Já informei sobre a publicação deste livro, agora recebido em pdf, e que coloco à disposição dos interessados, no qual colaborei com um texto que havia escrito para minha participação num seminário especial da PUC-RS em 2013, que transcrevo no corpo desta mensagem, para os muito apressadinhos:
1186. “Padrões
e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica:
uma síntese tentativa”,
In: Marçal de Menezes Paredes
et al. (orgs.), Dimensões do poder:
história, política e relações internacionais (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015,
191 p.; ISBN livro impresso: 978-85-397-0714-0; ISBN livro digital: 978-85-397-0715-7);
pp. 135-164;
Relação de Originais n. 2522.
Padrões e tendências das
relações internacionais do Brasil em perspectiva
histórica: uma síntese tentativa
Paulo Roberto de Almeida
Texto preparado para o IX Congresso de Estudos
Ibero-Americanos da PUC-RS.
Apresentado em 29/10/2013; versão para publicação: 17/01/2014.
Esquema do trabalho:
1. Introdução:
premissas conceituais e suas limitações
2. Periodização
tentativa: cinco momentos das relações internacionais do Brasil
2.1. O Império: a construção
da nação e as bases de sua diplomacia
2.2. A Velha República: os
mitos e as deficiências da política externa
2.3. A era Vargas: escolhas
estratégicas, a despeito de tudo
2.4. O regime militar:
consolidação do corporatismo diplomático
3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil
3.1. Uma
periodização diplomática para o período contemporâneo
3.2. Os anos turbulentos das
revisões radicais do momento neoliberal
3.3. Estabilização
macroeconômica e nova presença internacional
3.4. Por fim, a era do nunca
antes: a diplomacia personalista de Lula
4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória
histórica?
5. Nota final:
reformas internas e inserção na globalização
Resumo: Ensaio histórico sobre as grandes linhas das relações internacionais do
Brasil e sobre seu processo de desenvolvimento ao longo dos séculos 19 e 20,
com considerações mais detalhadas sobre as características da política externa
no período recente, em especial as diplomacias conduzidas nas presidências FHC
e Lula. Seguem-se argumentos de cunho qualitativo sobre as deficiências
notórias do desenvolvimento brasileiro, sobre a origem puramente interna das
dificuldades atuais, concluindo pela necessidade de reformas estruturais e uma
opção pela inserção na globalização.
Palavras-chave: relações internacionais, política externa, Brasil,
diplomacia, desenvolvimento, globalização.
Nota sobre o autor: Paulo Roberto de Almeida é mestre em planejamento
econômico, doutor em ciências sociais, diplomata de carreira, professor de
Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro
Universitário de Brasília (Uniceub) e autor de diversos trabalhos de história
diplomática do Brasil e de relações econômicas internacionais (www.pralmeida.org). As opiniões e argumentos desenvolvidos
no presente ensaio são as do próprio autor, e não refletem posições ou
políticas da instituição diplomática ou do governo brasileiro.
1. Introdução:
premissas conceituais e suas limitações
Abordar a problemática dos
padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva
histórica implica, implícita ou explicitamente, examinar as mudanças de regime ocorridas
em suas configurações ao longo do tempo, discorrer sobre eventuais paradigmas
ou conceitos unificadores daquelas características em suas diferentes etapas,
bem como tentar detectar aquilo que se costuma chamar de “linhas de
continuidade” ou, alternativamente, “momentos de ruptura”, isto é, conjunturas de
descontinuidade em relação aos traços predominantes na fase anterior. Representa
também identificar os componentes definidores das relações exteriores do
Brasil, no seu sentido amplo, em cada um dos períodos pretensamente homogêneos da
história nacional, e aplicar, a esses conjuntos, alguns rótulos que supostamente
ofereceriam uma síntese de suas identidades respectivas em uma dinâmica de
sucessão de políticas.
Tais exercícios de síntese
não faltam na historiografia nacional, eventualmente até na área das relações
internacionais do Brasil, embora sejam bem mais comuns nas áreas da história política
ou da econômica. Eles começam sempre por algum tipo de periodização, que serve,
justamente, para delimitar as grandes fases da história nacional. Os marcos
definidores mais comumente aceitos na historiografia nacional poderiam ser
representados por estes processos ou etapas da vida nacional: o período colonial,
o primeiro e o segundo reinados (eventualmente intercalados pelas regências), a
velha República, a era Vargas, a República de 1946, o regime militar e, para a
fase mais recente, a chamada “nova República”, também identificada como de redemocratização,
embora já se esteja longe do processo de reconstrução institucional do final
dos anos 1980 e do início da década seguinte.
Esses ensaios de
periodização também podem se fixar numa vertente menos linear politicamente, e
mais de tipo econômico, a partir das grandes características estruturais de
cada época: a economia primário-exportadora, a era (e a diplomacia) do café, a industrialização
substitutiva de importações, o nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, a modernização-autoritária
do período militar, ou um alegado (pelos seus adversários ideológicos, mas totalmente
inexistente) “neoliberalismo” dos anos 1990, com eventualmente mais alguns
processos intermediários. Vários desses rótulos, no entanto, são
necessariamente simplificadores e sempre estarão sujeitos às revisões
historiográficas que normalmente ocorrem nas ciências humanas e sociais. Pode-se
também argumentar que alguns rótulos são francamente ideológicos, como parece
ocorrer com o presumido “neoliberalismo”, que alguns observadores – talvez até
historiadores – querem associar aos processos de abertura econômica e de
liberalização comercial dos anos 1990, uma classificação altamente improvável
no caso de um país que jamais foi liberal, muito menos neoliberal, e sempre
seguiu uma cartilha abertamente intervencionista, mesmo quando se tratou de
corrigir os excessos do estatismo anterior (com governos sempre recorrendo a
decretos e medidas provisórias).
A fase recente, ou seja, as
administrações identificadas com o presidente Lula e o Partido dos
Trabalhadores, tem se prestado a algumas das simplificações e abusos a que se
submetem alguns momentos de ruptura, quando sua interpretação e registro são dominados
pelos discursos daqueles mesmos que querem fazer acreditar que este período de
“história imediata” tenha sido de fato marcado por mudanças cujo caráter eles
previamente se encarregaram de definir segundo um rótulo escolhido a propósito.
Demonizar a chamada “herança maldita”, pespegar o rótulo equivocado de
“neoliberal” a qualquer orientação de política econômica que não lhes parece
condizente com seus objetivos protonacionalistas e reconhecidamente
estatizantes, arrogar-se a pretensão de retomada da “política externa
independente” de outras eras, tudo isso faz parte mais da luta política e
ideológica do que da análise acadêmica, como deveria ser o propósito legítimo
de qualquer governo sério. Tais explicações, convenientes do ponto de vista dos
que pretendem definir os traços do período, geralmente em oposição ao que
existia no período anterior, e favoravelmente ao que seus protagonistas querem
realçar como alegada excelência do seu próprio momento – que seria insuperável
em suas qualidades e benfeitorias para o país, como eles gostariam de registrar
– podem ser enfeixadas sob dois outros rótulos: fraude acadêmica e
desonestidade intelectual.
Como tentar, então, falar
de padrões e tendências das relações internacionais do Brasil no longo prazo, da
independência à era contemporânea, sem incorrer em alguns desses rótulos
simplificadores e buscando ser o menos ideológico possível? O exercício é arriscado, inclusive porque o
autor destas linhas não costuma prender-se a conceitos acadêmicos, mesmo os
mais sofisticados – como, por exemplo, a autonomia pelo distanciamento, ou a
mesma, pela participação – nos trabalhos mais descritivos ou interpretativos
produzidos nos últimos anos, e tampouco se deixa enredar nas legitimações oficiais
das políticas públicas, que sempre trazem a marca da chamada langue de bois, mais vulgarmente
conhecida entre nós como discurso “chapa branca”. Este ensaio não pretendo sucumbir
a qualquer um dos escolhos que costumam marcar certos consensos acadêmicos ou que
soem frequentar os escritos e discursos de acadêmicos ou diplomatas. O autor não
se considera suficientemente acadêmico para juntar-se às manias temporárias das
academias, nem se assume como um diplomata politicamente correto para aderir
acriticamente ao discurso do momento, aliás, de qualquer outro momento. Ele se
vê apenas um observador da realidade ambiente e um estudioso da história, o que
lhe permite fazer seus próprios julgamentos, sem ter de apelar a paradigmas
universitários consagrados ou submeter-se a qualquer versão oficial da
história. A História, aliás, não pode ter versões oficiais, pelo menos não
deveria, ainda que governos, ou melhor, pessoas de governos sempre tentem assim
proceder.
Mas mesmo adotando uma
perspectiva libertária no plano intelectual, e pouco disciplinada no contexto
profissional, não é fácil escapar de certos constrangimentos metodológicos e de
algum enquadramento conceitual, que estão inevitavelmente vinculados a qualquer
tipo de empreendimento acadêmico que se pense fazer em torno da questão, tal
como posta aqui: padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em
perspectiva histórica. Este ensaio procurará ser o mais objetivo possível,
ainda que não se possa evitar algum grau de subjetividade na escolha dos temas
e das questões relevantes que é possível identificar nessa área relativamente
complexa da atividade governamental.
2. Periodização
tentativa: cinco momentos das relações internacionais do Brasil
Em qualquer tipo de
exercício histórico, é inevitável começar por algum tipo de periodização, abordagem
aliás incontornável, em vista das importantes transformações, com graus
diversos de aprofundamento, que o Brasil enfrentou desde sua constituição,
enquanto Estado nacional independente, até o período contemporâneo, tanto na
esfera política quanto no domínio econômico.
