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Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
quarta-feira, 3 de maio de 2023
Web of Science: artigos de Paulo Roberto de Allmeida
Constituições do Brasil: a contribuição de Edson Emanuel Simões: uma enciclopédia constitucional - Paulo Roberto de Almeida
Uma enciclopédia da democracia e das constituições, no Brasil e no mundo
Prefácio ao livro de Edson Simões, Constitucionalismo e Constituição de 1988, volume 1 da coleção Constituições e Democracia no Brasil e no mundo – da antropofagia à autofagia (São Paulo: Almedina, 2022, p. 7-14; ISBN: 978-65-5627-477-5). Relação de Publicados n. 1488; divulgado no blog Diplomatizzando (5/01/2023; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2023/01/edson-simoes-uma-enciclopedia-do.html)
Esta excepcional obra de erudição política e constitucional, dividida em cinco densos livros, poderia ser chamada, seguindo a terminologia desenvolvida pelo historiador francês Fernand Braudel, de trabalho de “longa duração”. De fato, Edson Simões deve ter passado muitos anos compulsando sua imensa bibliografia de referência, ademais de uma leitura atenta dos periódicos, para compor este vasto panóptico analítico-interpretativo sobre a evolução constitucional do Brasil, ademais de um igualmente ambicioso panorama cronológico sobre o itinerário histórico dos regimes políticos, desde os modelos ideais pensados pelos antigos filósofos até as modernas democracias de mercado. O conjunto da obra poderia também ser conhecida por um título grandioso, sem, no entanto, deixar de ser verdadeiro: “tudo o que sempre você quis saber sobre as constituições, em especial as do Brasil, e suas conexões com os diferentes regimes democráticos ao longo da história, da antiguidade à contemporaneidade”.
O panorama assim traçado é tão vasto que ele precisou ser dividido em nada menos do que cinco alentados volumes, que cobrem praticamente, o amplo espectro das constituições brasileiras, que abrem e fecham a obra, depois de magnífico percurso pela história, pela filosofia e pelo direito dos regimes políticos, desde a antiguidade até a era contemporânea, como resumido a seguir. O primeiro volume é dedicado às constituições do Brasil (1824-1988), do Império à atualidade; o segundo cobre a contribuições de grandes pensadores e suas contribuições à formulação de modelos para a organização dos estados e para a construção das ordens políticas as mais diversas; o terceiro se ocupa justamente da luta pela democracia, da Grécia à finada União Soviética, que deu lugar à Rússia parcialmente democrática de nossos dias; o quarto volta a tratar da história do Brasil, desde o descobrimento até a República Velha; o quinto, finalmente, continua a se ocupar da construção da democracia no Brasil, da era Vargas aos nossos dias, com dois grandes experimentos autoritários no caminho, o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar, que durou pouco mais de duas décadas (1964-1985).
Pela amplitude, vastidão de tópicos – o que se constatará facilmente pelos sumários detalhados de cada um dos volumes, trata-se de empreendimento inédito no mercado editorial brasileiro, carente de títulos que tratem, simultaneamente e de forma integrada, de temas de direito e de história constitucional, com uma enorme análise, não apenas complementar, mas absolutamente essencial, sobre os conceitos e as realidades dos regimes democráticos, desde suas origens às modernas democracias de mercado. De fato, uma consulta a cada um dos índices dos volumes revela uma profusão verdadeiramente enciclopédica de subcapítulos e de seções em cada uma das suas centenas de partes, algo surpreendente nos dias atuais em termos de esforços ciclópicos, como este que Edson Simões tomou a braços, em face de sínteses bem mais modestas que são publicadas atualmente.
A bibliografia geral, usada pelo autor, assim como as referências específicas a cada um dos volumes, podem ser consideradas como verdadeiramente esmagadoras para um único autor, pois também revelam uma ampla diversidade de leituras, provavelmente ao longo de anos, senão de décadas. Um somatório tentativo das leituras de Edson Simões – que não é matemático, pois há que considerar todo acúmulo de leituras da mídia diária, o seguimento do noticiário em outros veículos e, desde alguns anos, tudo aquilo que nos entra pelas redes sociais – resulta num inacreditável cômputo final de 565 títulos, sendo que não menos de dez pertencem ao próprio autor (dos quais vários em obras coletivas ou em coautoria), aos quais este prefaciador poderia agregar oito de sua própria autoria, títulos mais propriamente de relações internacionais e de história do que exatamente de ciência política ou direito.
Mas, estes são apenas os aspectos volumétricos, ou quantitativos, desta obra de fato monumental, o que requereu, justamente, sua divisão em volumes, em função de sua dimensão assombrosa. Sem pretender uma comparação quanto ao conteúdo, inclusive porque são de gêneros completamente diferentes, pode-se pensar – quanto ao volume de trabalho que a obra dever ter custado ao autor, numa labuta de longos anos – no famoso Dictionary of the English Language, do não menos famoso Samuel Johnson. O dicionário do inglês, biografado por James Boswell, tomou não menos do que nove anos para ser completado: de 1746 a 1755; sua composição gráfica, com muitas ilustrações e uma infinidade de citações – “examples from the best writers”, entre os quais se incluíam, sobretudo, Shakespeare e Milton –, custou bem mais ao editor que o compôs, em dois volumes, do que Samuel Johnson recebeu para compô-lo.
