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terça-feira, 5 de julho de 2022

PEC inconstitucional do Senador Alcolumbre é desmantelada em audiência pública

 PEC que amplia indicação política para embaixadores é alvo de crítica unânime em debate no Senado


Políticos e especialistas apontam 'desmonte do Estado' e inconstitucionalidade em projeto de Davi Alcolumbre

5.jul.2022 às 15h02
Cézar Feitoza

A PEC dos embaixadores, como ficou conhecida a proposta de emenda à Constituição que abre caminho para políticos virarem embaixadores sem perderem o mandato, foi alvo unânime de críticas durante audiência na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado nesta terça-feira (5).

Para o ex-chanceler Aloysio Nunes, a proposta integra um conjunto de medidas tomadas durante o governo Jair Bolsonaro (PL) que promove o desmonte do Estado brasileiro. "Uma mudança constitucional dessa natureza cria um dano permanente à política externa brasileira e a uma prerrogativa essencial do presidente da República, que é falar com plena autoridade em nome do Brasil [por meio de seus embaixadores]", disse.

Nunes defende que a PEC tem problemas no mérito e na constitucionalidade e causa confusão ao desestimular diplomatas que entram na carreira dispostos a alcançar o posto de embaixador. "[A PEC promove] a diluição de fronteira entre Poderes, o que não deve ser admitido pela Comissão de Constituição e Justiça", concluiu.

A audiência contou ainda com a participação de diplomatas, professores de relações internacionais e pesquisadores, incluindo Mathias Alencastro, colunista da Folha. Todos se manifestaram contra a PEC.

A diretora do Instituto Rio Branco, Gilvania Maria de Oliveira, participou representando o ministro de Relações Exteriores, Carlos França, que está em viagem. Para ela, a possibilidade que a PEC quer abrir já foi enterrada durante a Constituinte de 1988. "Esse assunto foi tema de debate em 1987 e 1988 e consideramos, com todo respeito ao excelentíssimo senador Davi Alcolumbre, que há temas sensíveis e problemáticos em elementos de constitucionalidade", avaliou.

Alcolumbre (União Brasil-AP), não participou do debate, apesar de ser o presidente da CCJ e autor da proposta.

O vice-presidente do Conselho Curador do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais), José Alfredo Lima, disse que o embaixador-político pode enfrentar conflitos de interesses, uma vez que terá de prezar pelos interesses da política externa brasileira e atender aos anseios dos eleitores do estado que o elegeu. "Gostaria de recordar o preceito bíblico de que não se deve servir a dois senhores", afirmou.

O senador Esperidião Amin (PP-SC) disse que a proposta não atende ao interesse público, atenta contra a separação entre os Poderes e pode servir como mais uma moeda de troca para o presidente da República. "O que se comenta é que o objetivo é arrumar mais uma boquinha para o parlamentar", disse.

A discussão sobre a proposta que amplia os poderes de políticos sobre embaixadas tem a simpatia de Bolsonaro, como mostrou o Painel. No início do governo, o presidente tentou escalar o filho Eduardo Bolsonaro (PL-SP) para chefiar a embaixada do Brasil em Washington. Em 2019, o deputado disse que tinha, entre suas qualificações, a experiência de um intercâmbio nos Estados Unidos e que "fritou hambúrguer no frio do Maine".

Para o professor de relações internacionais Guilherme Casarões, da FGV, as tentativas de nomeação de Eduardo e do ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella para embaixada da África do Sul seriam facilitadas pela PEC discutida pelo Senado. "Em ambos os casos, ficava muito claro o interesse paroquial ali colocado. E isso, do ponto de vista da representação do Brasil no exterior, causa um prejuízo indelével à imagem do país. Tanto os processos quanto as consequências dessa PEC seriam muito prejudiciais", afirmou.

No fim da audiência, a relatora da PEC no Senado, senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), reclamou da falta de empenho do chanceler Carlos França na discussão da proposta. Segundo ela, os dois se falaram uma única vez, por telefone, e a conversa não deixou claro o posicionamento do Itamaraty no debate.

"Desde março, quando fui designada relatora, em nenhum instante fui procurada presencialmente [pelo chanceler]. Faço questão de dizer isso pela falta de empenho do Itamaraty, pela necessidade de fortalecer os argumentos da diplomacia brasileira", disse Ribeiro.

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/07/pec-que-amplia-indicacao-politica-para-embaixadores-e-alvo-de-critica-unanime-em-debate-no-senado.shtml


VIDEO: Senador invoca filosofia de boteco para justificar contrariedade à PEC

Invocando a “filosofia de boteco”, o senador posicionou-se contra a PEC que possibilita a deputados e senadores ocuparem cargo de embaixador sem a perda do mandato.

KARINA MANARIN
05/07/2022 ÀS 15H08 - Atualizado Há 16 minutos

Invocando a “filosofia de boteco”, o senador Esperidião Amin, do PP, posicionou-se contra a PEC, Proposta de Emenda Constitucional, que possibilita a deputados e senadores ocuparem cargo de embaixador sem a perda do mandato. Foi nesta terça-feira, durante audiência pública para tratar do tema na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. A PEC é de autoria do senador Davi Alcolumbre,  do União Brasil.

Para Amin, a iniciativa é  inadequada do ponto de vista Constitucional. Segundo declarou, não vê interesse público nela, pois entende que não atende a melhoria do serviço que se presta, pelo contrário, tende a comprometer a qualidade.

“Quero acrescentar um terceiro fator pedindo perdão se considerarem ‘xula’ a minha observação. “Boteco”. Eu milito na vida pública sem abrir mão de frequentar boteco. Boteco tem uma sabedoria muito respeitada no Brasil. E nos botecos do Brasil o que se comenta, é que o objetivo desta proposta de emenda à constituição, é arrumar mais uma ‘boquinha’ para o parlamentar. Por isso, sou contrário a esta PEC”, finalizou o senador.

https://ndmais.com.br/politica-sc/video-filosofia-de-boteco-invocada-no-senado-para-contrariar-boquinha-para-parlamentar/

Um Lula 3 na política externa: o nunca antes all over again? - Paulo Roberto de Almeida

 Um Lula 3 na política externa: o nunca antes all over again?  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org)

Nota sobre os desafios de um novo governo Lula no âmbito da diplomacia, para o jornalista Felipe Frazão (Estadão).