Podemos adotar, para tal
exercício, a divisão clássica da historiografia nacional, que cobre
razoavelmente bem os três primeiros períodos, e que podem circunscrever,
igualmente, as relações externas da nação: o Império, até 1889; a Velha República,
até 1930; e a era Vargas, que, numa certa concepção, vai até 1964. O regime
militar, de 1964 a 1985, representaria um quarto período identificado com um
rápido e intenso processo de modernização do país, mas com pouca, por vezes
quase nenhuma, autonomia da cidadania no que se refere à representação política
e os espaços decisórios a ela correspondentes, que de fato não foram livres e
estiveram muito pouco abertos a concepções alternativas de organização econômica
e política da nação; mas ele também correspondeu a uma forma peculiar de o
Estado organizar as suas relações exteriores. Por fim, à falta de melhor termo,
e como se trata de um espaço de tempo que cobre, grosso modo, uma geração,
costumamos nos referir ao período contemporâneo, o quinto da periodização aqui
adotada, como sendo a era da redemocratização, mas este é um termo genérico, ou
indistinto, que provavelmente será revisto pela historiografia do futuro; afinal,
no que se refere às suas relações exteriores, a redemocratização também
correspondeu a um novo perfil com o qual o Brasil se apresentou na cena
internacional.
Como parece mais interessante,
ou necessário, examinar este último período de forma mais detalhada, ele será
dividido, por sua vez, em quatro diferentes momentos das últimas três décadas:
(a) a redemocratização, estrito senso, que corresponde ao processo de
reconstitucionalização do país, entre os anos de 1985 e 1989, quando também o
país passou a oferecer um outro discurso no plano externo, tendo retomado, por
exemplo, o processo de integração regional; (b) os anos de crise e de transformação,
uma conjuntura bastante confusa que corresponde à aceleração inflacionária e às
crises político-econômicas dos anos 1990-1994, culminando na estabilização do
Plano Real, período no qual as relações financeiras internacionais do Brasil
podem até ter prevalecido sobre outros aspectos de suas relações internacionais;
(c) a consolidação da estabilidade e a reinserção do Brasil no mundo, num
movimento bastante aberto e receptivo à globalização, anos que correspondem aos
dois mandatos de Fernando Henrique
Cardoso; e, finalmente, (d) a grande afirmação internacional do Brasil e a
transformação do cenário político nacional, nos anos distributivistas do
governo Lula, que foram identificados à chamada diplomacia Sul-Sul, período ainda
em aberto.
O ensaio tratará
perfunctoriamente dos quatro períodos anteriores à fase contemporânea, que
figuram aqui apenas a título de enquadramento histórico preliminar à discussão
dos problemas atuais da relações internacionais do Brasil. Maior atenção será
dedicada, como já indicado, ao período atual, mesmo sob risco de algumas dificuldades
interpretativas, já que o discurso oficial da diplomacia brasileira, por um
lado, ou os diversos enfoques analíticos privilegiados na academia, por outro, sempre
podem estar sujeitos a certo imediatismo de tipo subjetivo ao tratar da presente
fase.
2.1. O Império: a construção da nação e as bases de sua
diplomacia
A emergência do Estado, no
Brasil, e portanto, de suas relações internacionais, se fez com base na herança
portuguesa deixada por D. João VI em 1821. Na “herança” figuravam os conflitos
no Prata, algumas pendências com Estados europeus (Espanha, por exemplo) e
diversos compromissos assumidos pela ex-potência colonial obrigando o Brasil, como
o tratado de comércio de 1810, com a potência protetora, ou já em nome do Reino
Unido, como o de abolição do tráfico, no quadro do Congresso de Viena. Eles não
deixaram de apresentar consequências práticas para a economia do Estado
nascente. A primeira providência, contudo, foi a de assegurar o reconhecimento
do novo Estado, processo que se delongou por três anos, tempo necessário para
concretizar negociações com Portugal e com a Grã-Bretanha, de escopo sobretudo
financeiro. O Brasil começou assumindo para
si empréstimos contraídos pela Coroa portuguesa na Grã-Bretanha, e também por
acatar indenizações em favor do soberano português: a longa trajetória,
tortuosa e torturada, da dívida externa começou naquele mesmo momento.
Os esforços para assegurar
o livre trânsito no Rio da Prata – indispensável para o acesso às províncias
brasileiras do interior, pela via dos rios da bacia platina – e certo controle
de segurança sobre as fronteiras meridionais também ocuparam a nascente
diplomacia, na qual iniciativas tomadas pelo próprio primeiro imperador muitas
vezes predominavam sobre as opiniões da Assembleia Geral ou sobre outras
orientações do governo de gabinete. A guerra em torno da Cisplatina, bem como
as desavenças familiares em torno da sucessão do trono português consomem
recursos e a atenção do chefe de Estado, terminando por gerar conflitos
políticos que encontrariam o seu desenlace no ato de abdicação de 1831. Antes,
contudo, frustrado pela recusa da Grã-Bretanha em renunciar às vantagens que
lhe tinham sido concedidas pelo tratado de comércio de 1810, o governo resolver
estender os privilégios da tarifa baixa aos demais países que buscavam
estabelecer relações comerciais com o Brasil. O problema do tráfico foi outro
irritante nas relações com a principal potência da época, questão sobre a qual
as elites dominantes do Brasil tergiversaram enquanto foi possível, em meio a
demonstrações da prepotência britânica; o assunto se arrastou por um quarto de
século após um tratado de “abolição” (“para inglês ver”) de 1826, até ao lei de
proibição do tráfico de 1850.
As regências foram mais
dominadas por conflitos internos do que externos, ainda que a situação turbulenta
do Prata e outras incertezas quanto às fronteiras amazônicas continuassem
preocupando o governo. Mas foi nessas circunstâncias que foram assentadas
algumas das bases da diplomacia imperial, entre elas a preocupação com os
equilíbrios do Prata, o que significava, basicamente, garantir a independência
do Uruguai e do Paraguai em face das pretensões e dos interesses de Buenos
Aires, cujos líderes pretendia reconstruir o Vice-Reinado do Prata, que se
estendia até o sul da Bolívia. Essa preocupação levou o Brasil a mais de uma
intervenção nos assuntos internos do Uruguai, um dos vetores para assegurar
esse equilíbrio e a liberdade de acesso, o que culminou com a aliança com os
inimigos de Rosas, ditador de Buenos Aires, e acabou resultando, mas por outros
motivos, na guerra do Paraguai. Esse conflito, a maior guerra na qual o Brasil
se envolveu, é até hoje uma tragédia paraguaia, deixando marcas também em certa
historiografia enviesada; ela foi oportunamente revista, e corrigida, pelo
historiador Francisco Doratioto, cujo livro, Maldita Guerra, desfaz muitos mitos e equívocos cometidos por
historiadores dos quatro países envolvidos no conflito.
O Império não tinha
vergonha ou remorsos de suas intervenções no Prata, comportamento de certa
forma “imperial” que, a partir da era Vargas passou a ser apagado da
historiografia nacional, num exercício precoce de revisionismo histórico: tenta-se
eludir o fato de que o Brasil praticou intervenções nas tribulações platinas,
não exatamente para ampliar o território, mas para garantir a segurança e a
integridade de suas fronteiras meridionais. O Império foi um renitente tomador
de empréstimos externos, e um bom pagador, ainda que fosse eventualmente obrigado
a contrair novos empréstimos para pagar os anteriores. Mas o Império sempre
honrou as suas dívidas, o que já não mais seria o caso da República, que
incorreu em moratórias e em insolvências diversas vezes ao longo de mais de um
século de anarquia emissionista e de esquizofrenias econômicas.
2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da
política externa
A República começou
confusa, revisando as bases da diplomacia imperial, e se mostrando simpática aos
americanos do norte e do sul, consoante o refrão do Partido Republicano: “somos
da América e queremos ser americanos”. Com os primeiros foi contraído um acordo
comercial rapidamente descontruído pelo errático protecionismo americano,
embora nunca tivesse havido, na história econômica mundial, país tão
protecionista quanto o Brasil, sob o Império, sob a República, sob qualquer
regime, até hoje, aliás. Com os segundos, mais especialmente com os argentinos,
o primeiro chanceler da República acertou um acordo de fronteiras que praticamente
deixava o Rio Grande do Sul isolado do Brasil, já que reproduzindo alguns mapas
mal desenhados do tratado de Madri; o Congresso recusou aprovação para esse
acordo mal costurado, o que permitiu a Rio Branco começar a brilhar, logo
depois, na demarcação por via arbitral das fronteiras da pátria. Justamente,
nos primeiros dez anos de regime republicano, o Brasil teve praticamente dez
chanceleres, senão mais, ao passo que teve um só, nos dez anos seguintes. O
Barão se identificou tão completamente com as bases da política externa do
Brasil que virou o patrono da diplomacia brasileira, passando a figurar em
cédulas de praticamente todos os regimes monetários desde 1913. Estes foram
muitos, ao longo do século XX: mil-réis (e bilhetes da caixa de conversão em
1906), cruzeiro em 1942, cruzeiro novo em 1967, de volta ao cruzeiro três anos
depois, cruzado em 1986, cruzado novo em pouco mais de dois anos, cruzeiro de volta
em 1990, cruzeiro real e, finalmente, o real (o Barão do Rio Branco só esteve
ausente da URV, pois esta não conheceu bilhetes impressos, já que tratou de uma
moeda virtual).
Na Velha República, assim
como o Brasil era café e o café era o Brasil, a diplomacia era o Barão e o
Barão era a diplomacia: desde então, nunca mais se conseguiu superar o paradigma,
embora alguns tenham tentado imitá-lo, até em longevidade. Mas o Barão tinha
uma noção muito precisa do equilíbrio que era preciso manter entre os
interesses europeus e americanos no Brasil, e sobre como conduzir os negócios
sul-americanos do Brasil, com plena afirmação, sem arrogância, mas também na
estrita defesa dos interesses nacionais, sem qualquer concessão a algum vizinho
mais afoito ou atrabiliário, de qualquer tamanho que fosse. Ela não dava muita
relevância para ideologias, mas dava, sim, muito valor às ideias, se possível
claras, diretas, sem afetação e sem ceder a modismos circunstanciais, e sem
precisar lembrar o tempo todo que estava defendendo a soberania nacional (para
ele isso era tão evidente que sequer precisava ser dito, o que poderia denotar
algum sinal de insegurança psicológica). Sem bravatas, conseguiu manter a
Argentina no seu lugar – ou seja, sem interferir na capacitação estratégica do
Brasil – e também entreteve boas relações com bolivianos, assim como o teria
feito com bolivarianos, se por acaso existissem em sua época.
