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quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Edson Simões: uma "enciclopédia" do constitucionalismo na História e no Brasil - prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Um dos meus principais trabalhos produzidos em 2022 e um dos derradeiros a serem publicados em 2022: 

4065. “Uma enciclopédia da democracia e das constituições, no Brasil e no mundo”, Brasília, 18 janeiro 2022, 7 p. Prefácio ao livro de Edson Emanoel Simões, As Constituições do Brasil (1824 a 1988): da antropofagia à autofagia - as tentativas de democracia no Brasil e no mundo (São Paulo: Almedina, 2022). Revisão em 23/01/2022, para redividir os volumes e falar de Rui Barbosa. Publicado in: Edson Simões, Constitucionalismo e Constituição de 1988, volume 1 da coleção Constituições e Democracia no Brasil e no mundo – da antropofagia à autofagia (São Paulo: Almedina, 2022, p. 7-14; ISBN: 978-65-5627-477-5). Relação de Publicados n. 1488. 

Transcrevo abaixo o meu prefácio:


Uma enciclopédia da democracia e das constituições, no Brasil e no mundo

  

Esta excepcional obra de erudição política e constitucional, dividida em cinco densos livros, poderia ser chamada, seguindo a terminologia desenvolvida pelo historiador francês Fernand Braudel, de trabalho de “longa duração”. De fato, Edson Simões deve ter passado muitos anos compulsando sua imensa bibliografia de referência, ademais de uma leitura atenta dos periódicos, para compor este vasto panóptico analítico-interpretativo sobre a evolução constitucional do Brasil, ademais de um igualmente ambicioso panorama cronológico sobre o itinerário histórico dos regimes políticos, desde os modelos ideais pensados pelos antigos filósofos até as modernas democracias de mercado. O conjunto da obra poderia também ser conhecida por um título grandioso, sem, no entanto, deixar de ser verdadeiro: “tudo o que sempre você quis saber sobre as constituições, em especial as do Brasil, e suas conexões com os diferentes regimes democráticos ao longo da história, da antiguidade à contemporaneidade”. 

O panorama assim traçado é tão vasto que ele precisou ser dividido em nada menos do que cinco alentados volumes, que cobrem praticamente, o amplo espectro das constituições brasileiras, que abrem e fecham a obra, depois de magnífico percurso pela história, pela filosofia e pelo direito dos regimes políticos, desde a antiguidade até a era contemporânea, como resumido a seguir. O primeiro volume é dedicado às constituições do Brasil (1824-1988), do Império à atualidade; o segundo cobre a contribuições de grandes pensadores e suas contribuições à formulação de modelos para a organização dos estados e para a construção das ordens políticas as mais diversas; o terceiro se ocupa justamente da luta pela democracia, da Grécia à finada União Soviética, que deu lugar à Rússia parcialmente democrática de nossos dias; o quarto volta a tratar da história do Brasil, desde o descobrimento até a República Velha; o quinto, finalmente, continua a se ocupar da construção da democracia no Brasil, da era Vargas aos nossos dias, com dois grandes experimentos autoritários no caminho, o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar, que durou pouco mais de duas décadas (1964-1985). 

Pela amplitude, vastidão de tópicos – o que se constatará facilmente pelos sumários detalhados de cada um dos volumes, trata-se de empreendimento inédito no mercado editorial brasileiro, carente de títulos que tratem, simultaneamente e de forma integrada, de temas de direito e de história constitucional, com uma enorme análise, não apenas complementar, mas absolutamente essencial, sobre os conceitos e as realidades dos regimes democráticos, desde suas origens às modernas democracias de mercado. De fato, uma consulta a cada um dos índices dos volumes revela uma profusão verdadeiramente enciclopédica de subcapítulos e de seções em cada uma das suas centenas de partes, algo surpreendente nos dias atuais em termos de esforços ciclópicos, como este que Edson Simões tomou a braços, em face de sínteses bem mais modestas que são publicadas atualmente. 

A bibliografia geral, usada pelo autor, assim como as referências específicas a cada um dos volumes, podem ser consideradas como verdadeiramente esmagadoras para um único autor, pois também revelam uma ampla diversidade de leituras, provavelmente ao longo de anos, senão de décadas. Um somatório tentativo das leituras de Edson Simões – que não é matemático, pois há que considerar todo acúmulo de leituras da mídia diária, o seguimento do noticiário em outros veículos e, desde alguns anos, tudo aquilo que nos entra pelas redes sociais – resulta num inacreditável cômputo final de 565 títulos, sendo que não menos de dez pertencem ao próprio autor (dos quais vários em obras coletivas ou em coautoria), aos quais este prefaciador poderia agregar oito de sua própria autoria, títulos mais propriamente de relações internacionais e de história do que exatamente de ciência política ou direito.

