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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 18 de agosto de 2024

A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto - Adolpho Bergamini (Veja)

 A raposa, o porco-espinho e Delfim Netto

Delfim Netto foi capaz de uma proeza ímpar, combinar dois perfis distintos em uma só personalidade, era ao mesmo tempo raposa e porco-espinho

 

Por Adolpho Bergamini

 

Conta a história que Isaiah Berlin, professor de Oxford, ficou intrigado ao deparar com um verso do poeta grego antigo Arquíloco de Paros, que dizia apenas “a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe uma só, mas muito importante”. Não havia mais nada escrito. Ou Arquíloco parou aí, ou o resto de seu texto se perdeu. Mas Berlin mergulhou no tema e o abordou no livro Estudos sobre a Humanidade. Lá explica que porcos-espinhos relacionam tudo a um ponto de vista central, enquanto as raposas perseguem muitos objetivos, algumas vezes desconexos a princípio, mas sempre ligados a uma finalidade maior.

A teoria foi testada por Philip Tetlock, que reuniu pessoas “normais”, sem qualificações técnicas ou profissionais específicas ou pré-determinadas, para saber se haveria algum grupo ou população capaz de antever o que está por trás das incertezas do futuro. Suas conclusões estão em A arte e a ciência de antecipar o futuro e, segundo ele, o “perfil raposa” de pessoas teve mais acertos e algumas razões foram determinantes para isso. Em geral, elas se cercaram do maior número possível de informações e de variadas naturezas. Esse grupo tinha natural propensão a críticas, aceitando-as relativamente bem, e a princípio desconfiava dos temas colocados em debate. Já o “perfil porco-espinho” era formado por indivíduos capazes de formular complexas deduções, muito certos de suas conclusões e menos amigáveis a críticas. Demonstravam impaciência àqueles que não compreendiam suas razões e eram escravos de seus pressupostos.

Mas Antônio Delfim Netto, o influente economista, professor e político morto recentemente, foi capaz de uma proeza ímpar, a de ser raposa e porco-espinho. Como toda personalidade de projeção, angariou um sem número de admiradores e críticos. Há quem o ame, seja por ter sido o superministro do tempo da ditadura militar, mentor do chamado milagre brasileiro, ou por ter aconselhado informalmente os presidentes Temer e Bolsonaro, enquanto outros o odeiam justamente por essas razões. Há quem o respeite por ter sido próximo dos governos Lula e Dilma, mas também existem os desgostosos que viram com maus olhos essa aproximação. Não trarei reflexões de viés ideológico, apenas comentários aos seus pensamentos a respeito da tributação e do gasto público.

Em uma entrevista concedida ao site Consultor Jurídico em maio de 2008, Delfim Netto resumiu o seu pensamento a respeito do sistema tributário nacional. Disse que nossa Constituição Federal é o resultado do sonho de pessoas que não sabem aritmética, que estabeleceram demasiados direitos sem explicar de onde viriam as receitas para bancá-los. Disse, há mais de 15 anos, que não existe sistema tributário perfeito, sim o sistema conveniente, mas o nosso é inconveniente por ser complexo e regressivo. Foi enfático ao afirmar que não haverá redução de carga tributária enquanto não houver redução das despesas do governo, que gasta muito e mal, e que devolve serviços de má qualidade.

Em julho de 2020 foi a vez da VEJA trazer falas de Delfim Netto. Deixou claro que as pressões que estavam sendo feitas sobre o teto de gastos, aprovado no governo Temer, eram graves e ameaçavam a estabilidade. Também criticou o fato de a reforma tributária vir antes da reforma administrativa. Nas entrelinhas de sua fala reside uma obviedade ululante: os gastos públicos não podem ser ilimitados, não podem ser maiores do que as receitas e, por isso, devem ser debatidos antes de suas fontes de financiamentos – os impostos.

O tom foi o mesmo na entrevista concedida à revista Conjuntura Econômica, publicada pela FGV/Ibre em novembro de 2020. Lá já havia cravado que os Projetos de Emendas Constitucionais n. 45 e 110, hoje aprovados na forma da Emenda Constitucional n. 132, tinham problemas, principalmente pela falta de uma estrutura coerente, que pudesse lançar olhos aos tributos sobre consumo, renda e patrimônio, e construir um sistema tributário coeso. Tratar apenas dos encargos sobre consumo é, como ele disse, construir “telhado sem saber qual vai ser o andaime para suportar esse telhado”. Voltou a criticar os gastos públicos, muito maiores do que o país pode suportar.

O pensamento de Delfim Netto abordou agruras que nunca deixaram de existir e sempre tiraram o sono dos mais diversos governos, ditatoriais ou democráticos, de direita ou de esquerda. Muito por isso, vem influenciando o país desde a década de 1960. Mas hoje é mais atual do que nunca, porque os tributos pagos e suportados pelos contribuintes em 2024 ainda servem ao financiamento de uma máquina pública ineficiente, que continua gastando muito e alocando mal seus recursos, tal como 60 anos atrás.

O estudo Carga tributária e ineficiência no setor público, publicado em 2022 na revista Economia Aplicada, conduzido por economistas da USP, indicou que a máquina pública brasileira é ineficiente e simulou cenários de redução da carga tributária e dos níveis de ineficiência, isoladas e conjuntamente, para determinar o quanto haveria de ganho em bem-estar em cada cenário. Tiraram algumas conclusões, mas duas chamam mais a atenção. Primeiro, que a implementação isolada de medidas para redução de ineficiência do gasto público, por si só, sem aumento de tributos, já implicaria ganhos expressivos ao bem-estar geral. Segundo, que a redução da carga tributária só se sustenta mediante a redução da ineficiência.

Mais do que uma avaliação de economistas, é a sensação geral da população, que está insatisfeita em relação aos tributos que paga e os serviços que recebe. De acordo com o Retratos da Sociedade Brasileira, pesquisa divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias em julho deste ano, para 77% dos entrevistados o peso fiscal atual já é alto demais e não pode ser aumentado; para 76%, os gastos do governo deveriam entregar serviços públicos melhores. Os campeões de desaprovação são os serviços de saúde, educação e estradas e rodovias, rejeitados por 78%, 77% e 76% dos entrevistados, respectivamente.

Mas as políticas públicas vão em sentido contrário. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, demonstra uma energia sem limites para implementar medidas que visam a supressão de benefícios tributários, restrição ao uso de créditos fiscais e outras ações para aumentar a arrecadação. Não é diferente quando a projeção está no médio e longo prazo, porque o governo movimenta recursos e influência para aprovar uma reforma tributária que, sem dúvida alguma, irá aumentar muito os tributos cobrados no país, tornar o sistema tributário ainda mais regressivo e, possivelmente, alimentar a escalada dos preços de bens e serviços. O resultado pode ser a diminuição do poder aquisitivo da população e o arrefecimento da economia nacional.

Temos, portanto, um cenário de aumento de tributos que vem na esteira da explosão das contas públicas. Ou seja, tudo o que criticava Delfim Netto. 

As figuras da raposa e do porco-espinho cabem em muitas situações. Por exemplo, o rei Xerxes, da Pérsia, queria vingar a humilhação que seu pai, o rei Dário, experimentou na mão dos gregos. O objetivo de sua vida era invadir a Grécia e, quiçá, a Europa. Mas, antes da empreitada consultou Artabano, seu conselheiro, que de imediato o alertou sobre os riscos da campanha militar. Os inimigos não seriam apenas os gregos, mas também o clima severo naquela época do ano, os milhares de soldados de seu exército, que deveriam ser alimentados durante a longa marcha, além de outros fatores, como a falta de portos para atracar os barcos em caso de tormentas inesperadas. Xerxes não deu ouvidos e foi adiante, Artabano voltou para administrar o reino. Xerxes era porco-espinho, que sabia uma coisa muito bem – guerrear – mas esse conhecimento não foi suficiente para salvar seus homens da fome, resgatar suas embarcações ou ajudá-lo em sua fuga desesperada à Pérsia. Artabano era raposa, sabia muitas coisas, ouvia conselhos de seus pares e tinha a capacidade de fazer ponderações a respeito das coisas a sua volta. Não tinha a audácia de um grande guerreiro para liderar exércitos e conquistar novos territórios, mas conseguiu manter de pé um reino que estava sem o seu rei.