Sabemos que outros autores também foram prolíficos escritores, como, por exemplo, no terreno do Direito, Pontes de Miranda, ou mais ainda, Rui Barbosa (sem que ele, na verdade, tenha publicado um único volume durante toda a sua longa vida), cujas obras completas, aos cuidados da Fundação que leva o seu nome, ainda não se terminaram de publicar, mas já somam mais de uma centena de volumes. Aliás, Edson Simões não cita Rui Barbosa em seus quase seiscentos títulos da bibliografia, mas é porque o grande jurista baiano – conterrâneo, portanto, de Edson Simões – é tomado como um verdadeiro personagem de nossa história constitucional e política, muito mais atuante na vida parlamentar e nos debates de imprensa, do que propriamente como doutrinador. Mas, Rui Barbosa também foi um estadista e um diplomata – sobretudo nas negociações em torno da compra do Acre, depois, de maneira magistral, na segunda conferência da paz da Haia (1907) e, finalmente, como representante brasileira nas comemorações do primeiro centenário da independência argentina, em 1916 –, tendo formulado contra as pretensões dos imperialismos arrogantes, na Haia, um dos princípios basilares do multilateralismo brasileiro e peça básica da doutrina diplomática do Brasil: a igualdade soberana dos estados. Rui Barbosa, mais até do que um advogado de grandes causas, de jurista respeitado internacionalmente e, até mesmo, um estadista de envergadura mundial – foi escolhido praticamente por unanimidade, inclusive pelas grandes potências, para ser o primeiro juiz brasileiro na Corte de Justiça Internacional, só não assumindo por já se encontrar doente –, era um escritor compulsivo, e a maior parte de sua obra entraria, talvez, na categoria do jornalismo erudito. Edson Simões honra a memória do “homem mais inteligente do Brasil” (segundo os baianos certamente).
Em matéria de dicionários, Edson Simões usou extensivamente, ou recorreu para consultas tópicas, a nada menos do que duas dezenas de dicionários de Política (entre eles o famoso de Norberto Bobbio), de História (três da história brasileira, outro da história universal, sendo um da civilização grega e outro da Roma antiga, e um da Revolução Francesa, que possui um estupendo prefácio de José Guilherme Merquior), de Filosofia e dos filósofos (inclusive cobrindo Rousseau, além de um “gramsciano), sem mencionar os que são propriamente da área constitucional e parlamentar, um do “politicamente correto”, ademais daqueles especificamente da língua portuguesa (Houaiss, o grande lexicográfico brasileiro, como o britânico Samuel Johnson, mas ele foi um diplomata cassado pelo regime militar). Edson Simões também se revelou um misto de “dicionarista”, de “enciclopedista”, de cronista dos tempos recuados e modernos em matéria de constituições e democracias, um autor dotado de uma pena surpreendentemente abrangente.
Na verdade, pela amplitude de sua escrita, não se trata apenas de uma “pena quilométrica”, e sim de uma capacidade de digitação fenomenal, uma espécie de Balzac do direito constitucional, um autor tão volumoso e denso quanto, em outros gêneros, o velho Chateaubriand (que vendeu suas “memórias do além-túmulo”, por uma renda permanente, muito antes do esperavam seus editores), ou, em outro exemplo mais literário, quanto Marcel Proust (que era capaz de escrever várias páginas simplesmente sobre o aroma que lhe despertava uma “madeleine” sobre uma xícara de chá). Ainda neste terreno da literatura em grande volume, as centenas de páginas desta respeitável obra em cinco volumes de Edson Simões cobrem facilmente, em extensão, as aventuras que Georges Simenon imaginou para o Comissaire Maigret, em suas 75 pequenas novelas de mistério policial.
No caso de que nos ocupamos, não há absolutamente nenhum mistério, mas total transparência e lucidez quanto aos critérios do autor na abordagem de seu triplo objeto: os pensadores da Política, do Estado, da Justiça e do Direito; as aventuras da senhora Democracia, da antiga Grécia (a “mãe da democracia”) aos embates entre autoritarismo e democracia, na Alemanha contemporânea, passando pela Inglaterra, França e Estados Unidos, entre outros exemplos; e, finalmente, ao início e ao final, o próprio Brasil, seja na sua sucessão de constituições, desde a mais longeva, aquela outorgada pelo primeiro imperador, até a mais recente, que já é uma “balzaquiana”, mas que carrega mais emendas do que as dezenas de volumes da Comédia Humana, do ilustre novelista francês do século XIX. O caráter enciclopédico da obra é justamente confirmado pela pletora de casos tratados no terreno da política, das desventuras da democracia ao redor do mundo, da Grécia e da Roma antigas às modernas democracias de mercado e, sobretudo, confirmado pela profusão de pensadores das doutrinas e dos regimes políticos abordados, dos sofistas (os primeiros aprendizes de filósofos, mas dotados de pouca lógica) aos contemporâneos, passando por medievais, renascentistas e modernos, sem descurar alguns adeptos do terror político, Robespierre, Marat e Danton en tête (que levaram vários outros a perder a cabeça, antes deles).
O primeiro volume da obra revela um comentarista erudito, mas também irônico, sobre as constituições do Brasil, que teriam saído da “antropofagia” para chegar à “autofagia”, tantas foram nossas tentativas de democracia, para terminar com o que ele caracteriza como “uma colcha de retalhos”. De fato, a Constituição de 1988, a sétima ou oitava da série, segundo se considere certas anomalias ditatoriais, constitui um vasto conjunto de dispositivos concedendo muitos direitos, mas exigindo poucas obrigações, como sempre lembrou o economista e diplomata Roberto Campos, aqui citado pelas suas memórias, um passeio pela história do Brasil no século XX e por cinco de suas constituições, uma das quais, a de 1967, ele ajudou a elaborar, pelo menos no capítulo econômico.
