedendo os populistas-autoritários, os bolsonaristas concorreram às eleições com o fito de eleger um líder capaz de estabelecer uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais vigentes no Estado democrático de direito. A estratégia aposta na formação de uma vigorosa corrente de opinião pública capaz de reproduzir a narrativa bolsonarista (já exposta acima) e de dar apoio às mudanças que, gradualmente, serão capazes de alterar o DNA do regime democrático (transformando-o em uma democracia i-liberal e, em seguida, numa autocracia eleitoral).
Todavia, há um problema nessa estratégia. Esse processo gradual – de mudar progressivamente o regime (tornando-o i-liberal) a partir do governo, em vez de encetar um golpe de Estado em termos clássicos – leva tempo e seu caminhar é incerto diante da natural resistência das instituições democráticas (como o judiciário e a imprensa, por exemplo). Orban levou uma década para conseguir transformar a democracia eleitoral húngara em (quase uma) autocracia eleitoral. Erdogan levou também o mesmo tempo para dar uma guinada autoritária na Turquia (e ainda precisou inventar ou aproveitar um golpe fajuto ou fracassado). Na Polônia de Kaczynski e Duda e na Itália de Salvini e Di Maio, processos semelhantes que estão em curso vão igualmente demorar e não se sabe se e quando serão vitoriosos.
Ademais, as energias dispendidas para formar uma maioria ideologicamente alinhada – na sociedade e nas instituições – sem o que não se poderá alterar a natureza do regime, já que Bolsonaro e os demais bolsonaristas não têm, pelo menos inicialmente, o poder de desferir um golpe militar – prejudicam a governança, diminuindo a capacidade de governo. O governo, engalfinhado em disputas secundárias para a maioria da população, conquanto essenciais para coesionar uma legião de seguidores, não consegue dar respostas efetivas de curto prazo para problemas prementes (como baixo crescimento, desemprego e falta de boas políticas setoriais nas áreas de saúde, segurança, educação etc.). Dissipando forças em mil frentes de batalha, o governo tem dificuldade até mesmo de aprovar as reformas consabidamente necessárias (como a da Previdência, mas não só). E na medida em que não dá solução para os problemas reais, o governo tende a perder popularidade, elemento indispensável na estratégia do curto-circuito institucional promovido por um führer ou condutor de rebanhos.
Por último, essa estratégia exige algum tipo de intervenção nos tribunais superiores e nas liberdades de imprensa e de expressão em geral. Enquanto o judiciário estiver reformando medidas governamentais e a imprensa e as mídias sociais estiverem criticando essas medidas, torna-se dificílimo implementá-las. Esta é a razão pela qual populistas-autoritários como Orbán e Erdogan fizeram intervenções em suas supremas cortes e reduziram a liberdade de expressão em seus países.
Bolsonaro, no Brasil, atuando através de seus filhos e sequazes nas mídias sociais manipuladas, tenta diariamente jogar a população contra o Supremo Tribunal Federal e contra a imprensa. Mas isso é insuficiente para promover mudanças efetivas a seu favor nessas instituições do establishment.
Sem um fato extraordinário – uma mega-catástrofe, um atentado terrorista de grandes proporções, uma guerra com um país vizinho, uma tentativa de golpe de Estado (desferida pelo “inimigo interno”), um colapso institucional – a estratégia que prevê operar uma mudança de regime a partir do governo demora muito para ser implementada, mais do que a paciência da população é capaz de suportar.
Como a catástrofe é imponderável, atentados terroristas internos e guerras são improváveis, a única alternativa que resta é a provocação de uma crise seguida de colapso institucional, que dê motivos para a aprovação de leis autoritárias ou force a entrada em cena das forças armadas. É com isso, fundamentalmente, que os bolsonaristas contam.