  

Admitindo-se a vitória de Lula no 1º ou no 2º turno das eleições de outubro de 2022 e sabendo que seu principal conselheiro em política externa continua sendo o ex-chanceler Celso Amorim, quais poderiam ser as grandes linhas da diplomacia de Lula em seu terceiro mandato? Para responder a essa pergunta, cabe em primeiro lugar traçar as principais características do cenário internacional a partir de 2023 (até, previsivelmente, 2026), as tendências prováveis no plano regional, para, em segundo lugar, tentar adivinhar quais seriam as iniciativas e esforços diplomáticos a serem deslanchados por esse novo governo desde o final deste ano e, sobretudo, a partir de sua inauguração em janeiro de 2023.

 

O cenário internacional será ainda marcado – não se sabe por quanto tempo mais – pelo prosseguimento de hostilidades na Ucrânia e, portanto, com impasses relativamente duráveis nas relações entre as principais potências apoiadoras do atual governo da Ucrânia, por um lado, e a Rússia, por outro lado, com o apoio mais ou menos discreto da China, assim como a continuidade da posição indefinida dos demais Brics, seja Brasil, Índia e África do Sul. Em outros termos, a impossibilidade prática de diálogo, seja no plano multilateral, seja no contexto regional ou bilateral, entre os contendores e seus apoiadores tende a assegurar a continuidade da tensão atual nas relações internacionais, com escolhas difíceis a serem feitas pelos países diretamente envolvidos, assim como pela comunidade internacional em geral. Se os EUA continuarem com seu projeto impossível de “conter a China”, o cenário poderá se agravar ainda mais, com aumento das tensões bilaterais e seus reflexos regionais e no plano multilateral; ou seja, estamos embarcando num cenário de tensões e fricções contínuas.

No plano regional, o mais provável é a continuidade da “desintegração”, ou seja, a difícil reconstrução de instâncias e mecanismos de consulta e coordenação em vista de visões distintas na América do Sul, e mesmo na América Latina, quanto a quais instrumentos se deveria apelar (Celac, Unasul reconstruída?) ou tentar reconstruir para essa tarefa. As razões principais estão na grande diferenciação de orientação política dos diferentes governos, vários com muitas dificuldades internas, o que torna difícil o estabelecimento de uma plataforma mínima, consensual, de entendimento quanto aos instrumentos regionais que deveriam ser colocados em marcha. Esse processo requereria estadistas suficientemente capazes, e legítimos, para tal tipo de empreendimento, o que não é certo que surjam. Na fase anterior, havia certo número de líderes políticos nacionais – Lula, Chávez, Kirchner, Morales, Correa, e alguns outros – capazes de dialogar e mobilizar consensos, o que não é certo que se obtenha a partir de 2023, mesmo com o retorno de Lula ao poder: ele dialogaria com quem exatamente? Os calendários eleitorais e a fragmentação dos velhos partidos nacionais tendem a criar uma atmosfera pouco propícia a grandes empreendimentos continentais. 

 

O que ocorrerá na diplomacia brasileira a partir da vitória de Lula, no começo ou no final de outubro de 2022? Conhecendo-se o personagem, é presumível que, passando a escolher seus principais assessores presidenciais, ele dê uma importância imediata à frente externa, com um discurso que pretende “resgatar” a imagem deteriorada do Brasil no cenário internacional por Bolsonaro, passando a dialogar com diversos líderes estrangeiros e até programando viagens externas nos dois últimos meses do ano. Teremos um documento-guia de política externa, formulado previsivelmente por Celso Amorim – com a interferência de alguns apparatchiks do PT, mas também personalidades da vida pública, dos meios políticos e empresários, para refletir o seu governo de “coalizão” – e a apresentação das principais linhas de sua política externa, feitas de revalorização dos antigos instrumentos criados por ele mesmo e seus assessores diplomáticos nos anos 2003-2010: Ibas, Unasul, Brics, parceria estratégica com a UE, visitas aos parceiros regionais (o que ainda é uma grande dúvida), iniciativas vinculadas à pobreza mundial, fome, desigualdade, etc. 

Pode ser que Celso Amorim prefira atuar a partir do Palácio do Planalto, e deixar a condução da diplomacia a cargo de um diplomata mais jovem seu aliado e amigo, com sua estreita orientação quanto aos principais dossiês das relações regionais, hemisféricas e multilaterais, com atenção especial aos grupos privilegiados. Lula possivelmente enviará mensagens ou emissários, antes mesmo da posse, aos líderes do Ibas, Brics (que se confundem, para todos os efeitos), talvez até aos saudosistas da Unasul, que talvez possa ser reconstruída em novas bases, já sem a preeminência perturbadora do chavismo ativo. Muito provável que Brasília se encha de líderes mundiais para a sua posse, o que será um excelente sinal de recuperação do antigo prestígio do Brasil sob o lulopetismo diplomático. Será a oportunidade para dialogar diretamente com alguns deles, e anunciar imediatamente viagens, visitas, programas, iniciativas e grandes demonstrações de trabalho conjunto e de recuperação de programas que ficaram “enterrados” sob Bolsonaro (como o Fundo Amazônia), o diálogo estratégico com a UE (e até o anúncio de retomada de negociações para colocar em vigor o acordo assinado em junho de 2019). Não se sabe bem o que Lula e Amorim dirão sobre a OCDE, mas o processo deve continuar, ainda que se anuncie uma “nova visão” sobre essa adesão e as condições do ingresso, em vista dos velhos preconceitos petistas.

Ao início, haverá menos pirotecnia ao estilo dos dois primeiros mandatos, tanto porque os cenários internacional e regional são mais complicados, e também porque Lula terá difíceis problemas pela frente a resolver no plano interno, a começar pela “herança maldita” que receberá no lado das contas públicas, com o agravamento do desequilíbrio fiscal e uma inflação ainda ultrapassando, e muito, o teto da meta. O cenário do Parlamento não será fácil de equacionar, assim como a persistência da fome e da miséria entre largos estratos da sociedade exigirão atenção máximo nas primeiras semanas e meses. 

Provavelmente se anunciará a retomada do “diálogo” com países africanos e árabes, e uma “reforma” do Mercosul, cujos contornos não parecem muito claros ainda. O lado mais difícil será o encaminhamento a ser dado ao problema da Ucrânia, tendo em vista as tomadas de posição claramente contra a Otan já publicamente feitas por Lula. Não é difícil continuar numa linguagem evasiva a esse respeito, na qual são peritos os diplomatas, assim como sobre as relações com os Estados Unidos, tendo em vista a “censura” pública de Lula a Joe Biden. Quanto à Argentina – qualquer que seja a situação do país, e quem seja o próximo presidente –, a mensagem será de total entendimento para um futuro comum de trabalho conjunto, assim como com os demais vizinhos, especialmente os governos progressistas (Chile, Bolívia, talvez Colômbia). 

