quarta-feira, 5 de março de 2025

The war that money can’t buy - Viktor Kravchuk

 

Vamos olhar para dentro, again (Economic Consequences of Mister Trump) - Paulo Roberto de Almeida

Vamos olhar para dentro, again

Paulo Roberto de Almeida

Nota sobre o retorno dos EUA sobre si mesmo, na introversão trumpista. 


        Trump está anunciando o maior programa de introversão umbilical da história dos EUA, ever. Não sei se vai conseguir nos próximos 3,5 anos, mas é possível que consiga entravar os EUA por anos à frente.

        Xi Jinping e toda a China agradecem a facilitação desse trabalho no sentido de “make China great again”. 

        Três séculos atrás, um Imperador idiota, aconselhado por mandarins talvez  “republicanos”, resolveu fechar os portos da China aos contatos estrangeiros, expulsar os “imigrantes” e passar a viver na excelência de suas realizações anteriores, excelentes até ali.

        Em consequência, a China passou em branco pela primeira revolução industrial, pela segunda, e na terceira, estava imersa no Grande Salto para a Frente e na Revolução Cultural do maoísmo demencial, e conseguiu recuar o gigante asiático da primeira economia do mundo (1/3 do PIB global) até o século XVIII, para menos de 5% do PIB total sob Mao.

        Deng, com certo esforço, logrou colar a China à 4a. revolução industrial, e ela já está a caminho da 5a. e possivelmente já está na 6a., com distinção.

        Trump quer recuar os EUA abaixo da 3a. revolução industrial, para o fordismo da 2a., a do motor à explosão e do petróleo.

        Os chineses só observam, satisfeitos, mas silenciosos. 

        Como diria Napoleão, nunca interrompa seu inimigo quando ele estiver fazendo alguma bobagem. Keep quiet China!

        Trump está ajudando a fazer a China great again, e ela agradece, mas só silenciosamente, para não interromper esse magnífico processo de retrocesso programado, deliberado e voluntário.

        Arnold Toynbee e Carlo Maria Cipolla, estudiosos da sucessão e da decadência dos impérios, já faleceram, pois teriam excelente material empírico para continuar A Study of History e The Economic Decline of Empires em novas bases, nunca antes vistas na História.

        Trump merece todo o crédito pela obra grandiosa, aplaudido freneticamente pelos republicanos amestrados.

        Confesso que eu nunca esperei ter uma exposição completa de um painel inteiro do desenvolvimento histórico num único discurso alucinante no Congresso americano. Thanks Donald: como diria Keynes, teremos consequências econômicas de Mister Trump.

        Encerro, deplorando o espetáculo.

Paulo Roberto Almeida

Brasília, 5 de março de 2025


terça-feira, 4 de março de 2025

Hugh Wilford. The CIA: An Imperial History - A Roundtable Book Review

H-Diplo|RJISSF Roundtable 16-26 on Wilford, _The CIA_


H-Diplo | Robert Jervis International Security Studies Forum

Roundtable Review 16-26 

Hugh Wilford. The CIA: An Imperial History. Basic Books, 2024. ISBN: 9781541645912.

3 March 2025 | PDF: https://issforum.org/to/jrt16-26 | Website: rjissf.org | Twitter: @HDiplo

 

Contents

Introduction by Rhodri Jeffreys-Jones, University of Edinburgh. 2

Review by Paul Thomas Chamberlin, Columbia University. 7

Review by Thomas C. Field Jr., Embry-Riddle Aeronautical University. 11

Review by Molly Geidel, Dartmouth College. 14

Review by Stuart Schrader, Johns Hopkins University. 19

Review by Simon Willmetts, Leiden University. 25

Response by Hugh Wilford, California State University, Long Beach. 35


Introduction by Rhodri Jeffreys-Jones, University of Edinburgh

In his latest book, The CIA: An Imperial History, Hugh Wilford recognizes the impossibility of being comprehensive. Because the life-span of the Central Intelligence Agency (CIA), which was founded in 1947 and is still functioning today, coincides with the period of America’s status as a great power, it would be an unachievable task to cram between two covers an exhaustive account that would need to double as a history of the contemporary world.[1] Wilford wisely chooses a more selective approach. Thematically, he concentrates on the proposition that the CIA was an imperial agency. Methodologically, he employs a biographical approach that in the nineteenth century was associated with the Scottish historian Thomas Carlyle (1795–1881).[2] He by no means entirely goes along with Carlyle's working proposition that great men made history. But his narrative does operate on the principle that history can be better understood by taking the human approach, in this case the study of representative leading figures.