Um governo democrático não precisa de altos índices de popularidade para continuar governando. Não cai só por isso, como vimos no caso de Michel Temer. Mas Temer não queria fazer revolução nenhuma, ao contrário do bolsonarismo. Um governo orientado por uma estratégia revolucionária (para trás) populista-autoritária – como é o bolsonarismo – precisa, sim, manter sua popularidade em altos níveis. Sem o mito e seu efeito mesmerizador de multidões, nada feito. Caso a popularidade de Bolsonaro continue caindo, a força política bolsonarista poderá partir para o desespero e não é despropositado supor que tentará forjar atentados (contra o presidente ou os seus filhos) ou cavar uma guerra (por exemplo, com a Venezuela). Tudo isso, todavia, é altamente arriscado, além de incerto. Resta, portanto, investir na crise institucional.
Desgraçadamente para o bolsonarismo, também é improvável que se consiga produzir uma crise institucional de alto impacto no Brasil que autorize e viabilize mudanças regressivas na Constituição Federal ou obrigue os militares a “pacificar” o país assumindo novamente o poder. Mas… eis o ponto! O investimento nessa saída autoritária, por si só, instalará no país uma guerra civil fria, acelerando a dilapidação do nosso capital social e enfreando o processo de democratização. Ou seja, em qualquer caso, mesmo no caso de fracasso político imediato, o revolucionarismo bolsonarista sairá vitorioso em termos sociais. Na pior hipótese, para o bolsonarismo, conseguirá reconfigurar o campo (ou deformar a rede) social, ensejando que nossa democracia fique menos liberal (como veremos mais adiante).
OS AGENTES
Os agentes principais da revolução (para trás) em curso no Brasil são o próprio presidente, seus filhos, seu guru e seus sequazes bolsonaristas (ou melhor, olavistas-bolsonaristas). Como em todo processo revolucionário, esses agentes se distribuem em diferentes níveis: dirigentes, formuladores, propagadores, apoiadores e simpatizantes (incluindo os famosos inocentes úteis). Quem são (excluído o próprio Jair Bolsonaro, que também é bolsonarista)?
01 – Carlos Bolsonaro
02 – Eduardo Bolsonaro
03 – Flávio Bolsonaro
04 – Olavo de Carvalho
05 – Abraham Weintraub
06 – Alexandre Borges
07 – Alexandre Garcia
08 – Allan dos Santos
09 – Ana Caroline Campagnolo
10 – Ana Paula
11 – Augusto Nunes
12 – Bene Barbosa
13 – Bernardo Küster
14 – Bia Kicis
15 – Bruno Garschagen
16 – Carla Zambelli
17 – Damares Alves (trata-se de uma fundamentalista-evangélica levada ao bolsonarismo pelas circunstâncias)
18 – Danilo Gentili
19 – Emilio Dalçoquio (empresário que puxou o locaute dos caminhoneiros)
20 – Ernesto Araújo
21 – Fabio Wajngarten
22 – Felipe Moura Brasil
23 – Flavio Morgenstern (Flávio Azambuja Martins)
24 – Flavio Rocha
25 – Filipe Martins
26 – Filipe Valerim (e a galera do Brasil Paralelo, que se esforça para não aparecer)
27 – Italo Lorenzon
28 – Joice Hasselmann
29 – José Carlos Sepúlveda
30 – Leandro Ruschel
31 – Luciano Hang (dono das Lojas Havan)
32 – Luiz Philippe de Orleans e Bragança
33 – Marcelo Reis
34 – Meyer Nigri
35 – Nando Moura
36 – Osmar Stábile (o cara que assumiu ter financiado o vídeo de falsificação histórica sobre o golpe de 1964 divulgado criminosamente pelo Planalto)
37 – Ricardo de Aquino Salles
38 – Roger Moreira (parecido com o Lobão, porém muito mais reacionário)
39 – Sebastião Bomfim (empresário)
A lista acima é apenas demonstrativa, não exaustiva. Faltam muitos agentes menos conhecidos. E nela não constam os nomes de milhares de militantes anônimos, as dezenas de milhares de pessoas-bot e as centenas de milhares de eleitores normais de Jair Bolsonaro (a maior parte dos quais nem é bolsonarista, mas apenas simpática a Bolsonaro) que, inadvertidamente, replicam as mensagens emitidas pelos chefes (os hubs da rede descentralizada bolsonarista), sobretudo aproveitando a possibilidade de broadcasting privado e de fluxo descendente em árvore no WhatsApp (a grande falta de proteção das mídias sociais contra a manipulação hierárquica que está permitindo a escalada do ataque à democracia no Brasil e em vários países).
E não estão incluídos na lista acima os militares que infestam o governo, alguns dos quais intervencionistas (e claramente antidemocratas) e os jacobinos-restauracionistas que compõem a “liga da justiça”, uma espécie de milícia legal (não prevista em nosso arcabouço constitucional) em que se transformou a Lava Jato: ambos aliados, explícitos ou tácitos, dos bolsonaristas.