Delfim Netto era a soma de Xerxes e Artabano. Foi um homem culto, exímio observador dos fatos ao seu redor, economista requisitado por todos e cujos conhecimentos foram divididos com governantes das mais variadas estirpes. Conhecia bem a psiquê humana, sabia se relacionar e, ele mesmo brincava, foi “exilado” em Paris regado a champanhe e caviar. Mas também era impetuoso, de opiniões fortes, e se lançava em disputas sem temer adversários.

Muitos lamentam o seu falecimento, outros não. Mas o que fica é que um homem memorável descansou, talvez o último que se importasse tanto com a redução dos gastos públicos e dos tributos que penalizam os brasileiros. Se não houver um candidato para ocupar seu lugar, torçamos para que a engenharia genética nos dê um novo híbrido de raposa e porco-espinho.

Plano Real, 30 anos: entrevista com Pedro Malan - Nara Boechat (Veja)

 Como Pedro Malan vê o Plano Real trinta anos depois da sua criação

Economista lançou recentemente ‘30 anos do Real: crônicas no calor do momento’

 

Por Nara Boechat

Revista Veja, 18/08/2024

 

No fim do primeiro mandato do presidente Lula, em 2004, Pedro Malan fez uma crônica avaliando o aniversário de dez anos do Plano Real e a conquista da estabilidade da moeda ao longo dos governos, “independentemente de sua ideologia ou coloração político-partidária”. Esta história é uma das reunidas no livro 30 anos do Real: Crônicas no Calor do Momento (ed. Intrínseca) escrito em parceria com Gustavo Franco e Edmar Bacha. Em conversa com a coluna GENTE, o economista, que foi ministro da Fazenda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e presidente do Banco Central na implementação do Real, avalia as mudanças nos últimos 30 anos, analisa o impacto da inflação na sociedade e opina sobre o atual momento da economia brasileira.

 

CONSEQUÊNCIAS DO REAL. “O Plano Real foi um divisor de águas, se estabeleceu num curto período de tempo. Foram 500 dias desde que Fernando Henrique (Cardoso) assumiu como quarto ministro da Fazenda do governo Itamar Franco até o lançamento do Real. E nesses 500 dias, o Brasil mudou, a inflação foi derrotada. A derrota da hiperinflação não significa que não exista inúmeros outros problemas, existia à época e continuam existindo hoje. O problema é que agora, ao longo dos últimos 30 anos, é possível tentar enfrentar esses problemas sem uma inflação alta, crônica e crescente, que foi a insensatez que tivemos durante décadas”.


EXIGÊNCIA DA SOCIEDADE. “O Brasil foi o recordista mundial de inflação entre o início dos anos 1960 e o início dos anos 90. Éramos vistos como uma coisa peculiar pelo mundo, mas voltamos a ser considerados um país mais normal, que vive com inflação civilizada. Teve muito trabalho ali para sanear o sistema financeiro, lidar com questões de bancos comerciais, fazer a renegociação de dívida de estados e municípios, a lei de responsabilidade fiscal. A tarefa é preservar a inflação sob o controle, que passou a ser exigência da sociedade”.


NEVOEIRO DA HIPERINFLAÇÃO.  “Costumo dizer que nenhum governante hoje no Brasil pode se permitir ser percebido tendo uma atitude excessivamente complacente em relação à inflação ou achando que a inflação não tem importância, porque ela come o salário do trabalhador. Ela come o valor dessas transferências de renda que são tão importantes. O significado do Real foi esse. O país pôde vislumbrar melhor os seus inúmeros desafios e oportunidades do que antes, quando ainda vivia sob o espesso nevoeiro da hiperinflação. A tarefa continua”.


DÓLAR ACIMA DE 5 REAIS. “Já chegou a cinco e oitenta e seis, baixou agora. Ah, mas temos o sistema de um regime de taxa de câmbio flutuante. Então flutua ao sabor de eventos internacionais e percepções domésticas. O Brasil é uma economia integrada no mundo nessa dimensão financeira. Essas situações são algumas vezes excessivas, parcialmente corrigíveis, mas expressam coisas que estão acontecendo no Brasil e nas interações do Brasil com o mundo”.


INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL. “Sempre usei a expressão ‘autonomia operacional do Banco Central’. Temos um regime que é definido politicamente, o regime de meta de inflação. É o governo que decide isso, não é o Banco Central. E o Banco Central tem autonomia operacional para dado regime, operacionalizar a política monetária. Não é o Banco Central que estabelece a meta de inflação, é o governo legitimamente eleito, é um comitê de três pessoas, duas são indicadas pelo presidente da república. Por isso prefiro o termo ‘autonomia’ do que independência. É autonomia operacional para implementar uma política definida pelo governo”.


Mort d'Alain Delon : 15 chefs-d’œuvre dans une incroyable carrière - Jean-Luc Wachthausen (Le Point)

 Mort d'Alain Delon : 15 chefs-d’œuvre dans une incroyable carrière

En 1960, l’acteur, décédé ce dimanche à 88 ans, devenait, à 25 ans, une star grâce à « Plein Soleil ». Voici notre sélection, subjective forcément, de ses plus grands films.

Par Jean-Luc Wachthausen/Le Point

Publié le 18/08/2024 

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Ému aux larmes, lors du Festival de Cannes 2019, il avait reçu des mains de sa fille Anouchka, la Palme d'honneur pour l'ensemble de sa carrière. Belle récompense pour célébrer plus de soixante ans de cinéma et beaucoup de films majeurs, voire des chefs-d'œuvre, de Luchino Visconti à Joseph Losey, d'Henri Verneuil à René Clément et Jacques Deray.

Au-delà d'un physique exceptionnel, Alain Delon, décédé dimanche 18 août à 88 ans, aura marqué de sa personnalité parfois ombrageuse l'histoire du cinéma et fait rêver des millions de spectateurs et de spectatrices dans le monde. Celui que Jean-Pierre Melville voyait comme un « seigneur », « un des grands samouraïs de l'écran » entre aujourd'hui dans la légende.


Plein soleil, de René Clément (1960)

L'adaptation du roman de Patricia Highsmith, Monsieur Ripley, par le grand scénariste Paul Gégauff. Alain Delon s'impose avec brio en Tom Ripley, parfait usurpateur et beau monstre, prêt à tout pour supprimer le riche Maurice Ronet, prendre sa place et séduire sa maîtresse, jouée par Marie Laforêt. Magnifié par la musique de Nino Rotta, les couleurs vives du procédé Estamancolor et la direction d'acteurs de René Clément, ce film, devenu un classique du cinéma français, révèle Alain Delon dans un rôle ambigu, à la fois irrésistible et repoussant, point de départ de sa longue carrière.


Rocco et ses frères, de Luchino Visconti (1961)

De sa rencontre avec le grand réalisateur italien Luchino Visconti qui tombe sous le charme naît ce film tendu et violent qui décroche le prix spécial du jury au Festival de Venise. Dans cette sombre chronique d'une famille pauvre de l'Italie du Sud qui monte à Milan et se désintègre, Alain Delon s'impose dans la peau d'un Rocco fascinant et sauvage face à Annie Girardot, Claudia Cardinale et Roger Hanin.

