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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Brasil vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista - Paulo Hartung, Marcos Lisboa, Samuel Pessôa




OPINIÃO
Brasil vive entre riscos de extrema direita e recaída lulista
País precisa retomar diálogo para evitar radicalismos e reencontrar equilíbrio, afirmam autores
Folha de São Paulo, Ilustríssima, domingo 1//12/2019

Paulo Hartung, Marcos Lisboa, Samuel Pessôa


[RESUMO] Políticas equivocadas de governos petistas, hoje ignoradas por Lula e seu partido, produziram crise e alimentaram a ascensão da extrema direita. País precisa retomar diálogo para evitar radicalismos e reencontrar equilíbrio.

Lula foi solto e mobilizou o debate político nas últimas semanas. Em tempos conturbados na América Latina, havia a possibilidade de um discurso pacificador que convidasse ao diálogo. Afinal, quando eleito presidente pela primeira vez, em 2002, depois de seguidas derrotas, optou pela cautela na economia e pela negociação na política.
Em vez disso, resgatou frases de efeito dos tempos em que tratava a política como disputa sindical. O paraíso está logo ali, desde que se derrotem os inimigos, afirmou com a veemência dos mercadores de ilusões.
O ex-presidente preferiu a bravata, e não foi a primeira vez. Extasiado pelo sucesso de seu primeiro mandato conservador na política econômica, Lula resgatou a promessa populista que desconsidera as restrições para distribuir favores a grupos organizados, aos movimentos sociais aos setores empresariais.
Em tempos de vacas gordas, seu segundo mandato (2007-10) retomou os planos mirabolantes de desenvolvimento da ditadura militar, acreditando que a disseminação dos subsídios e proteções ao investimento local resultaria em crescimento sustentado.

Na América Latina, o populismo se caracteriza pela retórica dominada por referências a inimigos que devem ser derrotados. Há interesses escusos da elite e de forças externas, que exploram o país em meio a uma agenda de dominação.
Esse discurso procura congregar grupos diversos da sociedade, por vezes antagônicos, enfatizando o inimigo comum a ser combatido. Podem ser a agenda neoliberal e o imperialismo americano, para os mais à esquerda; ou o comunismo e seus países de origem, para os mais à direita.
No caso do petismo, há os vínculos do partido com as ditaduras de esquerda do continente. Há o apoio ao governo venezuelano responsável pela maior crise humanitária no continente (15% da população já emigrou), além de eventos obscuros, como a devolução dos dois boxeadores cubanos que buscaram asilo no Brasil ou a defesa veemente do italiano Cesare Battisti.
Quando esses eventos são lembrados, moderados ligados ao PT afirmam que se trata de “discurso para a militância”, de retórica sem muita importância. Discordamos. Parece ilustrar um sentimento genuinamente autoritário presente no partido. Se não for esse o caso, resta a pergunta: então mentir vale?
Frente a esses sinais autoritários, a figura sóbria de Fernando Haddad defendendo a social-democracia da Suécia não é convincente.

A outra face do populismo é o desprezo pelas evidências sobre o impacto das propostas econômicas.
Ambos os extremos populistas, à esquerda e à direita, supõem que os problemas se resumem a um conflito distributivo: de um lado, a imensa maioria da sociedade, oprimida; de outro, os inimigos exploradores. Por essa razão, para os líderes populistas interessa apenas a hegemonia na política e a implementação de medidas que protejam os interesses imediatos de seus apoiadores.
Uma característica importante dessa retórica é avaliar a política pública apenas pelos objetivos, sendo irrelevante discutir seus custos e eficácia. Em 2003, alguns economistas alertaram que a política do primeiro emprego fracassaria. A reação foi declarar que os críticos eram contra proteger os mais jovens.
Perón, um dos pais do populismo latino, certa vez escreveu ao então presidente do Chile, Carlos Ibáñez:
“Meu caro amigo: dê ao povo tudo o que for possível. Quando lhe parecer que você está dando muito, dê mais. Você verá o resultado. Todos irão apavorá-lo com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é mentira. Não há nada mais elástico do que a economia, que todos temem tanto porque ninguém a entende”.
A má notícia é que os ganhos se revelam fugazes, e a conta chega em meio a desastres econômicos. A economia não é tão elástica assim. Perón inaugurou as décadas de decadência da economia argentina, e o governo Lula desperdiçou talvez a melhor oportunidade de desenvolvimento sustentado do país.
Lula livre falou contra a reforma da Previdência. Cometeu o erro crasso de afirmar que o projeto aprovado neste ano era a implantação do modelo chileno por capitalização. Falou contra as reformas em geral, entre as quais a trabalhista. Certamente, rejeita a administrativa.


