Meu primeiro trabalho publicado de 2023:
1489. “O esmagamento da direita civilizada e a ascensão desinibida da extrema direita”, revista Insight Inteligência (ano. xxv, n. 99, janeiro de2023, p. 34-48; ISSN: 1517-6940; disponível no link: https://inteligencia.insightnet.com.br/o-esmagamento-da-direita-civilizada-e-a-ascensao-desinibida-da-extrema-direita/). Relação de Originais n. 4265.
O esmagamento da direita civilizada e a ascensão desinibida da extrema-direita
Paulo Roberto de Almeida, Diplomata e escritor
A ditadura militar durou quase 21 anos completos, de abril de 1964 a março de 1985. Na literatura brasileira a seu respeito, ela é geralmente considerada como sendo de direita, ou mesmo de extrema-direita. Sim, ela continha sua cota de fascistas, direitistas extremados e até alguns sobreviventes reais e virtuais das ditaduras do entre guerras. Muitos brasilianistas, no entanto, acreditam que se tratou de um regime autoritário modernizador, tecnocrático, nacionalista e oficialmente anticomunista, ainda que parte dos militares não partilhava do entusiasmo e da admiração de muitos dos seus colegas pela grande potência americana.
O fato é que muitos comunistas estavam integrados aos seus aparelhos do Estado, em funções políticas, culturais, inclusive nas de planejamento econômico. O que os militares e seus tecnocratas fizeram, em termos de intervenção na economia e de promoção do crescimento, pode ser equiparado a uma espécie de “stalinismo industrial”, isto é, a industrialização em um só país, dada a sua pretensão, basicamente nacionalista e introvertida, de consolidar um grande mercado interno, a despeito da orientação exportadora e da boa recepção ao investimento estrangeiro.
Ao final do regime, um terço da economia brasileira se encontrava, de uma forma ou de outra, sob o comando ou sob a influência do Estado, direta ou indiretamente, com centenas de empresas estatais dominando o volume de investimentos produtivos; praticamente 95% da oferta interna era inteiramente “made in Brasil”, e o coeficiente de abertura externa era um dos mais baixos na média mundial das economias de mercado. Esse foi o regime militar “de direita”, que, a despeito da doutrina oficial, mantinha diversas divergências com o principal líder do bloco mundial anticomunista, e não apenas no plano da política externa, dado o alegado terceiro-mundismo da sua diplomacia.
No plano interno, a alegada influência de “esquerdistas” no quarto mandato dos generais desse regime “de direita” motivou, em 1977, uma tentativa de golpe de Estado dentro do golpe militar: a do general Sylvio Frota, ministro do Exército, contra o seu chefe, o presidente “prussiano” Ernesto Geisel.
Vinte e um anos após o final do regime militar, ou seja, em 2006, a hegemonia da esquerda parecia completa, com a reeleição praticamente tranquila do seu principal líder, o presidente do país e presidente de honra do Partido dos Trabalhadores. Os companheiros, que partilhavam com os militares a orientação intervencionista e introvertida na economia, se instalaram em praticamente todos os “aparelhos do Estado”, e assim ficaram pelos dez anos seguintes, a despeito de turbulências já no início do quarto mandato do partido, com manifestações de rua a propósito da imensa corrupção revelada pela Operação Lava Jato, também açuladas pela maior recessão da história econômica nacional, com desemprego nas alturas e um déficit excepcional no orçamento público.
Um impeachment foi aprovado, não exatamente pelos crimes orçamentários e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal praticados pela mandatária, e mais pelos seus desentendimentos com o corpo congressual, o que motivou um imenso clamor da esquerda, inclusive em nível internacional, a propósito do “golpe” da “direita” praticado contra o regime do PT.
O termo “regime” não é despropositado nesse contexto, pois que os três mandatos e meio do partido, entre 2003 e meados de 2016, estiveram efetivamente sob a hegemonia do PT, ainda que este tenha recorrido aos aliados eventuais na direita para garantir a sua base congressual. Tal se deu em meio à promiscuidade que seus principais líderes mantinham com políticos supostamente de direita – o famoso Centrão, um amálgama parlamentar de contornos indefinidos –, como forma de preservar em bases relativamente equilibradas a chantagem recíproca que sempre exerceram um contra o outro o Executivo e o Legislativo.
O Judiciário intervinha pouco na política, nesses tempos de hegemonia da esquerda, ainda que tenha facilitado a fragmentação extrema do sistema político-partidário e induzido o Congresso a aumentar exageradamente a extração predatória dos recursos públicos ao restringir o financiamento privado de campanhas eleitorais. A resposta dos políticos foi a criação do Fundo Eleitoral, ao lado do já lamentável Fundo Partidário, o principal instrumento de criação de partidos de aluguel, uma pletora de legendas sem qualquer base social ou eleitoral, sobrevivendo apenas graças ao cartorialismo da legislação.
Vinte anos depois da ascensão ao poder das forças de esquerda e seis anos após sua derrocada pelo “golpe parlamentar” do impeachment, a hegemonia política parece ter retornado a estas últimas, pelo menos no plano presidencial. Mas, as eleições para o corpo congressual parecem ter assegurado um predomínio da direita e mesmo da extrema-direita. Esta é a suposição contida no subtítulo deste ensaio, sugerida pelo editor desta revista, ainda que seu autor não partilhe inteiramente dos fundamentos de tal argumento, o que é revelado pelo seu título, alusivo a um famoso mito sobre a abertura de uma caixa misteriosa contendo todo tipo de boas e, sobretudo, más surpresas.