Mas… atenção! É preciso dar nome aos bois. Se essas cerca de 40 pessoas, mencionadas na lista acima, pararem de emitir diretivas, se alguns desses hubs forem desativados (pela pressão social pacífica ou por outro meio legal), o bolsonarismo propriamente dito – no estágio organizativo em que atualmente se encontra – se desfaz.
AS CONDIÇÕES SUBJETIVAS E OBJETIVAS
O populismo-autoritário bolsonarista chega ao governo brasileiro num momento de recessão e desconsolidaçãodemocrática mundial com a ascensão de populismos de direita ou de esquerda.
Já se sabe que hoje, no mundo e no Brasil, os principais adversários das democracias realmente existentes – sobretudo das democracias liberais – não são mais os fascistas ou os comunistas e sim os populistas (sejam ditos “de direita” ou de “esquerda”) que usam a democracia contra a democracia para torná-la menos liberal e mais majoritarista.
O populismo, seja na suas versões de esquerda, neopopulistas, seja nas suas versões autoritárias de extrema-direita, contribuiu para invalidar as ideias liberais como as seguintes:
i) que é normal que a sociedade esteja dividida entre muitas — e às vezes transversais — clivagens,
ii) que a melhor maneira de lidar com essas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e busca o consenso, e
iii) que o Estado de direito e os direitos de minorias precisam ser respeitados.
Ao contrário, os populismos reforçaram ideias avessas à democracia, como as de que:
i) a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites),
ii) a polarização (elites x povo) deve ser encorajada e os representantes do povo (que seriam os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo),
iii) minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.
É o caso, à direita, de Orbán (na Hungria), mas também os de Putin (na Rússia) e Recep Erdogan (na Turquia) – que já viraram ditaduras; e também o de Jaroslaw e Lech Kaczynski e  Andrzej Duda (na Polônia), de Matteo Salvini (na Itália), de Le Pen (na França), de Geert Wilder (na Holanda), de Hans-Christian Strache (na Áustria), de Jörg Meuthen e Alexander Gauland (na Alemanha) e, na Asia, de Rodrigo Duterte (das Filipinas); além, é claro, de Donald Trump (nos USA) e dos líderes do Brexit (como Boris Johnson e Nigel Farage, na Inglaterra) e agora, na América Latina, de Jair Bolsonaro (no Brasil) – que se transformaram nas principais ameaças à democracia liberal no plano global. Todos estes representam, com suas especificidades, forças políticas populistas-autoritárias.
E é o caso, à esquerda, de Hugo Chávez e Nicolás Maduro (na Venezuela) e de Daniel Ortega (na Nicarágua) – que também já viraram ditaduras; mas ainda de Evo Morales (na Bolívia), de Rafael Correa (no Equador), assim como foi o de Mauricio Funes (em El Salvador), o de Manuel Zelaya (em Honduras), o de Fernando Lugo (no Paraguai), o de Néstor e Cristina Kirchner (na Argentina) e o de Lula e Dilma (no Brasil). E todos estes representam, com suas especificidades, forças políticas neopopulistas (nas diversas variantes, hard ou soft, do que ficou conhecido como bolivarianismo).
É importante notar que, para todos esses populistas – sejam considerados de direita ou de esquerda -, o principal inimigo é a democracia liberal. Ou seja, todos os populistas pervertem a democracia como uma continuação da guerra por outros meios, mas não propriamente para se engalfinhar em processos de destruição mútua (direita x esquerda) e sim para neutralizar, desativar ou destruir as forças políticas democráticas.
Diga-se o que se quiser dizer, o PT é o principal responsável por Bolsonaro ter sido eleito. O lulopetismo gerou o bolsonarismo. Um populismo engendrou outro populismo (de sinal trocado), afastando os democratas – os verdadeiros inimigos de ambos – da cena pública. Mas dizer que o PT é o principal responsável pela eleição de Bolsonaro não é dizer que ele é o único responsável e sim, apenas, como está escrito, que é o principal. Em segundo lugar vem o PSDB, que se recusou a fazer oposição para valer durante mais de uma década e se descredenciou aos olhos da população revoltada com os abusos lulopetistas.
Os abusos lulopetistas provocaram uma reação em cadeia da população, sobretudo nos setores sociais que não participavam da política, não tinham – e não têm – a menor noção de democracia e viraram agentes, em grande parte inconscientes, da escalada autoritária em curso.