Não existem grandes negociações em curso – nem na OMC, nem no FMI –, mas o governo Lula manterá suas prioridades no âmbito do Brics, das relações com os países africanos e, cada vez mais, com a China e outros asiáticos. Ele contará com a boa disposição da maior parte dos parceiros tradicionais no exterior, e poderá prometer que vai reverter TODAS as más políticas de Bolsonaro no terreno ambiental, no campo dos direitos humanos, do multilateralismo em geral (com destaque para OMS e OIT) e no sentido de construir uma América do Sul (Latina?) mais forte e mais unida para o relacionamento global. Ou seja, tem tudo para dar certo ao início, à condição que o ambiente internacional não se deteriore um pouco mais, presumivelmente por conta da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, o que obrigará o seu governo a algumas tomadas de posição bastante difíceis, tanto na ONU quanto bilateralmente (com EUA e UE, principalmente)

Quanto ao Itamaraty, não deve passar por qualquer “expurgo”, ou “reconstrução”, o que já estará sendo feito nas últimas semanas de 2022, sob a orientação conciliadora de Celso Amorim e do chanceler designado, uma vez que os principais “barões” da Casa já estão sendo removidos para o exterior. Várias mudanças serão feitas nas chefias das principais embaixadas, o que absolutamente normal na rotina da Casa, sobretudo com mudanças de governos. Alguns “resistentes” ao bolsonarismo se manifestarão, ou serão indicados a postos de chefia na Casa e no exterior, e também se anunciará reforço na dotação orçamentária, assim como se fará, no plano interno, para ciência e tecnologia. Um grande alívio ocorrerá na Casa, enfim livre do horroroso chefe de Estado que emporcalhou o prestígio do Brasil em todos os quadrantes do globo (com exceção dos regimes de direita, que não mais disporão de portas abertas no Brasil, à exceção talvez de Putin, o que resta a ver). Entre outubro e janeiro, o Itamaraty ainda bolsonarista terá de processar dezenas de mensagens de congratulações ao novo presidente: não sabemos se enviará todas ao Palácio do Planalto.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 416912 junho 20224 p.

A PEC do desespero eleitoral é totalmente equivocada - Editorial Estadão

 O Estado de S.Paulo, 05 de julho de 2022 

PEC do Desespero’ não prioriza pobres

Auxílio para caminhoneiro e taxista não é programa social. É privilégio para a base eleitoral de Bolsonaro. Oposição não pode apoiar uma PEC cujos meios e fins são antidemocráticos 

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022 é uma violência contra as regras do jogo eleitoral. É incompreensível que senadores não alinhados ao bolsonarismo tenham aprovado a criação, no texto constitucional, de um estado de emergência para burlar a legislação fiscal e eleitoral. Para piorar, os parlamentares autorizaram essa aberração jurídica motivados por uma mentira: ao contrário do que o governo diz, a PEC, destinada na prática a comprar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, cria benefícios sociais para profissionais de classe média, e não para a população carente e desempregada.

O foco da PEC 1/2022, apelidada corretamente de “PEC do Desespero”, tem pouco a ver com os pobres. Ela cria auxílios, por exemplo, para caminhoneiros e taxistas – que, por mais que estejam sofrendo as consequências da crise social e econômica, não fazem parte da população necessitada no Brasil.

Na verdade, caminhoneiros e taxistas só estão na “PEC do Desespero” porque são supostamente parte da clientela eleitoral de Bolsonaro. Sendo assim, e como o desespero bolsonarista é grande diante das pesquisas de intenção de voto, nada impede que outras categorias profissionais (e eleitores em potencial) entrem no pacote de bondades com dinheiro alheio: o relator da matéria na Câmara, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), quer agora incluir motoristas de aplicativo. Sabe-se lá quem mais será beneficiado até a votação da PEC. Só se sabe que não serão os mais carentes.

Há muitos pobres no Brasil. Recente estudo da FGV Social mostrou que, no ano passado, 62,9 milhões de brasileiros (29,62% da população) estavam abaixo da linha da pobreza. De acordo com critérios consolidados internacionalmente, essa linha é de US$ 5,50 per capita por dia, o que, ajustada por paridade do poder de compra, equivalia a R$ 497 mensais no ano passado. Nas faixas mais pobres, eram 33,5 milhões de brasileiros vivendo com até US$ 3,20 por dia, e 15,5 milhões de brasileiros com até US$ 1,90 por dia. Essas pessoas, no entanto, mal estão contempladas pelos benefícios que a PEC 1/2022 cria.

A PEC tem, portanto, escasso conteúdo social e abundantes privilégios – que, uma vez concedidos, dificilmente poderão ser retirados sem criar ressentimentos. Logo, como a mudança constitucional vale só até o fim do ano, supõe-se que haverá muito ressentimento em 2023. Já os pobres, bem, estes continuarão pobres.

Ou seja, a PEC 1/2022 não é a escolha de um caminho errado – violação das regras fiscais e eleitorais – para um fim supostamente bom. Ao dar dinheiro para determinadas pessoas, sem nenhum critério social, apenas por motivo eleitoral, a “PEC do Desespero” reforça desigualdades, com a produção de novas distorções. Essa disfuncionalidade é rigorosamente contrária ao papel do Estado, que não tem poder nem competência para atuar assim. No seu art. 3.º, a Constituição define que um dos “objetivos fundamentais da República” é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Tudo isso só faz aumentar a perplexidade perante a votação quase unânime da PEC 1/2022 no Senado. Apenas o senador José Serra (PSDB-SP) foi contrário. Qual é o sentido de a oposição apoiar a criação de privilégios para a base eleitoral de Jair Bolsonaro? Talvez alguém possa achar que o aumento temporário de R$ 200 no benefício do Auxílio Brasil, também previsto na PEC, justificaria todo o restante. No entanto, esse acréscimo, longe de representar algum conteúdo social, só reitera a natureza eleitoreira da “PEC do Desespero”. 

O valor de R$ 200, como tudo o que parte de Bolsonaro, foi definido arbitrariamente, sem nenhum estudo prévio nem qualquer vinculação com as reais necessidades da população. Além disso, a implosão do Cadastro Único, que o governo Bolsonaro vem causando, escancara o objetivo de destituir de sentido social – de proteção da população mais vulnerável – todas as políticas públicas sociais em funcionamento para transformá-las em meras plataformas de compra de votos. Tal aberração, vergonhosamente apoiada pela oposição, não merece nenhuma condescendência.