Dentre os motivos dessa discordância podem ser citadas evidências quanto à diversidade das direitas no Brasil – a exemplo das esquerdas –, assim como a necessidade de se distinguir, numa análise de corte histórico-analítico, elementos estruturais e históricos respondendo pelo conservadorismo quase genético da política brasileira de elementos conjunturais e episódicos. Esses elementos podem explicar inclinações tímidas à social-democracia e à esquerda em determinadas fases da vida nacional. Caberia considerar, igualmente, a influência de fatores externos sobre a evolução recente da política nacional, notadamente por meio de impulsos conservadores, e até reacionários, vindos de alas nacionalistas e populistas presentes em diversos países, em especial nos Estados Unidos, de onde surgiu a proposta de uma Internacional Conservadora, com representantes designados no Brasil, justamente no próprio núcleo familiar do poder.
O relativo sucesso dessa corrente, mais superficial do que real, foi reforçado pelo surpreendente grau de adesão popular logrado por um político medíocre, sem qualquer capacidade de liderança efetiva sobre as principais forças políticas da nação; ele foi alçado ao pináculo do poder por uma conjunção específica de fatores, não necessariamente de base estrutural ou sistêmica, mas respondendo, provavelmente, à hegemonia anterior das esquerdas e ao seu impacto sobre as forças profundas da sociedade brasileira.
Tal conjunção envolveu protagonistas militares e lideranças religiosas e civis (empresariais e políticas) e uma inédita aceitação pelas camadas médias do eleitorado de consignas ideológicas anteriormente marginais no espectro político nacional, talvez em reação aos exageros retóricos e materiais praticados nos três lustros de discursos e práticas esquerdistas no plano da política nacional.
A história do Brasil, no Império e na República, revela uma dominação quase eterna da política nacional por forças de direita, com alguns poucos sobressaltos progressistas, mas bastante espaçados. Nesse sentido, não seria inédita essa nova concentração de votos em candidatos conservadores, numa das eleições mais polarizadas em todo o itinerário da República.
Parece duvidoso, porém, que o essencial da representação parlamentar e executiva (no caso dos governadores) eleita em outubro de 2022 seja identificada com uma extrema-direita estruturada e organizada organicamente, ainda que muitos se dediquem a divulgar esse mito. O presente ensaio pretende desmentir esse argumento, com base num retrospecto da história política nacional, e num exame circunspecto da conjuntura atual.
O mito e o “Mito”
Caixa de Pandora é um mito grego, entre dezenas de outros, que pretende sinalizar a ocorrência de desgraças naturais ou de desastres derivados dos comportamentos humanos. De forma inesperada, uma novidade misteriosa, inopinadamente liberta do receptáculo original, espalha todas as desgraças que podem acometer a humanidade: doenças, guerras, mentiras, ódio etc. Também havia uma única bondade, a esperança, que acabou ficando encerrada na caixa quando Pandora tentou conter os malefícios que acabara de liberar.
Independentemente da distância no tempo e do conteúdo substantivo daquela caixa misteriosa, poderia esse mito, ou algum equivalente funcional contemporâneo, conter alguma explicação – não mítica, mas real – para explicar aquilo que aconteceu no cenário político brasileiro desde meados da década passada, quando não poucas desgraças se abateram sobre o país e seus habitantes?
Com efeito, um acúmulo de fatos, eventos e processos marcaram a partida, menos de dez anos atrás, a uma sucessão de novos desenvolvimentos na economia e na política do Brasil: a revelação da imensa corrupção conduzida durante mais de uma década pelo partido no poder; a irrupção da maior recessão econômica da história do Brasil; a revolta da classe média contra os políticos em geral, e contra o PT em particular; a ascensão de novos movimentos explicitamente de direita no cenário político; e, finalmente, a eleição do primeiro governo explicitamente de extrema-direita, fato inédito na República, ainda que ela tenha sido dominada por diversos tipos de coalizões conservadoras durante todo o século XX.
Historicamente, a direita, ou a família algo heteróclita do que pode ser chamado de centro conservador, se manteve razoavelmente segura no Brasil dos coronéis, dos industriais arrivistas, dos banqueiros safos e dos políticos profissionais, e só foi parcialmente destronada pela chegada ao poder de um sindicalista passavelmente de esquerda, ao início deste século. Foram três mandatos e meio de governos progressistas que não evitaram, contudo, a tentação da corrupção e uma deriva destruidora na economia, mais por incompetência dos gestores petistas do que por uma suposta crise econômica internacional.
A reação foi uma silenciosa, depois aberta, resistência, convertida em revolta contra os que tinham orgulho de se chamar de esquerda. A direita, mas não só ela, saiu às ruas, e o resultado – operado parcialmente em conjunção com militares – foi o surgimento de um novo Mito. O que a Caixa de Pandora aberta na década passada desvendou, em 2018, foi a ascensão de uma nova extrema-direita e o relativo desaparecimento da velha direita “normal”, que tinha controlado a política brasileira durante décadas e décadas, pelos meios mais diversos (ditaduras, populismos, democracias de baixa qualidade, presidencialismo de coalizão etc.). Mas, será que essa é toda a história? O outubro congressual de 2022 define o nosso futuro?
A questão básica do momento, passado o segundo turno das eleições – mas já tendo ocorrido a composição de um Congresso bem mais conservador, de direita ou mesmo de extrema-direita no Brasil, nunca antes observado no cenário político –, seria tentar explicar esse fenômeno relativamente inédito na história do país: a quais classes de fenômenos se poderia atribuir o esmagamento da direita tradicional e a ascensão de uma extrema-direita no país?