Como todo populista latino-americano, Lula defende os interesses dos grupos organizados, sem mencionar seus efeitos colaterais sobre o restante da população, como obter surtos de expansão da atividade e do emprego à custa de comprometer o crescimento sustentado do país. Trocam-se alguns anos de expansão moderada da economia por uma década de retrocesso.
Entre os anos de 2003 e 2010, o Brasil cresceu, segundo dados do FMI, 4,0%, ante 4,1% do restante da América Latina e 4,2% da economia mundial. Enquanto isso, os demais países emergentes cresciam a taxas bem mais elevadas.
De 2011 até 2014, o Brasil ficou para trás. A taxa média de crescimento da economia mundial caiu para 3,6%, bem próxima da média do restante da América Latina. No caso do Brasil, porém, o crescimento anual médio caiu para 2,2% nesse período, com tendência de queda. A renda aumentou apenas 0,5% em 2014, na transição para uma das mais severas recessões da nossa história.
Os sinais de perda de dinamismo de nossa economia são bem anteriores ao agravamento da crise em 2015. Entre 2010 e 2014 a lucratividade das empresas negociadas na Bovespa e das principais empresas de capital fechado, segundo levantamento do Cemec (Centro de Estudo de Mercado de Capitais) conduzido pelo professor Carlos Rocca, caiu de 5,3% do PIB para 1,2% em meio à queda da produtividade.

Lula não falou sobre seu legado, mas fica a pergunta: o intervencionismo de seu governo foi positivo?
A política para desenvolver a indústria naval, a terceira tentativa em 60 anos, funcionou? Foi eficaz a agenda do PT de transferir mais de R$ 500 bilhões ao BNDES para fomentar a concessão de crédito direcionado com subsídio? Deu certo estimular a construção de inúmeras refinarias de petróleo pelo Brasil, sem que a proposta atendesse a critérios mínimos de viabilidade econômica?
A mudança do marco regulatório do petróleo e o atraso de cinco anos nos leilões do pré-sal atenderam aos interesses nacionais? As políticas de desoneração tiveram sucesso? Foi benéfico para o país ter rejeitado o ajuste fiscal estrutural proposto por Antonio Palocci em 2005? A política de conteúdo nacional resultou em desenvolvimento? 
Gostaríamos imensamente que Lula respondesse a essas perguntas em seus próximos pronunciamentos.
Melhor ainda seria se Lula e seus assessores descrevessem que políticas adotadas desde 2009 foram bem-sucedidas. Quais empresas apoiadas pelo seu governo continuam produzindo eficientemente ou estão isentas de escândalos de corrupção?
Não se trata de descartar de antemão a necessidade de intervenção estatal em várias circunstâncias; afinal, muitos países desenvolvidos se beneficiaram de políticas públicas durante a crise de 2008. Trata-se apenas de reconhecer que os instrumentos e políticas adotados pelo petismo fracassaram, revelando erro de diagnóstico ou falta de técnica. 
A opção por intervenções públicas discricionárias, em que o burocrata de plantão escolhe a quem beneficiar, resultou em investimentos ineficientes e baixa produtividade que comprometem o crescimento da economia brasileira.
Serão precisos muitos anos para corrigir as imensas decisões de produção fracassadas do petismo, dos estaleiros ineficientes aos estádios de futebol vazios, das empresas pouco competitivas beneficiadas pela proteção oficial aos projetos de logística que prometiam muito e entregam pouco.
Nos últimos anos, as lideranças do PT inventaram uma narrativa sobre a história recente. A economia vinha bem, porém Dilma cometeu pequenos erros ao atender à agenda Fiesp de intervenções setoriais, como no setor elétrico, e ao conceder desonerações a setores selecionados. Aécio não aceitou o resultado eleitoral e estimulou as pautas-bomba. A Operação Lava Jato e seu impacto sobre a construção civil, em conjunto com o “austericídio” de Joaquim Levy, completaram o serviço. O resultado foi a maior crise dos últimos 120 anos.