 

Le Guépard, de Luchino Visconti (1963)

Au côté de son maître et mentor Visconti, Alain Delon plonge dans un univers fascinant, celui de l'aristocratie italienne, avec ses codes et ses non-dits. Pour cette fresque, qui va devenir un des chefs-d'œuvre du 7e art (Palme d'or à Cannes), le cinéaste confie à Delon le rôle de Tancrède, le neveu du prince Salina, joué par Burt Lancaster. Dans ses habits de jeune partisan de Garibaldi, il brille de toute sa beauté éclatante face à la sensuelle Claudia Cardinale qu'il retrouve pour la seconde fois.


Mélodie en sous-sol, d'Henri Verneuil (1963)

Après avoir tourné en 1962 L'Éclipse, de Michelangelo Antonioni, au côté de la blonde Monica Vitti, Alain Delon enchaîne un autre film majeur avec un acteur qu'il admire : Jean Gabin. Henri Verneuil est à la réalisation et Michel Audiard aux dialogues. Du sérieux. Le jeune acteur apprend beaucoup au contact de son glorieux aîné et tire son épingle du jeu dans cette histoire de gangsters, dont la scène finale est d'anthologie.


Les Aventuriers, de Robert Enrico (1967)

Autre grande rencontre d'Alain Delon : Lino Ventura. Tous deux se retrouvent au côté de la belle Joanna Shimkus et de Serge Reggiani devant la caméra de Robert Enrico, qui les embarque sur un bateau à destination du Congo à la recherche d'une cargaison de diamants engloutis au fond de la mer. Une histoire d'hommes et d'amitié où Delon apparaît sous un jour plus fragile.


Le Samouraï, de Jean-Pierre Melville (1967)

Petit chef-d'œuvre et grand tournant dans la carrière de Delon avec ce film crépusculaire de Jean-Pierre Melville, tiré du roman The Ronin, de Goan McLeod. Borsalino, gabardine au col relevé, regard froid et détaché, beauté magnétique, il est de tout son être ce samouraï qui marche lentement vers sa mort. En ouverture du film, figure l'épigraphe extraite du Bushido : « Il n'y a pas de plus profonde solitude que celle du samouraï. Si ce n'est celle d'un tigre dans la jungle… Peut-être… » Impossible d'oublier son personnage de Jeff Costello, rôle majeur qui forge déjà la légende Delon que Melville voyait comme un « seigneur ».


La Piscine, de Jacques Deray (1969)

Dix ans après leurs fiançailles, il retrouve, autour d'une piscine à Saint-Tropez, une actrice qu'il qualifiera plus tard « d'amour de sa vie » : Romy Schneider. Alain Delon retrouve aussi Maurice Ronet, qu'il tue encore une fois dans cette histoire de triangle amoureux qui tourne mal. C'est peu dire que Delon et Romy Schneider forment l'un des plus beaux couples du cinéma de l'époque dans ce film sous tension et parfaitement maîtrisé de Jacques Deray.


Le Clan des Siciliens, d'Henri Verneuil (1969)

De nouveau Jean Gabin, Henri Verneuil et Lino Ventura, plus la musique d'Ennio Morricone. Trois acteurs fétiches dans une autre histoire de voyous siciliens et de hold-up. Dans la peau du taulard évadé, Delon n'a pas le beau rôle et fait tout foirer après la découverte de sa liaison avec une des filles du clan. Gros succès public.


Le Cercle rouge, de Jean-Pierre Melville (1970)

Nouvelle rencontre entre deux géants : Delon retrouve le réalisateur du Samouraï pour ce rôle d'un ancien détenu qui prépare un gros coup. Il est entouré par des pointures : Bourvil dans le rôle d'un commissaire de police tenace, Yves Montand en ex-flic alcoolique, François Périer en patron de cabaret, Gian Maria Volonte en truand en cavale. Tous sont liés par la fatalité et se retrouvent enfermés dans ce cercle rouge évoqué en ouverture du film par une citation de Krishna. Un film sombre et désenchanté pour un Alain Delon désormais abonné aux rôles de voyou.


Borsalino, de Jacques Deray (1970)

Marseille, dans les années 1920. L'histoire de Carbone et Spirito, deux truands marseillais à l'ancienne, écrite par Jean Cau, Claude Sautet et Jean-Claude Carrière et mise en scène avec brio par Jacques Deray. L'affaire n'a pas été simple : le « milieu » ne voit pas le projet d'un bon œil. Deray reçoit des menaces de mort. Delon se rend chez les Carbone en Corse, règle tout et produit le film. Hors champ, le réalisateur fait tout pour maîtriser les ego des deux stars, Delon et Belmondo, qui finiront tout de même au tribunal pour une histoire de nom sur l'affiche. Reste un film à succès avec quatre millions de spectateurs en salle.


La Veuve Couderc, de Pierre Granier-Deferre (1971)

L'adaptation réussie du roman de Georges Simenon qui se déroule en 1936 dans la campagne dijonnaise. L'histoire d'un bagnard en cavale qui se réfugie dans la ferme de la veuve Couderc, dont il devient l'amant. Un beau drame naturaliste amplifié par le jeu du couple exceptionnel formé par Alain Delon et Simone Signoret.


Deux hommes dans la ville, de José Giovanni (1973)

Dernier face-à-face de Delon et Jean Gabin, du disciple et de son maître, dans ce film noir de José Giovanni qui aborde les questions de la rédemption et de la réinsertion d'un ancien criminel pris en sympathie par un éducateur. Un grand rôle dramatique joué avec sobriété par l'acteur, bouleversant dans la scène finale de la guillotine.


Monsieur Klein, de Joseph Losey (1976)

Un des grands films auquel Alain Delon tenait le plus et dans lequel il avait investi personnellement en tant que producteur. Boudé au Festival de Cannes 1976 et absent du palmarès, il lui laisse un goût amer. Du coup, il a profité de sa Palme d'honneur décernée en 2019 pour présenter de nouveau en séance officielle ce chef-d'œuvre de Joseph Losey. Dans la peau de ce Monsieur Klein, un salaud ordinaire qui va prendre l'identité d'un homonyme juif et partir pour Auschwitz, il est sobre, bouleversant, mystérieux, exceptionnel.


Notre histoire, de Bertrand Blier (1984)

Delon dans les pattes du réalisateur des Valseuses qui aime dynamiter les genres : ici, le mélo, poussé du côté du roman-photo dans une histoire où il est question de solitude et d'amour-passion, le tout servi par des dialogues au couteau. Ça passe ou ça casse. Gros échec à sa sortie en salle, ce qui n'empêche pas Alain Delon de montrer l'étendue de son registre dans les bras de Nathalie Baye.


Pour la peau d'un flic, d'Alain Delon (1981)

Pour ce quinzième et dernier film d'une liste forcément subjective, honneur au Delon réalisateur qui, pour son premier essai, signe un polar solide et violent. À la fois derrière et devant la caméra, il joue un privé pris dans un piège diabolique. Scénario costaud, tiré du roman de Jean-Pierre Manchette, scènes spectaculaires, casting musclé (Daniel Auclair, Anne Parillaud, Daniel Cecccaldi, Jean-Pierre Darras), c'est un succès auprès de la critique et du public.

sábado, 17 de agosto de 2024

How Ukraine’s Fight Solves Global Problems - Andreas Umland (The National Interest)

How Ukraine’s Fight Solves Global Problems

Kyiv’s struggle, if successful, could reignite worldwide democratization and help speed along political transitions in other nations.


The National InterestAugust 12, 2024 


While the Russian-Ukrainian War is only one symptom of broader destructive international trends, its outcome will co-determine the direction of the world’s development. 