Antes, contudo, de se tentar responder à pergunta imediatamente anterior, caberia uma nota de caução, interrogativa: seja a partir das manifestações antipetistas de 2016-2018, seja nas eleições presidenciais daquele último ano, seja agora, nas eleições congressuais de 2022, estaríamos verdadeiramente em face de um esmagamento da velha direita conservadora? O Brasil se encontra, de fato, no limiar da preeminência de uma direita extrema?
Alguns ajustes conceituais preliminares
Ao adentrar nesse mistério mítico-político que me foi proposto pelo editor desta revista – o de saber se ocorreu, efetivamente, um “esmagamento da direita tradicional e a ascensão da extrema-direita” –, caberia efetuar previamente algumas considerações de natureza conceitual que podem ser relevantes para entender a natureza específica desses termos de esquerda, direita, extrema-direita, conservadorismo, quando aplicados à realidade brasileira.
Ou, antes, caberia começar por dissociar tais conceitos, ou termos designativos, de sua etimologia política tradicional – os quais partem da revolução francesa, mas que também se encontram no momento da formação dos partidos liberal e conservador da experiência parlamentar britânica – para verificar o que, de fato, ocorreu, ou tem ocorrido, no espectro político brasileiro, no qual ser chamado de “liberal”, ou de “progressista”, pode não guardar a mínima relação com o sentido etimológico original desses conceitos, podendo mesmo derivar para o exato oposto do nome de fachada.
Direita e esquerda constituem, hoje, termos suficientemente vagos para denotar características concretas de determinados partidos: os ecologistas, por exemplo, estariam em qual lado do espectro, real, a despeito de tudo, que vai de um extremo a outro do leque político? Geralmente se situam à esquerda, embora isso talvez não seja o determinante nos seus programas e propostas de política. Em todo caso, vale retomar o fio da história do surgimento dos partidos políticos contemporâneos, na maior parte das democracias atuais, para identificar algumas das designações mais frequentes na terminologia dos últimos dois séculos e meio.
Admitindo-se que, na Ásia e na África, a formação étnico-cultural e o tipo de desenvolvimento socioeconômico nesse longo período obedecem a critérios marcadamente diferentes do itinerário das formações políticas euro-americanas – na qual o Brasil e os demais países hemisféricos se encontram inseridos –, o critério básico para identificar o perfil ideológico-político dos partidos tem de partir de sua matriz europeia. Como indica um estudioso do fenômeno, em recente manual sobre a interação entre os partidos políticos e a democracia, a autopercepção político-ideológica ainda é a característica mais relevante para que os partidos definam sua identidade, em contraste e distinção com outros partidos:
“Na base desse perfilamento estão as correntes ideológicas da Europa do século XIX, que inspiraram o surgimento de partidos comunistas, socialistas e social-democratas, democrata-cristãos, liberais e conservadores”.[1]
Com as possíveis nuances entre os matizes nacionais dessas designações, na própria Europa, pode-se dizer que as três primeiras bandeiras se perfilam à esquerda do espectro político e as três últimas estariam mais bem acomodados à direita do leque. A América Latina seguiu, grosso modo, esse modelo europeu nos seus sistemas partidários, inclusive por força da forte imigração europeia desde o século XIX e pela intensidade dos laços culturais e humanos entre os dois lados do Atlântico. As famílias podem até ser assemelhadas, mas os respectivos rebentos adquiriram colorações variadas e adaptações surpreendentes, sobretudo à direita, nas conformações específicas latino-americanas. Como disse o mesmo especialista, a propósito dessas correntes ideológicas latino-americanas, “não são poucos os partidos que expressam no nome certa reverência por uma ideologia, sem realmente representá-la” (p. 57).
E quais seriam as ideologias mais frequentes no amplo espectro político-partidário que parte da Revolução Francesa e que se estende – com as devidas peculiaridades nacionais nos casos dos Estados Unidos e nos de grande parte dos países da Ásia Pacífico e da África – à quase totalidade dos regimes formalmente democráticos ou autoritários do último século? Numa linha sequencial, partindo do liberalismo escocês e inglês, depois continental, passando pela reação conservadora quase que imediata, os partidos foram se desenvolvendo ao longo do século XIX nas linhas ideológicas já identificadas acima, com as variantes que emergiram ao final do século, e no curso do século XX, podendo ser identificados pelas ideologias seguintes: liberalismo, conservadorismo, socialismo, anarquismo, comunismo, nacionalismo, fascismo, feminismo, ambientalismo, multiculturalismo etc.[2]
Um traço que perpassa quase todas essas correntes e movimentos é o populismo, dotado de uma capacidade de persistência notável, a despeito da aparente melhoria dos padrões educacionais em grande parte da humanidade, como a confirmar que as formações sociais são frágeis constructos políticos permanentemente sujeitas aos acasos das paixões e dos interesses.
Tais tendências conheceram manifestações mais ou menos similares na maior parte dos países, segundo a disseminação progressiva dessas ideologias em diferentes partes do mundo, assumindo em cada caso nacional feições peculiares segundo as forças políticas predominantes nos países. No Brasil não foi diferente, embora algumas rupturas institucionais tenham interrompido uma evolução que seria talvez conducente a padrões mais ou menos similares aos europeus, com alguma incidência mais pronunciada do populismo. Como se posicionou o cidadão brasileiro no supermercado dos modelos político-partidários?
Política no Brasil: um percurso sui generis no grande mercado dos arranjos partidários
No mesmo supermercado dos modelos político-partidários existem, na prateleira dos livros acadêmicos, muitos bons livros analíticos e descritivos sobre nossas especificidades ideológicas. No império, tínhamos dois grandes partidos, o Liberal e o Conservador, o primeiro mais escravagista do que o segundo, este mais propenso a introduzir reformas do que o primeiro, segundo uma das opiniões mais abalizadas nessa área, a de João Camilo de Oliveira Torres,[3] um liberal que se tornou conservador ao examinar detidamente a política imperial.
