OPINIÃO
Máfia, tráfico de obras de arte e a resposta da Polícia Federal
No último dia 16 de janeiro, depois de 30 anos de perseguição implacável, o capo di tutti i capi da Cosa Nostra Matteo Messina Denaro foi preso em Palermo, Sicília, pelos Carabinieri, a polícia italiana. Nascido em Castelvetrano, Sicília, em 1962, Matteo Messina Denaro é filho do padrinoFrancesco Don Ciccio Messina Denaro e sucedeu o mítico Salvatore TotòRiina na liderança do clã corleonese, após a prisão deste último em 1993. Matteo Messina Denaro chegou a ser um dos dez fugitivos mais procurados do mundo.
Além de uma longa lista de crimes, que inlcui extorsão, descarte ilegal de lixo, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, assassinatos, atentados terroristas e sequestros, Matteo Messina Denaro e sua família estavam particularmente envolvidos com crimes com obras de arte. Seu pai, Don Ciccio, já traficava obras de arte e legou ao filho não apenas a crueldade mas também uma certa paixão por bens culturais — tanto que obras de arte foram uma das pistas seguidas pelos policiais para chegar a Matteo Messina Denaro.
Don Ciccio ficou famoso por roubar, em Castelvetrano, em 1962, a estátua conhecida como o Efebo de Selinunte, um Adónis em bronze, de 400 aC, recuperada em Foligno em 1968, graças à atuação do agente secreto e crítico de arte Rodolfo Siviero. Segundo a Direzione Investigativa Antimafia da Itália, por trás desse crime estava Giovanni Franco Gianfranco Becchina, conterrâneo dos Messina Denaro e famoso traficante internacional de arte. De tão importante, Becchina, dono de cinco armazéns repletos de obras de arte no Freeport de Genebra, tem direito até a verbete na famosa base de dados Sherloc, do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime.
Um dos maiores crimes da história da arte, o roubo da gigantesca tela Natività, de Caravaggio, do Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, em 1969, jamais encontrada, também teria as digitais dos Messina Denaro.
O mafioso pentito Giovanni Brusca delatou que, no início dos anos 1990, o chefão Totò Riina o encaminhou a Matteo Messina Denaro quando ele quis obter algum importante achado arqueológico para oferecê-lo ao Estado italiano em troca de benefícios prisionais para seu pai. Matteo Messina Denaro também esteve envolvido no assalto à Galleria Estense, de Módena, em janeiro de 1992, quando bandidos levaram pinturas de Velázquez, Correggio e El Greco que seriam trocadas por benefícios carcerários para o boss Felice Maniero, preso oito anos antes. Nestes e em outros casos, a arte roubada foi utilizada em secretas negociações entre o Estado e a Máfia.
No final dos anos 90, Matteo Messina Denaro comandou o roubo do Sátiro Dançante de Mazara del Vallo, um precioso bronze grego atribuído a Praxiteles. A obra foi recuperada quando já estava prestes a ser comercializada a peso de ouro, através de canais suíços, a um colecionador estrangeiro.
Pizzinu, em dialeto siciliano, é o bilhetinho de papel que a máfia utiliza para comunicações entre os chefões. Em um famoso pizzinu apreendido pela polícia, Matteo Messina Denaro escreveu: "Con il traffico di opere ci manteniamo la famiglia". Com o tráfico de obras de arte se mantém a famiglia, seja ela a Cosa Nostra, a Camorra, a 'Ndrangheta, a Banda della Magliana ou a Sacra Corona Unita.
Artefatos de valor histórico e cultural, além de significar poder e prestígio para um capo e valiosa moeda de troca, são ainda especialmente susceptíveis a operações de lavagem de dinheiro, entre outros fatores, devido à alta subjetividade do valor desses itens, à tradicional confidencialidade das transações nesse mercado e ao baixo nível de controle estatal sobre os atores do segmento. O tema não é novo.
Ao longo das múltiplas fases da operação "lava jato", por exemplo, mais de 200 obras de arte de alto valor foram apreendidas pela Polícia Federal em residências e escritórios associados a figurões da política nacional, megaempresários e operadores financeiros. Obras de arte foram encontradas também pela Polícia Federal em casos envolvendo a falência do Banco Santos, o superfaturamento de obras na antiga Avenida Água Espraiada (hoje Jornalista Roberto Marinho) e a prisão do traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia.
Nesses e outros casos em que artefatos culturais são adquiridos por criminosos com dinheiro "sujo", ou mesmo quando as próprias obras são objeto de crimes, como o furto e o tráfico internacional, a legislação criminal brasileira autoriza sua apreensão e perdimento.
No entanto, dar concretude ao comando legal não é tarefa fácil. Para possibilitar a apreensão de pinturas, esculturas, antiguidades e outros itens, é preciso que os policiais estejam aptos a investigar operações espúrias, identificar obras valiosas, periciar e apontar corretamente seu preço de mercado e dar adequada destinação aos artefatos, ao fim da investigação.
Ciente da importância e da dificuldade dessas tarefas, a Polícia Federal inaugurou em agosto de 2021 o projeto Goia, acrônimo para Guarda, Observação, Investigação e Análise de Patrimônio Histórico, Bens Culturais e Obras de Arte — e, claro, homenagem a Francisco José de Goya y Lucientes, o estupendo pintor espanhol. O projeto tem como missão funcionar como facilitador em todas as etapas da investigação que envolverem peças, sítios e imóveis de patrimônio histórico e bens culturais, desde o planejamento da operação até a destinação dos bens.
O Goia tem orientado investigadores em relação à formalização de apreensões, transporte, nomeação de depositários, execução dos trabalhos periciais, cooperação internacional e repatriação de obras. O grupo já capacitou mais de cem policiais federais para trabalhar com a temática e visa ampliar ainda mais a difusão de conhecimento sobre a matéria na Polícia Federal.
Outro foco do grupo são acordos de cooperação com outras instituições, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e universidades, com a finalidade de ampliar a expertise da Polícia Federal, receber auxílio técnico e criar uma rede de instituições dispostas a custodiar provisoriamente os bens apreendidos.
Em janeiro de 2021, por exemplo, a Polícia Federal entregou ao Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, integrante da rede Goia, mais cem obras de artistas renomados, decorrentes de 11 mandados de busca e apreensão cumpridos na 79ª fase da operação "lava jato", denominada Vernissage. No acordo, o museu fica integralmente responsável pelos de armazenamento e conservação das peças.
Em seus planos para o futuro, o Goia trabalha para a criação de um grande banco de dados com informações de peças roubadas, desaparecidas e dados de análises técnicas, contando, para isso, com o apoio dos parceiros integrantes da própria rede, bem como da Interpol. O crime organizado, além de nos roubar a liberdade e a esperança, rouba também o nosso patrimônio cultural, e a criação do Goia é uma excelente resposta à luta contra esse tipo de criminalidade.
Marcílio Franca é procurador-chefe da força-tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba, professor de Direito da Arte da Universidade Federal da Paraíba, árbitro da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Genebra), da Corte de Arbitragem para a Arte e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, ex-professor visitante nas universidades de Turim, Pisa e Ghent, tendo sido, ainda, Calouste Gulbenkian Fellow no Instituto Universitário Europeu de Florença.
Marcelo Franca é delegado da Polícia Federal, aprovado em primeiro lugar no concurso mais recente, e autor do livro Aprovados - Delegado de Polícia Federal (Ed. Juspodivm).
Revista Consultor Jurídico, 19 de janeiro de 2023, 21h16
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