Essa narrativa responsabiliza terceiros pela crise e tenta salvar o populismo de esquerda. Afirma que o intervencionismo petista não foi ineficaz nem custou centenas de bilhões de reais ao Tesouro. A crise da Petrobras não seria o resultado de suas dificuldades financeiras (a dívida ficou cinco vezes maior do que a geração de caixa), mas da Lava Jato. Ainda, a queda do investimento público não teria decorrido do esgotamento dos recursos do Tesouro Nacional ou dos bancos públicos. 
De acordo com essa narrativa, não há desequilíbrio no Estado brasileiro. Um coronel da PM pode se aposentar aos 50 anos de idade, com proventos vitalícios de R$ 30 mil mensais. Funcionários do setor privado podem parar de trabalhar com menos de 55 anos de idade e acumular aposentadoria com pensão. Os professores da rede pública podem se aposentar após 25 anos de serviço com remuneração integral.
Entre os anos de 2003 e 2015, o governo dobrou a despesa por aluno do ensino fundamental, descontada a inflação. O Brasil atualmente gasta bem mais com educação que outros países emergentes, porém temos resultados constrangedores nos exames internacionais de aprendizado no ensino médio.
Para o velho populismo, no entanto, nenhuma reforma na gestão pública é necessária. Basta tributar os mais ricos e teremos recursos para tudo. Hugo Chávez, com petróleo acima de US$ 100, deixou como herança um país bem pior do que recebera. Não faltavam recursos, faltava racionalidade e sobrava populismo.
Alguns ainda duvidam que a reforma da Previdência atenda aos interesses dos mais necessitados e corrija parte da nossa injustiça. Os céticos deveriam ler o relatório do Instituto Mercado Popular sobre o tema.
Vale lembrar que o período do presidente Lula se iniciou com forte ajuste fiscal e uma agenda extensa de reformas liberais. No seu primeiro ano de governo, houve aumento da meta de superávit primário e da taxa de juros para equilibrar as contas públicas e controlar a inflação. Foi encaminhada ao Congresso a reforma da Previdência dos servidores públicos, em meio a diversas medidas para aperfeiçoar o mercado privado de crédito.

A política econômica ortodoxa do primeiro governo Lula foi bem-sucedida em reduzir a inflação e em retomar o crescimento econômico, além de ter se beneficiado da expansão do comércio mundial.
O sucesso do governo, no entanto, resultou em escolhas trágicas. 
A retomada do crescimento permitiu a volta do populismo e dos delírios de grandeza. A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, reagiu violentamente à proposta de controle dos gastos públicos, que aumentavam bem mais do que a renda. “Gasto é vida”, disse a ministra, apoiada pelo presidente.
Nos anos seguintes, a gestão Lula retomou a agenda desenvolvimentista do governo Geisel (1974-79), revelando uma perturbadora semelhança entre as políticas econômicas da direita e a da esquerda. Ambos acreditaram que a disseminação de estímulos à produção local conduziria ao crescimento econômico sustentado. Ambos legaram um país com contas públicas desorganizadas e uma crise econômica anunciada.
Todos os grandes projetos iniciados pelo segundo governo Lula fracassaram. Ele passou o bastão para Dilma, deixando como herança obras de infraestrutura caras, muitas vezes inoperantes, e empresas ineficientes, em meio a um impressionante desperdício de recursos públicos. Nada diferente do que ocorrera com os delírios do período militar.
Esse populismo e seus resultados catastróficos foram o que terminou por fortalecer a extrema direita, que não hesita em justificar a truculência do AI-5 como reação aceitável frente a manifestações democráticas.
Para agravar, existe uma imensa parte da elite brasileira beneficiada pelos favores oficiais, mas que acredita ser parte da classe média de um país rico, apenas desigual.
O excesso de discricionariedade da política econômica favorece empresas que se beneficiam de regimes tributários especiais, além de entidades privadas que recebem recursos compulsoriamente arrecadados da sociedade, como o Sistema S.