E é justamente no capítulo econômico que se situam os principais problemas do arranjo constitucional atual, uma vez que a Carta de 1988 garantiu todos os direitos a que os cidadãos tinham direito (e sempre mais alguns, segundo a generosa disposição dos legisladores de encontrar o verdadeiro caminho da felicidade legal). Mas, ao mesmo tempo, ela forjou uma ordem econômica que gera baixo nível de investimentos para alimentar um processo de crescimento sustentado, com transformações estruturais e distribuição social dos benefícios de crescimento que não vem, desde exatamente a promulgação da “Constituição cidadã”, do dizer de Ulysses Guimarães. Não exclusivamente por causa de seus dispositivos econômicos – pois também ocorreu a crise da dívida dos anos 1980, as hiperinflações se alternando a planos frustrados de estabilização macroeconômica e uma introversão negativa do aparelho produtivo, isolando o Brasil das pressões competitivas da economia global –, mas sobretudo pela tentativa de distribuir benesses a todos e a cada um, a Constituição tornou-se um óbice a uma maior taxa de investimentos produtivos, ao dirigir boa parte das receitas fiscais ao próprio Estado. Este é um ogro famélico que captura um terço de todas as riquezas criadas por empresários e trabalhadores, muito acima do que justificaria o nível de renda per capita do Brasil no confronto com países de características similares (nossa carga fiscal se situa dez pontos acima, no PIB, à de outras economias emergentes, quase no mesmo nível que os países avançados da OCDE, que possuem uma renda per capita cinco ou seis vezes superior à nossa (aliás, estagnada há vários anos).
A chave – ou, se poderia dizer, o ferrolho – de todos os problemas brasileiros se situam amplamente nos terrenos político e institucional, temas cruciais de nossos impasses sociais, e que são objeto de profundas considerações do autor tanto ao início quanto ao final desta obra verdadeiramente completa, tão completa que vai dos “antecedentes do descobrimento do Brasil” e da própria “formação e evolução de Portugal”, até Dilma, Temer e Bolsonaro, para mencionar apenas os mais recentes personagens de uma trama que confirma o que Edson Simões chama de “erosão da República e da democracia em pleno século XXI”. De fato, impossível não concordar com ele, quando se contempla a lenta demolição das instituições, que vão das manifestações contra o poder político na década passada, às “contradições do Poder Judiciário”, como também explicitado ao final da primeira parte da obra. Aqui, caberia talvez retornar ao velho Rui Barbosa, crítico contumaz do militarismo da República – tendo ele enfrentado, em 1910, o sobrinho do primeiro marechal-presidente, Hermes da Fonseca, habitual em intervir nos conflitos estaduais –, que ele considerava como o principal perigo à democracia brasileira: de fato, os militares nunca deixaram de intervir nos assuntos políticos, em mais de 130 ano de República.
O amontoado heteróclito de problemas institucionais, constitucionais, econômicos e sociais recomendaria uma ampla reforma política, que reverteria a atual fragmentação partidária e limitaria a chantagem recíproca que se exercem os poderes executivo e legislativo, na disputa por nacos de um orçamento quase que totalmente comprometido com gastos obrigatórios. De fato, como se sabe, o orçamento brasileiro reserva muito pouco das receitas a investimentos produtivos, ou para a correção das imensas desigualdades distributivas, e no período recente vem sendo objeto de um verdadeiro estupro orçamentário, ao acomodar dois fundos ilegítimos – o partidário e o eleitoral, já que partidos são de direito privado – e uma pletora de “emendas orçamentárias” que simplesmente distorcem qualquer sentido de planejamento racional de despesas públicas, ao fragmentar bilhões de recursos em projetos paroquiais que nunca deveriam ser de responsabilidade federal. Mas é justamente essa reforma política que se revela praticamente impossível em face de um parlamentarismo de fato, não de direito, feito de superpoderes do estamento político, especialmente dedicado a disputar os despojos do Estado e pouco voltado para a correção dos inúmeros impasses quanto ao funcionamento das instituições.
Às vésperas do bicentenário da formação de um Estado independente, em setembro de 2022, a construção da nação permanece inacabada, pois, assim como ela permaneceu refratária à abolição do tráfico e da escravidão no momento oportuno, ela se mostrou impérvia à implantação de um verdadeira sistema de educação de massas de qualidade, assim como, num passado não muito remoto, esqueceu-se da distribuição da propriedade e da integração dos antigos escravos e dos rurícolas marginais aos benefícios da alfabetização e dos cuidados elementares de saneamento básico, e até hoje permanece indiferente ao grau elevado de violência urbana, que atinge sobretudo as populações pobres das favelas. O Brasil do bicentenário de sua independência nos aflige, profundamente, e a maior parte das razões estão muito bem descritas, esmiuçadas, explicadas e criticadas nesta obra monumental.
A feliz coincidência de que esta obra multivolumes esteja sendo publicada às vésperas do bicentenário oferece, precisamente, um guia, um manual seguro, um diretório dos nossos impasses democráticos e constitucionais, um manancial de informações e de argumentos que podem nos ajudar a identificar os problemas e traçar um roteiro de sugestões para sua correção ao início do terceiro centenário de nossa vida independente, como Estado soberano. O diagnóstico, não apenas constitucional, mas sobretudo compreensivo, no sentido weberiano da expressão, para que possamos congregar esforços na busca de caminhos democráticos, consensuais, para superar os atuais impasses da nacionalidade. Apenas com uma compreensão sofisticada dos problemas que se colocam à “brasilidade” será possível formular as prescrições adequadas para a adoção das medidas corretivas que devem ser aprovadas pela representação política.