Na segunda metade do reinado de Pedro II, a criação de um Partido Republicano não atraiu muitos dos súditos do segundo imperador, mas conseguiu mobilizar alguns espíritos federalistas e, sobretudo, militares e acadêmicos que sonhavam com o Brasil reproduzindo o itinerário da grande república da América do Norte: “Somos da América e queremos ser americanos”, proclamava o manifesto de lançamento do partido em 1870.
O advento da República por meio de um golpe militar pouco fez para aproximar os partidos da cidadania, que, de resto, assistiu a tudo “bestializada”.[4] Como no Império, o número de eleitores permaneceu diminuto, inexpressivo mesmo, no confronto com o crescimento da população, sobretudo a partir da expansão da imigração de colonos e trabalhadores europeus, levantinos e asiáticos.
Mesmo que o sufrágio universal (para homens, apenas) tenha sido introduzido em 1891, o número de eleitores dos presidentes não chegava a 5% da população, inclusive porque os analfabetos permaneceram excluídos durante a maior parte do século XX (as mulheres só ganharam o direito de voto em 1933). Ao sairmos do Estado Novo, em 1945, o eleitorado brasileiro correspondia a apenas 13,4% da população.[5]
Por outro lado, a indiferença dos cidadãos com respeito aos partidos se manteve tal e qual na República, inclusive em relação à própria mudança de regime. Machado de Assis, aliás, já tinha ironizado em sua famosa crônica sobre a padaria do Custódio: o proprietário tinha encomendado uma vistosa placa com os dizeres “Confeitaria do Império”, mas, ao ouvir falar da mudança de regime, resolveu parar no “d” e esperar confirmação. Na dúvida, mandou confeccionar uma outra plaquinha, “Confeitaria da República”, até se decidir por uma outra absolutamente neutra: “Confeitaria do Governo”.[6]
Se, no Império, os partidos Liberal e Conservador pouco se distinguiam entre si;[7] na República, o desdém pelas agremiações regionais do Partido Republicano, de fato fragmentado entre as antigas províncias transformadas em estados pela Constituição de 1891, permaneceu tal qual. A nova “república dos governadores”, iniciada por Campos Salles, valia mais pelas práticas oligárquicas dos coronéis, imortalizados mais tarde por Vitor Nunes Leal,[8] do que por quaisquer princípios ideológicos ou propostas programáticas. Tudo isso terminou na Revolução de 1930 e, depois de um festival de partidos e ideologias no processo constituinte de 1933-34, tudo se fechou novamente em 1937, para retornar, na República de 1946, a um sistema de partidos mais compatível com a democratização do Pós-guerra.
Desde a criação da Justiça Eleitoral, em 1932, até o início do século XXI – com a “breve” interrupção do AI-2, em 1965, até 1979 –, o Brasil conheceu diferentes sistemas de partidos, alguns verdadeiramente ideológicos – geralmente à esquerda –, mas a maioria deles era relativamente indiferente à coerência doutrinária ou a grandes princípios programáticos. Até o advento do Partido dos Trabalhadores ao poder, em 2002, a política brasileira foi persistentemente dominada por líderes populistas e por caciques regionais passavelmente identificados com a direita conservadora, no máximo de centro-esquerda, como no caso do velho Partido Trabalhista, criado por Getúlio Vargas, mas que precisava se unir ao PSD – “social-democrata”, de fato conservador até a medula –, para vencer os liberais da UDN.
Até 1938, o Brasil contou com um partido de coloração fascista-nacionalista, o Partido Integralista de Plínio Salgado, e no início daquela década, o então integralista San Tiago Dantas chegou a redigir os estatutos de um “Partido Nacional Fascista” do Brasil, como relata seu principal biógrafo.[9] Na direita pós-ditadura, o partido do regime militar, a Aliança de Renovação Nacional (Arena), converteu-se no PDS, ironicamente Partido Democrático Social, um acrônimo invertido ao do antigo PSD, da República de 1946.
No centro, a agremiação de oposição consentida ao regime, continuou mantendo o seu nome, Movimento Democrático Brasileiro, convertido depois em partido, sob a sigla PMDB. Como velhos e novos caciques passaram a dominá-lo, setores progressistas se afastaram para criar, durante o processo constituinte, o PSDB, Partido da Social-Democracia Brasileira, que encarnou os ideais da social-democracia europeia durante praticamente toda a Nova República, até fenecer de forma melancólica sob o bolsonarismo. Mas o PSDB era uma aglomeração com excesso de acadêmicos e certa penúria de base social, carência que o fez estrebuchar depois da brilhante conquista da estabilização macroeconômica do Plano Real, entre 1994 e 1999.
Fernando Henrique Cardoso teve um bom desempenho na Presidência, mas seu pecado capital foi ter feito aprovar uma mudança constitucional em favor da reeleição de cargos executivos, o que deformou irremediavelmente campanhas presidenciais e locais. FHC teria apreciado concluir uma aliança com a esquerda moderada – o que incluía o PT – para conduzir um governo reformista de centro-esquerda, mas o sectarismo do PT e das demais agremiações de esquerda o obrigou a se limitar a uma coalizão de centro-direita, com vários partidos conservadores, os do chamado Centrão (surgido do processo de elaboração constitucional de 1987-88), ademais dos caciques fisiológicos do PMDB.