A imensa desigualdade de oportunidades no país explica o apoio da parte importante da população ao discurso populista. Famílias com crianças sem acesso a serviços públicos essenciais, como saneamento ou educação fundamental, produzem novas gerações à margem da sociedade formal.
As periferias das grandes cidades, com jovens que não estudam nem trabalham, que optam pelo crime ou engravidam precocemente, revelam a fonte da tragédia que alimenta discursos oportunistas e violentos.
A imensa pobreza no Brasil tem muitas causas, mas a principal, segundo a evidência disponível, é a falta de acesso das novas gerações ao cuidado na primeira infância e à educação fundamental de qualidade, que garanta o aprendizado em português e matemática. Sem a aquisição dessas competências, os resultados são baixa produtividade e pouca mobilidade social.
A direita se revela indignada com os equívocos da social-democracia; no entanto parece ignorar o desastre de um país que descuida das novas gerações. Numa nação com tamanha desigualdade de oportunidades, não deve surpreender o apelo persistente da velha retórica.
O discurso da extrema direita contra as escolhas individuais e a liberdade de expressão acaba por conferir legitimidade à oposição raivosa da esquerda, que alega se preocupar com os mais pobres e a solidez da democracia. Essa direita é filha do populismo irresponsável patrocinado pelo PT, porém, com sua insensibilidade e brutalidade, acaba por favorecer o renascimento da esquerda autoritária.
A arrumação do desastre produzido pelo petismo, de um lado, e pelo primarismo de certa direita que rejeita a ciência, de outro, requer a opção pelo diálogo e o reconhecimento dos nossos problemas. Temos um Estado caro em meio a um país pobre. Três horas do dia de trabalho de um brasileiro são apropriadas pelo poder público, boa parte usada para pagar servidores ou distribuir as incontáveis meias-entradas da nossa sociedade.
Podemos continuar nessa trajetória disfuncional, em que os muitos setores organizados disputam as benesses do poder público. Ou podemos optar por outro caminho, que permita a retomada do crescimento sustentado com solidariedade social.
Essa agenda passa pela reforma do Estado e pela reconstrução do centro progressista. Sem maior eficiência do poder público na provisão dos serviços de saúde, educação e segurança, além do cuidado com a imensa população das periferias urbanas, não avançaremos em direção à maior igualdade de oportunidade.
A reforma administrativa é essencial para essa agenda. Novos aumentos da carga tributária não resultarão em melhoria da qualidade da educação fundamental, caso não se alterem a estrutura de incentivos dos servidores públicos e os instrumentos de gestão, como reconhecer os melhores servidores públicos com maior remuneração.
A política pública deve ser avaliada por seus resultados. A criação de municípios desde a redemocratização melhorou o acesso a políticas públicas em regiões antes não atendidas? Os alunos passaram a aprender mais? A saúde da população melhorou?

Não basta, porém, corrigir os graves desvios do setor público. É necessário também que a economia volte a crescer.
Nos últimos 35 anos, a produtividade do trabalho no Brasil cresceu 0,5% ao ano, bem menos que na economia americana, a mais rica do mundo, afastando-nos ainda mais da fronteira do desenvolvimento, da qual, em tese, deveríamos estar nos aproximando, como tem ocorrido com tantos países emergentes.
A melhoria da educação contribui para aumentar a produtividade. A agenda para a retomada do crescimento inclui ainda a redução das distorções tributárias. As decisões de investimento devem ser motivadas pela sua rentabilidade para a sociedade, não por benefícios decorrentes do menor pagamento de impostos.
A abertura da economia ao comércio exterior permitiria o maior acesso a bens de capital mais eficientes ou a insumos mais baratos, contribuindo para o aumento da produção e da renda.
A desigualdade é tão profunda em nossa sociedade, no entanto, que não bastam políticas de igualdade de oportunidade e de aumento da produtividade. É necessário que o poder público intervenha, reduzindo a inequidade de renda entre os adultos por meio da progressividade dos impostos. Essa agenda, além de reduzir a desigualdade, ajuda a dotar o Estado de orçamento para financiar suas ações.

