Era uma vez o Moderno
São Paulo, Centro Cultural FIESP
De 10 de dezembro de 2021 a 29 de maio de 2022
Início da exposição
Introdução ao Conteúdo
Olá,
sejam bem vindas, sejam bem vindos à exposição “Era uma vez o moderno”.
Aqui no MUSEA você vai encontrar muito conteúdo para enriquecer sua experiência nesta visita. São 14 audioguias na voz do curador e 18 faixas de audiodescrição, incluído aí o texto institucional da exposição. Encontrará também 41 textos complementares que estarão disponíveis em áudio através do leitor de tela do seu aparelho.
Para navegar por este conteúdo basta ir avançando nas faixas. Para facilitar essa navegação todas as audiodescrições estão identificadas com esse sinal sonoro (Colocar sinal sonoro) no inicio de cada uma delas.
Esperamos que você tenha um ótima experiência.
Texto Institucional
Rupturas, reflexões e novas perspectivas.
Às vésperas da comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna, de 1922, o Centro Cultural Fiesp tem a satisfação de receber em sua Galeria de Arte, a exposição Era Uma Vez o Moderno [1910-1944].
Fruto de uma parceria entre o Sesi-SP e a Universidade de São Paulo (USP), a mostra expõe parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP) nunca exposto antes, como cartazes, diários, manuscritos, obras e outros itens de artistas como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, entre outros nomes que viveram ativamente esse período tão significativo para a história da arte brasileira.
A produção de três décadas do modernismo brasileiro, na voz de seus protagonistas, abre espaço para reflexões sobre o movimento em sua época e as reverberações, ainda, nos dias atuais.
Paulo Skaf
Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e do Serviço Social da Indústria do Estado de São Paulo (Sesi-SP)
Apresentação
A exposição que trouxemos para você, cara ou caro visitante, abrange algumas produções associadas ao que se chamou de modernismo brasileiro num arco de aproximadamente 30 anos.
Nos utilizamos sobretudo dos artistas e intelectuais que participaram ou estiveram em torno da emblemática Semana de Arte Moderna, que comemorará seus 100 anos em 2022, para apresentar alguns dos caminhos trilhados pela arte moderna no Brasil.
Obviamente esta é uma história que não começa e nem termina na Semana. A iniciamos a partir da lembrança da primeira exposição individual de Emma Voss, em São Paulo, em 1910. Na sequência, lembramos da exposição de Lasar Segall, em 1913 (com exemplos da arte expressionista alemã) assim como da primeira exposição individual de Anita Malfatti, feita no Mappin, no centro de São Paulo, em 1914.
Observem que será a primeira vez que se apresenta ao público o diário da artista no qual há a descrição pormenorizada dos preparativos da exposição assim como as reações e humores daqueles que a visitaram. Há também obras importantes pertencentes ao período em que a artista estudou em Nova York (onde conheceu Marcel Duchamp) e que foram apresentadas em sua exposição individual de 1917. Esta exposição deflagrou a crítica furiosa de Monteiro Lobato demarcando ao mesmo tempo o primeiro conjunto de trabalhos feitos no Brasil em diálogo com o cubo-futurismo do início da década de 1910.
Depois passamos ao núcleo da Semana de Arte Moderna, que teve uma importância como marco simbólico coletivo de artistas egressos de diversas partes do país (assim como alguns de origem estrangeira) interessados em romper com o passado da cultura oligárquica e rural brasileira, ainda que muitos dos moços e moças participantes fossem filhos desta mesma elite.
Após a Semana, as artes brasileiras seguiram as principais tendências na França, da Escola de Paris e do assim chamado retorno à ordem, tendência de reconstrução da arte de acordo com padrões universais clássicos, em vigência após o término da Primeira Grande Guerra. Atentem neste núcleo para os cadernos de desenho de Anita, a sua relação com o desenho de Victor Brecheret e deste com as formas orgânicas de Brancusi, e os desdobramentos desta relação na formulação das imagens de Tarsila da Amaral, em sua fase antropofágica.
A relação da arte brasileira com o Brasil profundo, primitivo, das tradições e culturas dos povos originários se deu através do trabalho de pesquisa etnológica de Mário de Andrade, por um lado, e das apropriações estéticas feitas pela Antropofagia, por outro.
A partir do início da década de 1930, a arte e a poesia brasileira serão alimentadas pelas vertentes do surrealismo europeu e quase imediatamente à expressão das idiossincrasias de cada artista se dará a preocupação em se fazer uma arte política e socialmente interessada.