O diagnóstico já foi feito por Edson Simões, a crítica dos erros passados também, os modelos oferecidos pelas democracias de mercado exitosas comparecem nesta sua obra que pode ser considerada uma síntese perfeita de uma trajetória intelectual das mais completas. Tive enorme prazer em percorrer suas densas páginas, o que me fez relembrar de quando, jovens adolescentes em São Paulo, trocávamos sugestões e exemplares de livros para enriquecer nossa formação inicial: entre esses autores estava Stefan Zweig, que havia projetado um futuro luminoso para o Brasil, em 1941, uma esperança até aqui frustrada em várias de suas dimensões. Aos 80 anos do suicídio do escritor, em pleno Carnaval de 1942, em Petrópolis, cabe esperar que o “país do futuro” almejado pelo grande intelectual austríaco, possa realizar-se no curso das próximas décadas, como nossos filhos e netos têm todo o direito de almejar. Com esta afetiva rememoração, encerro meus cumprimentos ao Edson Simões, seguro de que ele ofereceu o melhor de si nestes magníficos volumes.
Paulo Roberto de Almeida
Fevereiro de 2022
Martim Vasques da Cunha sobre as surpresas das utopias e distopias: uma revisão da literatura
Só posso agradecer a distinção de ler esta peça genial!
Welcome to the machine.
Pink Floyd
Um dos temas mais frequentes na literatura de ficção científica é a previsão geralmente sombria de um futuro que se revelará distópico. Isso, na verdade, é tão comum que acabou se tornando um clichê cinematográfico e publicitário, como podemos ver nos celebrados comerciais da empresa de computadores Apple, em especial os que remetem a dois clássicos do gênero: o primeiro que cita o romance 1984 (1948), de George Orwell, e o segundo que homenageia explicitamente 2001 – Uma odisseia no espaço (1968), o filme enigmático de Stanley Kubrick.
Nas duas peças publicitárias que tinham como meta prática a venda de um objeto que parecia ter saído do próprio futuro – o computador pessoal Macintosh –, o principal criador da Apple, o famoso e temperamental Steve Jobs, pediu explicitamente que os comerciais fossem inspirados no imaginário visual criado por diretores como Kubrick e Ridley Scott – chegando ao ponto de, no caso do spot que remetia a 1984, contratar o próprio Scott por um cachê milionário pois ele queria a qualquer custo ter o mesmo visual futurista de Blade Runner – O caçador de androides (1982), o cult que, por sua vez, era também baseado em um romance de Philip K.Dick, outro mestre da ficção científica.
Jobs sabia que o uso da iconografia já considerada célebre desse gênero literário e cinematográfico se devia ao fato de que, lá no fundo da nossa experiência em comum, o ser humano não consegue prever adequadamente o quão longe vai a nossa tendência de sermos perfeitos neste mundo – ou, para ser exato, de reconhecermos a nossa perfectibilidade em um universo que se apresentará a nossos olhos ora como sujo e perverso (caso do futuro imaginado por Ridley Scott), ora como asséptico, incapaz de erros, mas, mesmo assim, igualmente assustador (uma característica habitual em todos os filmes de Stanley Kubrick). O que a Apple se propunha nesses anúncios era que o verdadeiro futuro seria revelado com o lançamento do Macintosh – um futuro mais humano, que aproximasse as pessoas, sem a presença de um Big Brother que vigiasse cada um de nós em nossa privacidade, um futuro no qual seríamos capaz de prever imprevistos que não colocariam a civilização à beira de um colapso final. Em suma: a Apple seria nada mais, nada menos a empresa que liquidaria com a possibilidade do nascimento das distopias futuristas.
Bem, sabemos hoje que Steve Jobs poderia ser considerado um visionário, mas não era um vidente, já que agora temos conhecimento de como os computadores pessoais sabem de cada detalhe de nossas vidas, graças ao programa Prism, da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos – tudo isso revelado e divulgado pelo Kim Philby de nosso tempo, Edward Snowden, sempre em conluio com uma imprensa a qual, apesar de se mostrar aterrorizada com essas notícias, também alimentou esse mesmo comportamento entre os anônimos e as celebridades (alguém ainda se lembra do que aconteceu com Diana Spencer e com os donos da Escola Base?).
Enfim, tudo leva a crer que, mesmo com as intenções mais otimistas, já vivemos no futuro distopico imaginado por Orwell, Philip K. Dick, Kubrick e Scott. E o que seria uma distopia, essa palavra que todos julgam saber o que é, mas mal conseguem explicar a qualquer um?
As distopias são um gênero narrativo surgido no final do século XIX, mais especificamente na Inglaterra, em função do fato de que a visão de mundo utópica não tinha mais eficácia para capturar a imaginação da sociedade. Naquela época, a ideia de progresso, após ter sido alçada como um novo deus no Iluminismo francês e britânico, foi posta em dúvida devido à aceleração tecnológica promovida pela Revolução Industrial – e que desumanizou ainda mais os trabalhadores que já viviam em condições insalubres, miseráveis, próximas de serem vistas como uma nova escravidão. Além disso, o surgimento de duas Guerras Mundiais em um espaço de menos de trinta anos colaborou para o fortalecimento desse gênero na sensibilidade dos leitores, como mostra o sucesso de dois livros que marcaram o século XX: AdmirávelMundo Novo (1931), de Aldous Huxley, e o já citado 1984, de Orwell.