Um monstro chamado Putin e seu prisioneiro Navalny - Economist

 The Economist:

-- Os carcereiros de Alexei Navalny estão apertando os parafusos --

 ALEXEI NAVALNY não reclama facilmente. O principal político da oposição russa, que sobreviveu a uma tentativa de envenenamento em 2020 e está preso desde janeiro de 2021, trata seus carcereiros com desafio e ironia. Em junho, ele foi transferido de uma colônia penal para uma prisão de segurança máxima famosa por sua brutalidade. Ele agora está trancado atrás de uma cerca de seis metros de altura com assassinos. Sofrendo de problemas nas costas, ele passa turnos de sete horas sentado em uma máquina de costura em um banquinho abaixo da altura do joelho. Para ver um advogado, ele deve pular uma refeição.

O objetivo, de acordo com Leonid Volkov, chefe de gabinete de Navalny, é isolá-lo e aleijá-lo fisicamente. “Isso tudo é muito sério e muito perigoso”, escreveu ele, mesmo que o próprio Navalny tenha usado seu estilo de luz de marca registrada para descrever a escuridão de sua situação. "Eu vivo como Putin", escreveu Navalny em sua última mensagem nas redes sociais, postada por meio de seus advogados. "Tenho um alto-falante em meu quartel que toca músicas como 'Glória ao FSB ', e acho que Putin também."

O FSB , o sucessor da polícia secreta de Stalin, tornou-se ainda mais repressivo desde que Vladimir Putin invadiu a Ucrânia. Controla os tribunais e o Ministério Público e apoia a guerra com expurgos de “extremistas” e “traidores”. Em 30 de junho, o FSB prendeu Dmitry Kolker, um professor de física em estado terminal na universidade de Novosibirsk, sob a acusação de passar segredos para a China. (Ele havia dado palestras para estudantes chineses.) Agentes o tiraram de sua cama de hospital na Sibéria e o levaram para uma prisão de Moscou, onde morreu alguns dias depois. Em 2 de julho, o FSB prendeu seu colega, Anatoly Maslov, do Instituto de Matemática Teórica e Aplicada de Novosibirsk, por acusações semelhantes.

O número de processos por alta traição e extremismo aumentou dramaticamente desde que a Rússia invadiu a Ucrânia pela primeira vez em 2014, diz Ivan Pavlov, um advogado russo de direitos humanos que lutou em vários casos contra o FSB . “O objetivo é demonstrar que a Rússia está cercada de inimigos”, diz. As definições de traição e extremismo continuam se ampliando. Um jornalista que coleta informações de código aberto que possam beneficiar uma potência estrangeira pode ser acusado de traição.

Com uma taxa de absolvição inferior a 0,5% na Rússia, o melhor que os advogados podem fazer é fornecer um serviço “paliativo”, diz Pavlov. “Podemos segurar a mão do réu quando uma sentença é lida.” Eles também podem falar com a mídia, mas isso é arriscado. Pavlov e sua equipe, que defendia Navalny, foram expulsos do país pelo FSB com ameaças e ordens de restrição; seu status de advogado está atualmente suspenso.

“Havia uma política clara de espremer qualquer um que fornecesse informações independentes para fora do país”, diz Pavlov, sentado no pátio de seu novo escritório em Tbilisi, capital da Geórgia. Em 28 de junho, Dmitry Talantov, um advogado que assumiu os casos de Pavlov, foi preso por se manifestar contra a guerra da Rússia na Ucrânia. No mesmo dia, Ilya Yashin, um dos poucos políticos da oposição ainda na Rússia, foi jogado em uma cela da polícia em Moscou por 15 dias. No tribunal, Yashin chamou sua prisão de “um convite insistente para emigrar”.

Mesmo aqueles que não se opõem explicitamente ao Kremlin podem ser presos. Em 30 de junho, o establishment da Rússia foi abalado pela prisão de Vladimir Mau, um economista que chefiava a Academia Presidencial Russa de Economia Nacional e Administração Pública, que treina futuros funcionários públicos. Mau havia aconselhado o governo sobre economia e demonstrado sua lealdade política ao assinar uma carta em apoio à "operação militar especial" de Putin. Ele foi acusado de fraude, mas poucos acreditam que esse foi o verdadeiro motivo de sua detenção. Sua prisão parece ser parte de um expurgo mais amplo dentro das universidades e um sinal para a elite tecnocrática de que ninguém é intocável hoje em dia na Rússia.

Por alguma razão, as pessoas da elite pensam que são intocáveis, mas nunca são, diz Pavlov. Até agora, poucos membros da elite russa ligaram o destino de Navalny ao seu. Mas agora eles podem ler seus posts mais de perto. “Você me conhece, sou otimista”, escreveu ele em 1º de julho. “Enquanto costurava, decorei o monólogo de Hamlet em inglês. Os internos do meu turno dizem que quando fecho meus olhos e murmuro algo... como 'em tuas orações sejam lembrados todos os meus pecados', parece que estou invocando um demônio. Os demônios, no entanto, dificilmente precisam ser invocados. E os solilóquios de Hamlet não prenunciam um final feliz.

https://www.economist.com/europe/2022/07/04/alexei-navalnys-jailers-are-tightening-the-screws?utm_content=article-link-1&etear=nl_today_1&utm_campaign=a.the-economist-today&utm_medium=email.internal-newsletter.np&utm_source=salesforce-marketing-cloud&utm_term=7/4/2022&utm_id=1224332

Como será a política externa do PT? - Felipe Frazão (OESP)

 O jornalista reproduz algumas declarações minhas ao final da matéria.


POLÍTICA
04/07/2022 16:38

ELEIÇÕES 2022: SE ELEITO, LULA PLANEJA NOMEAR MULHER PARA COMANDAR ITAMARATY


Por Felipe Frazão

Brasília, 04/07/2022 - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja nomear uma mulher para a chefia do Itamaraty, caso seja eleito na disputa para o Palácio do Planalto. Até agora, o nome mais cotado para comandar o Ministério das Relações Exteriores em eventual governo Lula é o da embaixadora Maria Luiza Ribeiro Viotti.

Economista e diplomata de carreira, Viotti é da confiança do embaixador Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores e da Defesa. Amorim continua sendo o mais influente conselheiro de política externa do ex-presidente. No PT e no Itamaraty, ninguém descarta o retorno do ex-chanceler a eventual novo governo de Lula, mas tanto ele quanto o ex-presidente pregam a renovação de quadros no primeiro escalão.