A exposição termina com a melancolia de Mário de Andrade em função dos rumos que os diversos caminhos abertos pelos modernistas sendo conformados e divulgados a partir de uma retórica estatal (no caso a do ultra direitista Estado Novo de Getúlio Vargas) que cooptou todas as experiências, conflitos e dúvidas a respeito do que era o moderno, colocando-as sob a tutela de uma política ufanista e desenvolvimentista. A última carta escrita por Mário para Manuel Bandeira em 1944 é uma demonstração ao mesmo tempo de amor e de desencanto pelo Brasil de então.
Emma Voss, 1910 ou 1911
Emma Voss
Em seu autorretrato (datado de 1910 ou 1911) que pertence hoje ao acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo podemos observar o rosto da artista, ainda jovem, a três quartos, olhando-nos de soslaio da direita para a esquerda (enquanto o movimento da cabeça gira em sentido contrário); o seu ar é altivo, as proporções são corretas, assim como a sugestão de luzes e sombras.
Não há um centímetro sequer da pintura que revele tibieza ou indecisão. O fundo do quadro é construído a partir da justaposição de tonalidades que se repetem no colo, no rosto e nos cabelos: lembra-nos um pouco as pinturas impressionistas de Max Liebermann ou de Max Slevogt, que a artista, talvez, tenha conhecido. A sua figura é construída com pinceladas curtas e enérgicas, demonstrando uma preocupação com o modelado da figura a partir das sobreposições de diversas camadas de tinta. Tudo é tratado por uma fatura espessa e uma gestualidade expedita do pincel.
Nesse retrato, dissolve-se por certo o lugar-comum do “temperamento habitual feminino” referido pelo crítico do Estado de São Paulo à época em que foi pela primeira vez exibido.
Se não se pode ainda considerá-la uma pintura expressionista, também não é possível classificá-la como um trabalho puramente impressionista. A sua posição – nesta pintura, pelo menos – aponta para experiências derivadas do pós-impressionismo, por exemplo, para a primeira pintura de Cézanne, como também para a de Van Gogh, assim como para os trabalhos de outros artistas que não mais se satisfizeram em tão somente imitar os efeitos luminosos rebatidos nas superfícies das coisas, como no caso do impressionismo, ou pelo uso de técnicas de divisão das cores por meio das pinceladas, como no divisionismo.
Anita Malfatti – Torso de Homem, 1912
Anita Malfatti
A pintura intitulada Academia/Torso de homem, de 1912 (acervo do Museu de Arte Brasileira da FAAP/SP), que esteve presente na exposição de 1914, retrata uma figura masculina de braços cruzados, de perfil e em meio-torso.
Ela possui uma fatura demarcada e espessa, num trabalho que usa da dominância cromática em toda a tela, como nos trabalhos de Bichoff-Culm, um de seus professores na Alemanha.
Antes de retornar ao Brasil, Anita visitou em meados de 1912 a grande exposição Sonderbund, em Colônia, considerada até então a maior e a mais significativa mostra de arte moderna já realizada, com cerca de seiscentas obras de artistas de diversas partes da Europa: Van Gogh, Cézanne, Matisse, Gauguin, Maurice Denis, Bonnard, Vuillard, Maillol, Braque, Mondrian, Kokoschka, Kandinsky tiveram obras expostas ali, além de muitos outros.
Anita Malfatti – Viagem aos Estados Unidos
Anita Malfatti
Anita partiu novamente para o exterior, dessa vez para os Estados Unidos (a guerra já havia começado na Europa), financiada novamente pelo tio, Jorge Krug, uma vez que havia malogrado a chance da bolsa pelo pensionato artístico paulista.
No final de 1914, Anita partiu em companhia de “uma senhora americana” num navio inglês camuflado, “sempre perseguido pelos torpedeiros alemães”. Em janeiro de 1915, já se encontrava em Nova York, estabelecendo-se numa pensão no West Side. Matriculou-se na Liga de Estudantes de Arte (Art Students League), fundada em 1875, que recebia tanto amadores quanto artistas profissionais em busca de treinamento ou aperfeiçoamento no desenho, na gravura e na pintura. O lema do lugar era “no day whithout a line” (“nenhum dia sem uma linha”).