O Barão não cultivava
nenhuma mania de catalogar geograficamente a política externa, para o Norte,
para o Sul, ou para qualquer direção: ele simplesmente cuidava pragmaticamente
da política externa, e sempre disse, desde o primeiro dia, que não tinha
entrado no governo para servir a partidos, e sim ao Brasil. Uma lição razoável
para os dias que correm, embora não se possa esperar que todos os homens
públicos sejam razoáveis, ou pautados pelo simples bom senso, como parecia ser
o Barão.
Uma das grandes questões
das relações internacionais do Brasil, que o Barão teve de administrar em sua
época – mas a mesma questão permanece até hoje, cem anos depois, ainda que de
forma talvez um pouco diferente – foi a transição de projeção de poder entre o
velho hegemonismo imperial britânico e a crescente ascendência da nova potência
americana, o que ele fez de modo muito natural, sem qualquer demanda por uma
relação especial e sem afetar qualquer tipo de hostilidade vazia ou descabida.
Quando teve de opor-se a posições americanas – o que ocorreu tanto na
conferência americana do Rio de Janeiro, quanto na segunda conferência da paz
da Haia – ele assim procedeu sem pedir licença a ninguém, mas também sem
vangloriar-se de tal feito. Não precisou ficar agredindo a potência hemisférica
apenas porque ela não reconhecia o papel do Brasil na região e em outras
esferas.
Depois do Barão, o Brasil
conheceu pequenos e grandes chanceleres, como Oswaldo Aranha, por exemplo, que,
já na era Vargas, soube avaliar muito bem onde estavam os interesses
brasileiros numa era de enfrentamentos globais, tendo conseguido preservar
tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas adequadas e
convenientes em função dos interesses de longo prazo do Brasil, numa conjuntura
em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas.
2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo
A menção a Oswaldo Aranha
nos leva justamente à era Vargas, que começou quando os gaúchos amarraram seus
cavalos no Obelisco do Rio de Janeiro, para ali ficar durante algumas décadas,
pelo menos até o final do regime militar. A revolução que levou Vargas ao poder
não teria acontecido, precisamente, se não fosse por Oswaldo Aranha, um líder
decidido, decisivo, e de clara visão quanto aos problemas do Brasil, bem como sobre
os melhores caminhos para resolvê-los. Getúlio Vargas, como se sabe, era
basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas – no
sentido vulgar da expressão – para preservar-se no poder durante breves quinze
anos, como ele mesmo mencionou. Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse
acontecido a revolução de outubro de 1930. Sem ele, aliás, provavelmente a política
externa do Brasil, no decorrer dos anos 1930, e ao longo da Segunda Guerra,
teria sido muito diferente, e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda
posição dos argentinos, que mantiveram-se neutros – na verdade simpáticos aos
nazifascistas – até quase o final da guerra, e só mudaram de posição por
pressões americanas e muitos gestos brasileiros.
Talvez não só a política
externa, mas também a própria política econômica do Brasil e sua posição
internacional teriam sido muito diferentes, caso Oswaldo Aranha tivesse
ascendido a posições ainda mais altas na política nacional, o que ele não fez
por amizade e condescendência com Getúlio e em virtude das várias traições
deste último. Ele poderia ter sido presidente em 1934, em 1938, na
redemocratização pós-1945, e também em qualquer um dos pleitos que foram feitos
na República de 1946, até 1960, quando morreu, de certa forma ainda jovem. O
Brasil teria adotado outras políticas econômicas, mais liberais, menos
estatizantes ou protecionistas, mais abertas ao capital estrangeiro e a uma
presença internacional de maior prestígio, graças à inteligência, habilidade
política e conhecimento do mundo e dos grandes líderes que Aranha exibia.
Mas estas são hipóteses
que pertencem ao terreno da história virtual, aos “big ifs” da trajetória da
nação. A era Vargas só termina, de fato, em 1964, quando militares efetivam um
golpe para afastar as forças varguistas e populistas que eles consideravam
nefastas ao desenvolvimento do país. Antes disso, durante a República de 1946, o
Brasil manteve uma política externa tradicional, que um crítico chamou de
“bacharelesca”, e que outros apelidavam de “punhos de renda”. De fato, antes
que os militares entrassem com os seus punhos de aço – inclusive projetando
poder brasileiro sobre outros governos do Cone Sul – os bacharéis da diplomacia
brasileira conduziram uma diplomacia bastante previsível em seus grandes traços
de alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de
aparente modernização, quando se tentou impulsionar ações e iniciativas próprias
do país, sempre voltado para as questões cruciais do desenvolvimento econômico.
O Brasil pretendia, por
exemplo – tanto na conferência interamericana de Bogotá, em 1948, quando se
criou a OEA, quanto nas demais conferências econômicas subsequentes desse
organismo, e nas reuniões da Cepal, ou no projeto de JK de uma Operação
Pan-Americana – que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano
Marshall para a América Latina, ou seja, a transferência de capitais governamentais
americanos para impulsionar o desenvolvimento econômico da região. Os EUA
sempre responderam – aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá – que os
países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas
econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar-se
bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se
desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a
educação, a distribuição de renda e de terras. As mesmas recomendações eram
feitas, aliás, pela Cepal, assim como pela OEA, pelo Banco Mundial e por muitos
economistas estrangeiros e da própria região. O Brasil, assim como outros
países da região, aprecia os capitais estrangeiros, mas não tanto os capitalistas
estrangeiros, assim que o seu grau de abertura externa sempre permaneceu
limitado, estritamente dependente de capitais de empréstimos.
O Brasil, em todo caso,
soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização
impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da
época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo. O Brasil,
de fato, deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena
nessa época, processo que depois seria completado pelos militares, mas com as
deformações estruturais que se conhecem – de protecionismo excessivo, de
introversão tecnológica, de custos muito altos – que pesariam muito na fase
ulterior de descontrole inflacionário e de baixo coeficiente de abertura
externa.
A chamada “política
externa independente”, que teve início com Jânio Quadros e Afonso Arinos, e
continuou sob Jango e seus muitos ministros, transformou-se numa espécie de mito
histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela
aparece, retrospectivamente como tendo sido excepcional, devido, em certa
medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. Registre-se,
porém, que esta reversão ao alinhamento quase incondicional se desenvolveu por um
tempo relativamente limitado, pois a partir de 1967, no segundo governo da era
militar, já ocorreria uma recondução a padrões mais afirmativamente
desenvolvimentistas e orientados para o pleno exercício da soberania brasileira.
As avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão,
talvez, ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de
perda; caberia, provavelmente, uma revisão historiográfica mais acurada, para
recolocá-la em seu contexto histórico de mudança geral nas relações
internacionais – processos como os da descolonização e de um começo de détente
entre as duas grandes potências – e também nos próprios padrões da diplomacia
brasileira, que seguia as transformações rápidas que passaram a ocorrer no país
desde meados dos anos 1950.
2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo
diplomático
Consoante a intenção de
discorrer brevemente sobre a diplomacia brasileira das eras que precederam o
período contemporâneo, cabe também ser breve sobre o regime militar, em grande
medida porque já existem dezenas de teses acadêmicas e muitos livros sobre o
período, inclusive do ponto de vista diplomático, mas cuja qualidade e
sobretudo objetividade, como soe acontecer em relação a muitas outras
avaliações dessa fase autoritária da história nacional, podem ser consideradas
divergentes, em função, precisamente, dos preconceitos políticos e da memória “sentimental”
da geração que viveu na carne aquelas duas décadas de fechamento político e de
muita contestação por parte da chamada intelligentsia nacional. Tais
circunstâncias políticas podem dificultar um julgamento mais matizado sobre o
período, feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes
avanços econômicos, ainda que marcados pelo super-centralismo estatal e uma
política de super aquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda
atualmente. A historiografia brasileira sobre o período também mereceria um
sério esforço de revisão, para afastar maniqueísmos e simplismos que ainda
caracterizam boa parte da literatura especializada produzida em torno e a
propósito do regime militar.
Em todo caso, na
diplomacia, depois de alguns poucos anos de alinhamentos com o império – o que
levou o Brasil a romper com Cuba, a enviar tropas para a República Dominicana,
e aprovar uns quantos atos favoráveis ao capital estrangeiro na legislação
econômica – logo se voltou, até com maior empenho, a um padrão de comportamento
que foi chamado de desenvolvimentista (certamente) e de terceiro-mundista, no
sentido mais corriqueiro da palavra. Em outros termos, se passou ao alinhamento
em favor de teses reformistas da ordem econômica internacional, do tratamento
especial e diferenciado em favor dos países em desenvolvimento, do princípio da
não-reciprocidade nas relações comerciais, de modo a refletir as novas
aspirações das economias que buscavam industrialização e acesso a mercados. Os
problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de
capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados, o que envolvia
não apenas a recusa formal dos mecanismos de não-proliferação nuclear e de
salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, como implicava também conflitos
potenciais com as potências guardiãs da ordem nuclear e com a própria
Argentina, cujos sucessivos regimes militares (e também civis) perseguiam igualmente
a tecnologia nuclear, numa competição pouco saudável para ambos os países.
Ocorreram conflitos
menores com os Estados Unidos, no terreno comercial e em diversas votações dos
organismos da ONU, no contexto subjacente do enorme problema da dependência
financeira e da quase completa dependência da importação de petróleo, uma vez
que o histórico nacionalismo petrolífero não permitia qualquer associação da
monopolista estatal com empresas estrangeiras, obviamente mais capacitadas em
tecnologias de prospecção e de exploração. Havia também o clima de renovada
Guerra Fria, com a aparente expansão mundial da União Soviética, o que levou o
Brasil à participação em alguns golpes contra regimes ditos progressistas na
América do Sul, cujos contornos e intensidade não foram ainda totalmente
esclarecidos pelos arquivos militares e diplomáticos. De resto, os militares
conduziram uma política econômica, e externa, bastante nacionalista e
autárquica, o que levou o Brasil a inacreditáveis índices de autossuficiência
no abastecimento interno, que jamais seriam igualados desde então, embora o
protecionismo comercial continue renitente, e até renovado em sua pujança.