O caminho aqui é escorregadio. A retórica populista afirma que os ricos pagam pouco imposto, afinal dividendos são isentos de tributação. Não é bem assim. Lucros são tributados da mesma forma que salários. A sutileza decorre da nossa escolha por um modelo mais prático de arrecadação: tributar a geração de renda na fonte, na pessoa jurídica. Isso vale tanto para os trabalhadores quanto para os acionistas, que recebem salários e lucros já descontados os tributos devidos.
Nos últimos anos, diversos países têm optado por reduzir a cobrança de impostos sobre os lucros nas empresas, aumentando, por outro lado, a tributação na distribuição de dividendos. A conta, porém, deve considerar o total do imposto pago pelo lucro, quando gerado pela empresa, e do quanto é pago pelo acionista ao receber o dividendo.
As maiores distorções na tributação se encontram nas empresas que optam pelos regimes tributários especiais, Simples e lucro presumido, que, tudo considerado, pagam bem menos tributos que assalariados ou acionistas das empresas tributadas pelo lucro real.
O populismo dá voltas. Na Argentina, os descendentes de Perón herdarão uma economia em recessão, inflação de 60% ao ano e déficit primário de 1% do PIB. Néstor e Cristina Kirchner desorganizaram a economia que Eduardo Duhalde havia arrumado. A desconstrução foi lenta, pois as condições eram favoráveis, com o aumento no preço das commodities e uma economia que partia do fundo do poço da mais profunda recessão do século 20.
Mauricio Macri optou por não enfrentar os problemas, enganou a turma do mercado financeiro e agora passa o bastão de uma economia em crise severa. A conta ficou para o peronismo, que terá de enfrentar o dilema entre fazer o ajuste ou assistir à volta da hiperinflação.
No Brasil, tangenciamos o abismo nesta década. Lula solto recupera a sua velha retórica populista. Num país em que radicais de esquerda e de direita se alimentam mutuamente, existe a opção pelo resgate da agenda social-democrata, que procura equilibrar os benefícios de uma economia de mercado com políticas públicas que cuidem dos mais vulneráveis.
Podemos continuar a repetir compulsivamente a retórica populista do passado ou optar pelo diálogo, reconhecendo erros e aprendendo com a experiência. 

Paulo Hartung, economista, foi por duas vezes governador do Espírito Santo (2003-11 e 2015-19).
Marcos Lisboa, presidente do Insper e colunista da Folha, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-05).
Samuel Pessôa, doutor em economia pela USP, pesquisador do Ibre da FGV e sócio da Julius Bär Family Office, é colunista da Folha.
Ilustração de André Stefanini, artista gráfico e ilustrador.

Atos institucionais do regime militar Bruno Riffel (Meio)

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O REGIME DOS ATOS INSTITUCIONAIS