Para muitos, a distopia parece ser o oposto da utopia, uma vez que esta quer descrever um mundo ideal ainda a ser alcançado enquanto o primeiro prevê um mundo onde todos nós queremos evitar que exista. Não é bem assim: o criador do termo utopia, Sir Thomas More, já avisava aos amigos, quando publicou o livrinho que tinha o mesmo nome em 1516, que o mundo criado especificamente para o relato das aventuras do navegador ficcional Raphael Hitlodeu era, de fato, uma descrição do que poderia se tornar a Inglaterra do século XVI. Para quem ainda não sabe, utopia é um neologismo com o advérbio grego ou – “não” – e o substantivo topos – “lugar”. O som resultante dá a impressão de ser uma palavra latina, utopia / eutopia, que resulta em um outro trocadilho, desta vez significando lugar “feliz” ou “afortunado”. No próprio esboço inicial de More, a ilha se chamava Nusquama, outro trocadilho para “nenhures”.
Esta referência ambígua ao “estado de bem-aventurança” do mundo de Utopia como modelo de justiça para a Inglaterra é uma outra piscadela de More ao tratado de Santo Agostinho, A Cidade de Deus. Na lógica interna do seu texto, Utopia é a cidade divina que foi finalmente levada a cabo na Terra; contudo, o próprio nome da ilha indica que não existe em lugar nenhum e isso é a prova de que More sabia que a cidade de Deus, ordenada pelo amor Dei, jamais seria vislumbrada por qualquer criatura humana enquanto vivesse neste wretched world [mundo devastado]. A “cidade”, para Agostinho, existe em um sentido figurado, próximo do “místico”, que se divide em duas sociedades comandadas por dois tipos diferentes de amores. A primeira, como já foi dito, é o do amor de Deus que une todos os membros e os liga através de uma homonoia, uma comunhão; o segundo é o amor de si que chega ao desprezo de Deus, que Agostinho não hesita em identificar com o próprio Diabo. Em Utopia, a lógica é invertida – e More mantém o tempo todo a noção de que ela é uma sociedade das trevas, como mostra o nome de sua capital (Amaurot, capital da escuridão); a sua eutopia é uma distopiaque, mais cedo ou mais tarde, será consumida pela entropia da morte. Desse último fato – a indesejada das gentes – ninguém escapará e tanto Agostinho como More tinham uma consciência aguda disso, mesmo se a cidade de Deus descesse dos céus.
A mesma noção trágica da existência humana ocupa a mente de Platão em sua A República – na verdade, o seu título é Politeia (algo como A Constituição ou O Paradigma), outra influência na obra de More. O desejo do aventureiro Hitlodeu de perdurar o “estado de bem-aventurança” de Utopia em outros países europeus é uma das referências moreanas ao diálogo platônico, em especial ao famoso conceito de que a cidade ideal imaginada por Sócrates e Glauco, em sua conversa sobre a justiça, não passa de um “modelo criado por pensamentos (logoi)”. Em grego, “pensamento” tem similaridade com “palavra” (logos) e também com “sentido”. Portanto, a república de Sócrates é uma sociedade que jamais existirá no mundo real porque seu “sentido” é formado apenas de “palavras” ou de “pensamentos”.
Aqui, Platão dá as mãos a Santo Agostinho – e, de certa forma, Thomas More concordava com eles por meio da criação em “palavras” de sua sátira utopiana. Para Platão, o paradigma da sociedade ideal sempre estará na tensão (metaxo) entre o que pode ser feito e o que deve ser feito, entre o ideal e o real, mas, sobretudo, entre a vida e a morte. Um bom estadista só terá domínio do seu “governo particular” se se espelhar no céu; mas, para isso, é necessário fazer como Sócrates: enfrentar a morte e o nada como condições primordiais de sua humanidade e descer às profundezas do Hades, do inferno e da destruição que habitam dentro de cada um de nós. Não por acaso, a palavra que abre A República é o verbo katebein, que, em grego, significa aproximadamente “desci”.
O que More acrescenta à tradição reflexiva de Platão e Agostinho sobre os rumos da sociedade ideal é a percepção aguçada da recusa deliberada da realidade. O filósofo grego e o santo africano aceitavam a morte como parte constituinte de nossas vidas; já More percebia uma nova tendência que depois seria a norma da modernidade, através da persona de Raphael Hitlodeu: o desejo de não aceitar a morte – mesmo que ela esteja presente em todos os lugares, principalmente naqueles que o mundo dos sonhos criou. E quando se imagina possível alcançar um mundo melhor por meio do caminho dos sonhos, a única coisa a se esperar é uma contínua exortação ao nada. Para quem não suporta a tensão implacável da existência, trata-se da escolha mais confortável, uma vez que suprime a vontade de reformar o cosmos e o substitui por um otimismo ou por um pessimismo que tenta imitar a negação do mundo. Assim, os sonhos podem ser voltados para um passado que já não existe mais ou então para um futuro que se insinua nos nossos anseios mais íntimos. Em ambos os casos, trata-se de uma nostalgia pelo paraíso que culminará na adoração por mundos imaginários – as utopias e as distopias literárias que contaminarão o nosso imaginário moderno.