O regime militar foi,
justamente, mais derrotado pelos seus erros econômicos – inflação galopante,
crise da dívida externa, crescimento errático – do que pela eventual dureza da
ditadura política, relativamente morna comparada a padrões mais brutais observados
em países vizinhos. Os cidadãos brasileiros saíram às ruas para protestar
contra a ausência de eleições diretas, mas, na verdade, a transição foi
negociada e basicamente aceita pelos militares, inclusive porque se partiu de
uma dupla anistia que alguns pretendem atualmente revisar, com certo ânimo de
vingança. O regime militar se esgotou nele mesmo, mais do que foi derrubado pelas
forças de oposição, ainda que existisse um forte movimento de opinião
contrária. Os militares não tinham sucessor próprio, e aceitaram compor, em
1984, com o candidato moderado das oposições.
No âmbito da política
externa, pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se
sentiram mais “livres”, se cabe o contraditório, no sentido em que a corporação
dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas
áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e
operacional, inclusive com os vários diplomatas se sucedendo à frente do
Itamaraty. A Casa se profissionalizou mais ainda, criando uma corporação bastante
autocentrada, que depois seria objeto de críticas de certa diplomacia
partidária que se manifestou mais adiante. Em todo caso, a autonomia funcional
obtida durante o regime militar tinha suas peculiaridades e a historiografia
especializada ainda precisa fazer o balanço dessa época, no que tange o aparato
institucional do Itamaraty no período.
Sob o regime militar, os
valores e princípios essencialmente profissionais cultivados pela diplomacia foram
ainda mais acentuados por uma relativa introversão do corpo diplomático no
estrito cumprimento de seus deveres funcionais, o que de certa forma foi
permitido pelo mútuo respeito que mantinham as duas corporações mais
tradicionais do Estado brasileiro – soldados e diplomatas –, aliás, de qualquer
estado. Assim, o estamento diplomático preservou as tradições de
profissionalismo e de adesão aos grandes princípios, mesmo quando certas
iniciativas do regime – em relação a governos progressistas na América do Sul,
por exemplo – destoaram do padrão normalmente seguido pela estrita politica de
não intervenção do Itamaraty.
O alto profissionalismo de
seu corpo de funcionários permanentes, o respeito absoluto ao direito
internacional, a seriedade no tratamento dos dossiês diplomáticos, a
preservação das tradições herdadas do Império (de fato, as boas qualidades da
velha diplomacia lusitana) passaram a ser, assim, uma marca distintiva do
serviço exterior brasileiro em face de congêneres no continente e além. “El Itamaraty
no improvisa” era uma frase muito ouvida na Casa de Rio Branco durante décadas,
tanto se tornou um refrão repetido incessantemente durante anos a fio, mas
caberia indagar se ela ainda é válida, não exatamente na diplomacia, mas na
política externa. A principal ferramenta da diplomacia é o corpo de
funcionários permanentes a ela dedicados, mas o conteúdo mesmo da política
externa é dado pelo soberano, seja ele, dependendo do país, o monarca, um chefe
de gabinete, o presidente ou até um ditador ou uma junta militar.
3. A redemocratização
e as relações exteriores do Brasil
A quinta etapa desta periodização
tentativa é a atual, aliás imediatamente contemporânea, fase que costuma ser
enfeixada sob o conceito de redemocratização, ou de Nova República, o que
parece pouco apropriado para uma correta apreciação de todos os seus matizes e
rupturas, por vezes dramáticas, seja no plano político, seja, especialmente, na
área econômica. O termo tampouco se presta a uma caracterização mais precisa de
suas implicações e peculiaridades do ponto de vista da política externa; esta
tem a ver com a capacidade de projeção externa e de defesa dos interesses do
país no plano mundial, o que também tem pouco a ver com a natureza de um
determinado regime político. Algumas considerações iniciais, de caráter
conceitual, são de rigor.
Ditaduras exibem política
externa e capacidade de projeção internacional, tanto quanto as democracias. Por
vezes se tem a situação esdrúxula de ver democracias ditas ideais se
comportarem de modo arrogante no plano externo – comportamentos ditos imperiais,
ou unilaterais –, assim como perfeitas ditaduras podem exibir, por exemplo, uma
política externa formalmente correta, sem ofender o direito internacional. É
claro que um país democrático sempre possuirá uma melhor imagem internacional
do que uma ditadura aberta. O Brasil dos militares não conformou a pior das
ditaduras do planeta, e certamente não no plano regional, mas não se pode negar
que a volta à democracia e o respeito aos direitos humanos, tanto quanto a
estabilidade econômica, fizeram um bem enorme ao Brasil, desde meados dos anos
1980 e especialmente após conquistada a estabilidade econômica. Ainda persistem
problemas quanto ao respeito dos direitos humanos, não por motivos políticos, mas
de pessoas comuns; também esses aspectos serão corrigidos, pouco a pouco...
A redemocratização é,
portanto, um conceito inadequado, para discorrer sobre a evolução e as novas
características da política externa brasileira, que deve ser vista em seu âmbito
próprio, inclusive porque a diplomacia pode guardar certa distância das
tribulações da política interna. Por isso mesmo, uma nova subdivisão se impõe
como forma de apreender as mudanças ocorridas ao longo do último quarto de
século.
3.1. Uma periodização diplomática para o período
contemporâneo
O ano de 1985 é o ponto de
partida de um período marcado pela reconstrução constitucional do país, depois
de mais de duas décadas de regime autoritário militar. Ele foi seguido pelos
anos turbulentos de reformas econômicas e sociais, com a chamada ruptura do
“neoliberalismo” – um termo profundamente equivocado, mas que pode contentar os
mais estatizantes, ao risco de descontentar os verdadeiramente liberais. O
período de reconstitucionalização foi marcado por algumas importantes mudanças
conceituais e práticas nas relações internacionais do Brasil.
Essa segunda fase do
período contemporâneo foi especialmente conturbada em todas as frentes das políticas
públicas, mas ela desembocou no processo de estabilização macroeconômica
comandada por FHC – primeiro como ministro econômico, depois em dois mandatos
como presidente –, ela mesma profundamente perturbada pelas crises financeiras
dos anos 1994 a 2002, com todos os ajustes adicionais que o país teve de fazer
para superar essas conjunturas difíceis nos contextos econômicos nacional e
internacional. Finalmente, a partir de 2003, o país entrou numa fase bem
diferente das precedentes, e que continua, mesmo na ausência do seu promotor e
patrono, com políticas na área externa bastante distintas daquelas seguidas nos
períodos anteriores.
Pode-se distinguir, pois,
quatro grandes fases da vida política e econômica nacional, desde o final do regime
militar, às quais não caberia, por enquanto, atribuir qualquer novo rótulo
simplista, o que aliás denotaria uma falsa identidade entre, de um lado, os
processos em curso nos terrenos da política e da economia, na frente doméstica
e no plano internacional, e, de outro lado, nas relações internacionais do
país, uma área que por vezes apresenta um comportamento de certa forma autônomo
em relação aos desdobramentos que ocorrem no cenário interno no período
contemporâneo imediato.
Essa relativa autonomia das
relações exteriores do país, em relação às duras realidades da conjuntura
interna, pode ser vista como algo relativamente natural, considerando-se as
distintas modalidades de tomada de decisões em cada frente, ou os procedimentos
adotados na condução das relações exteriores, mais autocentrados, em face, por
exemplo, das intensas pressões que se exercem em qualquer área das políticas
públicas na frente interna. Ela também depende da personalidade e do
engajamento do presidente, que dispõe de ampla margem de manobra nessa área,
mas que também pode escolher para liderá-la um aliado político ou um
profissional da própria diplomacia, casos nos quais se apresentam agendas e
resultados eventualmente diferentes, em função das próprias personalidades e
suas perspectivas políticas. Não se pode tampouco negligenciar os influxos ou
demandas externas, já que a agenda internacional se faz, ou se constrói, a
partir de outras forças e outras dinâmicas, às quais o país nem sempre consegue
influenciar ou se adaptar de modo adequado, sem falar de crises externas, ou de
desequilíbrios internos que se transformam em crises de transações correntes ou
em outros desafios do gênero.
Em qualquer hipótese, uma
característica distingue profundamente as três primeiras fases deste exercício
de periodização de sua fase mais recente, a que se desenvolve no presente,
enfeixada sob o rótulo ainda provisório do “lulo-petismo”. Nos três primeiros
períodos – chamemo-los, simplificadamente de “redemocratização”, de “ruptura
neoliberal” e de “reformas globalizadoras” – as relações exteriores do Brasil,
no plano estritamente diplomático, estiveram enfeixadas, talvez dominadas, pelo
staff diplomático, ou seja, o próprio corpo de profissionais do Itamaraty, que
forneceu alguns ministros, conselheiros presidenciais e, mais importante,
determinou grande parte da agenda externa, senão toda ela; ocorreu, também, o
fato relativamente inédito, desde a ditadura do Estado Novo, de uma grande
estabilidade na condução da política econômica, com um único ministro da
Fazenda a permanecer durante dois mandatos presidenciais no comando da pasta. O
período do “lulo-petismo” foi caracterizado por muitos observadores como sendo
o de uma diplomacia partidária, o que parece evidente em muitas opções de
política externa, com claro distanciamento em relação às linhas tradicionais de
ação do Itamaraty, e também pelo fato de que o conselheiro presidencial é um funcionário
do partido, bem mens identificado com as posturas relativamente neutras do
corpo diplomático em diversas matérias da política internacional e regional.