A história da República brasileira é a de um fio contínuo — uma coisa leva à outra, um debate ao seguinte, e não há um momento nestes 130 anos que não esteja marcado por ideias e comportamentos do passado. Se vemos os vários períodos como estanques, perdemos o todo. E não percebemos, por exemplo, que quando João Goulart foi derrubado naquelas horas tensas entre 31 de março e 2 de abril, em 1964, o argumento que sustentou o golpe foi um nascido no governo Getúlio Vargas. Logo Getúlio — mentor político de Jango. O entorno do presidente Jair Bolsonaro não parece ter muita noção do que fala quando fica lançando a ideia de um novo AI-5. Mas o primeiro Ato Institucional baixado pela Ditadura, o AI-1, teve como principal autor o velho Francisco Campos. O mesmo que foi responsável pela Constituição de 1937, Carta do Estado Novo getulista. Não é possível compreender o autoritarismo brasileiro sem antes entender Campos, este jurista mineiro que se elegeu deputado pela primeira vez em 1919. Porque há uma diferença fundamental entre a Ditadura Militar brasileira e os regimes similares pela América do Sul. No Brasil, buscou-se um arcabouço de legalidade, um verniz constitucional. Principalmente no início, os ditadores procuraram dar ao regime uma aparência de juridicamente sólido. De que era legítimo. Justamente a especialidade de Campos — como já havia feito em 37.
“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro”, escreveu o velho jurista logo no preâmbulo do AI-1. “O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.” O Brasil estava vivendo, ali, um Golpe de Estado que se imaginava diferente do ponto de partida. Mais do que disfarçar a história, havia, ao chamar de ‘revolução’ o que ocorreu em 1964, uma visão de mundo que Campos passou a vida defendendo. Era aquilo que já aparecia nos escritos do jurista alemão Carl Schmitt, um constitucionalismo antiliberal. O novo regime não seria uma democracia liberal. Mas pretendia, ao menos nos primeiros momentos, provar que não seria uma ditadura autoritária e sim um Estado de Leis, uma outra forma de democracia. Um alicerce jurídico produziria sua legitimidade.
Foi assim que nasceu aquilo que alguns cientistas políticos batizaram de Regime dos Atos Institucionais.
A democracia liberal foi muito questionada durante e após a Primeira Guerra Mundial. A incapacidade de dar uma vida decente a operários, a de não ter sido capaz de impedir o conflito terrível e, posteriormente, de não saber lidar com a Depressão — todos eram indícios nos quais muitos viam limites para o regime. Schmitt era um desses. Escrevendo na Alemanha da década de 1920, ele argumentou que para que um regime fosse democrático não era exigido que fosse liberal. Democracia, da forma como a enxergava, era um sistema no qual os objetivos de quem comanda o Estado estão alinhados com os da população. Perante a República de Weimar, o regime de governo alemão até o Terceiro Reich, ele fez uma crítica ao parlamentarismo. O Liberalismo defende a instituição do Parlamento por crer que o debate racional leva à melhores decisões. Mas na prática, afirmava o jurista, o que existia de fato nos parlamentos era a politicagem de uma elite e, assim, o resultado eram decisões descoladas do desejo popular. O líder soberano, seguia seu argumento, deveria ter o poder de impor o desejo do povo. Uma verdadeira democracia. A teoria jurídica que fundamenta o Nazismo é a de Schmitt. Mas não só. Este constitucionalismo antiliberal era o conceito que estava por trás de inúmeros regimes autoritários que se instalaram no mundo naquele período — incluindo o Estado Novo.
“A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”, seguia o preâmbulo do AI-1. “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.” É aí que nasce a importância de chamar o que houve em 1964 de revolução. Se um Golpe é o movimento de uma elite que deseja tomar o poder, uma Revolução, neste argumento, nasce de baixo, dos anseios da população. Por isso, o líder que assume o poder após uma revolução é ainda mais legítimo.