Popular yet imprecise expressions like the “Ukraine Crisis” or the “Ukraine War” have been misleading many to believe that the Russian-Ukrainian War is a solely Eastern European issue. According to this misperception, a Ukrainian leadership that was more submissive to Russia could have avoided the unfortunate war. Supposedly, Kyiv can still stem the risks spilling over from the “war in Ukraine” to other realms and regions if it accommodates Russian aggression.

If seen from a historical and comparative perspective, the Russian-Ukrainian War looks different. It is only one of several permutations of Moscow’s post-Soviet imperialism and merely one facet of larger regressive developments since the end of the twentieth century. Russia’s assault on Ukraine is a replay or preview of pathologies familiar to Eastern Europe and other parts of the world. The alleged “Ukrainian Crisis” is neither a singular nor a local issue. It is less the trigger than a manifestation of larger destructive trends.

At the same time, the Russian-Ukrainian War is a grand battle about the future of Europe and the principle of inviolability of borders. Moreover, the war is about Ukraine’s right to exist as a regular UN member state. The conflict has genuinely global significance.

Yet, the war’s course and outcome can either accelerate, contain, or reverse broader political, social, and legal decay across the globe. Moscow’s partial victory in Ukraine would permanently unsettle international law, order, and organization and may spark armed conflicts and arms races elsewhere. A successful Ukrainian defense against Russia’s military expansion, in contrast, will generate far-reaching beneficial effects on worldwide security, democracy, and prosperity in three ways.

A Ukrainian victory would, first, lead to a stabilization of the rules-based UN order that emerged after 1945 and consolidated with the self-destruction of the Soviet Bloc and Union after 1989. It would, second, trigger a revival of international democratization, which has halted since the early twenty-first century and needs a boost to start anew. Third, the ongoing Ukrainian national defense and state-building contribute to global innovation and revitalization in various fields, from dual-use technology to public administration, fields in which Ukraine has become a forerunner.

Stabilizing International Order

The Russo-Ukrainian War is only one of several attempts by powerful states to expand their territories since the end of the Cold War. Several revisionist governments have tried or are planning to install their uninvited presence in neighboring countries. The resulting military operations have been or will be offensive, repressive, and unprovoked rather than defensive, humanitarian, and preventive. Several revisionist autocracies have engaged in, or are tempted to try, replacing international law with the principle of “might is right.”

An early post-Cold War example is Iraq’s 1990 annexation of Kuwait, which was instantaneously reversed by an international coalition in 1991. Another example is Serbia’s revanchist assaults on other former Yugoslav republics once ruled from Belgrade. During this period, Russia began creating so-called “republics” in Moldova (i.e., Transnistria) and Georgia (i.e., Abkhazia and “South Ossetia”). At the same time, Moscow ruthlessly suppressed the emergence of an independent Chechen republic on its own territory.

Only recently has the Kremlin turned its attention to Ukraine. In 2014, Moscow created the “people’s republics” of Donetsk and Luhansk and illegally annexed Crimea to the Russian Federation. Eight years later, Russia also illegally incorporated Ukraine’s Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia, and Kherson regions into its official territory.

The international community’s reaction to Russia’s border revisions has remained half-hearted, unlike its responses to the Iraqi and Serbian attempts of the 1990s. The West’s timidity only provoked further Russian adventurism. Moscow now demands Kyiv’s voluntary cessation of all parts of the four Ukrainian mainland regions that Russia annexed in 2022. This includes, oddly, even some parts of Ukraine’s territory that Russian troops never managed to capture. The Kremlin’s final aim is still the eradication of Ukraine as a sovereign state.

At the same time, Beijing is bending established rules of conduct in the South and East China Seas and stepping up its preparations to incorporate the Republic of China in Taiwan into the People’s Republic of China by force. Venezuela has announced territorial claims on neighboring Guyana. Other revisionist politicians across the globe may be harboring similar plans.

Moscow’s official incorporation of Ukrainian lands is unique since Russia is a permanent member of the UN Security Council, which was created to prevent such conquests. Russia’s behavior is also peculiar in view of its status as an official nuclear-weapon state and depositary government under the 1968 Nuclear Non-Proliferation Treaty (NPT). Nevertheless, Moscow is trying to reduce or even destroy an official UN member and non-nuclear weapon state, thereby undermining the entire logic of the non-proliferation regime and its special prerogatives for the five permanent UN Security Council members whom the NPT allows to have nuclear weapons.

At the same time, the Russian assault on Ukraine is not entirely exceptional, neither geographically nor temporally. It is only one of several recent symptoms of more generic Russian neo-imperialism. It is also just one aspect of larger expansionist and revanchist tendencies across the globe.

A Ukrainian victory against Russia would not be a merely local incident but an event of far broader significance, notwithstanding. It can become an important factor in preventing or reversing international border revisionism and territorial irredentism. Conversely, Ukraine’s defeat or an unjust Russo-Ukrainian peace would strengthen colonialist adventurism across the globe. Ukraine’s fight for independence is, for world affairs, both a manifestation of broader problems and an instrument of their solution.   

A Revival of International Democratization

Russia’s assault on Ukraine challenges principles such as peaceful conflict resolution, national sovereignty, and the inviolability of borders. It also represents another negative global political trend of the early twenty-first century, namely the decline of democracy and the resurgence of autocracy. This regressive trend manifests itself through the confrontation between Russia and Ukraine.

A major internal determinant of the Russian assault on Ukraine is that Putin’s various wars have, since 1999, been sources of his undemocratic rule’s popularity, integrity, and legitimacy. Sometimes overlooked in analyses of Russian public support for authoritarianism, the occupation, subjugation, and repression of peoples like the Chechens, Georgians, and Ukrainians finds broad support among ordinary Russians. Their backing of victorious military interventions—especially on the territory of the former Tsarist and Soviet empires—is a major political resource and social basis of Putin’s increasingly autocratic regime.

Regressive tendencies, to be sure, were already observable in Yeltsin’s semi-democratic Russia of the 1990s—for instance, in Moldova and Chechnya. Yet, under Putin as prime minister (1999–2000, 2008–12) and president (2000–2008, 2012– ), the viciousness of Russian revanchist military operations in and outside Russia has rapidly grown. This radicalization is a function not only of escalating Russian irredentism per se but also an effect of fundamental changes in Russia’s political regime. Moscow’s increasing foreign aggressiveness parallels the growth of domestic repression after Putin’s take-over of Russia’s government in August 1999.

The two major early spikes of Kremlin aggressiveness towards the West and Ukraine followed, not by accident, Ukrainian events in 2004 and 2014. They had much to do with the victories of those years’ liberal-democratic Orange Revolution and Euromaidan Revolution. Ukraine’s domestic development questions Russia’s imperial pretensions, as it leads the largest former colony out of Moscow’s orbit. The democratizing Ukrainian polity is also a conceptual countermodel to authoritarianism in the post-communist world. Its very existence challenges the legitimacy of the post-Soviet autocracies in Russia, Belarus, Azerbaijan, and Central Asia.  

Ukraine’s fight for independence is thus not only a defense of international law and order but also a battle for the cause of worldwide democracy. The contest between pro- and anti-democratic forces is global and has been sharpening already before, in parallel to, and independently from, the Russo-Ukrainian War. At the same time, the confrontation between Russian autocracy and Ukrainian democracy is a particularly epic one.

If Ukraine is victorious, the international alliance of democracies will win, and the axis of autocracies around Russia will lose. In this scenario, not only will other democracies become more secure, self-confident, and energized, but also it is likely that more democracies will appear—above all, in the post-communist world from Eastern Europe to Central Asia. Diffusion, spillover, or domino effects could also trigger new or re-democratizations elsewhere.