Portanto, se a utopia era um reflexo distorcido do mundo real, podemos afirmar sem dúvida que, na verdade, o germe distopico sempre esteve presente no próprio gênero literário que supostamente se opunha a ele. A utopia é também uma distopia e vice-versa, mas, no caso desta última, ela leva ao extremo as consequências morais que implicam aceitar a perfectibilidade do homem não só como mera especulação ficcional, mas sobretudo levando em conta as verdadeiras implicações da mudança de eixo no modo como é analisada a natureza humana.
Com base nessas implicações, os escritores distópicos centram as suas críticas ao progresso perfectibilista em três pontos: (1) a impossibilidade na busca de uma linguagem perfeita que unifique a sociedade e que elimine as ambiguidades entre os relacionamentos (a novilingua de 1984); (2) o perigo de ter todas as relações sociais matematizáveis completamente, expandindo-se em todos os estratos e castas (a eugenia de Admirável Mundo Novo); e (3) a manipulação tecnológica da vida íntima dos seres humanos, sempre tendo como desculpa a procura e a realização perpétua da felicidade (a razão principal para a destruição sistemática dos livros no Fahrenheit 451, de Ray Bradbury).
Esses três fatores convergem para a meta suprema que todos os distopicos reiteram quase obsessivamente: a busca pela perfeição humana enquanto nos encontramos nesse mundo precário e frágil, identificada tão somente com a perfeição técnica, excluindo outros estratos e outras complexidades da nossa própria natureza.
Agora, resta fazer a pergunta: mas tudo isso seria ruim para nós? Ninguém duvida de que o progresso tecnológico, se bem usado, traz benefícios a todos – é só vermos as vantagens da medicina no avanço de diagnósticos e tratamentos delicados e o próprio avanço nos meios de comunicação, seja a televisão, a Internet ou a telefonia celular, que possibilitam novas formas de interação e de rapidez na hora de transmitir qualquer espécie de informação. O problema é que a discussão sobre as benesses ou as desvantagens do progresso é, no fundo, uma discussão falsa porque, se insistirmos apenas nas vantagens evidentes desse fenômeno que mal conseguimos explicar aos nossos contemporâneos, perderemos de vista que o fundo do debate é algo intangível, quase impossível de ser visto por nossas sensibilidades materialistas. Trata-se da tensão que há entre a perfectibilidade e a maleabilidade do ser humano.
Como bem explica John Passmore em seu clássico A perfectibilidade dohomem, nós podemos ser maleáveis, i.e., nos adaptarmos conforme certas circunstâncias exteriores, como históricas, sociais e biológicas, mas não podemos ser perfectíveis, ou seja, alterarmos aquilo que é a nossa “natureza humana”, o que nos caracteriza de forma estável e constante – os nossos “sentimentos morais”, segundo Adam Smith, nossas paixões, nossos vícios e nossas virtudes. A crença na ideia de progresso provoca uma confusão entre a maleabilidade e a perfectibilidade – e assim temos um vácuo éticoalimentado em especial por cientistas e intelectuais que, geralmente atuando como “lacaios do poder”, pensam que podem nos educar como se fossemos “uma folha em branco”. Ao mesmo tempo, temos de tomar cuidado com a crítica ao progresso porque, por outro lado, ela é também uma espécie de perfectibilidade ao contrário, já que os distopicos não acreditam que o ser humano pode, de facto, adaptar-se às circunstâncias e alterar o seu destino que antes seria sombrio. O determinismo que nos paralisa a respeito de nossas próprias forças e fraquezas é também um reducionismo pueril a ser evitado a qualquer custo, até pela simples razão de que, segundo o alerta do escritor norte-americano Thomas Pynchon, a verdadeira eficácia de um profeta não é a validade de suas previsões, mas a sua capacidade de mergulhar e descobrir novas luzes no abismo da alma humana.
Dessa forma, não podemos manter a nossa ingenuidade em relação ao fascínio que temos com a ideia de progresso, seja em uma perspectiva positiva ou negativa. Esta fascinação foi dissecada brilhantemente por Marshall McLuhan em Understanding media: the extensions of man, livro que influenciou boa parte o estudo de tecnologia e cultura nos anos 1960 e 1970, mas que não foi bem compreendido por seus acólitos. Para o canadense, os meios tecnológicos já afetavam a nossa vida, independente das intenções de cada um e provocavam o seguinte fenômeno – o do “Narciso como narcose” (Narcisius as narcosis), em que o objeto é uma extensão do homem que o detém justamente porque ele não percebe que se tornou o seu reflexo, vivendo naquele completo desconhecimento de si mesmo que René Girard chamaria de méconnaisance. Eles se tornaram um fato do qual não podemos mais retirá-los da realidade – e os meios tecnológicos alteraram a nossa percepção do real, justamente porque temos a maleabilidade necessária para isso acontecer sem sermos surpreendidos. Um exemplo disso é retratado por Nicholas Carr em seu best-seller The shallows (2010), no qual ele mostra detalhadamente como a Internet alterou a nossa forma de conhecer o mundo e o conhecimento em geral.