Nas duas décadas seguintes, os ditadores cumpririam seus mandatos após os quais seriam substituídos por novos ditadores com data para entrar e data para sair, sustentando o argumento de que tudo era constitucional — embora em nada liberal. O modo de pensar que deu sustentação ao Estado Novo foi o modo de pensar que deu sustentação à Ditadura Militar antes de ela escancarar, na virada para os anos 1970. Nesta primeira fase, os ditadores tiveram este recurso à mão. Quando precisavam pular a Constituição, baixavam um Ato Institucional. E é justamente o AI-1 que lhes concedeu este poder. O Ato manteve a Constituição de 1946 fazendo algumas mudanças: estabeleceu eleições indiretas para presidente, deu ao presidente o poder de alterar a Constituição, assim como o de suspender direitos políticos e cassar mandatos.
Não foram muitos os que perderam seus direitos nos primeiros meses após o Golpe. Mas o fato de que, além de Jango, a lista incluir também Juscelino Kubtischek já demonstrava que a primeira providência dos ditadores seria a de se livrar de qualquer líder popular que pudesse lhes fazer frente. Um pouco à frente, até apoiadores de primeira hora do regime, como Carlos Lacerda, seguiriam pelo mesmo caminho.
A expectativa inicial, que inclusive levou muitos liberais a apoiar o Golpe, era de que derrubado João Goulart, em 1965 haveria eleições. Era a promessa.
“Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará”, iniciava o preâmbulo do AI-2, baixado em 27 de outubro de 1965. “Assim o seu Poder Constituinte não se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para atingir os seus objetivos. A autolimitação que a revolução se impôs no Ato Institucional de 9 de abril de 1964 não significa, portanto, que tendo poderes para limitar-se, se tenha negado a si mesma por essa limitação, ou se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como movimento.”
O período anterior ao chumbo da Ditadura pode ser contado seguindo cada um dos 17 atos institucionais. Como a uma droga, o regime foi se viciando. Prometera um retorno às eleições livre, precisou baixar um segundo AI para justificar que não o faria. Desta vez, sua preocupação era assumir o controle da Justiça. Para isso, ampliou o número de assentos no Supremo Tribunal Federal e levou, para a Justiça Militar, quaisquer crimes enquadrados como ofensas à segurança nacional.
Os dois atos seguintes, publicados em 1966, fixou datas para eleições locais, o terceiro, e convocou o Congresso Nacional a aprovar a nova Constituição, o quarto. Era uma Constituição, naturalmente, baseada na do Estado Novo.
Claro, o discurso uma hora encontrou seu limite. Quando em 1968 manifestações populares ganharam as ruas, a imprensa começou a se agitar em críticas, e a oposição no Congresso passou a se impor de forma mais incisiva, a Ditadura baixou o mais severo, e mais conhecido, dos Atos Institucionais: o de número 5.
Eles sabiam o que estavam fazendo. 
“Creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico”, argumentou o ministro Antonio Delfim Netto. “Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa camisa-de-força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos.” Ele estava na reunião que decidiu por baixar o AI-5. No início, alguns dos ministros se questionaram se aquele Ato estabeleceria uma ditadura. “Eu seria menos cauteloso”, afirmou então Jarbas Passarinho, responsável pela pasta do Trabalho. “Eu admitiria que ela é ditatorial. Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência. E quando nós encontramos a necessidade de tomar uma decisão fundamental, tudo aquilo que fundamental é em condições normais.” O ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva cravou. “Se a ordem democrática corre risco, outra razão não existe senão nos socorrermos dos instrumentos revolucionários adequados para que possamos restaurar a verdadeira democracia, autêntica democracia, que é o desejo de todos nós.” Eram 24 os presentes. Apenas um votou contra — o vice-presidente Pedro Aleixo. “Da leitura que fiz do Ato Institucional”, afirmou, “cheguei à sincera conclusão de que o que menos se faz nele é resguardar a Constituição. Eu estaria faltando um dever para comigo mesmo se não emitisse, com sinceridade, esta opinião. Porque, da Constituição — que, antes de tudo, é um instrumento de garantia de direitos da pessoa humana, de garantia de direitos políticos — não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático. Do ponto de vista jurídico, eu entendo que, realmente, o Ato Institucional elimina a própria Constituição.”
(Existem os áudios desta reunião.)