The five reviewers see the book as well written, not just stylistically, but also in the way in which Wilford synthesizes a complex argument: appropriately both Thomas F. Field, Jr. and Stuart Schrader use the word “elegant” to describe the author’s achievement. Also unanimously, the reviewers see the book as thought-provoking. All of them agree with Wilford’s contention that the CIA’s mentalities and actions were a manifestation of imperialism. All five of them see this as regrettable.[3] At the same time, each of the reviewers has distinctive emphases and perspectives that enrich their collective dialogue.

Paul Thomas Chamberlin shows how Wilford challenges the “foundational myth” that the CIA was established in response to the Pearl Harbor attack of 1941. Rather, it was a response to Washington’s determination to enact an imperial role in the post-World War II era. He notes Wilford’s further point that prominent figures in the early CIA, such as Kermit Roosevelt, had private education and Ivy League backgrounds that made them similar to their UK counterparts, and susceptible to the absorption of British imperial ideology articulated by writers such as Rudyard Kipling and T.E. Lawrence (“Lawrence of Arabia”).[4] Chamberlin wonders whether there were further “structural and institutional dimensions of the CIA's imperialism” and reflects that the agency was just one of several utensils in “America's imperial toolbox,” but still finds Wilford's argument to be “compelling.”

Like Chamberlin, Thomas C. Field, Jr., is impressed by Wilford’s genius in arguing that the leading CIA men were at heart anti-imperialists who found that operating in secret was a way of circumventing the inconvenience of having principles.[5] Though crediting British influence, he describes the reliance of the United States on CIA-style covert operations, one of the book’s “throughlines,” as distinctively American. He notes that the biographical methodology “tends to depict a rather episodic history of CIA operations, jumping from highlight (Iran) to highlight (Vietnam).” Field concludes by considering the final section of the book, and Wilford’s view of what happened to the CIA and the mentalities behind it after the damaging revelations and congressional investigations of 1975.[6] He argues that some of Wilford’s earlier findings on voluntarism, or the recruitment of the private sector for intelligence work, may have a continuing applicability in the twenty-first century.[7]

Molly Geidel highlights Wilford’s account of CIA leaders’ storytelling, the importance of which is his “most important argument.” Imperialism is the “defining feature” of that storytelling and an “attendant orientalism” its unsavory embellishment. At the same time, she applauds Wilford’s account of the “homosocial ties” that bound influential CIA actors like Edward Lansdale to their neocolonial collaborators. She illustrates the harm done by CIA covert operations, offering mortality numbers in support of her point (here, it would be interesting to see some comparisons with other countries’ imperial violence, and with the global history of the statistics of deadly quarrels).[8] She argues that Wilford accepts CIA leaders’ professed anti-imperialism “a bit too credulously,” and points to the imperial-style elitist indoctrination of students “which persists to this day in the United States,” which helps explain the response of some campus leaders to recent student unrest, and which is, in fact, foreshadowed in the narrative of The CIA: An Imperial History (252).

(…)


Read the RoundTable review here: 


https://www.academia.edu/128011959/H_Diplo_Wilford_The_CIA_History_roundtable_Book_Review

Em 2026, nem Bolsonaro, nem Lula vão estar na competição eleitoral: artigo de Augusto de Franco sobre a rejeição do petismo

 Recentemente, o Estadão fez um editorial congratulando-se que nem Bolsonaro, nem Lula seriam realmente competitivos em 2026. Talvez, mas ainda não superamos a bipolaridade lulopetismo-bolsonarismo no Brasil.