Mas, estes são apenas os aspectos volumétricos, ou quantitativos, desta obra de fato monumental, o que requereu, justamente, sua divisão em volumes, em função de sua dimensão assombrosa. Sem pretender uma comparação quanto ao conteúdo, inclusive porque são de gêneros completamente diferentes, pode-se pensar – quanto ao volume de trabalho que a obra dever ter custado ao autor, numa labuta de longos anos – no famoso Dictionary of the English Language, do não menos famoso Samuel Johnson. O dicionário do inglês, biografado por James Boswell, tomou não menos do que nove anos para ser completado: de 1746 a 1755; sua composição gráfica, com muitas ilustrações e uma infinidade de citações – “examples from the best writers”, entre os quais se incluíam, sobretudo, Shakespeare e Milton –, custou bem mais ao editor que o compôs, em dois volumes, do que Samuel Johnson recebeu para compô-lo. 

Sabemos que outros autores também foram prolíficos escritores, como, por exemplo, no terreno do Direito, Pontes de Miranda, ou mais ainda, Rui Barbosa (sem que ele, na verdade, tenha publicado um único volume durante toda a sua longa vida), cujas obras completas, aos cuidados da Fundação que leva o seu nome, ainda não se terminaram de publicar, mas já somam mais de uma centena de volumes. Aliás, Edson Simões não cita Rui Barbosa em seus quase seiscentos títulos da bibliografia, mas é porque o grande jurista baiano – conterrâneo, portanto, de Edson Simões – é tomado como um verdadeiro personagem de nossa história constitucional e política, muito mais atuante na vida parlamentar e nos debates de imprensa, do que propriamente como doutrinador. Mas, Rui Barbosa também foi um estadista e um diplomata – sobretudo nas negociações em torno da compra do Acre, depois, de maneira magistral, na segunda conferência da paz da Haia (1907) e, finalmente, como representante brasileira nas comemorações do primeiro centenário da independência argentina, em 1916 –, tendo formulado contra as pretensões dos imperialismos arrogantes, na Haia, um dos princípios basilares do multilateralismo brasileiro e peça básica da doutrina diplomática do Brasil: a igualdade soberana dos estados. Rui Barbosa, mais até do que um advogado de grandes causas, de jurista respeitado internacionalmente e, até mesmo, um estadista de envergadura mundial – foi escolhido praticamente por unanimidade, inclusive pelas grandes potências, para ser o primeiro juiz brasileiro na Corte de Justiça Internacional, só não assumindo por já se encontrar doente –, era um escritor compulsivo, e a maior parte de sua obra entraria, talvez, na categoria do jornalismo erudito. Edson Simões honra a memória do “homem mais inteligente do Brasil” (segundo os baianos certamente).

Em matéria de dicionários, Edson Simões usou extensivamente, ou recorreu para consultas tópicas, a nada menos do que duas dezenas de dicionários de Política (entre eles o famoso de Norberto Bobbio), de História (três da história brasileira, outro da história universal, sendo um da civilização grega e outro da Roma antiga, e um da Revolução Francesa, que possui um estupendo prefácio de José Guilherme Merquior), de Filosofia e dos filósofos (inclusive cobrindo Rousseau, além de um “gramsciano), sem mencionar os que são propriamente da área constitucional e parlamentar, um do “politicamente correto”, ademais daqueles especificamente da língua portuguesa (Houaiss, o grande lexicográfico brasileiro, como o britânico Samuel Johnson, mas ele foi um diplomata cassado pelo regime militar). Edson Simões também se revelou um misto de “dicionarista”, de “enciclopedista”, de cronista dos tempos recuados e modernos em matéria de constituições e democracias, um autor dotado de uma pena surpreendentemente abrangente.

Na verdade, pela amplitude de sua escrita, não se trata apenas de uma “pena quilométrica”, e sim de uma capacidade de digitação fenomenal, uma espécie de Balzac do direito constitucional, um autor tão volumoso e denso quanto, em outros gêneros, o velho Chateaubriand (que vendeu suas “memórias do além-túmulo”, por uma renda permanente, muito antes do esperavam seus editores), ou, em outro exemplo mais literário, quanto Marcel Proust (que era capaz de escrever várias páginas simplesmente sobre o aroma que lhe despertava uma “madeleine” sobre uma xícara de chá). Ainda neste terreno da literatura em grande volume, as centenas de páginas desta respeitável obra em cinco volumes de Edson Simões cobrem facilmente, em extensão, as aventuras que Georges Simenon imaginou para o Comissaire Maigret, em suas 75 pequenas novelas de mistério policial. 