Conversely, a Russian victory will embolden autocratic regimes and anti-democratic groups throughout the world. In such a scenario, democratic rule and open societies would become stigmatized as feeble, ineffective, or even doomed. The recent worldwide decline of democracy will be less likely to reverse and may continue further or accelerate. While the “Ukraine Crisis” is not the cause of democracy’s current problems, its successful resolution would revitalize worldwide democratization.

Transferable Innovations

A third, so far, underappreciated aspect of Kyiv’s contribution to global progress is the growing number of new and partly revolutionary Ukrainian cognitive, institutional, and technological advances that can be applied elsewhere. Already before the escalation of the Russo-Ukrainian War in 2022, Kyiv initiated some domestic reforms that could also be relevant for the modernization of other transition countries. After the victory of the Euromaidan uprising or Revolution of Dignity in February 2014, Ukraine started to restructure its state-society relations fundamentally.

This included the creation of several new anti-corruption institutions, namely a specialized court and procuracy, as well as a corruption prevention agency and investigation bureau. The novelty of these institutions is that they are all exclusively devoted to the preclusion, disclosure, and prosecution of bribery. In April 2014, Ukraine started a far-reaching decentralization of its public administration system that led to the country’s thorough municipalization. The reform transferred significant powers, rights, finances, and responsibilities from the regional and national levels to local self-governmental organs of amalgamated communities that have now become major loci of power in Ukraine.

The Euromaidan Revolution also led to a restructuring of relations between governmental and non-governmental organizations. Early independent Ukraine, like other post-Soviet countries, suffered from alienation between civil servants and civic activists. After the Revolution of Dignity, this gap began to close. For instance, Kyiv’s famous “Reanimation Package of Reforms” is a coalition of independent think tanks, research institutes, and non-governmental organizations that has been preparing critical new reform legislation for the Verkhovna Rada (Supreme Council), Ukraine’s unicameral national parliament.

Also, in 2014, Ukraine, Moldova, and Georgia signed EU Association Agreements of a new and, so far, unique type. The three bilateral mammoth pacts go far beyond older foreign cooperation treaties of the Union and include so-called Deep and Comprehensive Free Trade Areas between the EU and the three countries. Since 2014, the Association Agreements have been gradually integrating the Ukrainian, Moldovan, and Georgian economies into the European economy.

These and other regulatory innovations have wider normative meaning and larger political potential. They provide reform templates, institutional models, and historical lessons for other current and future countries undergoing democratic transitions. Ukraine’s experiences can be useful for various nations shifting from a traditional to a liberal order, from patronal to plural politics, from a closed to an open society, from oligarchy to polyarchy, from centralized to decentralized rule, and from mere cooperation to deeper association with the EU.

While Ukraine’s post-revolutionary developments are, above all, relevant for transition countries, its war-related experiences and innovations are also of interest to other states—not least the members and allies of NATO. Such diffusion concerns both Ukrainian accumulated knowledge of hybrid threats and how to meet them, as well as Ukraine’s rapid technological and tactical modernization of its military and security forces fighting Russian forces on the battlefield and in the rear. Since 2014, Ukraine has become—far more so than any other country on earth—a target of Moscow’s multivariate attacks with irregular and regular forces in the media and cyber spaces, within domestic and international politics, as well as on its infrastructure, economy, and cultural, religious, educational, and academic institutions.

Since February 24, 2022, Ukraine has engaged in a dramatic fight for survival against a nominally far superior aggressor country. Ukraine’s government, army, and society had to adapt quickly, flexibly, and thoroughly to this existential challenge. This included the swift introduction of new types and applications of weaponry, such as a variety of unmanned flying, swimming, and driving vehicles, as well as their operation with the help of artificial intelligence. In a wide variety of military and dual-use technology, Ukraine had to innovate rapidly and effectively so as to withstand the lethal Russian assault.

In numerous further fields such as electricity generation and preservation, electronic communication, war-time transportation, information verification, emergency medicine, large-scale demining, post-traumatic psychotherapy, and veteran reintegration, to name but a few areas, the Ukrainian government and society have, and will have to react speedily and resolutely. While Ukraine often relies on foreign experience, equipment, and training, it is constantly developing its own novel kit, approaches, and mechanisms that could potentially be useful elsewhere. This new Ukrainian knowledge and experience will come in especially handy for countries that may be confronted with similar challenges in the near or distant future.

It All Depends on Kyiv

The escalation of the so-called “Ukraine Crisis” in 2022 has been only one expression of earlier and independently accumulating international tension. At the same time, the Russian-Ukrainian War is no trivial manifestation of these larger trends and no peripheral topic in world affairs. A Russian victory over Ukraine would have grave implications for the post-Soviet region and beyond. Conversely, a Ukrainian success in its defense against Russia’s genocidal assault and the achievement of a just peace will have stabilizing and innovating effects far beyond Eastern Europe.

Apart from being a revanchist war of a former imperial center against its one-time colony, Russia’s assault on Ukrainian democracy is driven by Russian domestic politics. It is a result of Russia’s re-autocratization since 1999, which, in turn, follows more significant regressive trends in the state of global democracy. Ukraine has been less of a trigger than a major victim of recent destructive international tendencies.

At the same time, Ukraine’s fight can make crucial contributions to counteracting the global spread of revanchism. It can reignite worldwide democratization and help speed along political transitions in other nations. A Ukrainian victory and recovery may save not only Ukraine but also its neighbors from Russian imperialism. Ukraine’s fight also contributes to solving numerous larger problems of the world today.

 Dr. Andreas Umland is an Analyst with the Stockholm Centre for Eastern European Studies at the Swedish Institute of International Affairs (UI). Follow him on LinkedIn and X @UmlandAndreas.


O país rendido - Fernando Schüler (Veja)

O país rendido

Fernando Schüler, Veja (17/08/2024)

"O ministro cismou com isso aí”, diz um juiz, em Brasília. “Isso aí” é  um cidadão brasileiro. Crítico duro do “sistema”, do próprio ministro, na balbúrdia digital. Como o ministro está “sem sessão”, continua o  auxiliar, ele está com tempo para ficar “procurando”. O grand finale vem do próprio ministro: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens (do tal “cidadão crítico”) para vermos se dá para bloquear e prever multa”. Para resumir: primeiro  escolhe o alvo político. Depois vai pesquisando na internet para  produzir o “laudo”. Isto é, a justificativa de que a autoridade precisa  para fazer o que quer fazer. Isto é, censurar, bloquear e tudo que  sabemos. Em outro momento, o foco é uma revista. “Vamos levantar todas  essas revistas golpistas para desmonetizar nas redes”, diz a autoridade.  O juiz responde que havia encontrado apenas matérias jornalísticas e  pergunta o que deveria colocar lá. “Use sua criatividade”, responde o  chefe, seguido de algumas risadas.

As mensagens reveladas por  Glenn Greenwald e Fabio Serapião, na série de reportagens publicadas  esta semana, são um striptease das instituições brasileiras. É evidente  que há muito o que vir à tona, há o necessário contraditório e há a  investigação minuciosa disso, que deve ser feita. Mas o que já veio à  tona é para lá de preocupante. Imaginem uma autoridade de Estado, em  Brasília, literalmente pedindo para “disfarçar” o nome de um tribunal, e  do próprio ministro, em documentos oficiais. Para não ficar “chato”, ou  muito “descarado”. A autoridade pedindo para “ajustar” um documento  oficial (haveria outro nome para isso?), dizendo: “Onde se lê o nome de  um tribunal (que realmente fez o pedido), ponha o nome de outro  tribunal”. Pois é. Não há muito o que dizer sobre tudo isso. Os fatos  falam tão alto que qualquer comentário soa um pouco irrelevante. O modus operandi é claro. Define-se o foco político e logo se demanda da assessoria que  se produzam as “provas”. Como definiu um jurista bem-humorado, “atira a  flecha e depois pinta o alvo”. Punições ad hoc, sem devido  processo, sem provocação, sem contraditório. E, nesse caso, feitas por  um tribunal eleitoral fora do período eleitoral. É isso. Nós nos  transformamos na única democracia do planeta onde os direitos  individuais mais elementares de um cidadão flutuam à mercê da  subjetividade de uma autoridade de Estado. Autoridade que fica “braba”.  Que “cisma” com este ou aquele. E a partir daí “é uma tragédia”, como  escutamos em um dos áudios.