Augusto de Franco republicou um artigo de 2022, sobre as razões da rejeição do petismo pela população brasileira. Reproduzo aqui abaixo: 

Por que o petismo irritou as pessoas

Deixando-as vulneráveis ao bolsonarismo


Publicado originalmente em Dagobah 09/08/2022. Reeditado em 04/03/2025.

Para começar essa conversa é necessário entender que a PPA (População Politicamente Ativa) não é composta por quem vota ou comparece a comícios como plateia (sobretudo num país onde o voto é obrigatório e há forte clientelismo) e sim por quem interage politicamente na esfera pública (presencial ou virtualmente), seja – entre outras coisas – emitindo opiniões, articulando ou participando ativamente de manifestações, assinando declarações, fazendo campanha eleitoral ou experimentando mudanças nas relações entre as pessoas em localidades, setores de atividade e organizações.

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É possível que os simpatizantes de Bolsonaro na PPA sejam em número igual ou maior aos simpatizantes de Lula, pois a parcela da PPA que ganha até dois salários mínimos (faixa de renda da população que dá vantagem à Lula nas pesquisas de opinião) é pequena.

Sim, a faixa de renda do eleitorado que dá vantagem à Lula nas pesquisas de opinião é a de quem ganha até 2 salários mínimos. Se Lula perder a vantagem que tem nessa faixa, talvez empate com Bolsonaro.

O fato é que há uma nova PPA no Brasil. Boa parte dessa PPA surgiu a partir de uma insatisfação difusa com o sistema (2013), traduziu-se politicamente como rejeição ao petismo (2014-2016) e foi então reacionarizada pelo bolsonarismo (2017 aos nossos dias).

Bolsonaro, provavelmente, não tem – como opção positiva – os 30% dos votos que lhe atribuem a maioria das pesquisas eleitorais. Ainda há nesse bolo muito de antipetismo. Muitos preferem Bolsonaro, mesmo sabendo que ele ruim, porque não querem a volta do PT. Aliás, como dissemos acima, o bolsonarismo nasceu – juntamente com uma insatisfação com o sistema – do antipetismo, depois cavalgado pela extrema-direita.

Mas contribuiu muito para o antipetismo o chamado lavajatismo. Não sem razão. Na cruzada de limpeza ética estimulada pela Lava Jato (mas que, na verdade, começou bem antes, a partir das reações políticas e judiciais aos crimes cometidos pela dupla Waldomiro-Dirceu – que logo se desdobrou no mensalão), três presidentes do PT foram presos. Três tesoureiros do PT foram presos. Cinco secretários do PT foram presos. Os líderes do PT na Câmara dos Deputados e no Senado foram presos. A presidente petista da república sofreu impeachment. E um ex-presidente da república foi preso. Além disso, os presidentes da Petrobrás, dos Correios, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, da Eletrobrás, da Nuclebrás, da Valec e do BNDES foram presos. Ainda que o PT tente dizer que tudo isso foi uma grande conspiração “das elites” (de direita) contra “o povo” (representado pelo partido), não cola. Teria de ser a maior conspiração da galáxia para inventar do nada tanta corrupção (e, além disso, houve confissão e dinheiro de roubo devolvido).

Há ainda muito antipetismo. Mas só há antipetismo porque houve (e há) petismo. É o óbvio, que entretanto precisa ser repetido.

Pois bem. O que é o petismo? E por que uma extensa parcela que se tornou politicamente ativa da população rejeitou esse tipo de comportamento político chamado de petismo?

O comportamento petista irritou as pessoas a ponto de predispô-las a passarem da condição de população politicamente passiva para a condição de população politicamente ativa. Não irritou as pessoas apenas intelectualmente (por discordância ou dessintonia com o que pensam). Irritou-as emocionalmente. E como a emoção é sempre o gatilho da ação, elas resolveram agir, com os meios de que dispunham. E a proliferação e a disponibilização das mídias sociais forneceu, em parte, esses meios, sobretudo para quem ganha mais de dois salários mínimos e, em especial, para quem ganha mais de cinco salários mínimos. Quem ganha até dois salários mínimos continuou apenas votando e, eventualmente, participando de comícios como platéia – o que não caracteriza uma população politicamente ativa.