O resultado é que temos então uma idolatria da tecnologia, em que o ser humano fica completamente dependente da Máquina (sim, assim mesmo, com M maiúsculo), descolando-se e distanciando-se da experiência concreta do real. No conto The Machine Stops (1923), de E.M. Forster, temos a descrição de como a História foi alterada para boa parte da população de um futuro distópico quando essa mesma sociedade conhece o que aconteceu na Revolução Francesa a partir tão somente dos relatos de estudiosos que interpretaram o evento em si, nunca de depoimentos originais de pessoas que o vivenciaram no meio do turbilhão. O admirável mundo novo criado por Forster é um cosmion fechado, um pequeno mundo completamente mediado apenas por objetos e pessoas que se comportam como artífices, onde a Máquina – o nome dado para o misterioso sistema que organiza a vida de todos – força as pessoas a viverem em um lugar, conforme diz um dos personagens; onde a luz uniformiza as saudáveis habitações do subterrâneo; e onde eles simplesmente perderam a noção do espaço como uma forma de se diferenciar do próprio corpo.
O comentário acima explicita algo que McLuhan afirmava que já existia no presente que vivemos: o de que, com o surgimento da eletricidade (talvez o meio tecnológico mais evidente e, ao mesmo tempo, mais próximo do ordinário – tanto até que só sentimos falta dele quando para de funcionar), a luz permitiu que não soubéssemos mais o que é o dia e o que é a noite. Vivemos em plena indiferenciação, em uma “aldeia global” onde, graças à “luz que brilha nas trevas”, aparentemente estamos em uma era repleta de inovação e de racionalidade, mas na verdade voltamos à época do mito, da tribo, do primitivismo que não se importa mais com a causa e com o efeito – e sim com o todo que podemos apreender por meio dos nossos sentidos, porém não conseguimos compreender por meio das nossas faculdades suprarracionais, entre elas a intuição, transformando a Era da Tecnologia em que estamos imersos em uma pseudo-religião travestida de racionalismo, incapaz de compreender os corações e as mentes de todos nós.
Conseguiremos escapar desse impasse da indiferenciação, no qual todos são iguais a todos e que, em breve, provocará o início da “guerra de todos contra todos”? De acordo com Marshall McLuhan, a resposta é afirmativa – e quem pode nos ajudar a sair desse pântano seria o artista, aquele que, inspirado pelo poeta Wyndham Lewis, “está sempre empenhado em escrever a minuciosa história do futuro porque ele é a única pessoa consciente da natureza do presente”. McLuhan não hesita em afirmar que, em um mundo onde a violência tecnológica é cada vez mais sutil, disfarçada em uma espécie de servidão voluntária para cada um de nós, e que prova que o curso da História não passa nada além de “uma longa série de diretos no queixo” da raça humana, o artista é “o homem da consciência integral”. Ele é extremamente necessário para a sobrevivência humana; é o sujeito “que, em qualquer campo, científico ou humanístico, percebe as implicações de suas ações e do novo conhecimento de seu tempo”, corrige “as relações entre os sentidos antes que o golpe da nova tecnologia adormeça os procedimentos conscientes”, antes que se manifestam “o entorpecimento, o tateio subliminar e a reação”. O artista ensina a sociedade, se esta o compreender corretamente, a como se deve “desviar do golpe”, pois, no nosso presente repleto de racionalidade, a arte deve ser vista pelo o que é – a “informação exata para reordenação das mentes”, sempre pronta para antecipar o próximo golpe que a História nos dará e que será vibrado para “as nossas faculdades projetadas para fora”.
Todavia, nem sempre conseguimos escapar do “direto no queixo” – e, muitas vezes, quem faz isso para nós é justamente o mesmo artista que deveria nos ajudar a sair do impasse de sermos iguais em absolutamente tudo. Se insistirmos na importância da arte, em detrimento do princípio ético que fundamenta nossas ações, corremos cair no risco de uma nova distopia que se torna cada vez mais real: a da tirania do artista – e, com isso, vivermos integralmente em uma Segunda Realidade.
Porque quem se dedica ao daimon da arte vive o perigo de criar uma Segunda Realidade que substitua a Primeira Realidade, fundamentada no senso comum e na persuasão racional, para que a sua atitude de recusa seja aceita como algo completamente normal e factível. A princípio, pode-se entender tal atitude como uma brincadeira, um mero jogo da imaginação, mas as consequências podem ser desastrosas para a psique do indivíduo que insiste nesse real alternativo e que, pouco a pouco, começa a acreditar que é a únicarealidade existente. Eric Voegelin explica com clareza o movimento interior de quem começa a confiar demais no mundo dos sonhos e entra em conflito com a “indesejada”:
“Tal conflito pode ser rastreado a partir da discrepância dos conteúdos entre as realidades imaginadas e experimentadas, através do ato de projetar uma realidade imaginária, até o homem que se permite tal ato. Em primeiro lugar, sobre a questão dos conteúdos, uma realidade projetada pela imaginação pode deformar ou omitir algumas áreas da realidade experimentada; podemos dizer que a realidade projetada esconde ou eclipsa a Primeira Realidade. Partindo dos conteúdos para o ato, logo podemos distinguir a intenção do homem que eclipsa a realidade. Esta intenção pode se manifestar numa variedade ampla de formas, indo da mentira sobre um fato à uma mentira mais sutil ao arranjar um contexto de tal maneira que a omissão do fato nunca será percebida; ou então da construção de um sistema que, por sua forma, sugere uma visão parcial do todo da realidade na recusa de seu autor em discutir as premissas do sistema em relação à realidade experimentada. Finalmente, além do ato, alcançamos o ator, isto é, o homem que cometeu o ato de deformar a sua humanidade a um self e agora deixa que o self reduzido eclipse toda a sua própria realidade. Ele negará a sua humanidade em insistir que não é nada senão o seu self reduzido; negará sempre que experimentou a realidade da experiência em comum com outras pessoas; negará que qualquer um pode ter uma percepção mais completa da realidade a não ser aquela que seu self permitir; em resumo, terá o seu self contraído como um modelo único para si mesmo assim como para todos os outros. Além disso, a sua insistência em conformar os outros à sua realidade chegará próxima da agressão – e nela ele trai a ansiedade e a alienação do homem que perdeu qualquer contato com a realidade”.