Mas não é possível negar que sem o lajatismo militante, Bolsonaro jamais teria vencido a eleição. Como já foi dito em outro artigo, o lavajatismo militante, quer dizer, a instrumentalização política da operação Lava Jato, levou Bolsonaro ao governo. Há uma evidência incontrastável. O apoio popular ao combate à corrupção virou campanha política: mais de 90% de todos os grupos que se formaram para apoiar a Lava Jato e endeusar Moro e Deltan (como as tais “Repúblicas de Curitiba”) viraram comitês eleitorais de Bolsonaro. Vencida a eleição, o lavajatismo original foi entronizado no governo, via Sérgio Moro, para se transformar em bolsolavajatismo oficial.
A NATUREZA DA AMEAÇA
É difícil compreender a natureza da ameaça bolsonarista. Não é um movimento político tradicional. Não é um partido (o PSL foi apenas a sigla comprada por Bolsonaro para poder concorrer). Apesar das semelhanças com o lulopetismo – justas na medida em que ambos são populistas e pretendem, inicialmente por vias legais, eleitorais, alterar o DNA da democracia – o bolsonarismo é muito diferente do PT e tem características inéditas no Brasil.
O PT já era um partido consolidado e sua estratégia visava conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido com o fito de nunca mais sair do governo. Essa estratégia neopopulista preconizava ganhar eleições sucessivamente até poder conquistar as instituições por dentro, privatizando-as partidariamente para colocá-las a serviço do seu projeto. Poderia até dar certo, mas não deu por várias razões que não cabem neste artigo. Pode-se dizer aqui apenas que se não tivesse sido interrompido pelo impeachment e se Dilma tivesse se comportado de maneira mais razoável, é bem provável que, dispondo de mais 4 anos, o PT conseguisse alcançar seu intento. O Brasil seria transformado em uma democracia formal, menos liberal, parasitada por uma força política manipuladora, com discurso socialista e comportamento bolivariano, porém à brasileira. O Brasil petista dificilmente seria uma Venezuela (onde o projeto neopopulista descambou para o vale-tudo da narco-ditadura e gerou uma crise política e social de grandes proporções e um desastre humanitário) e se consolidaria como um regime autoritário de facto, porém não reacionário no que tange aos costumes e aos direitos humanos.
Ou seja, bolsonarismo e lulopetismo são, ambos, ameaças à democracia, mas não a mesma ameaça.
Como já foi dito, o bolsonarismo ensejou a irrupção repentina de matrizes da cultura patriarcal – preconceituosa, intolerante, excludente, deslegitimadora do outro, do diferente, do divergente, não valorizadora do diálogo, do entendimento e da negociação e avessa aos direitos humanos – que sempre esteve no fundo do poço da consciência (ou inconsciência) da maioria da nossa população (ainda que em termos de convicções privadas).
O bolsonarismo se transformou, assim, num desaguadouro dessas matrizes de pensamento e comportamento mais incompatíveis com a democracia que repousam no baixo ventre da história (desde que existe Estado). A democracia surgiu precisamente como uma brecha nesse tipo de cultura patriarcal, hierárquica e guerreira. Só a democracia pode domesticar esse monstro que se esconde nos subterrâneos da cultura predominante no que chamam de civilização (que ainda é a civilização patriarcal).
Sim, o papel da democracia, como modo de administração política do Estado, é domar (ou drogar) o Leviatã (com a fórmula do Estado democrático de direito, capaz de conter, em parte, a fome pantagruélica, a belicosidade e a ferocidade do Estado-nação – um fruto da guerra, da paz de Westfália). Mas o papel da democracia como modo de vida é modificar, pelo processo interativo de fermentação de opiniões, inerente à formação da opinião pública, esses elementos desumanizantes da cultura patriarcal, impedindo que eles irrompam em estado puro na cena pública e acabem definindo o rumo das sociedades. Toda vez que isso acontece, não pode haver democracia. Ora, como já mostrou Ralf Dahrendorf, não há democracia sem democratas. Como há um deficit de democratas atuando na cena pública brasileira, as portas do inferno se abriram e multidões de zumbis levantaram de suas tumbas.