Em seguida listamos, como exemplos, alguns fatores alergênicos que podem explicar porque o petismo irritou as pessoas a ponto de deixá-las vulneráveis ao bolsonarismo.

O espírito militante patrulhador e a intolerância (com quem pensa diferente)

Muito antes de termos o desprazer de encontrar os novos militantes bolsonaristas, tivemos contato com os militantes petistas. É claro que os militantes bolsonaristas são muito mais insuportáveis do que os petistas – sobretudo porque são mais ignorantes e mais propensos a acreditar em narrativas parabólicas conspirativas. Mas todo militante é parecido.

Militantes, não importa a causa, são seres protegidos da verdade (ou seja, não adianta discutir com eles). Porque sempre estão em guerra contra alguém ou alguma coisa (e na guerra a primeira vítima é, via-de-regra, a verdade). Aliás, a palavra militante vem do latim militantia, de militans, particípio de militare, “servir como soldado”, de miles, “soldado”.

Pois bem. O militante petista foi o primeiro agente de uma espécie de jihadismo ostensivo (conquanto, em geral, não-violento) com o qual a maioria de nós teve contato. O contato mais desagradável com o militante petista é o da patrulha. Você fala ou escreve alguma coisa discordando de qualquer posição petista e pronto: lá vem a chusma patrulhá-lo.

A patrulha petista original não é exatamente igual ao atual cancelamento. Seu objetivo é a dissuasão. Se depois de emitir um juízo fora da “linha justa” você é patrulhado, pensará duas vezes antes de recalcitrar. Com o tempo, porém, a patrulha petista foi ficando parecida com o cancelamento bolsonarista. E, no que tange aos setores identitaristas pertencentes ao PT, ficou até pior (basta ver o que fizeram com o Antônio Risério).

A patrulha, porém, não é o único fator alergênico do comportamento petista. Há também a perseguição, sobretudo aos que já pertenceram aos quadros petistas, que são tratados como traidores e viram inimigos. Nesse particular o PT segue a máxima autocrática de destruir os inimigos privando-os dos recursos necessários à consecução de seus projetos e, até mesmo, das condições de sobrevivência. O sujeito nessa situação vira um pária em todos os meios em que o PT tem influência: é excluído de várias atividades, postos ou cargos universitários (sobretudo nas federais e nas áreas de humanas), nas iniciativas culturais e artísticas em geral, não recebe mais convites para palestras e consultorias feitos por empresas onde simpatizantes do PT tenham assento nos conselhos de administração ou na diretoria, é escanteado em veículos de comunicação e excluído as articulações de organizações da sociedade civil hegemonizadas pelo partido.

Em particular, pessoas que pretendem fazer carreira na área cultural – artística, intelectual e até jornalística – dificilmente resistem à pressão “ambiental” do PT. O propósito do neopopulismo lulopetista é transformar toda a população (ou, pelo menos, a sua maioria) em simpatizante do partido. Quem não se torna simpático sofre retaliações indiretas, tendo mais dificuldade para prosseguir na sua carreira e vai ficando sem meios para realizar os seus projetos. Perde financiamentos, perde audiência, é preterido ou ignorado por seus pares, não é convidado para eventos, é recusado por editoras, não é contratado para prestar serviços. Isso está voltando agora com força na campanha de 2022. É como se o normal ou natural fosse apoiar Lula. Quem não apoia – mesmo que seja contrário a Bolsonaro – é porque tem algum problema: quem sabe é um bolsonarista enrustido, um direitista envergonhado, alguém com algum interesse escuso ou, simplesmente, um egoista que só pensa em si e está pouco se lixando para o povo.

A condenação moral de quem não segue o partido

Isso é curioso. A militância petista acha-se mais ética ou com mais senso moral do que todos os outros setores políticos. É arrogante. E essa arrogância irrita os demais atores.