Cabe agora examinar, na
sequência, os padrões e as características das relações internacionais do
Brasil no período atual, ou seja, na fase da redemocratização estrito senso, na
fase da ruptura “neoliberal” e dos ajustes reformistas, ambos dos anos 1990, e,
finalmente, na fase da diplomacia partidária iniciada com o “lulo-petismo”,
ainda em curso. Serão igualmente sugeridos alguns elementos interpretativos
sobre as grandes tendências da diplomacia brasileira em cada uma dessas fases,
com considerações finais sobre as características do desenvolvimento brasileiro
e seus desafios mais importantes.
3.1. A restauração constitucional e os erros econômicos
O processo de reconstitucionalização
do país, engajado ao término do regime militar e no seguimento de diversos
outros atos relevantes da história política do País, não foi efetuado mediante
a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, que tivesse trabalhado
independentemente das demandas que normalmente se exercem sobre os
representantes e partidos engajados na luta pelo poder. Optou-se por um
Congresso Constituinte, que procedeu em bases relativamente inéditas, mesmo
tendo sido precedido por uma Comissão Constitucional, da qual ele não acolheu
formalmente as propostas feitas por um grupo selecionado pelo vice-presidente
escolhido na eleição indireta feita no período autoritário, empossado como
presidente na doença do titular.
A Constituição saída desse
exercício não produziu alterações radicais no plano das relações internacionais
do Brasil, mas algumas características merecem ser apontadas na sequência desta
apresentação. O novo texto constitucional contemplou toda uma gama de novas
garantias e benefícios constitucionais que repercutiram de maneira definitiva
na organização econômica e social da nação, mas negativamente, já que
distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que
corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as
possibilidades de crescimento sustentado no Brasil. O contrato social efetuado
pela nova constituição andou na direção de distribuir renda e favores, antes de
acumular produção e renda ampliada, distorção econômica que ainda não foi
corrigida pelos contemporâneos.
A fase da democratização
foi marcada por essa mudança política fundamental, ou seja, uma Carta prolixa,
carregada de direitos e benefícios para todos os brasileiros, exageradamente
nacionalista, ou introvertida, num momento em que o mundo se abria a nova fase
da globalização. Mas essa fase também esteve caracterizada por uma inegável
deterioração da situação econômica, o que levou as autoridades econômicas a
implementar diversos planos de estabilização, todos fracassados até o advento
do Plano Real. O Brasil acumulou, nesses anos de 1985 a 1994, mais inflação do
que em toda a sua história pregressa, estimada por alguns economistas em cifras
astronômicas, na casa de alguns quatrilhões por cento, com todas as trocas de
moedas.
Não parece existir, na
história econômica mundial, algum outro país que tenha tido, não uma ou duas
trocas de moedas, mas cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num
turbilhão de inflação e de mudança de regras poucas vezes visto no cenário
mundial das hiperinflações. Senão vejamos: do cruzeiro ao cruzado, em 1986,
depois ao cruzado novo, dois anos depois, seguido pela volta ao cruzeiro, logo
adiante, que foi por sua vez substituído pelo cruzeiro real, até chegar ao
real, passando por uma moeda indexada, a URV, unidade real de valor. Isso se
descontarmos a troca do cruzeiro pelo cruzeiro novo, em 1967, voltando ao
antigo padrão três anos depois, que por sua vez já tinha se substituído ao
mil-réis (uma moeda já inflacionada, como evidenciado pelo seu próprio nome) em
1942. Em matéria de padrões e mudanças de regimes econômicos e monetários o
Brasil foi, sem dúvida alguma, um campeão mundial.
As mudanças
constitucionais nas relações internacionais estrito senso, foram menos
relevantes, ou quase imperceptíveis, registrando-se apenas a consolidação dos
valores e princípios pelos quais se deveria guiar o Brasil – promoção e defesa
dos direitos humanos, por exemplo, repúdio ao terrorismo, entre outros – e a
inscrição, inédita nos textos anteriores, da busca da integração latino-americana
como uma espécie de obrigação constitucional imposta ao país no seu
relacionamento com os vizinhos. A demanda pela integração regional pode ser até
legítima, mas deve-se reconhecer que ela é rara nos anais do constitucionalismo
mundial, podendo talvez existir no contexto europeu nas últimas duas ou três
décadas.
Esse preceito da
integração latino-americana – pela qual lutou o senador Franco Montoro – cria,
em todo caso, uma agenda praticamente compulsória para as relações exteriores
do país, que terá de buscar atender ao requisito, independentemente do contexto
regional, das condições políticas e econômicas vigentes nos países vizinhos, de
suas orientações políticas, ou de sua própria factibilidade, para não dizer de
sua razoabilidade ou racionalidade econômica. Alguns economistas poderiam
argumentar que, de um ponto de vista estritamente econômico, seria muito melhor
a abertura econômica e a liberalização comercial unilateral, e a ênfase nos
acordos multilaterais, antes que nos esquemas minilateralistas, sempre
discriminatórios, do que essa necessidade de se construir um bloco econômico
regional, mas aparentemente ninguém cogitou mudar esse dispositivo, no quadro
de emendas constitucionais que foram corrigindo, nos anos 1990, os excessos mais
evidentes do nacionalismo econômico e do estatismo renitente do texto original
da Constituição.
3.2. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento
neoliberal
A presidência Sarney, a
despeito do nome pretensioso de Nova República, representou um retorno do
sistema político aos padrões mais usuais da Velha República, com criação de
ministérios, cargos, distribuição de favores, a própria mudança para um mandato
de cinco anos, no regime presidencialista, contra as expectativas constituintes
de um regime de feições mais parlamentaristas e de um retorno aos quatro anos
tradicionais da Velha República. A presidência Collor, por sua vez, constituiu
um episódio inédito para os padrões conhecidos na Velha ou na Nova República. Começou
com uma promessa praticamente impossível, de terminar com a inflação – que ao
finalizar o governo Sarney alcançava 80% ao mês – com um golpe de “ippon”,
típica de um lutador de caratê, e terminou com a vitória da inflação sobre o
caçador de marajás, e seu afastamento da maneira mais melancólica possível, por
acusações de corrupção e de desvio de recursos públicos. Em todo caso, o
governo realmente começou com um “ippon”, mas sobre as contas dos cidadãos, com
o sequestro compulsório de todas as contas bancárias superando um determinado
valor; aquele golpe efetivamente paralisou a dinâmica da inflação durante algum
tempo, inclusive porque, entre outras violências econômicas e constitucionais,
o Plano Collor representou o tabelamento de contratos, tarifas e outros
valores, que engessaram a economia num beco sem saída, ou com saídas cada vez
mais arbitrárias que representaram, ao mesmo tempo, a volta da inflação, em
patamares até mais agressivos do que antes.
A despeito dos
malabarismos econômicos, o governo Collor também significou outras transformações
no plano da política externa, com implicações importantes ainda hoje, vários
deles até positivos para o Brasil, pelo menos numa perspectiva contrária ao que
vinha ocorrendo até então, ou ao que poderia ocorrer, se o candidato socialista,
Lula, tivesse conseguido ser eleito naquela ocasião, quando o PT defendia um
tipo de política econômica diferente do que veio a sustentar quando do primeiro
mandato do líder sindical. Com efeito, segundo as promessas do candidato do PT
– todas no sentido da nacionalização, estatização, socialização, protecionismo,
rompimento de contratos e recusa do pagamento das dívidas públicas –, uma
eventual presidência petista poderia aproximar o Brasil bem mais de um governo à la Salvador Allende do que de um líder
socialista moderado como Felipe González, responsável pelo ingresso da Espanha
na OTAN, na Comunidade Econômica Europeia, pela abertura aos investimentos
estrangeiros e outras atitudes contrárias aos velhos dogmas socialistas aos
quais se aferram ainda alguns personagens em outros continentes.
Ao lado da abertura
econômica e da liberalização comercial – com uma importante reforma tarifária
que fez com que o Brasil passasse do protecionismo exacerbado para um
protecionismo relativamente moderado, para os padrões históricos da nossa
introversão comercial –, o governo Collor tinha a pretensão de retirar o Brasil
da condição de primeiro dos países pobres para o último dos países ricos, ou
seja, desloca-lo do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE.
Ele não o conseguiu, obviamente, inclusive porque as reformas ficaram no meio
do caminho, e as resistências de grupos de interesse foram mais fortes do que
as intenções do presidente. Mas ele começou a reformular diversos outros
aspectos da política externa que estavam colocando o Brasil na condição de
“pária” do sistema internacional, como, por exemplo, no terreno da
não-proliferação e das tecnologias sensíveis, ou de uso dual.
Com efeito, o Brasil
mantinha, ao lado do programa nuclear legal e reconhecido, baseado na
construção de centrais nucleares com tecnologia estrangeira e a supervisão da
AIEA, um programa paralelo e clandestino, de natureza militar, que visava
alcançar o domínio tecnológico e o desenvolvimento prático de um artefato
explosivo, o que de resto se chocava com dispositivos mandatórios da
Constituição nesse aspecto. Collor operou, portanto, a primeira viragem
decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares,
ao aceitar a ratificação plena do tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento
à construção de confiança com a Argentina nessa área, que levaria à assinatura
do acordo quadripartite de salvaguardas extensivas – Brasil, Argentina, Abacc e
AIEA – e, mais adiante, à aceitação, já por FHC, do famigerado TNP, o Tratado
de Não-Proliferação Nuclear de 1968, gesto pelo qual este último é considerado
um traidor dos interesses nacionais por vários militares e alguns diplomatas.
As escolhas decisivas foram feitas por Collor, e independentemente dos fracassos
econômicos, esse crédito diplomático lhe deve ser inteiramente concedido.
Em um outro aspecto, ele
também significou um avanço, que ocorreu no âmbito da política econômica
externa, mais especificamente, no contexto da integração regional. O processo
com a Argentina teve início em meados dos anos 1980, sobre a base de protocolos
setoriais, visando uma complementação produtiva e uma abertura apenas
recíproca, que deveria ser flexível, gradual e administrada; ou seja, se
tratava de um modelo de abertura comercial limitado, conduzindo a fluxos
administrados pelos dois governos, numa concepção que se aproximava mais do
mercantilismo do século 17 do que do multilateralismo ilimitado, incondicional
e não discriminatório do século 20. O que o governo Collor fez foi, por meio da
Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, substituir o esquema em vigor dos
protocolos setoriais e do Tratado de Integração de 1988 por um mecanismo
automático, irrecorrível e universal – ou seja, não mais setorial – de reduções
tarifárias, conduzindo ao livre comércio com a Argentina na metade do tempo
previsto no tratado em vigor (que aliás não garantia que o livre comércio, ou o
mercado comum, viessem realmente a existir nos dez anos anteriormente previstos).
Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um
ano depois, mas sobre os mesmos dispositivos de abertura econômica e de
liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e
Menem.
O fato de o Mercosul não
ter avançado em fases posteriores, ou de ter até regredido, institucionalmente,
na fase recente, não tem muito a ver com desvios “neoliberais” cometidos pelos
dois governos. Quem conhece o protecionismo exacerbado vivido pelos dois países
no anos anteriores à década de 90, não pode em sã consciência achar que o
Brasil ou a Argentina estivessem se rendendo ao capitalismo internacional com o
modesto grau de abertura operado naquele momento por esses dois governos, apenas
em algumas frentes econômicas. A culpa da estagnação relativa e do real
retrocesso institucional do Mercosul tem a ver com o descumprimento, pelos
governos ulteriores, sobretudo na fase recente, de cláusulas fundamentais do
Tratado de Assunção, não por causa dos mecanismos antes criados para operar o
estabelecimento de um mercado comum, ou pelo menos de uma união aduaneira,
entre os quatro países membros. Brasil e Argentina retornaram ao protecionismo
rústico dos anos 1970 e 80, sendo que a Argentina parece ter retornado às
patéticas medidas de controles de capitais e de manipulações cambiais típicas
da época da grande depressão, nos anos 1930.
3.3. Estabilização macroeconômica e nova presença
internacional
Depois do furacão Collor,
o Brasil entrou em outro tipo de furacão, mas sob a presidência honesta, ainda
que confusa, do vice-presidente Itamar Franco, conhecido pela sua perfeita
correção política, mas por alguns rompantes econômicos, que o fizeram trocar
três ou quatro vezes de presidentes do Banco Central e de ministros da Fazenda.
Finalmente, e para sua sorte, um senador que resolveu esquecer o que tinha
escrito nos tempos de desvarios acadêmicos, em torno da teoria da dependência, deu
à presidência Itamar a melhor marca de reconhecimento nacional a que um governo
pode aspirar numa era turbulenta como a que o Brasil viveu, com a inacreditável
aceleração inflacionária do início dos anos 1990.
Com origem nos diversos
planos frustrados de estabilização que tinham sido ensaiados desde o governo
militar, e de forma crescente e recorrente na “Nova República”, o Brasil passou
de uma inflação anual de três dígitos para a casa do milhar, e já tendo
conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração. O que o senador
Fernando Henrique Cardoso fez, para seu crédito pessoal, e com a aprovação do
presidente, foi juntar uma equipe de jovens e ousados economistas que souberam colocar
as bases de um processo de estabilização macroeconômica, não mais baseado em
golpes milagrosos e repentinos, mas atacando as bases da dinâmica
inflacionaria, autoalimentada pelo mecanismo de indexação generalizada que
tinha se estendido por toda a economia brasileira, mas de forma anárquica e
sustentado nos mais diversos indicadores de correção de valores (dólar, títulos
públicos, índices de preços e o que mais servisse para garantir alguma
reposição do poder de compra de uma moeda que já não mais servia de parâmetros
para as suas três funções fundamentais e tradicionais).
O Plano Real, cujas
características não é necessário descrever aqui, teve uma importância
fundamental também para a política externa, pois significou igualmente a
recuperação da credibilidade do Brasil nos mercados internacionais, não apenas
em termos de atração de investimentos e de contratos financeiros externos, mas
sobretudo no que se refere à capacidade do Brasil de engajar-se em processos
negociadores com parceiros internacionais em condições minimamente previsíveis
quanto à preservação da legalidade jurídica e à capacidade do país de honrar
seus compromissos externos num ambiente liberado das ameaças de mudança
contínua de regras como tinha sido o caso até ali, e praticamente desde o
início da crise do petróleo, ainda nos anos 1970.
Com a casa colocada
novamente em ordem a partir do início dos seus dois mandatos, FHC pode dar
continuidade à política externa de abertura moderada nos planos regional e
mundial e, de forma geral, em relação à globalização, o que era inédito para os
padrões históricos do Brasil desde o entre-guerras e que, de certa forma, também
voltou a patamares ainda mais modestos na sua sucessão. O Brasil abandonou o
conceito difuso de América Latina, em favor do espaço geográfico bem mais
concreto da América do Sul, avançou bastante na construção de mecanismos de
inserção nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos
nuclear, espacial, e de exportações de equipamentos de uso dual – e também
desenvolveu um diálogo desprovido de vieses ideológicos com as entidades
multilaterais da globalização financeira, o que foi relevante em função das
turbulências por que o mundo passou a partir das crises do México (1994), da
Ásia (1997), da moratória russa (1998) e da própria crise brasileira de 1999,
logo seguida pela crise terminal do modelo argentino de estabilização (com
forte impacto no Brasil).
FHC estimulou o que passou
a ser chamado de diplomacia presidencial, para a qual ele estava amplamente
preparado desde seus curtos meses de chanceler, no início do governo Itamar
Franco, e em função de sua experiência como acadêmico conhecido
internacionalmente. Os bons resultados foram em certa medida obscurecidos pela
ocorrência de crises externas e internas, justamente, comprovando, assim, que o
processo de estabilização deve ser levado de modo contínuo em todas as frentes
da economia, sobretudo nos planos fiscal e monetário. O Plano Real foi
amplamente bem sucedido ao desmantelar os aspectos mais nefastos da indexação
generalizada em que vivia o Brasil, mas pelo fato de que o presidente Itamar se
opunha veementemente a qualquer tratamento de choque, ou recessivo, os ajustes fiscais
foram muito moderados e tiveram de ser compensados por uma taxa de juros
relativamente alta, inclusive porque estados e municípios ainda não tinham se
ajustado aos novos tempos e ainda não existia a Lei de Responsabilidade Fiscal
ou o câmbio flutuante.
Deve ser registrado,
porque se trata de fato histórico importante para a correta avaliação da
trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs
frontalmente a sua implementação, em quaisquer de suas etapas, tentando
inclusive embargar a Lei de Responsabilidade Fiscal em processo movido junto ao
STF; o partido empreendeu igualmente uma campanha de desinformação, antes e
depois, em relação não apenas aos aspectos internos do plano de estabilização
macroeconômica, como também no que se refere aos acordos concluídos no plano
externo com o Fundo Monetário Internacional, objetivando a superação das fragilidades
cambiais do país. Felizmente, a primeira administração do governo do PT soube
preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas
administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superávit
primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como
confirmado pelos principais indicadores econômicos.
Diversas dentre as
iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos”
na política externa a partir de 2003 – nos terrenos da integração, das
negociações comerciais internacionais e inter-regionais, do relacionamento com
parceiros ditos estratégicos – tinham sido de fato iniciadas sob os dois
mandatos de FHC. O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento
meteórico da China, cuja demanda elevou a níveis historicamente inéditos os
preços das commodities exportadas pelo Brasil a partir de 2004 e ajudou na
própria expansão do PIB durante o governo Lula. Bafejado pela procura chinesa,
este último pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente
beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC, em especial,
a revisão radical dos aspectos mais discriminatórios e economicamente
irracionais da carta constitucional de 1988 e a correção cambial feita em 1999.
Depois de FHC, nenhuma outra reforma estrutural foi empreendida pelos governos
do PT para dar continuidade aos processos de abertura comercial e de inserção
econômica internacional do Brasil.
3.4. Por fim, a era do nunca antes: a diplomacia personalista
de Lula
A fase atual, finalmente, corresponde
à era do “nunca antes”, a este período inédito na história do Brasil durante o
qual todos os recursos da propaganda governamental e da retórica presidencial
foram mobilizados para dar a impressão de que o país ingressava numa era de
ouro, jamais vista desde Cabral e impossível de ser igualada pelas gerações que
seguirão nos próximos anos ou décadas. Não se deve ser muito derrogatório com
um governo que, finalmente, ao preservar todos os elementos essenciais da
política econômica anterior – que os petistas chamam, com bastante má-fé, e de
forma algo ignorante, de neoliberal – conseguiu manter o Brasil ao abrigo de um
retrocesso econômico que não deixou de ocorrer em diversos países da região; de
fato, em vários deles se observa, de forma circunstancial ou cumulativa:
retorno da inflação, fuga de capitais, manipulações cambiais, recrudescimento
do protecionismo, enfim, desorganização da vida econômica, embora alguns desses
aspectos começam a ser visíveis também no Brasil, e de maneira bastante
preocupante.
Atendo-se exclusivamente
aos aspectos diplomáticos do governo do “nunca antes”, pode-se aliás argumentar
que, nem sob esse aspecto, o panorama é totalmente inédito. Ao presidir a uma
diplomacia super-presidencialista, e bastante personalista, Lula, segundo o grande
intelectual da diplomacia que é o embaixador Rubens Ricupero, conduziu uma
política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General
De Gaulle. Vários diplomatas, que acompanharam em momentos diversos os passos
da diplomacia lulista, confirmam que o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal
do chefe de Estado, de suas muitas de viagens e de sua desenvoltura nos
contatos com vários líderes internacionais, inclusive com personalidades que,
por suas características especiais, não frequentam muito os foros
internacionais ou não são convidados amiúde para visitas bilaterais; algumas das
afinidades eletivas do governante e de seu partido foram de fato inéditas em
todos os planos, a começar pela ilha dos irmãos Castro.