Tragédia, sim. Mas para quem vai em  cana sem nem saber por quê. Quem é banido das redes “de ofício”. Quem  tem as contas bloqueadas por um papo furado no WhatsApp. Quem morre num  presídio de Brasília, sem eira nem beira, porque ninguém despachou o  processo. Uma tragédia, de fato. E quem sabe merecida. Minha intuição é  que nos transformamos exatamente no país que desejamos ser.

Boa  parte do Brasil deseja que as coisas sejam assim. Deseja que tenhamos  uma “democracia de tutela”. Com a condição de que o grande xerife mande  fazer laudo só para o “outro lado”. Enquanto for assim, tudo estará bem  para boa parte da imprensa, da academia, das “instituições” e do mundo  político. O amor à “abstração da regra”, vamos convir, nunca foi  especialidade brasileira. Não passa de autoilusão imaginar que nosso  vezo patrimonialista só funciona nas relações entre o Estado e o mundo  dos interesses materiais. Ele está lá, inteirinho, no modo como lidamos  com o universo dos direitos. No servilismo do auxiliar da autoridade que  pergunta: “O que eu devo escrever nesse dossiê?”. Na autoridade que  diz: “Muda aí o nome do tribunal”. Que alerta que o “doutor” está com  pressa, quer a “prova” logo, porque quer fazer o que já decidiu fazer.  Tudo sob uma certa ficção em torno da legalidade autorreferente,  ajustada aos imperativos do “contexto”.

Ainda na outra semana tivemos notícia da soltura do Filipe Martins.  A prisão cujas razões formalmente apresentadas nunca existiram. Do  sujeito que de fato nunca tentou fugir, nunca saiu do país, e que mesmo  assim ficou lá, em uma prisão no Paraná, durante seis meses. Alguém  preocupado? Alguém vai responder por isso? Ou há muito já entendemos o  jogo? Cá entre nós, é o mesmo caso daquela “senhora que pintou uma  estátua com batom”, na ótima definição do ex-ministro Nelson Jobim esta  semana. A Débora Santos, que de fato pintou uma frase irônica naquela  estátua da Justiça, na frente do STF, e está em cana há catorze meses, com os dois filhos pequenos por aí, à espera de um dia terem a mãe de volta, em casa.

Jobim  é um raro exemplo de intelectual brasileiro que distingue o mundo da  política, com suas paixões, e o mundo dos direitos, pautado pela lei e  sua impessoalidade. A distinção republicana, por excelência. Esta semana  ele definiu o 8 de Janeiro de maneira precisa: não uma “tentativa de  golpe”, mas a “catarse pela frustração com a não obtenção de uma  intervenção militar”. No transe brasileiro, nada disso importa. Há uma  narrativa política, há alguém que detém o poder e há suporte na  sociedade. A partir daí, ajusta-se o universo dos direitos. Um pouco  como se aprende nas revelações da semana. Ajustam-se os laudos, os  documentos, as razões para justificar um delito. E sua própria  tipificação. Tudo se move, no calor da política. E a “abstração da  regra” soa não muito mais do que o resmungo de quem perdeu. Simplesmente  perdeu. Quando observo essas coisas, me vem à lembrança a antiga  provocação de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”, em nossa  tradição. Sua referência é tão distante quanto o século XIX.  A “disparidade entre a sociedade escravocrata e as ideias do liberalismo  europeu”. Mas me soa tremendamente atual. A estranheza de uma elite que  enche a boca para falar em democracia, mas aplaude o “deixa que eu dou  um jeito” para arrumar provas e fazer o que a Autoridade deseja fazer.  Que fala em “garantismo”, mas com a boca torta pelo uso do cachimbo. Em  um mundo em que a retórica e sua negação, no universo da democracia  liberal, convivem sem problema.

Talvez por isso minha referência sempre será Eleanor Norton, a  advogada negra que em um dia qualquer de 1969, diante da Suprema Corte  americana, defendeu os direitos de Clarence Brandenburg, um abjeto líder  da KKK. E o fez por entender algo bastante simples: que os direitos  dele eram ao mesmo tempo os nossos direitos. Ela o fez em nome de um  princípio. Em nome da Constituição. Algo que a “obrigava por vezes a  defender pessoas que não me defenderiam”. Essa história sempre me tocou.  E digo que sobre isso não alimento lá grandes expectativas no Brasil de  hoje. Vejo que já fomos contaminados pelo vírus do ódio e da paixão  política, em um país no qual nunca prosperou, de fato, uma tradição  liberal-democrática. E por isso a relativização do direito. O truque.  O ministro nervoso, o e-mail inventado, o laudo feito sob medida.  O abuso, enfim. Tudo que faz tanta gente boa sinceramente desejar ir  embora, simplesmente. Largar de mão esta república que parece não ter  mais jeito.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper.

S20: o G20 da Ciência: reunião tão confrontacionista quanto qualquer reunião política-diplomática - Camille Lichotti (Revista Piauí)

Anais da Diplomacia 

“Eu vou para o Céu!”

Os agitados bastidores do grupo que elaborou o relatório sobre ciência e tecnologia do próximo encontro do G20

Camille Lichotti, do Rio de Janeiro 
Revista Piauí, 15/08/2024

Na manhã daquela terça-feira, dia 2 de julho, a diretora da Academia Chinesa de Ciências, Dongyao Wang, fez um pedido que despertou controvérsias. Enquanto se pronunciava, a pesquisadora observava o relatório projetado no telão. O documento em inglês continha doze propostas para o planeta implementar “um processo de transição energética” que garanta a sobrevivência da humanidade. Sentados à mesa em formato de U, no Rio de Janeiro, quarenta representantes da elite científica mundial discutiam os termos do texto. Ora reivindicavam acréscimos minúsculos, ora sugeriam a reescrita de frases inteiras. O rigor se justificava: cada termo sob análise tinha o potencial de gerar crises diplomáticas ou abalar a economia de um país. 

 A chinesa pediu que o documento recomendasse “um futuro de baixo carbono” em vez de “um futuro totalmente descarbonizado”. Não se tratava de um detalhe irrelevante. A expressão “baixo carbono” abre margem para a produção de energia com algum nível de emissão de CO₂, o que é bem diferente de eliminá-lo por completo. Diante do telão, o engenheiro Alvaro Prata, diretor da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e responsável pela elaboração da frase em debate, interrompeu Wang e indagou: “Quando você fala em ‘baixo carbono’, a questão que levanto é: quão baixo?” Todos riram, inclusive a pesquisadora, mas ninguém se dispôs a responder.

A biomédica Helena Nader, presidente da ABC e da reunião, aproveitou a deixa para lembrar que os cientistas presentes deveriam jogar no mesmo time: “Pessoal, uma coisa são os governos. Outra somos nós… O que nós, como S20, queremos? O objetivo principal da comunidade científica é a descarbonização.” Sem causar alvoroço, Wang ignorou a colega e seguiu pedindo novas alterações. No fim das contas, o “futuro totalmente descarbonizado” acabou excluído do relatório, como ela queria. 