Anita permaneceu apenas alguns meses nessa escola, mudando-se depois para a Independent Art School, dirigida por Homer Boss (1886-1952), influenciada pela indicação feita por uma colega que conhecera na Liga. Nova York era vista como a capital do novo, atraindo os movimentos mais recentes na política e nas ideias progressistas, na reforma social, na arquitetura moderna. O edifício Woolworth era inaugurado como o arranha-céu mais alto do mundo. As mulheres marcharam pelas ruas pelo direito ao sufrágio feminino e os trabalhadores faziam greves protestando por melhores e mais justas condições de trabalho.
O Greenwich Village se tornou o novo bairro boêmio, atraindo intelectuais, escritores e artistas. Nova York fervilhava de novas ideias. Marcel Duchamp (1887-1968), que havia sido um dos fundadores e participantes do grupo modernista francês Section D’Or (ou Groupe de Puteaux), havia escandalizado a todos no Armory Show com seu principal trabalho da fase futurista, o Nu Descendo a escada n. 2, ou “uma imagem estática do movimento”, como o próprio artista o definiu.
Anita, que o conheceu pessoalmente, ficou encantada com o belo moço – “o bonito Marcel Duchamp, que pintava sobre enormes placas de vidro”, lembrou ela, referindo-se à preparação da parte superior La Mariée, do célebre O grande vidro, no qual já trabalhava naquele ano.
Além de Duchamp, Anita conheceu e se aproximou de muitas outras pessoas, artistas, músicos e poetas como Juan Gris, Máximo Górki, Leon Bakst, e Isadora Duncan, mas o que parece ter sido o denominador comum em todos os desdobramentos das inúmeras posições que ali se encontravam, e que impressionou positivamente Anita, era a absoluta liberdade de criação para se fazer o que se quisesse.
Anita Malfatti – Estudo de Homem, 1915/1916
Anita Malfatti
Obra de Anita Malfatti realizada entre os anos de 1915 e 1916, feita em carvão e pastel sobre papel. Ela tem 62 centímetros de altura por 47 centímetros de largura.
A obra mostra um homem nu, de costas, com o corpo musculoso e o rosto de perfil, virado para a esquerda. O homem tem cabelos curtos e pretos. A mão esquerda está apoiada na cintura e a direita está esticada para baixo e um pouco afastada do corpo. Ao fundo, há formas esverdeadas que se assemelham a árvores e folhas.
O corpo do homem tem uma tonalidade bege que se mistura com o preto dos contornos e os verdes do fundo. O sombreado dá volume à figura. Ele está em uma postura de quem posa, diante de uma floresta, ou uma mata, que é composta por traços simples e pouco definidos.
Uma característica marcante desta obra é a economia de traços utilizados pela artista. Os traços pretos do contorno do corpo do homem são grossos e feitos com carvão. Há algo de rudimentar em sua aparência, evidenciado pelo corpo entroncado e a falta de detalhes, principalmente no rosto e nas mãos.
Anita Malfatti: Diário de 1914-1917
A mostra intitulada Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti abriu numa quarta-feira, dia 12 de dezembro de 1917, na rua Líbero Badaró, 111 (mesmo lugar onde fora realizada a exposição do Saci).
O vernissage foi muito concorrido, contando com a presença dos artistas George Fischer Elpons, Zadig, Wasth Rodrigues, o arquiteto Victor Dubugras, de Di Cavalcanti e Oswald de Andrade, e dos seus familiares da artista, incluindo o tio Jorge Krug.
Cinco dias após a abertura, o presidente Altino Arantes (que seria hoje o equivalente ao governador do Estado de São Paulo) compareceu e até mesmo Freitas Valle fez uma visita. A imprensa foi cordial. O articulista do Correio Paulistano, por exemplo, fez um artigo bem extenso sobre a exposição e no todo, elogioso, porquanto demonstrou o interesse em compreender o que estava ali exposto, embora alertasse aos leitores tratar-se de uma exposição “toda ela de arte moderna”, apresentando um “aspecto original e bizarro”, tanto em relação à montagem da exposição como em relação ao tratamento dos motivos dados a cada quadro. A partir daí, comenta algumas das obras presentes, enfatizando tratar-se de uma artista que “se distancia consideravelmente dos métodos clássicos”.
O tom respeitoso da imprensa, contudo, mudaria, depois do artigo escrito por Monteiro Lobato, em 20 de dezembro de 1917, texto que mais tarde ficaria conhecido pelo título "Paranoia ou mistificação".
Anita Malfatti
Anita Malfatti
Pinturas de Anita Malfatti realizadas em Monhegan, no Maine, nos Estados Unidos, como O farol, A ventania ou A onda, têm uma orientação bem particular em relação ao restante de sua produção, incluindo os trabalhos produzidos nesses mesmos anos em Nova York.