Do lado da esquerda, o Partido Comunista do Brasil – depois chamado de Brasileiro, a partir de 1962 – só foi legal em um breve período ao início da República de 1946, para ser novamente declarado ilegal em 1947, até sua aceitação na Nova República, em 1985. O Partido Socialista Brasileiro, criado a partir de uma dissidência trotsquistas da UDN em 1947, sobreviveu até ser extinto, com todos os demais partidos, pelo AI-2, sendo reconstituído em 1985. A vertente “maoísta-stalinista” do velho PCdoB desligou-se do tronco oportunista do Partidão em 1962, e manteve-se na clandestinidade até a inauguração da Nova República, apresentando-se, ainda hoje, como o herdeiro fiel do velho marxismo-leninismo.
O PT surgiu em 1980, a partir da nova lei eleitoral de dezembro de 1979, tornando-se, em poucos anos, o partido majoritário na esquerda. O antigo trabalhismo, suprimido durante a ditadura militar como todos os demais partidos, ressurgiu no renascimento da liberdade partidária, mas em uma forma dual. A sigla PTB acabou entregue à suposta herdeira do ditador do Estado Novo, Ivete Vargas, ao passo que o trabalhismo histórico foi reconstruído por um dos seus antigos líderes, o gaúcho Leonel Brizola, sob o signo do PDT, Partido Democrático Trabalhista (que acabou aderindo à II Internacional, talvez por equívoco das duas partes). Finalmente, ainda na esquerda, no seu X Congresso, o PCB converteu-se no PPS, Partido Popular Socialista, sob a liderança de Roberto Freire; teve várias encarnações depois disso, o Cidadania sendo a mais recente.
O fato é que poucos partidos, com exceção dos de esquerda, apresentavam uma coloração ideológica determinada, a despeito de alguns se proclamarem “liberais sociais” ou diretamente “liberais”, sem realmente o serem, no espírito ou na letra. Os mecanismos do poder político, econômico e social continuaram a ser dominados pelo centro conservador até o advento do lulopetismo em 2002, após uma lenta ascensão nas duas décadas precedentes.
A parábola do PT, ou seja, sua ascensão e “queda”, durou aproximadamente uma década e meia, na verdade mais com respeito a Lula do que propriamente em relação ao partido, até soçobrar nos escândalos de corrupção e da grande recessão de 2015-2016. Estava aberto o caminho para a ascensão da direita reacionária, mas que não pode ser confundida com uma extrema-direita de corte clássico, por lhe faltarem atributos para tal.
Muitos dos protestos e das denúncias da esquerda acadêmica em torno do “fascismo” e da “extrema-direita” são devidos mais à preguiça conceitual desses arautos politicamente corretos do que a uma análise ponderada das entranhas desse “fenômeno” regressista, confundido com um “movimento” na plena expressão da palavra.
A tragédia da democracia brasileira: o descrédito dos partidos políticos
Pelo pot-pourri de partidões e partidecos que figuraram no cenário político desde o início do século – muitos deles meras legendas de aluguel surgidos na esteira de um quadro legal muito permissivo, levando à excessiva fragmentação do sistema partidário –, percebe-se que coerência ideológica e comprometimento com plataformas programáticas jamais foram o forte no arquipélago de agremiações que flutuavam ao sabor das campanhas eleitorais. Todas sempre se aproveitando das benesses criadas no próprio Parlamento para converter a classe política em um verdadeiro estamento privilegiado pelos benefícios autoatribuídos: subsídios extremamente generosos para os representantes eleitos (na capital e nas bases locais), Fundo Partidário (mais adiante complementado por um guloso Fundo Eleitoral) e coligações feitas por puro oportunismo estadual (sem qualquer conexão com os programas oficiais).
Em diversos casos, bancadas informais – das quais a ruralista e a dos evangélicos passaram a ser as mais importantes, entre outras – eram mais relevantes nas coligações votantes do que a própria orientação da liderança oficial de cada partido, em especial do centro para a direita.
Em todo caso, não havia, até o impeachment da sucessora de Lula, em meio ao quarto mandato presidencial do partido, em 2016, qualquer preocupação com o surgimento e o fortalecimento de uma extrema-direita dotada de reais condições para a conquista do poder. Mas o cenário já tinha começado a mudar desde as manifestações de 2013 contra o aumento de alguns centavos de transporte público em algumas capitais.
Paradoxalmente, os protestos tinham começado por movimentos esquerdistas, e até petistas, contra seus adversários que dominavam algumas dessas capitais, notadamente Porto Alegre e São Paulo. O que era, até então, uma tentativa de desestabilizar governos ditos “neoliberais” nessas localidades e em outras, atiçou os instintos supostamente éticos de uma classe média enfastiada com o grande descalabro do “partido da ética”, antes mesmo que a irrupção da Lava Jato lançasse por terra a hipocrisia moral e o compromisso social de fachada do partido hegemônico da esquerda.
Entre as eleições de 2014 e o impeachment de 2016, movimentos direitistas se fizeram cada vez mais fortes nas ruas e nas redes sociais – o novo personagem do pedaço –, abrindo o terreno para um verdadeiro terremoto político, contra os partidos, em 2018. O processo foi em grande medida subterrâneo, mas de toda forma perceptível no plano dos novos canais de expressão abertos pelas ágeis ferramentas de propaganda – e de mistificação – política, que já tinham sido mobilizadas quando da campanha presidencial de Donald Trump, nos Estados Unidos, no mesmo ano do “golpe” do impeachment no Brasil.