O S20 – abreviação de Science20 – se encontrava pelo segundo dia consecutivo. O grupo é um braço do G20, fórum que abarca as oito maiores economias do mundo (G8) e onze emergentes, além da União Europeia e da União Africana. Formado por integrantes das academias nacionais de ciências daqueles países, recebeu a tarefa de produzir um texto com recomendações para os líderes políticos do bloco, que se reunirão no Rio em novembro. 

Como o Brasil assumiu a presidência rotativa do G20 em dezembro do ano passado, coube à ABC escolher os cinco temas que o grupo de cientistas discutia num hotel da Barra da Tijuca, entre 1º e 2 de julho: inteligência artificial, bioeconomia, transição energética, justiça social e desafios de saúde. A instituição brasileira também se encarregou de redigir o documento definitivo do encontro, cujo rascunho exigiu meses de negociação. 

A prioridade de Nader era fazer com que os representantes de todas as academias assinassem o texto final – o que nem sempre acontece em conferências desse tipo. Na avaliação da ABC, se os cientistas demonstrassem estar em sintonia, poderiam convencer o G20 a acatar as sugestões apresentadas, já que o relatório do S20 não é impositivo. 

Atingir o consenso significava garantir que pesquisadores de nações tão díspares quanto a Coreia do Sul, a Austrália, o Japão e o México adotassem o mesmo posicionamento em assuntos espinhosos. Na teoria, as academias são independentes e, ao contrário dos diplomatas, não precisam representar os interesses de seus governos. Na prática, porém, quase sempre reverberam demandas políticas. Ciente disso, Nader procurou negociar certos pontos do relatório antes da reunião na Barra. Menções à igualdade de gênero, por exemplo, foram cortadas já no rascunho para garantir o apoio da Arábia Saudita. Também ficou decidido que o S20 abordaria o problema dos combustíveis fósseis de maneira sutil. 

A presidente da ABC sentiu na pele como cansa ser democrática. Apesar dos acordos prévios, choveram pedidos de ajustes quando o texto definitivo foi discutido na cúpula de julho. A Turquia solicitou uma definição mais precisa de justiça social. A França requisitou a inclusão da energia nuclear – um dos pilares da matriz energética do país – no rol das energias sustentáveis. A União Europeia reivindicou o acréscimo da energia geotérmica no mesmo rol. A Índia quis enfatizar que a transição energética não é acessível aos países pobres. Todas essas sugestões foram debatidas e aceitas. 

Representante da Arábia Saudita, o entomólogo Hassan Al Ayied agitava os braços para chamar a atenção de Helena Nader. Ele também pleiteava alterações no trecho sobre a transição energética, o assunto mais polêmico do documento. A primeira: trocar “energia renovável” por “energia limpa” (nas interpretações mais flexíveis, o petróleo, principal produto saudita de exportação, pode ser considerado uma fonte de energia limpa, desde que não polua o meio ambiente; jamais, no entanto, será considerado uma energia renovável). As outras eram: cortar a palavra “descarbonização” e substituir “baixo carbono” pelo termo “baixa emissão”. Novamente, o grupo acatou todas as demandas em nome do consenso. 

No segundo dia de conferência, representantes da Alemanha, do Canadá e da França se encontraram reservadamente com Alvaro Prata, o diretor da ABC. Eles o pressionaram para empregar expressões mais duras no relatório e inserir o banimento dos combustíveis fósseis entre as recomendações finais. “Vocês estão vendo que não vai dar, né?”, retrucou o engenheiro mecânico. Ex-secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, Prata está acostumado a encarar negociações difíceis em fóruns internacionais. “Me parece natural que um documento elaborado por vários países fique menos incisivo que o rascunho. Melhor do que um comunicado forte e preciso, é um comunicado que tenha a concordância de todos”, disse à piauí.

Após três horas de reunião, inúmeros pesquisadores ainda se mostravam insatisfeitos com o relatório. Uns desejavam que as recomendações da cúpula aparecessem em tópicos, de maneira bem destacada e didática. Outros reclamavam das construções frasais pouco propositivas, pediam uma introdução mais concisa e criticavam até a qualidade do inglês usado no texto. 

Diferentemente de seus pares, que deixaram o salão do hotel para aproveitar o bufê, Nader informou que reescreveria partes do documento no horário de almoço. O relatório definitivo precisava estar pronto até o início da noite. Antes de se sentar à frente do notebook no canto do salão, a biomédica de 76 anos chegou perto da comitiva brasileira, levantou os braços e exclamou: “Eu vou para o Céu!” 

Ela passou os dois dias de reunião completamente agitada. Resolvia problemas da impressora, tomava notas, buscava xícaras de café, coordenava a equipe técnica da ABC e mediava conflitos. Para pedir silêncio, batia repetidamente com uma colher num copo d’água. Quando o caos se instalava de vez, a pesquisadora revirava os olhos, franzia o cenho, levava as mãos à testa e balançava a cabeça. Nos momentos de silêncio tenso, fazia piadas e ria de si própria. “Não sei me comportar formalmente por muito tempo”, confessou, rindo, ao microfone. 

O carisma e a espontaneidade de Nader contrastavam com o restante da mesa diretora do S20. À direita da biomédica estava o indiano Shekhar C. Mande, que presidiu a cúpula científica de 2023. Carrancudo, falava pouco e sempre baixo. À esquerda da pesquisadora, a sul-africana Stephanie Burton – uma figura sisuda e metódica, que comandará o encontro de 2025 – interrompia os debates com o intuito de corrigir vírgulas erradas e apontar outros deslizes gramaticais. Raramente sorria. 

A busca pelo consenso absoluto havia se tornado uma obsessão para a brasileira. A cada mudança de palavra no documento, Nader perguntava se alguém tinha objeções. Às vezes, as ressalvas apareciam, o que abria margem para discussões sobre o emprego de um verbo ou levava tudo de volta à estaca zero. 

 

Depois do almoço, o climatologista alemão Gerald Haug propôs tirar a palavra “evento” da frase que abordava os eventos climáticos extremos. Apresentando-se como “o cara do clima”, ele explicou que o termo restringia a questão a intempéries passageiras e não a desastres prolongados. O meteorologista Daniel Murdiyarso, representante da Indonésia, discordou. Argumentou que “evento” é um vocábulo suficientemente compreensível. Seguiram-se alguns minutos de debate sobre a palavra. 

“Você chama de evento uma inundação de quatro semanas?”, desafiou o alemão, presidente da academia mais antiga do S20, fundada no século XVII. “Sim”, respondeu laconicamente o indonésio, membro de uma das academias mais jovens, constituída apenas na década de 1990. Os dois cientistas se entreolharam em silêncio. “Tirar ou não tirar o evento, eis a questão”, brincou Helena Nader. 

Alguns colegas até arriscaram um ou outro comentário, mas o assunto só encerrou quando o alemão ergueu ambas as mãos, num gesto de rendição. “Tanto faz…”, disse, recostando-se na cadeira reclinável. O “evento climático” permaneceu, para satisfação do meteorologista indonésio.

Houve embates ainda mais prosaicos. A certa altura, a engenheira biomédica Alison Noble, representante do Reino Unido, ponderou que a menção à “saúde dos humanos e animais” no trecho sobre bioeconomia estava errada, pois os humanos também são animais. “Só não sei como reescrever isso porque não é a minha área”, desculpou-se. Vários pesquisadores olharam para os lados, à procura de um especialista em biologia ou algo do gênero. A primatologista Karen Strier, dos Estados Unidos, solucionou o impasse ao sugerir o uso de “humanos e animais não humanos”. 