De um ponto de vista político, pode-se dizer que o lulopetismo era (e talvez ainda seja, conquanto improvável) mais perigoso do que o bolsonarismo na medida em que tinha (e talvez ainda tenha) força política organizada, enraizamento social, agentes infiltrados em todos os escaninhos do Estado, narrativa ideológica estruturada, apoio internacional e recursos de monta e de toda ordem. Mas o bolsonarismo, de um ponto de vista cultural (quer dizer, social), é a invasão dos bárbaros: a subida da lama que está depositada, camada sobre camada, no fundo do poço da cultura patriarcal.
A ameaça bolsonarista é mais perigosa do ponto de vista social do que político. É uma revivescência patriarcal, antissocial (no sentido em que Maturana emprega o termo). Todavia, se essa ameaça social se transformar em força política, triplicando (ou mesmo apenas dobrando) o número de seus agentes, aí sim poderemos ter um colapso do regime democrático.
De qualquer modo, mesmo que não consiga se expandir em termos políticos, o bolsonarismo já causou uma deformação social irreparável no curto prazo. Seja qual for o desfecho do projeto bolsonarista, nossa democracia já está ficando menos liberal diante da sua simples presença na cena pública.
A ATITUDE DOS DEMOCRATAS
A atitude dos democratas diante da ameaça que está posta só pode ser uma: a combinação de oposição formal, de caráter partidário-parlamentar, nas instituições, sobretudo no Congresso e a resistência democrática na sociedade. Não se trata de escolher uma ou outra: as duas coisas – oposição e resistência – são necessárias.  Este tema já foi tratado no artigo Como resistir ao avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade brasileira.
Apesar dos alertas insensatos de alguns analistas e jornalistas políticos pollyannas, está havendo, sim, resistência democrática no Brasil. Felizmente, instituições do Estado e da sociedade estão resistindo ao avanço do bolsonarismo (e isso nada tem a ver com a tal resistência “democrática” anunciada pelo PT). Se tivéssemos dado ouvidos aos metidos a bem-pensantes, racionais e moderados, a revolução para trás dos malucos olavistas estaria correndo solta. Não está, pelo menos por enquanto. Graças à (verdadeira) resistência democrática.
Os jornalistas e analistas pollyannas dificultaram bastante a compreensão do fenômeno ao propagarem ideias erradas sobre (o caráter de) Bolsonaro e (a natureza) do bolsonarismo. Não entenderam bem qual é a ameaça à democracia que está em curso. Seguem abaixo alguns exemplos de avaliações erradas cometidas por muitos considerados bem-pensantes:
Bolsonaro é conservadorErrado. É reacionário.
Olavo é conservadorErrado. É retrogradador.
O bolsonarismo é de direitaErrado. É de extrema-direita.
Guedes é liberalErrado. É apenas um liberal-econômico, mas nunca foi um liberal político.
Bolsonaro é liberalErrado. É nacionalista, quer dizer, estatista.
Bolsonaro em campanha foi uma coisa, no governo será outraErrado. Ele continua em campanha há mais de 80 dias no governo.
Bolsonaro é contra a velha políticaErrado. Como parlamentar ele sempre fez a velha política corporativa durante 30 anos e, no governo, está se mostrando contra a política.
O establishment vai domesticar BolsonaroErrado. O bolsonarismo é anti-establishment e Bolsonaro é bolsonarista.
Guedes e os Generais vão controlar Bolsonaro e afastá-lo da influência dos seus filhosErrado. Erigiu-se uma familiocracia impenetrável e ela é bolsonarista.
Depois de um período inicial de adaptação Bolsonaro vai acabar aprendendo o que é ser presidenteErrado. Bolsonaro não é uma entidade capaz de aprender.
Agora chegou a hora de rever tais avaliações equivocadas. Há um movimento antidemocrático no Brasil, como nunca houve na história – nem mesmo durante a ditadura militar. Esse movimento tem base social e fôlego para durar por muito tempo, independentemente do destino de seu líder Jair Bolsonaro. Somente a oposição formal – necessária e comum em qualquer democracia – não é suficiente para barrar o avanço das ideias e práticas autoritárias na sociedade. É necessário resistir pacificamente a essa escalada autoritária, em todo lugar e por todos os meios legais disponíveis.