“Certamente, temos mulheres diplomatas muito competentes, que poderiam ser excelentes ministras”, disse Amorim ao Estadão. “A embaixadora Viotti é uma das mais qualificadas.” A indicação de uma mulher para o Itamaraty contemplaria o movimento feminino na diplomacia, que ganhou força política no Congresso e foi incentivado por Amorim no passado. O Brasil nunca teve uma chanceler.

O nome de Viotti também foi sugerido a Lula e seu entorno pelo ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio (PSDB), num jantar do Grupo Prerrogativas, em dezembro do ano passado. Virgílio foi contemporâneo da embaixadora no Instituto Rio Branco. Os dois se formaram em 1976, numa turma de onze jovens diplomatas. “Ela é muito capaz, foi a primeira da nossa sala. Sabe muito de ONU, o que é fundamental por causa da discussão sobre meio ambiente”, disse o tucano.

A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede) é outro nome lembrado por interlocutores do Itamaraty e da campanha de Lula. A ideia surgiu porque Marina tem renome internacional na pauta climática, tema no qual o País ficou negativamente marcado no governo Jair Bolsonaro. Com isso, acordos comerciais ficaram emperrados e houve bloqueio de doações para o Fundo Amazônia.

Marina não é diplomata e o PT sempre evitou escolhas fora da carreira. A articulação depende, porém, de uma reconciliação entre ela e o ex-presidente. Lula já deu sinais de que quer se aproximar, mas Marina ainda mostra mágoa por causa dos ataques lançados contra ela pela campanha da então presidente Dilma Rousseff, em 2014. Atualmente, a ex-ministra é pré-candidata a deputada federal pela Rede Sustentabilidade, mas também tem sido cortejada para entrar na disputa paulista como candidata a vice na chapa de Fernando Haddad (PT) ao Palácio dos Bandeirantes.

Já a embaixadora Viotti tem laços com o multilateralismo, algo que Lula pretende valorizar. Ela já presidiu o Conselho de Segurança da ONU e até dezembro era chefe de gabinete do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em Nova York. No Itamaraty, lidou com temas sociais, direitos humanos, meio ambiente e assuntos indígenas. Viotti também chefiou a embaixada em Berlim, de 2013 a 2016, durante os governos Lula e Dilma.

Embaixadores e especialistas em política externa apostam que Amorim terá assento privilegiado no Palácio do Planalto, caso Lula vença a eleição. Aos 80 anos, ele seria uma espécie de decano entre os auxiliares de Lula, influente em diversas áreas, como a relação com as Forças Armadas. Ele tem dito que não dispensará nenhum chamado de Lula.

Nas diretrizes do programa de governo, o PT e os partidos aliados destacam que uma nova governança global deve estar comprometida com o multilateralismo, a paz, a inclusão social e a sustentabilidade ambiental. A diplomacia brasileira, prega o documento, deve fechar parcerias “sem submissão a quem quer que seja”. “Defender nossa soberania exige recuperar a política externa ativa e altiva que nos alçou à condição de protagonista global”, diz o texto. “Reconstruiremos a cooperação internacional Sul-Sul com América Latina e África.”

A linha de integração tem crescido diante de vitórias de governos de esquerda em países vizinhos. A ideia do PT é “manter a segurança regional e a promoção de um desenvolvimento integrado de nossa região, com base em complementaridades produtivas potenciais entre nossos países”. O programa promete a valorização de mecanismos como o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics. O PT sugere também foco na crescente comunidade brasileira no exterior, formada por imigrantes.

Críticas
Na prática, o rascunho do programa de governo de Lula reedita propostas de Amorim. As ideias expostas até agora, no entanto, não respondem a críticas relacionadas à influência do partidarismo nas relações internacionais e ao personalismo de Lula. Embora tenha sido pragmático e projetado o Brasil mundialmente, mesmo sem poder bélico, o governo Lula manteve alinhamento ideológico com governantes de esquerda. Foi acusado, ainda, de complacência com violações de direitos humanos em países controlados por regimes autoritários, como Venezuela e Cuba, entre outros.

“O Brasil precisa recuperar sua credibilidade, reorganizar a presença como indutor de desenvolvimento no entorno regional”, observou o cientista político Hussein Kalout, pesquisador em Harvard e interlocutor frequente de Amorim. No diagnóstico de Kalout, é preciso recalibrar a posição nos foros multilaterais, redimensionar os interesses estratégicos diante da rivalidade entre a China e os Estados Unidos, além de “elaborar uma política externa específica para a Ásia e a estratégia para a geopolítica do meio ambiente”.

Para o embaixador Paulo Roberto de Almeida, Lula promoveu uma diplomacia “fortemente presidencialista e exageradamente personalista”, tentando “alcançar transformações imaginárias no cenário mundial”. Crítico do bolsonarismo e de Lula, Almeida vislumbra um cenário internacional com prolongamento das hostilidades, na esteira da guerra iniciada pela Rússia na Ucrânia. No plano regional, aposta na “continuidade da desintegração” por causa das distintas orientações políticas de governos latino-americanos.

Na sua avaliação, se Lula voltar ao poder haverá “menos pirotecnia ao estilo dos dois primeiros mandatos”, não apenas em decorrência dos cenários internacional e regional, que são mais complicados, mas também porque o ex-presidente terá difíceis problemas pela frente a resolver no plano interno, “a começar pela ‘herança maldita’ que receberá no lado das contas públicas, com o agravamento do desequilíbrio fiscal e uma inflação ainda ultrapassando, e muito, o teto da meta”.

Almeida disse, ainda, que o cenário no Congresso e a persistência da fome e da miséria entre largos estratos da sociedade não serão fáceis de equacionar e exigirão “atenção máxima” nas primeiras semanas e meses do novo governo. “O lado mais difícil será o encaminhamento a ser dado ao problema da Ucrânia, tendo em vista as tomadas de posição claramente contra a Otan já publicamente feitas por Lula”, disse o embaixador.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

João Almino homenageia Sergio Paulo Rouanet + Jorio Dauster e outros colegas

Mensagem de João Almino a colegas da ADB

 Como já foi noticiado, morreu ontem no Rio de Janeiro o grande diplomata e filósofo Sergio Paulo Rouanet. Realizou um importante trabalho para o Itamaraty, entre outras funções, como negociador no GATT e na UNCTAD, chefe da Divisão de Política Comercial, Chefe do Departamento da Ásia e Oceania, além da chefia de missões diplomáticas. Foi meu primeiro chefe na DPC. Sabia transitar com naturalidade da conversa  sobre os grandes temas da política externa ou das leituras de filosofia para as decisões cotidianas da sua área específica de atuação. Dialogava de maneira sempre cordata, segura e inteligente com seus subordinados e com o embaixador George Alvares Maciel, então em Genebra, sobre as questões relativas às instruções a serem preparadas. Nos tornamos amigos e dois anos depois compadres, quando me convidou para ser padrinho da Adriana Rouanet, nascida de seu segundo casamento, com a socióloga, sua grande companheira e interlocutora Bárbara Freitag Rouanet.