A tirania do artista é apenas mais uma das maneiras estratégicas da Segunda Realidade, dominada por uma pneumopatologia, impor-se sobre a realidade da razão e dos sentidos concretos. Existem, claro, outras variações, como as das ideologias políticas, as dos narcóticos e até mesmo do divertimento inconsequente, que invadem também o nosso cotidiano e que também provocam outros fatos sem volta. São as desilusões que ocorrem quando as pessoas que acreditam em seus mundos paralelos percebem que eles não passam de castelos construídos sobre a areia. Novamente, é Voegelin quem faz uma análise acurada desse fenômeno e como isso afeta a nossa vida nos mínimos detalhes:
“A desilusão com esta ou aquela ideologia, a conversão escapista de uma para outra, ou um cinismo em relação a qualquer uma são todos fenômenos comuns. Se, por um lado, um homem divorcia-se da realidade através de ‘opiniões’ e de experiências que seu self contraído não consegue suportar, por outro ele não consegue voltar à existência na verdade, porque está habituado a viver na existência desordenada e isso se tornou tão forte que sua energia espiritual não pode quebrar; ou porque até mesmo o acesso ao conhecimento da verdade está barrado pela pressão social que o envolve na autoridade da ignorância institucionalizada nos estabelecimentos educacionais, nos meios de comunicação e na opinião pública. O resultado é que ele deve se voltar às origens de sua vitalidade animal se quiser recuperar uma forma de vida que possa ser experimentada como real. A sua vida assumirá então certas formas comportamentais como libertinagem, hedonismo, o culto da violência, auto-destruição, vandalismo e até mesmo a mais explícita criminalidade. Se a sua vitalidade animal falhar, este homem descerá ainda mais – por exemplo, ao estupor de assistir televisão – ou ele poderá ter que tomar drogas para “atiçá-lo” numa existência que foi eliminada além de qualquer esperança, ou então encontrará o seu caminho numa neurose clínica. Esse fenômeno vislumbrado, muito comum em nossos tempos, deve ser compreendido como uma forma extrema de desintegração existencial sob a pressão de um ambiente social onde a verdade da realidade foi substituída com sucesso pela autoridade da ignorância”.
Estas desintegrações da alma são evidências empíricas de que talvez há muita razão quando ouvimos um Roger Kimball afirmar que as utopias e as distopias não passam de “experimentos contra a realidade”. Todas as tentativas de amputar a tensão que existe no real, o metaxo do qual Platão falava na sua Politeia, definido como a busca erótica pela sabedoria, só resultaram em uma intoxicação da modernidade que eclipsou a consciência humana, com resultados terríveis para a história do Ocidente: os campos de concentração nazistas, os gulags soviéticos, as experiências genéticas inspiradas por uma eugenia utópica e, last but not least, a última dupla auto-destruidora dos últimos tempos: a bomba atômica e a inteligência artificial.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset tinha uma frase lapidar sobre essas atitudes: “A realidade é de um gênio tão atroz que não tolera o ideal nem mesmo quando ela própria é idealizada”. Queremos mudar o real porque desejamos evitar os “diretos no queixo”, mas isso nem sempre é possível. Por outro lado, ao criarmos nossas utopias e distopias, temos que ter plena consciência que estamos apenas fazendo nossas exortações ao nada ou dando boas vindas à máquina que nos triturará em um futuro próximo. Afinal, viver na verdade, no mundo concreto onde todos nós nos encontramos, é sempre muito mais interessante do que continuar no território da ficção – e este só tem validade quando este decide ser um reflexo elaborado do que acontece na nossa vida interior. Viver sob o efeito do nada pode ser divertido por algum tempo – mas saiba que, quando este mesmo tempo expira, a única coisa que nos resta é ver tudo sob a perspectiva de uma “escuridão visível” [darkness visible] da qual ninguém quer encarar no final da nossa trajetória.
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Brasil: o futuro que queríamos em 2018, e que ainda não veio
Reproduzo abaixo, apenas para fins informativos, a postagem que eu havia feito neste mesmo blog em 2018, sobre o livro cuidadosamente organizado pelo editor da Contexto, Jaime Pinsky, mas que não obteve o seu justo reconhecimento na época ou cinco anos depois. O esforço foi válido e merece a reprodução desta nota.
Paulo Roberto de Almeida
nta-feira, 3 de maio de 2018
O Brasil que Queremos: livro, Jaime Pinsky (org.)
Após alguma hesitação, por razões profissionais, decidi aceitar, pois me permitiria discorrer sobre os aspectos de nossa interface externa que conviria implementar, com vistas à inserção internacional do Brasil, embora eu me tenha limitado às relações econômicas internacionais do país, tema de minhas pesquisas e, supostamente, de minha especialidade.
Este o meu trabalho:
“Relações internacionais”, Brasília, 1 fevereiro 2018, 11 p. Colaboração ao livro organizado por Jaime Pinsky, Brasil: o futuro que queremos (São Paulo: Editora Contexto, 2018; ISBN: 978-85-520-0058-7).
O livro será lançado no dia 22 de maio [de 2018] em São Paulo, conforme o convite que reproduzo abaixo.
Paulo Roberto de Almeida
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