Democracy Unschool é um ambiente de livre investigação-aprendizagem sobre democracia, composto por vários itinerários. O primeiro itinerário é um programa de introdução à democracia chamado SEM DOUTRINA. Para saber mais clique aqui

sábado, 27 de abril de 2019

24 ENERI: palestra de Paulo Roberto de Almeida: notas para desenvolvimento oral


Desafios Globais de Desenvolvimento: Igualdade, Sustentabilidade e Crescimento no Século XXI

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: notas para palestra; finalidade: 24ª edição do ENERI, Uberlândia.]

1. Introdução: invertendo a ordem dos conceitos e o seu significado
Peço permissão para revisar completamente os termos sugeridos para minha participação nesta 24ª. edição do ENERI. Em primeiro lugar não existem desafios globais de desenvolvimento. A despeito da preeminência avassaladora da globalização neste século, aliás desde a pré-história, o desafio do desenvolvimento é, continua sendo, e será ainda por muito tempo, eminentemente nacional, quase que exclusivamente nacional. Existem poucos exemplos de países no mundo, se algum, que se tenha desenvolvido pelas mãos de outros países, a não ser que se considerem colônias dominadas por certas metrópoles exemplos de processos globais, ou transplantados, de desenvolvimento. E, de fato, algumas colônias conseguiram galgar alguns degraus no caminho do desenvolvimento pelas mãos das metrópoles que as dominaram, mas entendo que não é este o conceito exatamente pensado pelos organizadores deste encontro, ao sugerir o título que me foi encaminhado para tema desta minha palestra.
Da mesma forma, permito-me alterar a ordem do subtítulo: “igualdade, sustentabilidade e crescimento”, embora aceite o final, “no século XXI”, pois é nele que nos encontramos, objetivamente. Igualdade não é necessariamente um desafio global do desenvolvimento, que ocorre de modo diferenciado entre povos e nações, num formato profundamente assimétrico – como são todos os processos nacionais conhecidos de desenvolvimento – e sequer deveria fazer parte dos objetivos nacionais nesse sentido, mas vou explicar porque mais adiante.
Sustentabilidade, por sua vez, virou o que se poderia chamar de “catch word”, um clichê, a que se recorre desde pelo menos a segunda conferência da ONU sobre o desenvolvimento sustentável, e que se tornou um conceito incontornável, obrigatório e até indispensável em qualquer discurso oficial de burocratas internacionais e de políticos nacionais. Ele serve para tudo: merchandising politicamente correto, sinal de que se está alinhado com a modernidade, respeito pela preservação do meio ambiente e todas essas palavras bonitas que precisam entrar nos discursos de todos e cada um: diplomatas em primeiro lugar, ecologistas obviamente, empresários com certeza, artistas e intelectual alinhados ao politicamente correto, enfim, gente bacana. Virou uma mania, até o ponto de perder qualquer significado concreto: tudo precisa ser sustentável, sob risco de ser execrado, condenado, abjurado, recusado, conspurcado, relegado ao limbo das más intenções, enfim, expurgado dos belos discursos recheados de bullshit.
Quanto ao crescimento, finalmente, esta é uma realidade concreta, com a qual podem trabalhar os economistas, pois ele pode ser medido, mensurado, quantificado, estimado, projetado, colocado numa série histórica, transformado em números e valores, pois que denotando uma realidade que existe como agregação de valor monetário e que se traduz, concretamente, em renda, riqueza, bem-estar, prosperidade, e até felicidade. Sem crescimento não há desenvolvimento, pelo menos no sentido mais prosaico dessa noção mais política do que econômica, pois que denota um processo de acréscimo nas opções abertas à satisfação das pessoas, na sua longevidade, na liberdade de poder dispor de bens e serviços que antes, sem crescimento, estavam mais ou menos tolhidas.
Vou me estender sobre cada um desses conceitos para me deleitar um pouco no meu exercício preferido como acadêmico, ou como simples cidadão consciente: o fato de ser um contrarianista profissional, ou seja, aquele que está sempre encontrando um motivo para contrariar o senso comum prevalecente, para introduzir um pouco de ceticismo sadio, apenas pelo prazer de ser um contestador daquelas verdades estabelecidas, o que Gustave Flaubert chamava de “idées reçues”, ou seja, fatos tidos como de entendimento corrente, mas frente aos quais eu ouso levantar o meu dedinho interrogativo para dizer: “Não é bem assim”. Ou então: Think Again, ou seja, pense duas vezes e revise seus conceitos aceitos até aqui. Não se intimidem em romper o consenso, desde que tenham argumentos bem fundamentados em dados empíricos, em um amplo conhecimento histórico, assim como em sólidas bases teóricas e lógicas.

2. Crescimento: um processo basicamente nacional e endógeno
Gostaria, antes de qualquer outro comentário, de formular duas sugestões de leitura para aqueles interessados em aprofundar o conhecimento teórico e comparado sobre o processo de crescimento econômico, esse objetivo obsessivo de todo e qualquer estadista digno desse nome. A primeira é o manual para iniciantes de qualquer curso de economia nas faculdades americanas, de Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin: Economic Gowth (várias edições pela MIT Pess), que discorrem sobre como taxas cumulativas de crescimento, mesmo em valores modestos, podem fazer diferença no longo prazo. O segundo é o livro de James Robinson e de Daron Acemoglu, Why Natins Fail, que examina os fatores responsáveis pelo desenvolvimento de algumas nações e não conseguem mudar a situação em outras.