No caso de que nos ocupamos, não há absolutamente nenhum mistério, mas total transparência e lucidez quanto aos critérios do autor na abordagem de seu triplo objeto: os pensadores da Política, do Estado, da Justiça e do Direito; as aventuras da senhora Democracia, da antiga Grécia (a “mãe da democracia”) aos embates entre autoritarismo e democracia, na Alemanha contemporânea, passando pela Inglaterra, França e Estados Unidos, entre outros exemplos; e, finalmente, ao início e ao final, o próprio Brasil, seja na sua sucessão de constituições, desde a mais longeva, aquela outorgada pelo primeiro imperador, até a mais recente, que já é uma “balzaquiana”, mas que carrega mais emendas do que as dezenas de volumes da Comédia Humana, do ilustre novelista francês do século XIX. O caráter enciclopédico da obra é justamente confirmado pela pletora de casos tratados no terreno da política, das desventuras da democracia ao redor do mundo, da Grécia e da Roma antigas às modernas democracias de mercado e, sobretudo, confirmado pela profusão de pensadores das doutrinas e dos regimes políticos abordados, dos sofistas (os primeiros aprendizes de filósofos, mas dotados de pouca lógica) aos contemporâneos, passando por medievais, renascentistas e modernos, sem descurar alguns adeptos do terror político, Robespierre, Marat e Danton en tête (que levaram vários outros a perder a cabeça, antes deles). 

O primeiro volume da obra revela um comentarista erudito, mas também irônico, sobre as constituições do Brasil, que teriam saído da “antropofagia” para chegar à “autofagia”, tantas foram nossas tentativas de democracia, para terminar com o que ele caracteriza como “uma colcha de retalhos”. De fato, a Constituição de 1988, a sétima ou oitava da série, segundo se considere certas anomalias ditatoriais, constitui um vasto conjunto de dispositivos concedendo muitos direitos, mas exigindo poucas obrigações, como sempre lembrou o economista e diplomata Roberto Campos, aqui citado pelas suas memórias, um passeio pela história do Brasil no século XX e por cinco de suas constituições, uma das quais, a de 1967, ele ajudou a elaborar, pelo menos no capítulo econômico. 

E é justamente no capítulo econômico que se situam os principais problemas do arranjo constitucional atual, uma vez que a Carta de 1988 garantiu todos os direitos a que os cidadãos tinham direito (e sempre mais alguns, segundo a generosa disposição dos legisladores de encontrar o verdadeiro caminho da felicidade legal). Mas, ao mesmo tempo, ela forjou uma ordem econômica que gera baixo nível de investimentos para alimentar um processo de crescimento sustentado, com transformações estruturais e distribuição social dos benefícios de crescimento que não vem, desde exatamente a promulgação da “Constituição cidadã”, do dizer de Ulysses Guimarães. Não exclusivamente por causa de seus dispositivos econômicos – pois também ocorreu a crise da dívida dos anos 1980, as hiperinflações se alternando a planos frustrados de estabilização macroeconômica e uma introversão negativa do aparelho produtivo, isolando o Brasil das pressões competitivas da economia global –, mas sobretudo pela tentativa de distribuir benesses a todos e a cada um, a Constituição tornou-se um óbice a uma maior taxa de investimentos produtivos, ao dirigir boa parte das receitas fiscais ao próprio Estado. Este é um ogro famélico que captura um terço de todas as riquezas criadas por empresários e trabalhadores, muito acima do que justificaria o nível de renda per capita do Brasil no confronto com países de características similares (nossa carga fiscal se situa dez pontos acima, no PIB, à de outras economias emergentes, quase no mesmo nível que os países avançados da OCDE, que possuem uma renda per capita cinco ou seis vezes superior à nossa (aliás, estagnada há vários anos). 

A chave – ou, se poderia dizer, o ferrolho – de todos os problemas brasileiros se situam amplamente nos terrenos político e institucional, temas cruciais de nossos impasses sociais, e que são objeto de profundas considerações do autor tanto ao início quanto ao final desta obra verdadeiramente completa, tão completa que vai dos “antecedentes do descobrimento do Brasil” e da própria “formação e evolução de Portugal”, até Dilma, Temer e Bolsonaro, para mencionar apenas os mais recentes personagens de uma trama que confirma o que Edson Simões chama de “erosão da República e da democracia em pleno século XXI”. De fato, impossível não concordar com ele, quando se contempla a lenta demolição das instituições, que vão das manifestações contra o poder político na década passada, às “contradições do Poder Judiciário”, como também explicitado ao final da primeira parte da obra. Aqui, caberia talvez retornar ao velho Rui Barbosa, crítico contumaz do militarismo da República – tendo ele enfrentado, em 1910, o sobrinho do primeiro marechal-presidente, Hermes da Fonseca, habitual em intervir nos conflitos estaduais –, que ele considerava como o principal perigo à democracia brasileira: de fato, os militares nunca deixaram de intervir nos assuntos políticos, em mais de 130 ano de República.