Como já escrevi no artigo Não há nenhuma superioridade moral em ser de esquerda, “a esquerda acredita que é melhor, não apenas politicamente, mas também moralmente, porque tem objetivos mais generosos. Transformando a política de uma questão de modo (modo de regulação de conflitos) em uma questão de lado (de quem está do lado certo, o único moralmente justificável por seus excelsos propósitos), a esquerda acha-se moralmente superior. Isso justifica, de antemão, tudo o que fazemos “nós”, contra tudo o que fazem “eles”. Pertencer ao “nós” é moralmente superior a pertencer ao “eles”. Porque é estar do “lado certo” da história, não do “lado errado”, onde estão “eles”. Por que isso é um problema? Porque, pensando e agindo de acordo com essas crenças, a esquerda passa a discriminar quem não é de esquerda. Só quem presta, ou quem presta mais, é de esquerda”. Ora, quem é discriminado fica irritado e, muitas vezes, ressentido. Só fica esperando uma oportunidade para dar o troco.

Quando acusava FHC e os tucanos de serem neoliberais, o PT não parava aí. Dizia que eles eram neoliberais porque, no fundo, eram fascistas ou neocolonialistas ou vendidos ao imperialismo norte-americano. E, segundo boa parte da militância petista intolerante, faziam tudo isso porque eram moralmente inferiores.

A incapacidade de reconhecer os próprios erros

Ecoando a letra do hino do partido comunista alemão – que dizia numa estrofe infame: “o Partido, o Partido, o Partido, tem sempre razão” – o PT nunca reconhece um erro, falha ou malfeito. A culpa é sempre dos adversários ou dos inimigos.

Depois de ter depositado seus ovos dentro da carcaça podre do velho sistema político, de ter se aliado ao que havia de mais corrupto na política, de ter chafurdado no mensalão e no petrolão, o PT não foi capaz de fazer uma autocrítica, de se desvencilhar de sua direção corrupta e não aceitou o processo constitucional do impeachment qualificando-o como golpe. Não satisfeito, o PT passou a acusar os que não fizeram a campanha de Haddad e não votaram nele em 2018, pela vitória de Bolsonaro. E continua até hoje com essa cantilena. Que irrita demais.

O hegemonismo

O hegemonismo é uma exacerbação do majoritarismo (a soberania da vontade da maioria), próprio da concepção política do neopopulismo. No caso do lulopetismo, o hegemonismo é uma espécie de espírito Highlander (“Só pode haver um”). O partido-Príncipe é o dono da verdade, o professor de Deus. É o PT FIRST: o hegemonismo petista como um trumpismo com o sinal trocado.

Imaginando que democracia seja, fundamentalmente, soberania popular, o PT faz um raciocínio simples, primário e incorreto: se nós somos os legítimos (ou mais legítimos) representantes do povo, o “verdadeiro povo” (the true people – composto pelos que seguem o líder do partido), então nós somos a verdadeira democracia (traduzida como uma sociedade menos desigualitária e mais justa). Ou melhor, uma sociedade menos desigualitária e mais justa só poderá se estabelecer quando nós hegemonizarmos todos os processos da vida social, a começar pelas instituições estatais, passando pelos corporações sindicais e movimento sociais, até chegar às diversas formas de sociabilidade.

O hegemonismo exige o alinhamento de posições em todo lugar, seja a família, a escola, a igreja, a organização da sociedade civil, o órgão estatal e, se possível, a empresa. Isso gera uma espécie de proselitismo evangelizador por parte da militância e da “simpatizância” que também irrita as pessoas, porque ninguém gosta de se sentir errado (ou de ser acusado de estar errado). E, para o PT, quem não é do PT ou não apoia o PT (ou seus satélites da esquerda) está sempre errado.

Na campanha eleitoral de 1982 o PT dizia: “Vote no 3, que o resto é burguês” (3 era o número do partido na ocasião). Claro que o partido amadureceu do ponto de vista de estratégia e tática eleitorais. Mas pedaços desse “DNA” remanesceram nos discursos atuais de campanha (quase 40 anos depois).

O tratamento instrumental dos aliados

O PT faz alianças, diz-se, não sem razão, apenas para ficar mais forte e, não raro, matar os aliados ao final. Todo mundo que já negociou com o PT, no parlamento, para a montagem de chapas de candidatos ou no movimento social, sabe da dificuldade do PT de ter uma visão não-instrumental das alianças (entendendo que fazer composições é o correto numa democracia). Não. O PT, via de regra, tem que estar na cabeça ou no comando de qualquer articulação. Se é para fazer uma frente ampla em defesa da democracia, até para evitar um golpe de Estado que alardeie como iminente, o que o PT propõe é que todos apoiem o seu candidato (jamais passando pela sua cabeça propor um futuro governo de coalizão democrática).