O aspecto mais relevante dessa conjuntura histórica de transformação na política brasileira foi o fato desse processo ter se desenvolvido à margem dos partidos, e até contra os partidos. Foi uma demonstração de que aquele caldeirão de siglas – e elas eram ainda muito numerosas, antes que as cláusulas de barreira começassem a fazer efeito mais recentemente – não significava absolutamente nada para uma grande maioria de cidadãos eleitores tornados decididamente raivosos contra o estamento político, todo ele comprometido com todo tipo de falcatrua e de corrupção generalizada nos três níveis da federação.
Tratou-se, com a devida cautela para a palavra, de uma corrente “cívica” que perpassou diversas camadas sociais e categorias profissionais, congregou grupos e indivíduos antes dispersos na sociedade, momentaneamente reunidos sob os mesmos slogans e diretivas, por meio de todas as ferramentas de comunicação social, extraordinariamente disseminadas em diferentes meios sociais nos últimos anos (e até utilizadas de forma desonesta, manipulando sentimentos e expectativas em diferentes estratos da sociedade).
Ao dizer que tal fenômeno – não movimento – não se deu por meio e através dos partidos, não deriva, dessa realidade, que ele pudesse se desenvolver inteiramente à margem dos partidos existentes, inclusive porque a legislação eleitoral brasileira não permite registros e participação eleitoral de candidatos independentes. Para todos os efeitos, o funcionamento das democracias contemporâneas não pode prescindir da existência de sólidos partidos políticos; sem o que elas podem descambar para a ausência de um mínimo consenso sobre as regras do jogo – como dizia Norberto Bobbio – e abrir espaço para aventureiros políticos e para os piores tipos de populismo, um mal que pode afetar todos os sistemas políticos, avançados ou em desenvolvimento.
Esse tipo de deriva, como observado em todas as épocas, atinge diferentes países em diversas regiões do mundo, independentemente do substrato ideológico ao qual o populismo possa estar vinculado.
O populismo, aliás, não é uma ideologia política, e, sim, uma ferramenta para alcançar o poder, nas mãos de inescrupulosos líderes políticos. Ele está geralmente associado a correntes nacionalistas, de esquerda ou de direita, mas seus efeitos são inerentemente desestabilizadores para o funcionamento normal das instituições.
Por mais que os regimes formalmente democráticos tenham avançado, quantitativa e qualitativamente, nas últimas décadas, ao redor do mundo, tal configuração não impede o aparecimento e relativo sucesso de personagens populistas nos mais diversos países, inclusive naquelas democracias de mercado consideradas estáveis e funcionais.
Na Europa, na América do Norte e, a mais forte razão, no chamado Terceiro Mundo, o fenômeno populista tem se disseminado sob diferentes formas e colorações políticas. No Brasil, o fenômeno é recorrente, tanto à direita, quanto à esquerda, e a literatura a esse respeito é relativamente abundante, geralmente de boa qualidade quanto aos principais autores na sociologia política, mas que por vezes derivam para alguma liberalidade no uso do conceito e na identificação das figuras que preencheriam os requisitos da “função”.
Não é muito difícil ser populista, desde que se possua dotes mínimos de retórica para explorar as frustrações e ressentimentos de estratos confrontados às durezas da vida econômica, ou para algum sentido de resgates, geralmente falso, num quadro social de tradicional e persistente de pobreza e ignorância. Choques externos e indiferença das elites também servem aos mesmos propósitos de encontrar bodes expiatórios para os males do presente, apresentando velhas simplificações dos inimigos internacionais ou a divisão entre “nós e eles” como as fontes de todos os males que afligem os deserdados do momento.
Na Europa, a forte pressão dos refugiados econômicos e das guerras civis e as ameaças das alteridades culturais e religiosas tem desempenhado essa função de abertura de novos mercados para vários tipos de populismos oportunistas, assim como dificuldades similares nos Estados Unidos, com o acolhimento de vagas ininterruptas dos mesmos deserdados da fortuna, do próprio hemisfério ou de outros continentes, exercem o papel de estimuladores de reações defensivas por parte de representantes da “velha política”.
No Brasil o impulso ao populismo não é muito diferente, embora os fatores não sejam os mesmos: a sensação dos mais pobres é a de frustração com a persistente falta de oportunidades e com a manutenção de carências sociais nunca contempladas, alimentando a rejeição da política e a busca de algum sentimento de solidariedade no mercado crescente do evangelismo.
Será que a velha direita, que parecia ter emergido em 2016, desapareceu em 2022?
Um dos grandes cientistas políticos e historiadores da política brasileira, Bolivar Lamounier, resume assim o crescimento da direita no Brasil desde o impeachment:
“A principal causa da ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018 foi, sem sombra de dúvida, sua capacidade de personificar o antipetismo que passou a grassar no Brasil após dois mandatos de Lula e seis anos e meio de Dilma Rousseff. Por intuição ou por possuir uma boa base de informações sobre a psicologia do antipetismo, fato é que ele granjeou quase 54 milhões de votos no segundo turno, contra 46 milhões dados ao petista Fernando Haddad. É lógico que o legado de Dilma também pesou muito. (…) No quadro social daquele momento, a promessa de liquidar a “velha política” entrincheirada no Congresso e em grande parte representada pelos anódinos partidos ditos “de centro”, Bolsonaro também soube atrair parcelas da opinião pública crescentemente hostis ao funcionalismo público…”[10]
O recado das urnas, portanto, foi claramente contra o petismo e contra a “velha política”. Menos de dois anos depois, a “velha política” dos partidos do Centrão estava de volta ao comando efetivo da governança, e quatro anos depois o petismo voltava ao poder, sempre sob o comando de seu líder mais emblemático. O representante do “baixo clero” foi expulso da Presidência, mas por relativamente poucos votos, ao passo que, no seu embalo de representante da antipolítica, muitos parlamentares foram eleitos em 2018 e novamente em 2022. Mas, seriam esses eleitos os representantes legítimos da direita e da nova extrema-direita, supostamente majoritárias na política nacional?