A diplomacia do “nunca
antes” assistiu, de fato, a eventos nunca antes vistos na história do
Itamaraty, como a aceitação passiva de um expropriação violenta e unilateral feita
contra um patrimônio nacional por país vizinho; registrou-se, ainda, o
rompimento do velho preceito constitucional da não-intervenção em assuntos
internos de outros países, inclusive no que tange o apoio eleitoral a
candidatos ditos progressistas, bem como, de forma geral, alianças com regimes
e governos que provavelmente não passariam em alguns testes elementares em
relação a princípios democráticos e de respeitos aos direitos humanos. A
diplomacia do “nunca antes” foi, sobretudo, uma diplomacia partidária, o que
foi formalmente confirmado pelo próprio presidente em discurso feito num dia do
diplomata, no Itamaraty, ao se referir ao seu assessor internacional como o
companheiro dedicado a manter as relações com os partidos de esquerda da
América Latina. Impossível não concordar com o argumento, quando fatos como
esse são confirmados nesse nível de responsabilidade governamental.
O Brasil de fato aumentou
sua presença no mundo, abriu embaixadas em lugares nunca dantes explorados e
contraiu várias “parcerias estratégicas”, em nível bilateral, plurilateral ou
de grupo, que duplicaram a capacidade de expressão do país nos mais diferentes
cenáculos internacionais. O ativismo dessa diplomacia foi realmente exemplar,
embora em alguns episódios possa ter ocorrido mais transpiração do que
propriamente inspiração, como evidenciado nos casos das relações com a China,
nas frustradas tentativas de fazer a paz no Oriente Médio, se de envolver numa
solução ao programa nuclear iraniano (em grande medida clandestino), ou na
própria pretensão – ilusória, para os diplomatas experientes – de exercer uma
liderança na região, como base para um salto de qualidade no plano mundial.
Alguns erros de cálculo
foram cometidos, inclusive no trato com alguns países vizinhos, assim como foram
mantidas expectativas irrealistas quanto à realização de diversos objetivos retoricamente
proclamados. Em certos temas da agenda externa, observou-se um descompasso
completo entre um diagnóstico realista das opções abertas ao Brasil e intenções
idealistas constantemente exibidas, seja quanto à “transformação das relações
de força no mundo”, seja quanto a uma fantasmagórica “nova geografia do
comércio internacional”. A China, por exemplo, já tem a sua geografia comercial
bem assentada: ela importa matérias primas de todos os fornecedores possíveis,
e exporta seus manufaturados – grande parte produtos de design e tecnologia
ocidentais – para todos os mercados abertos ao engenho e arte de seus
diplomatas e mercadores absolutamente pragmáticos quanto aos resultados
esperados, sem qualquer concessão a veleidades ideológicas ou uma patética
aliança de não-hegemônicos contra os poderosos do mundo. A maior parte dos
países, aliás, segue os mesmos preceitos: eles procuram antes trabalhar na
perspectiva de ganhos concretos do que simplesmente projetar transformações
imaginárias do cenário mundial.
São muitos, de fato, os
aspectos inéditos da diplomacia partidária na era do “nunca antes” e seria
especioso discorrer sobre acertos e desacertos da política externa de Lula e dos
seus companheiros de partido. A historiografia futura, provavelmente mais
sensata que certos vieses acadêmicos atualmente em curso, se encarregará de
filtrar, e de avaliar, na sua justa medida, os aspectos positivos e os menos
positivos dessa diplomacia que foi de verdade especial, sem que se possa dizer
se o Brasil real, o do seu sistema produtivo e o da sua capacidade de
competição internacional, tenha usufruído da pirotecnia praticada durante a
década lulo-petista na política externa. O Brasil perde espaço nos mercados internacionais
– e o grande debate no momento é o da desindustrialização – e a integração
regional não avançou de fato nos aspectos que deveriam contar: a abertura
recíproca de mercados, a inserção das economias dos países membros nas redes
produtivas mundiais ( de fato, ocorreu o contrário), e até o livre comércio,
que deveria vigorar internamente ao bloco, tem retrocedido a olhos vistos.
Dos três grandes objetivos
da diplomacia lulista – a obtenção de uma cadeira permanente para o Brasil no
Conselho de Segurança da ONU, o reforço e a expansão do Mercosul e a conclusão
exitosa das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha – não se pode
dizer que algum deles tenha sido conquistado, sequer arranhado. O Mercosul, a
despeito de preservado, perde espaço na interface externa do Brasil e abandonou
quase completamente suas características iniciais, por sinal as únicas
legítimas, já que derivadas do Tratado de Assunção, uma promessa frustrada. Pode-se,
nessas condições, fazer um balanço esplendoroso, como pretendem seus
executores, do “nunca antes” diplomático? Para todos os efeitos, a formidável
máquina de propaganda do PT – construída, diga-se de passagem, com vários milhões
ou bilhões de reais de recursos públicos – vai encarregar-se de passar uma
imagem fabulosa destes tempos inéditos, quando se alega que tudo foi realmente maior
e mais vigoroso do que antes, inclusive em certos aspectos talvez menos
recomendáveis.
Parafraseando uma
expressão muito conhecida, poder-se-ia dizer da diplomacia lulista que, onde
ela foi nova, não foi boa; e onde foi passavelmente boa, ou apenas razoável,
não era nova. A diplomacia presidencial, por exemplo, já existente (mas nunca
referida sob esse conceito), foi levada a extremos, e isso não é bom, nem para
a diplomacia, nem para a figura do presidente, de qualquer presidente.
Presidentes devem se reunir quando todos os estudos técnicos tenham sido feitos
pelos diplomatas e quando os chanceleres tenham limpado o terreno para a assinatura
e os discursos, geralmente vazios e anódinos, dos presidentes; nunca antes na
história diplomática do Brasil tivemos tantas vezes o presidente, com seus
contrapartes regionais ou externos, discutindo projetos e novas iniciativas,
que deveriam ficar no âmbito das chancelarias respectivas. Presidente é a
última linha de decisão, não a primeira de discussão.
Por outro lado, nunca
antes na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, e não se pode
dizer que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente com toda a
retórica a seu favor. Ao contrário; a América Latina está fragmentada em pelo
menos três modelos, ou experimentos, de organização regional, um dos quais é
declaradamente anti-integracionista, a despeito de toda as proclamações em
contrário: o bolivarianismo só se sustenta à base de petrodólares chavistas e
com indução estatal de um sub-comércio totalmente desequilibrado; o segundo
modelo é o livre-comércio e o da inserção nas redes mundiais de integração
produtiva, o da Aliança do Pacífico, ou da abertura unilateral a la chilena; no meio, sem uma caracterização
mais precisa, ficam os países do Mercosul e outros desgarrados, sem saber
exatamente para onde pretendem ir.
Cabe registrar, também,
que muitas das novas entidades apressadamente criadas nos últimos anos, o foram
para dar um caráter exclusivamente regional, ou introvertido, ao que antes era
exageradamente hemisférico e “assimétrico”, como se comprazem em repetir os
neófitos. Mas será que a América Latina vai realmente progredir, ao orientar
para dentro todos os seus movimentos políticos e econômicos? Será que ela não
teria nada a aprender com os países asiáticos e ocidentais da imensa bacia do
Pacífico, que estão substituindo cinco séculos de dominação econômica
norte-atlântica, por meio do estímulo a todos os intercâmbios possíveis, sem
discriminação de espécie alguma?
4. O que
concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?
Acadêmicos, em geral,
historiadores em especial, exibem uma inclinação um pouco doentia por
paradigmas, por modelos explicativos, por padrões e tendências que eles
imaginam detectar no imenso caos material que é a trajetória das sociedades humanas
sobre a face da Terra. A História não seria tão emocionante, e não teria tantos
cultores, amadores ou profissionais, se ela não apresentasse, justamente, esses
acidentes contingentes, essas possibilidades de caminhos alternativos e de
trajetórias insuspeitas, que dependem, basicamente, de duas coisas: de um lado,
as chamadas forças profundas, como gostam de lembrar os durosellianos e alguns
marxistas estruturalistas (ou seja, sem aqueles fatalismos simplistas da
sucessão inevitável dos modos de produção); de outro lado, dos imponderáveis da
ação humana, que, muito longe dos determinismos históricos, está impregnada de
paixões e de racionalidade, nem sempre bem calculada.
É por isso que temos a
história virtual, os big ifs que
especulam um pouco sobre tudo, especialmente sobre as grandes viradas do
processo histórico. O que teria ocorrido conosco se tivessem sido os chineses a
ocupar as Américas? O que teria acontecido na Europa se os muçulmanos não
tivessem sido detidos nos Pirineus, ou nas muralhas de Viena? O que teria
acontecido se Napoleão tivesse vencido a Grã-Bretanha, se Hitler tivesse
derrotado a União Soviética, ou se os soviéticos tivessem conseguido, de fato,
submergir a Europa ocidental, com base não em tanques, mas na sua ideologia que
prometia futuros radiantes numa sociedade sem classes? Nelson, Churchill, o
papa polonês, entre vários outros líderes, foram realmente decisivos em algumas
grandes reviravoltas da história contemporânea? Stalin, Hitler, Mao poderiam
ter sido contidos, ao fazer o mal sobretudo para os seus próprios povos? Ou são
as forças profundas da história que sempre se impõem, independentemente de
líderes geniais ou malévolos?
Pode-se especular sobre
como o Brasil poderia ter se desenvolvido, de forma diferente, caso Oswaldo
Aranha, o grande líder gaúcho da revolução de 1930, tivesse ascendido à
presidência da República, em alguma das muitas oportunidades que a história
talvez lhe tenha oferecido, nas quais ele deixou passar a oportunidade, seja
por imposição ou amizade com o ditador castilhista que dominou a história
brasileira durante praticamente três décadas. Poderia ter sido em 1934, mas
talvez fosse muito cedo, num momento em que ele ainda parecia demonstrar
algumas simpatias pelo modelo fascista de organização social; provavelmente em
1938, se ele não tivesse sido afastado do país pelos cálculos maquiavélicos do
mesmo Vargas; com maior razão, ainda, em 1945, em sua condição de líder
inconteste da oposição democrática, mas quando o terreno foi ocupado por dois candidatos
militares; ou talvez em 1950, quando ele decididamente continuou apoiando o
ex-ditador, e a quem serviu uma segunda vez como ministro da Fazenda, tentando
colocar mais uma vez em ordem o câmbio e as contas nacionais, esgarçadas por
crises externas e comportamentos populistas e irresponsáveis dos decisores
políticos; finalmente, mas talvez já fosse tarde, em 1955, quando várias opções
e alianças partidárias ainda lhe estavam abertas.