Depois disso, quem – não sendo petista – pode confiar plenamente no PT?

A contradição evidente de se dizer democrata mas apoiar ditaduras

Todo mundo que tem dois neurônios (funcionando) sabe que existem coisas que democratas não podem fazer. Por exemplo, desculpar a ditadura de Cuba (dizendo que todo o problema é o bloqueio dos EUA). Ou defender (justificar ou não condenar abertamente) ditaduras como a da Venezuela, da Nicarágua e de Angola. Ou, ainda, não condenar claramente a guerra de conquista da Ucrânia movida por Putin (dizendo que ele está apenas se defendendo da expansão da OTAN). Por último, justificar as tentativas de anexação da Ucrânia pela ditadura russa e de Taiwan pela ditadura chinesa em nome de combater “o imperialismo norte-americano”.

Com efeito, o PT apoiou o bolivarianismo de Chávez, continuou apoiando Maduro mesmo quando já estava claro que a Venezuela havia virado uma ditadura, e fez o mesmo com o sandinismo de segunda geração de Daniel Ortega na Nicarágua, outra ditadura. Sempre apoiou os irmãos Castro, ditadores de Cuba. E foi um dos responsáveis pela articulação da via neopopulista de usar a democracia contra a democracia, adotada por todos esses já mencionados (com exceção dos cubanos, que não querem ouvir falar de eleição) e por Correa no Equador, por Evo na Bolívia, por Funes em El Salvador, por Lugo no Paraguai, por Zelaya em Honduras, por Cristina e Fernandez na Argentina, por Obrador no México etc.

O que garante, às pessoas que não concordam com o PT, que – uma vez novamente no poder – o PT não reeditará uma prática de apoio às ditaduras amigas?

O caráter i-liberal (ou não-liberal) do projeto petista

Aqui encontramos uma consequência da concepção e da prática da política como uma continuação da guerra por outros meios: o famoso “Nós” (o povo) contra “Eles” (as elites). Sim, aquelas “elites que nos governam desde Cabral” – como ficou rouco de repetir Lula em seus discursos.

As elites aqui não são definidas sociologicamente e sim ideologicamente. Elites são todos os que não estão com o partido e com seu líder supremo. Muito antes de Bolsonaro, isso foi introduzido pelo PT. O paroxismo dessa praxis foi a campanha de reeleição de Dilma em 2014. A partir dali o “Nós” contra “Eles” pervadiu a sociedade toda, chegando inclusive às famílias, aos namoros e aos grupos de amigos.

Bem, isso leva claramente a uma postura i-liberal ou não-liberal, que pode ser assim caracterizada:

Em vez de achar normal que a sociedade esteja dividida entre muitas – e às vezes transversais – clivagens, o PT acha que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) das elites.

Em vez de avaliar que a melhor maneira de lidar com essas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e a busca do consenso (sem elidir os dissensos), o PT acha que a polarização (povo x elites) deve ser encorajada. Os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo e hegemonismo).

Em vez de ressaltar que o Estado de direito e os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas) precisam ser respeitados, o PT pensa que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares; e, além disso, acha – embora não o declare – que a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada (a não ser por razões táticas, de não ficar em posição ilegal) quando se contrapõe aos interesses do povo.

Os três parágrafos acima compõem uma definição, por contraposição, entre uma postura liberal em termos políticos e uma postura populista (i-liberal ou não-liberal). Mesmo que as pessoas, em sua imensa maioria, não entendam as diferenças conceituais entre um comportamento liberal e um comportamento populista, i-liberal ou não-liberal, elas são capazes de perceber os efeitos nocivos da guerra fria (“nós contra eles”) insuflada pelo populismo.