3. Igualdade: uma aspiração que costuma representar uma aberração
Desde Rousseau, a igualdade é a palavra que mais causou confusão no mundo da política, e das lutas sociais, a partir de meados do século XVIII. Consagrada na Revolução francesa como um dos objetivos máximos do novo regime político e social – liberté, égalité, fraternité –, a igualdade foi igualmente incorporada aos supostos objetivos de qualquer programa econômico de governança no decorrer do século XX, inclusive no tocante aos programas das agências internacionais onusianas, ademais, é claro, de a palavra estar integrada a dez de cada dez discursos políticos em qualquer lugar do mundo. No entanto, esse não deveria ser o objetivo de estadistas responsáveis, uma vez que produzir igualdade pode ser, ou revelar-se, a iniciativa mais violenta que possa existir na face da terra, se esse objetivo é realizado por métodos compulsórios.
Poucos anos atrás, fez relativo sucesso o livro do economista socialista francês Thomas Piketty, O Capital do século XXI, uma evidente referência à obra magna do filósofo social Karl Marx, que tentou dar ares de cientificidade às suas duvidosas elucubrações sobre o capital no século XIX. O livro tenta provar, com o acúmulo de estatísticas rigorosamente selecionadas, que o capital financeiro tende a aumentar mais rapidamente do que os ganhos dos trabalhadores, e até a se multiplicar acima e além da própria taxa de crescimento geral da economia, segundo uma fórmula supostamente mágica, ao estilo da famosa equação einsteiniana (emc2), segundo a qual r > g. Trata-se de uma metodologia questionável, ao considerar unicamente como uma das fontes de riqueza o capital financeiro, que parece pairar acima das sociedades e através dos tempos como um ente metafísico, independente das formas variáveis de criação de riqueza e ao descartar os ativos intangíveis, que também são uma forma de riqueza. Mais grave ainda, as prescrições corretivas apontam todas no sentido da taxação vingativa da riqueza acumulada pelos mais ricos – os megabilionários, os culpados de sempre – e sua redistribuição aos menos ricos, como se essa fosse a forma correta de tornar todos os indivíduos igualmente ricos.
Não é: ao repartir a riqueza acumulada por todos os pobres do planeta, haveria um modesto quinhão adicional de algumas centenas de dólares para cada um, que seriam consumidos em compras imediatas de produtos de primeira necessidade e depois não sobraria mais nada, nem poupança, nem investimento, nem estímulo para que os megarricos, ou os simplesmente ricos, colocassem sua riqueza para operar em novos negócios. A função mais nobre do economista deveria ser enriquecer os mais pobres, não empobrecer os mais ricos...

4. Sustentabilidade: um ideal que mobiliza, e que pode obstruir o crescimento
Trata-se do conceito mais usado e abusado da história das relações internacionais desde várias décadas, praticamente desde os anos 1970, logo após a primeira conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento. É um catch-word, ou um saco de gatos, onde cabe tudo e qualquer coisa: tudo precisa ser sustentável hoje em dia, do contrário não vende ou não pode ser apresentado ao distinto público. Na verdade, a melhor sustentabilidade é aquela determinada pelo mecanismo de preços dos mercados livres, que consegue aferir, imediatamente e precisamente, a raridade relativa dos bens e ativos disponíveis para consumo humano ou incorporação ao processo produtivo. Nenhuma determinação de preços e valores por burocratas governamentais ou internacionais consegue se sobrepor à clareza, transparência e fiabilidade dos preços de mercado.

5. Crescimento: sustentado, competitivo, com alto capital humano e abertura
Volto ao conceito chave de crescimento, e apenas a ele. As sociedades avançam, progridem, se desenvolvem, se conseguem manter um processo de crescimento sustentado (não sustentável, pois essa condição vem automaticamente numa economia de livres mercados), com transformações produtivas e distribuição social dos benefícios desse crescimento pela via dos mercados, não por indução estatal.
Para que ele se realize, esse crescimento tem de estar mais ou menos baseado em cinco grandes pilares, ou alavancas operacionais: estabilidade macroeconômica, competição microeconômica, boa governança, alta qualidade dos recursos humanos e abertura econômica, liberdade ao capital estrangeiro, sobretudo sob a forma de investimentos diretos estrangeiros, e liberalização comercial, eventualmente até sob a forma de redução tarifária unilateral.
Quanto tivermos esses cinco pilares bem estabelecidos como políticas públicas teremos o desenvolvimento, em bases nacionais, num regime de plena inserção econômica internacional, ou seja, com globalização e globalismo, quaisquer que sejam as restrições que certos gurus e sofistas, totalmente ignorantes em economia, tenham quanto a este último termo. Globalismo não existe, mas se quisermos aceitá-lo como conceito absolutamente normal na atividade diplomática, ele nada mais é do que a vertente propriamente política do processo de globalização.

Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 27 de abril de 2019

O bobo (Olavo de Carvalho) e a sua corte (Bolsofamiglia) - Demetrio Magnoli e Shakespeare

A corte do bobo - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 27/04

O guru bolsonarista adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do precipício


Os soberanos renascentistas empregavam um profissional encarregado de entreter os cortesãos e, antes de tudo, a si mesmos: o bobo da corte. A entourage bolsonarista tem um personagem assim, que é Olavo de Carvalho. Mas, com uma diferença: por aqui, a corte é que presta serviço ao bobo.

Nas cortes do passado, recrutavam-se bobos no próprio círculo da nobreza, entre jovens com deficiência mental. Mais comumente, eles eram pinçados entre comediantes que cantavam ou dançavam em grupos de saltimbancos. Salvo engano, Olavo enquadra-se no segundo caso.

Depois de tentar a sorte como astrólogo e islamita, ele vestiu a fantasia de filósofo e passou a exibir truques intelectuais primários no palco itinerante da internet. O ofício de comediante intelectual propiciou-lhe uma carreira precária no diversificado mercado da autoajuda —até que, miraculosamente, o colapso do sistema político brasileiro degenerou no governo dos ignorantes da extrema direita. Daí, ele virou um bobo singular: o guru de uma corte abobalhada.

Os bobos eram contratados para cometer equívocos divertidos. Nesse ponto, Olavo, o bobo de plantão, é fiel à tradição. Segundo o que ele qualifica como uma “tese histórica irrefutável”, os militares brasileiros entregaram o país ao comunismo. O interessante, aqui, é que não há, entre pessoas medianamente informadas, nem mesmo um debate histórico relevante sobre o tema.

O golpe de 1964 não salvou o país da ascensão comunista pelo simples fato de que a hipótese inexistia: Jango e os seus, populistas da cepa varguista, não nutriam qualquer simpatia pelo comunismo. Os comunistas, cindidos em dois partidos rivais, eram colinas periféricas na paisagem nacional. Duas décadas depois, na hora da transição democrática, a esquerda aglutinou-se no PT, que de socialista só tem trechos esparsos de resoluções escritas para enganar trouxas.

Golbery do Couto e Silva tinha razão, se é verídica a versão de que enxergava em Lula o coveiro da esquerda radical no Brasil. Mas, ainda que divertida, a “tese histórica irrefutável” de Olavo é um equívoco proposital de um profissional da comédia. O bobo que nada tem de bobo formulou uma galhofa destinada a ser levada a sério por seus devotos estúpidos da corte bolsonarista, entre os quais contam-se o presidente e seus rebentos.

No “Rei Lear”, o bobo desempenha papéis cruciais. Honesto, completamente leal, ele vai muito além de seu dever de entreter, agindo quase como superego do rei. Depois do injusto banimento de Cordelia, o bobo assume a função da única filha íntegra do rei, protegendo Lear e, por meio da ironia e do sarcasmo, alertando-o sobre seus impulsos autodestrutivos.

Na corte bolsonarista, tudo se passa ao inverso. Leal apenas a si mesmo, o bobo sabota incessantemente o rei, estimulando seus piores instintos e semeando perenes intrigas palacianas. O bobo de Lear não teme dizer a verdade desinteressada; o bobo de Bolsonaro só profere mentiras interessadas. Nesse país tão pouco shakespeariano, a corte presta vassalagem a um bobo que não almeja o triunfo do rei, mas unicamente seu triunfo pessoal. 

“Bobos frequentemente provam-se profetas”, diz Regan, a segunda filha de Lear, a Goneril, sua irmã mais velha. Olavo errou em todas as suas profecias, mas esforça-se para acertar na mais recente: a implosão do governo Bolsonaro “em seis meses”. O bobo shakespeariano, um sábio cético que vira a procissão inteira de vilezas humanas, ria da afetada pretensão de majestade de Lear. Entretanto, inarredável na sua decência, jamais o abandonou, acompanhando-o na trajetória da humilhação, rumo à loucura. Já o bobo bolsonarista, um malcriado untuoso, adula seu rei para iludi-lo, conduzindo-o à beira do precipício.

“Rei Lear” é a mais sublime tragédia da literatura. A nossa é uma farsa de terceira. Mas não é ficção.

Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.