Acompanhei, sempre com grande admiração, a evolução de sua importante obra filosófica (tenho alguns de seus textos em cópias datilografadas e um que não veio a publicar). Foi um dos mais destacados filósofos brasileiros, com vasta obra publicada no Brasil e no exterior. Escreveu sobre Machado de Assis (Riso e Melancolia), sobre Freud (Édipo e o Anjo e Os dez amigos de Freud) e livros que estão no cerne de sua reflexão sobre o Iluminismo como uma nova utopia, que não se confunde com a Ilustração (entre outros, As Razōes do Iluminismo e Mal-estar na modernidade). É importante destacar que, como Secretário Nacional da Cultura, empreendeu um diálogo com os setores artísticos e culturais do país e conseguiu a aprovação da lei de incentivo à cultura. Era membro da Academia Brasileira de Letras.

Além de Adriana, que já citei, e da viúva, Barbara, deixa dois filhos, Marcelo e Luiz Paulo, de um primeiro casamento.

Seu legado inclui a criação recente do Instituto Rouanet, em Tiradentes.

João Almino

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Agregou o embaixador Jorio Dauster:

Meu caro João Almino,
Você prestou a homenagem devida ao grande homem que foi Sergio Paulo Rouanet. Graças a seu tirocínio, ele devotou a maior parte da vida a percorrer os caminhos rarefeitos da filosofia, mas quero recordar aqui uma passagem dos tempos em que "Ruana" ainda era um entusiasmado jovem diplomata dedicado às questões econômicas internacionais. 
Nos longínquos idos de l964, antes que fôssemos alijados como subversivos da Delegação brasileira à I UNCTAD após o 31 de março, ele e eu redigimos a proposta de criação do Conselho de Segurança Econômica das Nações Unidas. Tratava-se de um dos itens que o Brasil advogou quando a participação da delegação na conferência era de fato conduzida pelo pai de nossa brava presidente da ADB, o embaixador Jayme Azevedo Rodrigues, que posteriormente teve seus direitos políticos cassados pelo AI 5. É que ainda acreditávamos em muita coisa que o mundo nos negou... 
Abraço,
Jorio  

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Outros colegas e amigos agregaram: 

Gelson Fonseca Júnior: 
Parabéns pela iniciativa. O Rouanet merece muitas homenagens, como diplomata, como intelectual engajado, como criador da lei que garantiu bases produção cultural nos últimos, como colega e amigo. Foi um privilégio conviver com ele e, sempre, aprender com ele. Um grande brasileiro.