Para retornar, e tentar responder, à pergunta do subtítulo deste ensaio, caberia indagar mais uma vez: por que, a despeito de toda a mensagem bolsonarista contra a velha política, velhos e novos representantes da velha e da nova direita obtiveram pleno sucesso em 2018 e novamente, até com maior amplitude, em 2022?
Uma das respostas encontra-se na camisa de força regulatória do sistema eleitoral e na “gaiola de ferro” da dominação dos caciques partidários – alimentadas, ambas, pelo Fundo Partidário e, crescentemente, pelo Fundo Eleitoral, assim como pela chantagem exercida contra o orçamento público –, mas a outra resposta não pertence ao território da política, e sim ao terreno das emoções.
É certo que os bolsonaristas explícitos dessa “nova direita” conquistaram certo sucesso na narrativa sobre a corrupção petista e o descalabro econômico do seu último governo, ao passo que as oposições (não só de esquerda, mas também de centro e da direita moderada), permaneceram totalmente desorganizadas, só conseguindo reagir defensivamente, episodicamente ou caoticamente.
Como diriam velhos políticos, na política vale mais a versão do que os fatos, e a versão dos bolsonaristas, tremendamente ampliada pelas redes sociais, foi vencedora em quase todas as regiões do país, com a exceção do Nordeste. O mapa eleitoral do petismo – que já tinha perdido força nas zonas urbanas e industrializadas, para orientar-se aos chamados “grotões” da velha política – ficou cada vez mais concentrado nos distritos de menor desenvolvimento relativo (ainda que mantendo sua força naqueles de maior participação política de estratos mais bem organizados corporativamente).
Mesmo quando Bolsonaro contrariou totalmente o discurso de 2018, e até afrontou a suposta luta contra a corrupção, ele manteve, ou incorporou, um volume bastante significativo de apoios em setores organizados – no agronegócio, por exemplo – e também naqueles desorganizados da sociedade: muitos aposentados, micro e médios empresários, as “tias do Zap” e uma massa indistinta de “entusiastas” do Mito, saídos de muitos estratos sociais, inclusive dos mais bem informados.
É cedo ainda para se atribuir ao “fenômeno” bolsonarista, que é real, características próprias de um movimento, uma vez que ele não possui organicidade própria – que passa, inevitavelmente, por um partido –, tem uma capacidade de liderança muito duvidosa – dado o caráter caótico e controverso do personagem –, não se lhe conhece uma doutrina ou plataforma coerente – além daqueles slogans repetidos ad nauseam, similares aos do velho fascismo clássico –, nem qualquer racionalidade no estabelecimento de algum projeto para a nação, mesmo que seja um puramente destrutivo do passado, como parece ter sido o caso até aqui.
Pode-se, no entanto, reconhecê-lo como um fenômeno com “b” minúsculo, capaz de mobilizar os frustrados dispersos da sociedade brasileira, assim como Trump reuniu os frustrados do declínio industrial do país. Nos dois casos, os órfãos de sucessivas crises econômicas ainda são muitos, e não apenas em função da recessão provocada pela pandemia e pela desindustrialização relativa. Tais circunstâncias podem significar tanto a derrota quanto a sobrevivência de cada um desses projetos profundamente antidemocráticos, mas que pairam no horizonte das possibilidades eleitorais dos dois maiores países do hemisfério.
A ocorrência de eventual sucesso eleitoral em 2024 ou em 2026, não concede, porém, aos eventuais vencedores uma organicidade maior do que uma fugaz vitória nas urnas, nem seria capaz de alavancar um verdadeiro movimento regressista, en bonne et due forme, na ausência dos elementos próprios ao tipo ideal dos regimes de extrema-direita: 1) a liderança carismática, como de fato possuíam Mussolini, Hitler, Perón, Chávez, mas não Trump ou Bolsonaro; 2) o partido, guiado por uma doutrina explícita: i fasci, das Volk, Justicialismo, Bolivarianismo, o que falta tanto ao “trumpismo”, quanto, e menos ainda, ao “bolsonarismo”, basicamente animados por um nacionalismo vieux style; 3) uma dinâmica política capaz de sufocar as instituições em direção a um regime autocrático, como fizeram aqueles caudilhos, no seguimento de um amplo uso de mentiras e falcatruas de todos os tipos, o que, aliás, foi apenas parcialmente feito pelos dois ex-presidentes.
Observando-se, por outro lado, a cooptação dos supostos representantes da direita e da “extrema-direita” nesta fase de transição ao novo governo – o que inclui, não de todo surpreendente, a pletora de “seitas” evangélicas, antes dedicadas a espantar o “demônio” do “comunismo” –, pode-se confiar em que o poder dos recursos governamentais conseguirá afastar qualquer prurido ideológico nesses “direitistas” eleitos para o Parlamento. Os true believers, os verdadeiros crentes nas virtudes salvacionistas do fenômeno bolsonarista permanecerão dispersos nas franjas dos movimentos políticos organizados, pois que foram temporariamente reunidos num amálgama heteróclito que não possui argamassa suficiente para mantê-los unidos na nova fase política na qual adentra o Brasil em 2023.
Conclusão não conclusiva: existe uma nova extrema-direita na política brasileira?