A obra de Van Gogh (da sua fase em Aix-en-Provence), dos fauves franceses, assim como dos pintores norte-americanos George Bellows e Robert Henri são as referências mais próximas para servir de contraponto a estas obras, embora, em geral, tenham sido genericamente entendidas como exemplos da arte expressionista. Essas pinturas são feitas com pinceladas fortes e uma gestualidade solta sem preocupação com a representação verossímil da paisagem. As cores são cruas, quase sem mesclas para a modelação das tonalidades. A artista parece ter desejado captar a energia do lugar do modo mais direto possível, assimilando pela fatura pictórica a violência do jogo dos elementos naturais, o vento, a água, a terra: “Eram telas e telas. Era a tormenta, era o farol, eram as casinhas dos pescadores escorregando pelos morros, eram paisagens circulares, o sol e a lua e o mar”, diria a artista sobre essa temporada. Em seu diário de 1914 há pequenos esboços a lápis que acreditamos ter relação com as paisagens feitas em Monhegan.
Anita viveu ali um dos seus períodos mais intensos como pintora, longe de tudo, longe das convenções, cercada de amigos e de artistas como ela. Foi como estar numa grande festa: “a festa da luz e a festa da cor”.
O Homem Amarelo (Anita Malfatti), 1915/1916
Anita Malfatti
O Homem Amarelo
Uma das principais obras de Anita Malfatti, produzida entre os anos de 1915 e 1916, e pintada com tinta óleo sobre tela de 62 centímetros de altura por 51 centímetros de largura.
Na composição há um predomínio de tons terrosos e cores quentes, onde o laranja e o amarelo se destacam.
O retrato apresenta um homem da cintura para cima, sentado e meio desajeitado, como se estivesse mal acomodado em uma cadeira. O cotovelo direito é amparado por um apoio lateral. O corpo é levemente retorcido. Ele veste paletó marrom, camisa branca e gravata com listras verticais em bege e preto. A lapela do paletó está desarrumada e a gravata encurvada. As mãos, braço e parte do ombro direito, assim como o topo da cabeça da figura, rompem o enquadramento, o que intensifica a sensação de desajuste.
O homem tem a pele amarelada, os cabelos pretos e curtos, os olhos grandes, as sobrancelhas finas, levemente arqueadas e o nariz agudo. Os lábios vermelhos e finos. As bochechas estão levemente enrubescidas e uma sombra ao redor da boca dá a impressão de uma barba rala.
Os traços que formam o rosto são econômicos, duros e fortemente pronunciados.
Todos os elementos que compõem essa obra, que se tornou uma das principais do modernismo brasileiro, exposta pela primeira vez em 1917 e que também participou da Semana de Arte Moderna de 1922, sugerem uma sensação de desconforto e desalento. Segundo a própria artista, o Homem Amarelo é o retrato de um pobre imigrante italiano que se ofereceu para ser pintado por algum dinheiro. Anita achou que o homem tinha uma "expressão desesperada".
A Estudante Russa (Anita Malfatti), 1915
Anita Malfatti
A Estudante Russa é uma obra de Anita Malfatti de 1915. É uma pintura em óleo sobre tela que tem 76 centímetros de altura por 61 centímetros de largura.
A pintura se compõe por um fundo azul, com pinceladas de cinza e ocre, de onde se destaca a figura central de uma mulher.
A estudante é retratada sentada em uma cadeira vermelha que tem um suporte para estudo no braço direito. Suas duas mãos estão apoiadas nesse suporte, sendo a mão esquerda sobre a mão direita. Por essa razão, seu corpo está levemente inclinado para a direita.
Ela usa um vestido de mangas compridas marrom, com tons azulados e esverdeados. Os cabelos são escuros e ondulados, cortados na altura de suas bochechas rosadas. Sua pele tem uma tonalidade bege clara que se mistura com tons acinzentados das pinceladas da artista. As sobrancelhas finas e arqueadas marcam a expressão da figura e formam uma linha contínua com o nariz. O rosto arredondado se completa por seus olhos de pupilas negras e fixas, por uma boca pequena, de lábios grossos e avermelhados e por um queixo também pequeno mas proeminente.
O vestido marrom é simples e não tem nenhum detalhe, apenas parece amarrotado. Os olhos da estudante estão com as pupilas voltadas para a direita e levemente para baixo, como se a estudante estivesse em reflexão. Seu rosto sério e olhar distante também sugerem essa interpretação.