E assim foi. O presidente da República foi autorizado a fechar o Congresso Nacional ou qualquer outro parlamento, se considerasse necessário. Passou a ter poder, também, para destituir qualquer funcionário público ou cassar qualquer político. Não haveria mais revisão judicial de atos do mandatário. Foi estabelecida censura prévia às artes e à imprensa. Toques de recolher e exigência de permissão da polícia para qualquer reunião política. Talvez o mais grave dentre todos, foi suspenso o habeas corpus para crimes de motivação política. Daí nasceram os anos de chumbo, com suas prisões e tortura.
O AI-6, publicado logo no início de 1969, reduziu novamente a 11 o número de ministros do Supremo. O presidente cassou aqueles de quem não gostava, aumentar os votos para garantir maioria tornou-se desnecessário. Publicado ao mesmo tempo, o AI-7 suspendeu eleições até o fim de 1970.
A partir daí, no período que o jornalista Elio Gaspari batiza de Ditadura Escancarada, os presidentes passaram a ter poder máximo e a máscara criada no AI-1 por Francisco Campos se tornou insustentável. O regime que fingia ser um tipo diferente de democracia, não tinha mais como negar ser Ditadura. Assim, os Atos Institucionais ganharam um traço quase burocrático, tocando medidas administrativas. O AI-8 permitiu aos estados fazer reformas administrativas, o AI-9 estabeleceu regras para reforma agrária, e o AI-10 regulamentou como funcionariam as destituições de funcionários públicos e cassações de direitos políticos estabelecidas pelo Ato Cinco. Qualquer funcionário público que questionasse o regime estaria sujeito a penas terríveis. O AI-11 reorganizou a estrutura administrativa dos municípios. 
Se até o quinto, os AIs eram guardados para temas de gravidade, eles agora passavam a ser corriqueiros, quase que portarias burocráticas. E já insinuavam a Ditadura mais clara que nascia, na qual o presidente simplesmente baixava seus desejos e assim ficavam. Até que o AI-12 representou um novo Golpe de Estado. O presidente Arthur da Costa e Silva havia sido afastado — estava muito doente. Assumiu em seu lugar não Pedro Aleixo, mas uma junta de três militares. O vice que votara sozinho contra o AI-5 foi apeado do poder. “Enquanto durar o impedimento temporário do Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva, por motivo de saúde, as suas funções serão exercidas pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar nos termos dos Atos Institucionais e Complementares, bem como da Constituição de 24 de janeiro de 1967.”
O AI-13 deu ao Planalto o poder de expulsar quem quisesse do país. O 14 estabeleceu a pena de morte no caso de guerras — e de levantes ‘subversivos’. Eleições municipais em cidades sob intervenção federal foram estabelecidas pelo 15 — e presidência e vice-presidência foram declaradas vagas pelo AI-16, que convocou as eleições indiretas que levariam Emílio Médici ao poder. Como havia oposição ao seu nome mesmo dentro das Forças Armadas, o último dos Atos Institucionais, o de número 17, passou à reserva militares que atentassem contra a coesão das Forças.
Do Ato 6 ao 17, um total de doze, todos foram publicados em 1969. Com a chegada de Médici ao poder, eles se tornaram um instrumento obsoleto. A ideia de um constitucionalismo antiliberal já não se sustentava mais. Não havia mais arcabouço jurídico que disfarçasse a natureza do monstro.
Francisco Campos não viu. Morreu em 1968, antes de o AI-5 desmontar o regime que havia imaginado.
O Ato 5, ao tornar crua e evidente a Ditadura, foi baixado com solenidade. A reunião de ministros com presidente e vice mostra homens que escolheram o caminho de uma ditadura. Uns tentaram amenizar a decisão, outros a reconheceram abertamente, um único a rejeitou. É um dos piores momentos da história brasileira no século 20. Quando se lê ou ouve os votos de um por um, alguns com ressalvas, outros entusiasmados, ao menos uma coisa se percebe. Solenidade. Ninguém ali tratou a suspensão das liberdades como quem escreve um tuíte no meio da manhã.
Aliás… Professor da Universidade Federal Fluminense, Rogério Dutra dos Santos estudou muito Francisco Campos e o impacto de seu pensamento na história da República. Um de seus papers é Francisco Campos e os fundamentos do constitucionalismo antiliberal no BrasilLeia.
E por falar… Carl Schmitt deve ser lido novamente. Muito de suas ideias sobre a separação entre democracia e liberalismo estão em voga. Mesmo que vários dos que falam delas não conheçam a origem. O artigo da sempre excelente Stanford Encyclopedia of Philosophy é uma introdução sólida, em inglês. O artigo da Wikipédia em portuguêsé bom.