Acontece que as pessoas, em geral, não gostam de transformar a convivência social, seja na família, nos grupos de amigos, nos namoros, nas escolas e universidades, nas igrejas e nas organizações da sociedade e no trabalho, em uma disputa adversarial divisiva e estiolante. Quando tudo é luta, luta, luta, qualquer ambiente torna-se insuportável.

A estratégia do neopopulismo lulopetista

O PT jamais anunciou uma estratégia pronta e acabada. Mas é possível compor suas concepções e práticas de sorte a ter um retrato dessa estratégia. Vejamos alguns exemplos:

O PT sempre defendeu o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Frequentemente hostilizou a imprensa livre (inclusive a Rede Globo, como faz atualmente o bolsonarismo). Enquanto isso, o PT montou e financiou um rede suja de sites e blogs para detratar seus adversários transformando-os em inimigos. Montou milícias virtuais (os MAVs), promoveu cursos e editou um manual com táticas para a guerrilha na internet. Mas tem mais.

O PT tentou instituir a participação assembleísta e conselhista arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de transmissão do partido para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado. Sim, o PT aparelhou o Estado com seus militantes em uma proporção jamais vista até então.

O PT defendeu a partidocracia (voto em lista pré-ordenada, fidelidade partidária e financiamento exclusivamente estatal dos partidos), querendo manter o oligopólio dos incluídos na política para bypassar o processo legislativo.

Havia no PT, recentemente (em 2016), quem quisesse até mudar os currículos das academias militares e alterar o processo de promoção de oficiais das forças armadas privilegiando aqueles com compromisso nacionalista.

O PT defendeu, nos idos de 2013-2014, um plebiscito para convocar uma Constituinte exclusiva de reforma política favorável aos interesses hegemonistas do partido.

A estratégia do PT visava – ao que tudo indica – mudar homeopaticamente o genoma do regime democrático. Previa estabelecer uma hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido com o fito de nunca mais sair do governo (ou nele se delongar indefinidamente).

Muitas pessoas – mesmo as que não eram estudiosas da política ou não tinham grande experiência política – sentiram que isso não poderia ser coisa boa. Observando o comportamento do PT e de seus principais aliados internacionais, desconfiaram que, uma vez tendo alcançado o poder pelo voto, o PT não sairia facilmente do poder apenas pelo voto.

Não estavam erradas. Nenhum partido populista sai facilmente do poder apenas pelo voto. Como escrevi no artigo linkado na frase anterior, “Orbán saiu? Não, foi reeleito. Erdogan saiu? Não, foi reeleito. Modi saiu? Não, foi reeleito. Putin saiu? Não, foi reeleito. À direita, Trump é a única exceção, mas deslegitimou a vitória de Biden. [Vejamos agora à esquerda]. Ortega saiu? Não, foi reeleito n vezes. Chávez e Maduro sairam? Não, um morreu e o outro, seu sucessor, foi reeleito n vezes. Correa saiu? Não, emplacou seu sucessor Moreno. Evo saiu? Não, foi reeleito n vezes até que sofreu um golpe parlamentar. Zelaya saiu? Não, foi preso. Lula e Dilma sairam? Não, Lula fez sua sucessora Dilma, que sofreu impeachment. Lugo saiu? Não, sofreu impeachment. Funes saíu? Não, fez seu sucessor, Salvador Cerén, da mesma Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional. À esquerda, Cerén (El Salvador) é a única exceção (já que Cristina não conta ao não ter conseguido emplacar Scioli seu sucessor, pois estava em transição do velho populismo peronista para o neopopulismo contemporâneo). Com as exceções, mencionadas acima, que confirmam a regra, nenhum partido que abrigava esses populistas saiu do governo apenas pelo voto.

Aí as pessoas pensam. Vamos votar no Lula para nos livrar de Bolsonaro. Tudo bem. Mas… e depois? Como vamos tirar o PT do poder apenas pelo voto?