João Gualberto Marques Porto: 
Colegas, amigos muitos, 
Falar sobre o "Ruana", como vários o chamavam, é fácil. Dificil é, para os que não privaram com ele, avaliar o tamanho dessa perda, pela dimensão imensurável de seu caráter e personalidade.
Minha experiência com ele durou bem além das mais de quatro décadas que passei na carreira ativa, no Brasil e fora. Conheci-o de nome, antes de entrar para o IRBr, nos albores da "Gloriosa", seu nome vinculado a formulações sócio-políticas que apontavam para uma provável - felizmente jamais ocorrida - repressão.
Com efeito, a esquerda do Rouanet era iluminada por uma estrutura de pensar autenticamente humanitária e democrática, parâmetros filosóficos que guiaram suas atitudes ante a vida até sua morte. Era um mestre do pensamento, como cabe aos filósofos de porte. Sua obra é imensa e abrangente, sobre multidisciplinar, à semelhança de sua erudição e cultura.
Sua fama me veio da primeira informação a seu respeito, de que passara para o segundo ano de Direito, na PUC do RJ, sem dependência, como invariavelmente ocorria, em Filosofia do Direito, ministrada por jurista de origem polonesa, Sbrozec, implacável em sua avaliação dos alunos. O resultado, segundo consta, foi não só de aprovar, mas aplaudir, de pé, Sérgio Paulo Rouanet.
Foi meu Professor de Política Internacional, no segundo ano do IRBr, ainda nas dependências da Candelária, no RJ. Sua fala monocórdia podia dar sono, mas o entrecho não deixava jamais dormir. Nas aferições de conhecimento, que exigiam nota valorada, conforme os ditames de um sistema de ensino que julgava incoerente e ultrapassado, além de urdido com severas falhas, nunca deu menos do que 8, pois acreditava que as provas, ginasianas que eram em seu método de aferição, pouco indicavam do valor real do examinando.
Com isso, meu deu 10 em duas provas, cujas questões (Morgentau e a Teoria do Poder, Nash e a Teoria dos Jogos) ainda são de minha completa memória, como quase tudo que dele me veio. O mesmo ocorreu em seminário dinâmico que propôs à turma, para encenar confronto multilateral, no qual me coube o papel de representante da Comissão da então Comunidade Econômica Europeia, ato que situo na raiz de meu interesse por aquela integração econômica, e, em provir dinâmico, política, que terminou sendo um de meus avatares temáticos na Carreira e tema de minha tese de CAE.
Sempre em contato, após esse prelúdio acadêmico, viemos a reencontrar-nos na Delegação Permanente em Genebra, em minha primeira lotação lá (2 e 1S), período em que tive o privilégio efetivo de compartilhar com ele a mesma sala de trabalho, por inteiros quatro anos. Fui seu segundo em matéria de UNCTAD (Comissões de Manufaturados, de Produtos de Base e de Assuntos Financeiros e Junta de Comércio e Desenvolvimento), no que foi o melhor aprendizado de minha vida, ao habilitar-me a atuar em seu lugar e a pensar estrategicamente, no contexto da buscada reforma do sistema econômico internacional, em que, ademais, militavam algumas das melhores cabeças da Casa: Souto Maior, Amaury Bier, Ronaldo Costa, Lindenberg Sette, Paulo Cabral de Melo, Paulo Nogueira Batista, George Alvares Maciel, Antônio Sérgio Frazão, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, nos planos mais elevados, complementados por uma incrível turma de assessores da mais alta competência, e com outros bem menores, como eu, na rabeira da lista.
Esses foram anos realmente dourados, no dia a dia com Sérgio Paulo, na mesma diminuta sala de trabalho, com os papéis desencontrados de sua mesa derramando-se sobre a minha, em contraste com seu pensamento dialético, perfeitamente ordenado, que se vertia sobre mim. E isso numa convivência intra e extracurricular de grande variedade, entre almoços nos desvãos horários do Palais des Nations e um que outro jantar na Vieille Ville, em seu apartamento da Grand'Rue, ou em minha casa de Conches.
Nessa época, finalmente, após troca infinita de profissionais do campo, encontrou um analista que podia ouvi-lo sem perder-se ante o cérebro maciçamente informado e culto de seu paciente. Foram seis anos de "sessões", durante algumas das quais, nos quatro anos citados, pedia-me que o substituísse, quando se chocavam com nossa agenda unctadiana. Lembra-me bem o dito "rompimento final", em que, dada a profundidade dos laços assim formados, Rouanet encontrou certa dificuldade de liberar-se, o que, de repente, ocorreu quando, como me disse, se deu conta de que se tratara, verdadeiramente, de um diálogo com seu próprio inconsciente. 
Daí em frente, não mais trabalhamos juntos, a não ser ocasionalmente, em conferências internacionais, onde a liga que formáramos se repetia com facilidade.
Nossos papos nunca foram papos-cabeça por si mesmos, ainda que mormente inspirados pelo nível que inevitavelmente tomavam quaisquer tertúlias, sobre qualquer tema, de cinema a automóveis (com exceção de esportes, que não o atraiam, apesar de sua notável força muscular). Por exemplo, foi nessa época que, com José Guilherme Alves Merquior, outro exímio pensador e, curiosamente, sua nêmese ideológica, realizou a celebrada entrevista, seminal, de ambos com Michel Foucault. 
Singularmente, vem-me à lembrança que, naquele período genebrino, o governo brasileiro (apesar de ainda estar no poder a "gloriosa") decidiu condecorar com a Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul o pensador e educador suíço Jean Piaget. O Embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro, nosso então chefe em DELBRASGEN, fez a entrega da honraria em sua residência, para o quê incumbiu Sérgio Paulo de preparar-lhe breve discurso. Para admiração geral dos convivas, Piaget começou seu agradecimento pela menção de que jamais, em sua vida, ouvira tão concisa, precisa e substantivamente profunda análise de seu pensamento.
Tendo recebido do Brasil um dinheiro - muito bem-vindo naquela conjuntura de severa estagflação dos anos 70/80 e seus dois sucessivos Choques do Petróleo -, decorrente da venda de sitio que herdara de meu pai, resolvi investi-lo na compra de uma pequena Ferrari, marca que, à época, como várias outras de nome, davam desconto para diplomatas, pelo sentido de propaganda que seu uso por eles ensejava, o qual permitia revender o carro, mais tarde, sem perda de valor, a preço equivalente ao da compra, senão maior. Diferentemente de outros colegas que viam naquilo abuso ou irresponsabilidade, Sérgio Paulo achou engraçadíssima minha decisão e tratou de fazer juma análise psicanalítica do objeto da compra, que assim descreveu, precisamente, sem dela ter conhecimento, da publicidade da marca: "De corpo suave e sensual, é arrepiante em seu desempenho, como o som de seu motor". Ou seja, Rouanet era gente.
Daí para a frente, foram sempre águas tranquilas, confirmadas pela boa liga que formei com sua nova companheira, logo depois esposa, Bárbara Freitag, sólida intelectual por seus próprios méritos de socióloga do Grupo de Frankfurt, algo mais radical no uso de Marx do que seu marido, porém com encaixe que a comum das mortais nunca conseguiria com ele. Juntos, no final dos anos 70, no sítio que Sérgio Paulo comprara nos arredores de Brasília, em meio a jabuticabeiras, goiabeiras e mangueiras, glosávamos os ataques de Carlos Frederico Werneck de Lacerda, notável golpista de sempre, repudiado até pela "gloriosa", que tanto apoiou, à postura crítica, daquela que chamava, maldosamente, de "A Dama de Berlim". à educação no Brasil, severamente afetada pela visão, vinda dos militares no poder, das reformas de que esse setor tanto carecia, como ainda hoje, por sinal.
A Lei Rouanet, hoje posta em cheque pela mesma visão dantesca da "gloriosa", imperante até 1985, creio que resume bem Sérgio Paulo Rouanet. Enquanto as esquerdas desilustradas e pró-ditatoriais repelem, ou buscam corromper, o empresariado industrial, Rouanet insistia em que este deveria ser cooptado para compor, positivamente, com seus vultosos recursos, o quadro de redenção social de que o Brasil estruturalmente necessita com urgência. O uso de parte de suas receitas, em benefício da cultura, em última análise colima esse fim e tem efeito exemplar para estender medidas desse gênero a outros campos de nosso processo de desenvolvimento.
Sua entrada para a Academia Brasileira de Letras é prova marcante de quanto precede. Longe de ser aquele sarcófago para velhotes literatos, visto por muitos "revolucionários" como antro de conservadorismo, é, a rigor, o nec plus ultra da consagração do intelecto, hoje estendido para muito além de premiação da produção estritamente literária, para cobrir campos diversos com efeito sobre a cultura nacional.
Hoje, às 14 horas, despedi-me de meu amigo, de e para sempre, Sérgio Paulo Rouanet.
João Gualberto Marques Porto Junior.

Fernando Vidal: 
Fui designado para acompanhar o Embaixador Rouanet em Havana, quando ele esteve lá, em 1992, para reunião de Ministros da Cultura da América Latina. Fiquei com ele o tempo todo, alguns dias, e devo dizer que foi um prazer enorme, tão grande que lamentei quando ele partiu de volta a Brasília. Conversamos muito, sempre muito descontraidamente, porque ele me deixou muito à vontade, e pude perceber como ele tinha uma inteligência superior. Aprendi com ele algo que nunca esqueci: o altíssimo risco de um diplomata fazer previsões em política externa, que podem depois não se confirmar e deixar-nos mal. Meus pêsames à família. Fernando Vidal.