Assim como a coalizão inédita que se formou em oposição ao bolsonarismo é bastante heterogênea para se manter unida nos quatro anos à frente, a massa disforme de bolsonaristas ocasionais vai se dissolver au fur et à mesure em que forem reveladas, nos próximos meses, as falcatruas da família próxima dos círculos milicianos. Além disso, a verdadeira “herança maldita” deixada pelo incompetente dirigente no terreno fiscal – terrivelmente agravada durante a campanha presidencial – vai pesar de maneira brutal não apenas sobre os novos dirigentes, mas também sobre diversos estratos sociais provisoriamente “comprados” pelas benesses distribuídas de maneira altamente irresponsável nos últimos meses do seu “reinado”.
Processos ainda em curso de investigação podem aumentar a ficha criminal potencial daqueles que tripudiaram sobre a saúde do povo, compraram a adesão de certas categorias com promessas ilusórias e tripudiaram contra novos e velhos políticos.
Em 2023, uma outra caixa de Pandora vai ser aberta por sua majestade Lula III, e uma torrente de novas e velhas desgraças se abaterá sobre o povo brasileiro, criando desafios inesperados para os representantes eleitos, de todas as tendências do espectro político. Em última instância, a política brasileira não será dominada nem por uma coalizão de centro-esquerda, nem por uma oposição de direita ou de extrema-direita, mas permanecerá como tem sido nos últimos 200 anos: um sistema basicamente oligárquico (o que inclui a “esquerda” também), que se apresenta sob a forma de um estamento político aparentemente inamovível, mas que agora tem pouco a ver com os velhos donos do poder do tipo do estamento burocrático estudado por Raymundo Faoro.
Permanecerão, isto sim, todos os velhos vícios da política brasileira, aliás, desde a era colonial: o patrimonialismo, o prebendalismo, o nepotismo, o fisiologismo e diversos outros “ismos”, que se casam perfeitamente bem com a tradicional corrupção do sistema político (aliás, magnificada num “modo industrial de produção da corrupção” gerido pelos companheiros, que agregou, e muito, ao “modo artesanal de produção de corrupção” da velha política).
Ao fim e ao cabo, nem a velha direita “normal” foi esmagada, nem uma extrema-direita dinâmica se constituiu na política brasileira: permaneceremos com as mesmas desgraças da nossa caixa de Pandora, ainda que a esperança possa ser eventualmente liberada pelo novo salvador da pátria. As condições estruturais da economia e as da ordem econômica global são, por certo, muito diferentes das que prevaleciam em 2003, inclusive, então, com uma política econômica basicamente equilibrada pelo Plano Real de 1994 e seus ajustes em 1999. O Brasil não é suficientemente “argentino” para acrescentar mitos em torno de um Mito, seja ele vindo ou renascido de qualquer lado da política.
Cem anos depois da semana de Arte Moderna de 1922, talvez seja útil repetir um vaticínio feito logo após o movimento pelo seu maior organizador, o próprio Mário Andrade. Frustrado com o pequeno impacto da “revolução modernista” sobre a sociedade da época, ele lançou esta estrofe num poema chamado “O poeta come amendoim”:
Progredir, progredimos um tiquinho / que o progresso também é uma fatalidade.
Cem anos depois, o Brasil ainda parece condenado a continuar se arrastando penosamente em direção a um futuro incerto.
O autor é professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional pralmeida@me.com
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Cf. Wilhelm Hofmeister, Os partidos políticos e a democracia: seu papel, desempenho e organização em uma perspectiva global. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2021, p. 55.
[2] Conceitos extraídos flexivelmente de Andrew Heywood, Political Ideologies: An Introduction. 7ª ed.; Londres: Red Globe Press, 2021, apud Hofmeister, Os Partidos Políticos e a Democracia, op. cit., p. 110-113.
[3] Ver João Camillo de Oliveira Torres: Os Construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968; Coleção Brasiliana, vol. 340.
[4] A expressão teria sido de Aristides Lobo: “O povo assistiu a tudo bestializado”. Essa indiferença, até mesmo da maior parte dos militares que assumiram o poder, está examinada no livro de José Murilo de Carvalho, Os Bestializados, o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
[5] Cf. Bolivar Lamounier, Da Independência a Lula e Bolsonaro: dois séculos de política brasileira, 2ª ed.; Rio de Janeiro: FGV, 2021, p. 78.
[6] Ver a saborosa crônica de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, “Machado de Assis e Confeitaria do Custódio mostram hipocrisia da política”, Embargos Culturais, Conjur, 6/12/2015, disponível: https://www.conjur.com.br/2015-dez-06/embargos-culturais-confeitaria-machado-assis-mostra-hipocrisia-politica; acesso: 8 nov. 2022.
[7] Sergio Buarque de Holanda, o grande historiador do Império, confirma a baixa estima dos partidos políticos, mesmo pelos poucos eleitores ativos; cf. Capítulos de História do Império, organização de Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 44. Oliveira Lima, de seu lado, sublinha as diferenças entres os dois partidos, sendo que a pauta dos liberais se distinguia da dos conservadores pela descentralização, a abolição do poder moderador, Senado eletivo e temporário, eleição dos presidentes das províncias pelas próprias províncias, “de modo a formarem uma verdadeira federação”; cf. O Império brasileiro (1822-1889). São Paulo: Faro Editorial, 2021, p. 61.
[8] Ver, do jurista e ministro do STF cassado pela ditadura militar Vitor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, diversas edições; publicação original em 1948.
[9] Cf. Pedro Dutra, San Tiago Dantas: a razão vencida, vol. I: O Ideólogo, 1911-1945. São Paulo: Singular, 2014, p. 205-206. Na República de 1946, San Tiago Dantas aderiu aos princípios programáticos do trabalhismo britânico, ainda que rejeitando o “marxismo fabiano” do velho Labour.
[10] Cf. Lamounier, Da Independência a Lula e Bolsonaro, op. cit., p. 193
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