A ideia de projetar o relatório no telão foi adotada para ressaltar que o texto definitivo seria fruto de um processo coletivo e transparente. Pretendia-se evitar, assim, o vexame do encontro que o S20 promoveu na Índia, em 2023. Para surpresa dos participantes, depois de longos debates, a academia indiana apresentou um documento final diferente do aprovado em grupo, com alterações de última hora exigidas pelo governo ultranacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi. Indignados, representantes de alguns países ameaçaram se retirar do salão, e a reunião virou um bate-boca. No fim, a maioria dos pesquisadores decidiu assinar o relatório daquele jeito mesmo, para não escalar a crise. Apenas Itália e França não o fizeram.



Na segunda-feira em que a cúpula do Rio começou, o primeiro cientista a se pronunciar foi o presidente da academia argentina, o geólogo Victor Ramos. Ele deixou bem claro que o encontro não se pautaria somente por questões técnicas: a política estaria sempre à espreita. Numa atitude ousada, Ramos afirmou que concordava integralmente com o rascunho preparado pelo Brasil, mas que seu país não seguiria nenhuma daquelas orientações. “O atual governo argentino nega as mudanças climáticas, não estimula a ciência nem a educação e despreza os mais pobres”, lastimou, sem citar o presidente da República, Javier Milei. 

Em entrevista à piauí, o geólogo de 79 anos disse que decidiu trazer o assunto à tona para denunciar internacionalmente o desmonte em curso na Argentina. Desde que tomou posse, há oito meses, Milei rebaixou o antigo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação ao status de secretaria, fez cortes que atravancam a produção científica nacional e alardeou que os cientistas argentinos – ganhadores de três prêmios Nobel – não produzem nada. “Perto de Milei, [Jair] Bolsonaro é um bebê”, comparou Ramos.

Impactado pelo enfático pronunciamento, o presidente da academia francesa, Alain Fischer, sugeriu que o S20 divulgasse uma declaração de solidariedade aos pesquisadores da Argentina “neste momento difícil”. Os aplausos que eclodiram foram interrompidos por John Boright, representante dos Estados Unidos. Ele jogou um balde de água fria nos colegas e avisou que a National Academy of Sciences não poderia subscrever uma investida tão direta contra um governo. “Nossa Academia não comenta cada coisa ruim que acontece no mundo”, gaguejou. “Tivemos cortes em muitos lugares, todos são lamentáveis, mas… Quero dizer, eu… Não é fácil para nós aprovar um comunicado desses.”

Helena Nader assumiu a palavra e reforçou que não se tratava de uma declaração governamental, mas de um anúncio de cientistas para cientistas. Boright contrapôs dizendo que, nesse caso, teriam de denunciar também a situação complicada da Nicarágua – país da América Central que amarga uma ditadura de esquerda, mas não faz parte do G20. A moção de apoio aos argentinos acabou não se concretizando.

Ramos passou o resto da reunião calado, sem pedir nenhuma alteração no relatório. À piauí, reiterou que estava satisfeito com o trabalho dos colegas. “O documento elaborado pelo Brasil é ótimo. Ou melhor: para os países normais, é ótimo…”

 

No segundo e último dia do encontro, os chineses protagonizaram o momento mais tenso das discussões. Quando se referia às inteligências artificiais, o rascunho elencava uma série de estratégias intergovernamentais para neutralizar tecnologias utilizadas com “propósitos destrutivos”. Os cientistas da China sugeriram remover a expressão. Alguns países advogaram pela manutenção do trecho, e o professor Youdan Xiao subiu o tom: “Na minha opinião, nós não precisamos falar em ‘propósitos destrutivos’. Eu não sei por que adicionar essas palavras. A inteligência artificial pode ter dois lados. Uma faca, a meu ver, serve para [cortar] frango, não para matar pessoas…”

Eram cinco e meia da tarde. A reunião deveria terminar em menos de uma hora. Helena Nader levou uma das mãos à cabeça, fechou e abriu os olhos, respirou fundo e disse: “Eu não gostaria que um país deixasse de aprovar o relatório por causa de uma frase. Como vamos resolver essa situação?” Diante do silêncio geral, ela mesma propôs desatar o nó com uma votação. Todos optaram por conservar a expressão, exceto a China, que não aceitou o resultado do pleito. 

A biomédica sugeriu, então, três redações para o trecho polêmico. Nenhum dos presentes as validou. “China, preciso da sua ajuda”, suplicou Nader. Os chineses, no entanto, continuaram irredutíveis. Passaram-se quarenta minutos até que os debatedores toparam recuar e dar à China um gostinho de vitória. “Essa conversa é meio sem sentido”, desabafou o alemão Gerald Haug. “Exércitos do mundo inteiro recorrem às IAs e fazem delas o que bem entendem. Por isso, me soa um tanto ingênuo e inútil ficar discutindo os termos da frase.” 

Quando a reunião acabou, Nader puxou uma salva de palmas. Em poucas horas, a pesquisadora iria ciceronear o jantar de encerramento do S20. O restaurante Ocyá, num recanto bucólico próximo à Ilha da Gigoia, na Barra da Tijuca, recebeu o grupo. A casa costuma adotar o método ikejime de abate de peixes, que minimiza o sofrimento dos animais e otimiza a qualidade da carne. 

O relatório final só não resultou 100% consensual porque a Arábia Saudita se recusou a avalizá-lo, apesar das modificações que solicitou. A Academia de Ciências da Rússia não compareceu às reuniões e tampouco esclareceu o motivo das ausências, mas recebeu as atas dos debates via e-mail e assinou o texto definitivo. 

Trata-se de um documento breve (cinco páginas) e ameno. Os cientistas recomendam a criação de políticas de inteligência artificial fundamentadas em princípios éticos compartilhados pelos países, além do monitoramento de tecnologias que possam escapar ao controle humano. Orientam também que a transição energética se baseie no “aumento do uso de fontes de energia com baixas emissões”, incluindo a energia nuclear e as renováveis, numa combinação que pode variar de um país para outro, mas sempre com o intuito de eliminar o uso do carvão. Em outra seara, o texto sugere que recursos destinados a reduzir o impacto das mudanças climáticas e ambientais na saúde priorizem grupos vulneráveis.

A presidente da ABC acredita que o relatório terá boa receptividade no G20 por ser uma peça escrita a quarenta mãos: “Não creio que todas as páginas do nosso comunicado entrarão no documento final da cúpula de novembro, mas espero que os líderes políticos absorvam a essência delas.” Nader pretende, agora, entregar o texto para todas as sociedades científicas do Brasil e apresentá-lo em diversas escolas. “Galinha que não cacareja não avisa que botou ovo”, sentencia, sacudindo as páginas do relatório. “Então, vou tratar de cacarejar.”


Desafios no combate ao antissemitismo - Sofia Débora Levy (Casa Stefan Zweig, Petrópolis, RJ)

 

Diretora Educacional do Memorial às Vítimas do Holocausto do Rio de Janeiro, Sofia Débora Levy é psicóloga clínica, bacharel e licenciada em Psicologia e em Letras Português-Hebraico, professora, consultora, mestre em Psicologia (UFRJ), doutora em História das Ciências, Técnicas e Epistemologia (UFRJ) com pós-doutorado em Memória Social (Unirio). Localizado no Morro do Pasmado em Botafogo, no Rio de Janeiro, o Memorial às Vítimas do Holocausto tem por objetivo preservar e tornar conhecidas as histórias das vítimas da perseguição e do genocídio cometidos pelo regime nazista que atingiu judeus, negros, pessoas com deficiência física e mental, comunidade LGBTQIAP+, Testemunhas de Jeová, maçons e outros grupos. No subsolo do monumento de 20 metros que representa os Dez Mandamentos abriga uma exposição permanente com memórias e relatos de vítimas e sobreviventes do Holocausto.

 

Em setembro, o tema será "Combate ao racismo", e o palestrante é Filipe Graciano, do Museu da História Negra de Petrópolis.

 

Venham participar. A participação dá direito a certificado, para quem precisar.