Conclusão

Bem… tudo isso irritou, contrariou e deixou ressentidas muitas pessoas que engrossaram o antipetismo. Ou seja, o antipetismo não caiu da árvore dos acontecimentos, nem veio de Marte ou de Vênus. Ele tem uma fonte inequívoca: o petismo! Irritadas, parte dessas pessoas aderiu a qualquer alternativa capaz de evitar a continuidade do petismo ou o seu retorno ao centro do palco. Como, num primeiro momento, não havia alternativa democrática, permaneceram contrariadas, algumas até negando a política. E, em alguma medida, ressentidas. Infelizmente, a alternativa antipetista que surgiu foi o lavajatismo seguido do bolsonarismo (é simbólico que a famosa República de Curitiba tenha virado, sem a menor cerimônia, comitê eleitoral de Bolsonaro). As pessoas ficaram então vulneráveis à alternativas antidemocráticas. Vulneráveis, elas se deixaram capturar.

Não estou falando, porém, de todas as correntes que compõem o bolsonarismo. Estou falando apenas do antipetismo, que nem é uma corrente de opinião, uma força política organizada ou em organização e sim uma predisposição para aderir a qualquer movimento que surgiu se opondo ao petismo.

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Um plebiscito resolve a questão do Donbas? - Marcelo Guterman

 Um plebiscito resolve a questão do Donbas?

Fronteiras entre os países sempre foram algo disputável. Afinal, o que define uma fronteira?

Durante séculos, fronteiras entre reinos e países foram estabelecidas e reestabelecidas, seja na base da negociação comercial, seja na base da guerra. Aqui mesmo na América do Sul, ainda temos disputas territoriais entre Venezuela e Suriname, entre Chile e Bolívia, entre Argentina e Grã-Bretanha e entre a Argentina e o Chile. Com exceção do área do Essequibo, todas as outras disputas envolvem pequenas áreas ou rios. Mas não deixam de ser disputas.

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O último grande redesenho de fronteiras se deu após a queda do muro de Berlim, quando as ex-repúblicas soviéticas se separaram da mãe Rússia e se tornaram países independentes. O desenho das fronteiras atuais da Ucrânia foram estabelecidas em seu decreto de independência, de agosto de 1991, e não foram contestados, à época, pela Rússia. Um referendo popular, em dezembro do mesmo ano, aprovou a independência. O mapa abaixo mostra o apoio à independência, que ganhou em todos as regiões, inclusive no Donbas e na Crimeia. Nesta última, o apoio foi mais apertado, com 54% de aprovação e baixo comparecimento às urnas, mas, mesmo assim, houve aprovação. Na região do Donbas, o apoio foi superior a 80%.

Há quem defenda que se faça um referendo na região do Donbas para que a população se manifeste. São duas questões aqui. A primeira se refere às condições objetivas para a realização de um referendo justo, em um território ocupado por forças russas. Efetivamente foi realizado um em 2014 e outro em 2022, mas seus resultados, como pode se imaginar, foram fortemente influenciados pela pressão dos rebeldes separatistas e das forças militares e paramilitares russas estacionadas na região.

A segunda questão, no entanto, é mais importante. Todo país tem suas divisões internas. As regiões se distinguem umas das outras de vários modos. Imagine se, a cada discordância, as regiões resolvessem se separar do país. Por exemplo, não seria surpreendente se a separação do São Paulo do restante do País fosse aprovada em um plebiscito no Estado. Seria legal? Ou tal tentativa de separação seria combatida militarmente pelo governo federal? Em 1932 não houve tentativa de separação, mas as forças federais entraram em guerra civil contra as forças paulistas por muito menos.

No caso da Ucrânia, houve um referendo fundacional, que estabeleceu as suas fronteiras. A partir daí, não pode haver mais discussão sobre este assunto, a não ser na base da força, como ocorreu na região da Crimeia e ocorre agora na região do Donbas. Os cidadãos do Donbas aprovaram a sua incorporação à Ucrânia na sua fundação, e agora fazem parte da unidade territorial ucraniana. Colocar em dúvida de maneira permanente as fronteiras de um país não é compatível com qualquer estabilidade institucional. Ainda mais, como sabemos, quando o grupo rebelde é alimentado pela força estrangeira que deseja incorporar o território.

Assim, a solução simplista "vamos fazer um plebiscito e seguir a vontade da população" já foi adotada em 1991, e não há motivo para que seja feito novamente. Ainda mais sob a mira de fuzis.

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