Ozorio Rosa: 
João Almino, você conseguiu sintetizar  com precisão e conhecimento de causa tudo o que de fundamental e significativo poderia ser destacada sobre o grande diplomata e ex-Ministro da Culturs que nos deixa agora. Como vizinhos de posto - ele em Praga e eu em Budapest - trocávamos com frequência informações sobre temas administrativos mas egoísta e unilateralmente eu aproveitava essas oportunidades para haurir um pouco de seus fenomenais conhecimentos sobre Kant  que ele sem soberba e com paciência me compartilhava. Um homem admirável.

Fernando Guimarães Reis: 
Para o perfil do saudoso colega - tão bem traçado por João Almino -  gostaria de mencionar algo, que me parece importante. Como toda pessoa, altamente inteligente, Rouanet (Rouana, afetuosamente}  era compreensivo e tolerante, o que nem sempre é o caso para os que se julgam de posse da luz da razão, sempre "cativa", ás às vezes cega. .Dentro de seu racionalismo, ele era afirmativo, sem dúvida, mas sempre esteve alerta para as "trapaças" do intelecto ( o depoimento de Fernando Vidal , nesse sentido, é  muito oportuno). .Ouso dizer que a própria obra do filósofo acusa uma evolução: das certezas iluministas ao humor desconfiado´(e melancólico) de  Lawrence Sterne, tão querido por Machado de Assis. .Sinal de que a  inteligência pura busca um contraponto.real. Não por acaso,  o Acadêmico dedicou seus últimos anos a recolher  a correspondência esparsa  do Mestre do Cosme Velho - trabalho modesto e inestimável., ..Em suma, o que me apraz sublinhar 11 é o exemplo: junto com sua  poderosa  lucidez e clarividência,, Rouanet  não abdicava da honestidade intelectual  e, em consequência, da modéstia. .Deu provas disso,  por exemplo, em  polêmica com o também saudoso José Guilherme Merquior. Respeito pelo outro era também  o que o extraordinário diplomata  inspirava  no enriquecedor contato pessoal, marcado ademais pela afabilidade, de que há tantos  testemunhos. Fará muita falta, neste país cada vez mais indigente..  

Jom Tob Azulay: 
Caro João Almino,
Você fez uma bela e justíssima síntese da personalidade, da carreira e da obra do Rouanet. Naquele período de fins da década de 90 em que as grandes questões contemporâneas se agravaram, seus artigos no JB iluminavam com clareza e precisão temas como universalismo e cultura nacional. Tenho acredito guardados até hoje muitos de seus artigos nos quais me amparava quando me faltavam palavras. Sua tradução do A Origem do Drama Barroco Alemão de Walter Benjamim permanecerá como das mais primorosas em língua portuguesa. Poucos seguiram como ele a máxima de que a clareza é a gentileza do filósofo. Deixou uma sutil mas perene contribuição para a cultura brasileira.
Obrigado pelo seu comentário.
Um abraço,
Jom Tob

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João Almino agradeceu: 

Agradeço todas as respostas a meu post, os comentários e informações que enriqueceram o depoimento sobre o Embaixador Sergio Paulo Rouanet. Creio que neste grupo é relevante lembrar um lado menos conhecido de sua biografia: sua contribuição para a política externa e internacional do Brasil e para as causas dos países em desenvolvimento desde os tempos da I UNCTAD, como destacou Jorio.

Sobre o pensamento, publiquei ontem um artigo na Folha. Terei a oportunidade de falar da memória afetiva amanhã, na “sessão da saudade” da ABL, ao ter sido escolhida pela família para ser o orador oficial. 

Destacarei as muitas qualidades pessoais e profissionais de Sergio Rouanet que foram mencionadas aqui.

É absurda a PEC que deixa político com mandato virar embaixador - Editorial O Globo

 EDITORIAL

É absurda a PEC que deixa político com mandato virar embaixador

 

 

O Globo – 04/07/2022

 

 

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do senador Davi Alcolumbre (União-AP) para que parlamentares possam ocupar embaixadas sem abrir mão do mandato está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado. No entender de Alcolumbre, a PEC acabaria com a “discriminação odiosa aos parlamentares”, forçados a deixar o Congresso para assumir postos de embaixador. Trata-se de uma daquelas iniciativas estapafúrdias que agridem o bom senso. Por várias razões.

Para começar, a mistura indevida nos papéis dos Poderes no presidencialismo. O Executivo põe em marcha políticas de Estado, o Legislativo está sujeito às vicissitudes da política partidária. Um faz, o outro fiscaliza. As duas funções são distintas. Ao distribuir congressistas por embaixadas, abre-se campo para conflitos entre a política externa e os interesses do indicado. Um embaixador que queira voltar ao Congresso estará a serviço de seu partido ou do país? Com as indicações, o presidente teria tal poder de barganha sobre o Congresso que, nas palavras da embaixadora aposentada Maria Celina de Azevedo Rodrigues, presidente da Associação de Diplomatas Brasileiros, “reduziria a eficácia do sistema de freios e contrapesos da democracia”.

Desde a Constituição de 1937 a vedação, segundo ela, protege a política externa “dos jogos do poder”. Na justificativa da PEC, o próprio Alcolumbre lembra que a questão foi tratada na Constituinte de 1987. Venceu quem temia que nomear congressistas para embaixadas representaria o sequestro da política externa “pela política miúda, fisiológica, em troca de apoio ao chefe do Poder Executivo”. Ele discorda, mas os constituintes tinham razão.

O argumento de que o chanceler pode ser parlamentar é falacioso, pois o cargo de ministro é político. Que diria Alcolumbre da regra de países como Argentina ou Estados Unidos, onde congressistas são forçados a renunciar para assumir qualquer ministério, não só Relações Exteriores? Por que não introduzir tal norma sensata no Brasil, onde não vigora o regime de ministros parlamentares (o parlamentarismo)?

A eficiência reconhecida da diplomacia brasileira se deve à profissionalização do Itamaraty. Graças a ela, o Brasil atua no mesmo padrão sob diversos presidentes. Mesmo sob Bolsonaro, que tenta de todo modo misturar ideologia e política externa. O que não aconteceria se congressistas ocupassem embaixadas como resultado de barganhas no varejo da política?

Pode ser que parlamentares — em especial os do Centrão — vejam na PEC uma oportunidade de engordar a conta bancária ou dar um destino confortável a carreiras estagnadas. Se pensam assim, demonstram ignorar a necessidade de as democracias terem carreiras de Estado e contarem com burocracia técnica eficiente, para que funções essenciais do poder público sejam executadas independentemente das trocas de governo. É conhecida a insaciável busca por espaços na máquina pública pelo grupo de partidos de que depende o governo Bolsonaro. Partidarizar até as embaixadas seria um despropósito.