O amontoado heteróclito de problemas institucionais, constitucionais, econômicos e sociais recomendaria uma ampla reforma política, que reverteria a atual fragmentação partidária e limitaria a chantagem recíproca que se exercem os poderes executivo e legislativo, na disputa por nacos de um orçamento quase que totalmente comprometido com gastos obrigatórios. De fato, como se sabe, o orçamento brasileiro reserva muito pouco das receitas a investimentos produtivos, ou para a correção das imensas desigualdades distributivas, e no período recente vem sendo objeto de um verdadeiro estupro orçamentário, ao acomodar dois fundos ilegítimos – o partidário e o eleitoral, já que partidos são de direito privado – e uma pletora de “emendas orçamentárias” que simplesmente distorcem qualquer sentido de planejamento racional de despesas públicas, ao fragmentar bilhões de recursos em projetos paroquiais que nunca deveriam ser de responsabilidade federal. Mas é justamente essa reforma política que se revela praticamente impossível em face de um parlamentarismo de fato, não de direito, feito de superpoderes do estamento político, especialmente dedicado a disputar os despojos do Estado e pouco voltado para a correção dos inúmeros impasses quanto ao funcionamento das instituições. 

Às vésperas do bicentenário da formação de um Estado independente, em setembro de 2022, a construção da nação permanece inacabada, pois, assim como ela permaneceu refratária à abolição do tráfico e da escravidão no momento oportuno, ela se mostrou impérvia à implantação de um verdadeira sistema de educação de massas de qualidade, assim como, num passado não muito remoto, esqueceu-se da distribuição da propriedade e da integração dos antigos escravos e dos rurícolas marginais aos benefícios da alfabetização e dos cuidados elementares de saneamento básico, e até hoje permanece indiferente ao grau elevado de violência urbana, que atinge sobretudo as populações pobres das favelas. O Brasil do bicentenário de sua independência nos aflige, profundamente, e a maior parte das razões estão muito bem descritas, esmiuçadas, explicadas e criticadas nesta obra monumental. 

A feliz coincidência de que esta obra multivolumes esteja sendo publicada às vésperas do bicentenário oferece, precisamente, um guia, um manual seguro, um diretório dos nossos impasses democráticos e constitucionais, um manancial de informações e de argumentos que podem nos ajudar a identificar os problemas e traçar um roteiro de sugestões para sua correção ao início do terceiro centenário de nossa vida independente, como Estado soberano. O diagnóstico, não apenas constitucional, mas sobretudo compreensivo, no sentido weberiano da expressão, para que possamos congregar esforços na busca de caminhos democráticos, consensuais, para superar os atuais impasses da nacionalidade. Apenas com uma compreensão sofisticada dos problemas que se colocam à “brasilidade” será possível formular as prescrições adequadas para a adoção das medidas corretivas que devem ser aprovadas pela representação política.

O diagnóstico já foi feito por Edson Simões, a crítica dos erros passados também, os modelos oferecidos pelas democracias de mercado exitosas comparecem nesta sua obra que pode ser considerada uma síntese perfeita de uma trajetória intelectual das mais completas. Tive enorme prazer em percorrer suas densas páginas, o que me fez relembrar de quando, jovens adolescentes em São Paulo, trocávamos sugestões e exemplares de livros para enriquecer nossa formação inicial: entre esses autores estava Stefan Zweig, que havia projetado um futuro luminoso para o Brasil, em 1941, uma esperança até aqui frustrada em várias de suas dimensões. Aos 80 anos do suicídio do escritor, em pleno Carnaval de 1942, em Petrópolis, cabe esperar que o “país do futuro” almejado pelo grande intelectual austríaco, possa realizar-se no curso das próximas décadas, como nossos filhos e netos têm todo o direito de almejar. Com esta afetiva rememoração, encerro meus cumprimentos ao Edson Simões, seguro de que ele ofereceu o melhor de si nestes magníficos volumes.

 

Paulo Roberto de Almeida

Fevereiro de 2022


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