Depois de Rio Branco,
bastante mitificado e incontestável no seu domínio dos temas e dos métodos
diplomáticos, Oswaldo Aranha foi, possivelmente, o maior e melhor chanceler que
a diplomacia brasileira conheceu no século 20, numa conjuntura de extremos
desafios e de opções contrastadas para o futuro da nação: ele soube manter o
rumo das alianças corretas e das escolhas certas, o que assegurou ao país bastante
prestígio durante certa época. No período seguinte, o Brasil se perdeu na
ditadura – pelo menos no plano moral, ainda que os progressos materiais tenham
sido reais – tanto quanto na voragem inflacionária que destruiu várias
possibilidades de crescimento sustentado, construindo um Brasil desigual,
sempre penalizado pela baixa educação geral do seu povo. Oswaldo Aranha, provavelmente,
teria optado por outros variantes de políticas econômicas e de alinhamentos
internacionais, possivelmente mais condizentes com as possibilidades do país e com
suas necessidades de sua modernização produtiva e social. Sua não ascensão ao
cargo de maior responsabilidade no comando da nação representou uma das muitas
oportunidades perdidas pelo Brasil, um país que nunca perdeu uma oportunidades
de perder oportunidades, como não se cansava de lembrar o diplomata e
economista Roberto Campos (uma espécie de Raymond Aron nacional, que teve razão
antes do tempo, mas que não conseguiu, tampouco, reformar a França, como também
ocorreu com Oswaldo Aranha no caso do Brasil).
Alguns líderes,
verdadeiros estadistas, conseguem elevar seus países ao ponto máximo de suas
possibilidades transformadoras, mas tais iniciativas parecem pertencer ao
terreno dos fatores contingentes na História. O que ocorre mais frequentemente,
na vida das sociedades, é que elites esclarecidas logrem conduzi-las pelo
caminho correto, o das políticas econômicas adequadas, o da educação de
qualidade, o das escolhas mais vantajosas no plano internacional. O Brasil,
infelizmente não tem sido premiado com lideranças particularmente brilhantes, e
pode-se mesmo indagar se, na presente conjuntura da política nacional, o país não
está de fato retrocedendo, bem mais no plano mental do que propriamente
material. As possibilidades não se fecharam, mas elas são estreitas, para um
país que praticamente não tem educação de qualidade, ostenta baixíssima
produtividade e capacidade de inovação e que tem exibido um quadro de corrupção
institucional e de degradação moral nunca antes visto na história nacional. O
cenário pode parecer muito pessimista, mas é a constatação que emerge a partir
de uma visão realista sobre os atuais padrões políticos e as tendências econômicas
associadas.
Ao mencionar padrões e
tendências, se volta ao tema central do presente ensaio, sobre os padrões e tendências
das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica. Poder-se-ia
pensar que uma postura mais ativista, por parte da diplomacia brasileira, seria
uma via possível de vencer alguns dos desafios que se apresentam ao Brasil
atual, um pouco na linha do foi empreendido na fase recente da vida política,
como forma de avançar decisivamente na solução dos problemas mais cruciais do
país. Mas, de fato, não existem respostas reais a esses problemas do lado da
diplomacia, sequer pela ação de uma política externa mais ativista do que a
tradicionalmente conduzida pelo Itamaraty. Durante toda a história do Brasil, a
diplomacia teve uma função puramente subsidiária nos grandes desafios que a
nação enfrentou, em cada etapa, e provavelmente não foi ela que contribuiu para
encontrar as soluções mais criativas aos problemas detectados.
O Brasil, assim como metade
da humanidade, iniciou seu itinerário histórico como colônia. Tal condição de
submissão, a um ou outro dos centros dominantes da economia mundial, em alguma
etapa preliminar, não constitui nenhuma fatalidade quanto ao futuro itinerário
do país, assim como não constituiu uma tragédia definitiva, impeditiva do
desenvolvimento de países como Estados Unidos, Canadá, Austrália ou até mesmo
vários países europeus, que também foram colônias ou nações dominadas por
vizinhos mais poderosos. Tal passado não os impediu de se desenvolverem e de se
tornarem grandes benfeitores da humanidade, como de fato são, pela via da ciência
e tecnologia, pelos progressos da medicina, pela paz e segurança e pela
manutenção dos direitos humanos e das liberdades democráticas, que estão de
fato concentrados nos capitalismos competitivos das modernas democracias de
mercado.
Se o Brasil não se libertou
do tráfico de escravos no momento recomendado por José Bonifácio, durante a
independência e a constituinte, foi por escolha de suas elites, não por
imposição de portugueses ou de britânicos, aliás bem ao contrário, no que
concerne estes últimos. Se ele não começou a construir uma economia aberta aos
investimentos externos e à iniciativa privada, como recomendava Irineu
Evangelista de Souza, depois barão de Mauá, foi por decisões de suas elites, as
do Estado e as da economia escravocrata, que teimavam em preservar as mesmas
estruturas anacrônicas. Se ele não se libertou da escravidão, como pressionavam
os britânicos e como pedia o idealista Nabuco, foi inteiramente por decisão de suas
elites, nos estertores do Império. Se, na República nascente, ele não fez uma
reforma agrária e não implantou a educação universal, como também queriam
Nabuco, o barão do Rio Branco, e tantos reformistas educacionais, como Lobato,
Azevedo, Teixeira e vários outros, estas também foram escolhas inteiramente
nacionais, não determinadas por nenhuma imposição ou relação de dependência
externa. Nunca houve uma demanda externa pelo atraso nacional.
A diplomacia, de vez em
quando, oferecia algumas sugestões, colhidas ao acaso entre as elites
ilustradas dos países mais avançados, mas não se pode dizer que ela, até meados
do século 20 quase totalmente expatriada, tenha influenciado decisivamente as
grandes escolhas feitas pela nação. A modernização acabou chegando, inclusive
por força das contingências externas, devido às crises e o fechamento de mercados
do entre guerras, mas o Brasil estaria muito melhor se o mundo tivesse continuasse
a ser aberto como foi até 1914, e se o Brasil, sobretudo, tivesse escolhido o
caminho da inserção internacional. Ao contrário: dos anos 1930 aos anos 1980, o
coeficiente de abertura externa do Brasil se reduziu dramaticamente, e no auge
do regime militar, o grau de nacionalização do mercado interno atingia absurdos
95% da oferta disponível em bases correntes. O Brasil era um país fechado e aparentemente
contente com essa autonomia, essa autossuficiência, essa independência de
fontes externas. Qual foi o papel da diplomacia em todos esses anos de
desenvolvimentismo acelerado? Justamente o de defender o modelo, resistir às
investidas estrangeiras pela abertura, como aliás acontece até hoje, num
recrudescimento de atitudes introvertidas que se acreditava terem sido
superadas nos anos 1990. Não, elas não foram enterradas e a diplomacia, mais
uma vez, serve de anteparo, escudo e justificativa para esses caminhos para
dentro que não devem conduzir o Brasil a parte alguma.
Se é possível, portanto,
resumir o sentido da trajetória nacional, sintetizar os padrões e tendências
das relações internacionais do Brasil, não há como escapar de algumas velhas
paranoias de sua história, de algumas grandes obsessões da sociedade: a
ideologia nacional brasileira, desde os anos 1930, pelo menos, parece ser o
culto do desenvolvimento nacional, nessa exata combinação de palavras. Culto,
quase religioso, a um objetivo que é visto como desejado por todas as camadas
sociais, por todos os líderes políticos e defendido ardorosamente por todos os
diplomatas. Deve ser por isso que os padrões e tendências do Brasil nas
relações internacionais sejam tão enviesados para dentro, que suas políticas
econômicas sejam tão arraigadamente keynesianas, que as legitimações para
certas posições nas negociações econômicas internacionais sejam tão
cansativamente prebischianas, ou cepalianas da velha escola, e que o máximo de
legitimação para as mesmas políticas que os dirigentes políticos exibem seja
essa espécie de crítica a um fantasmagórico neoliberalismo, a la Ha-Joon Chang, que nada mais é do
que keynesianismo prebischiano requentado ao molho de conceitos do momento. Tais
características apenas comprovam quão pobre é a reflexão da intelligentsia nacional
sobre a diplomacia e o desenvolvimento.
5. Nota
final: reformas internas e inserção na globalização
Não se deve, contudo,
terminar um ensaio deste tipo por uma nota de angústia existencial ao estilo de
Kierkegaard. Mas tampouco convém ser ingenuamente otimista em face da retórica
grandiloquente de certos falsos profetas da atualidade. O que cabe fazer é
tentar manter a racionalidade instrumental quanto aos meios e fins do objetivo
nacional do desenvolvimento econômico e social do país e quanto ao amplo
espectro de reflexões registradas nas últimas décadas a esse respeito, inclusive
no que se refere a algumas poucas contribuições no campo da diplomacia.
Já foi dito, por exemplo,
que a salvação do Brasil não virá pela diplomacia, nem pelo lado externo. Os
principais desafios do Brasil estão mesmo dentro do país, e os instrumentos
para superá-los dependem inteiramente de suas elites, do leque de políticas
públicas escolhidas, das opções adotadas por uma sociedade consciente quanto
aos desafios, ou orientada nesse sentido por elites esclarecidas. Muitos
procuram bodes expiatórios para o baixo crescimento do país na situação
externa, num fantasmagórico tsunami financeiro de países ricos, na concorrência
desleal de países que não protegem sua mão-de-obra ou o meio ambiente. Estas
são escapatórias à realidade, e não será na proteção mercantilista do mercado
interno que o Brasil vai encontrar a solução dos seus problemas de falta de
competitividade e de ameaça concreta de desindustrialização. Ao contrário, o
ambiente internacional, a inclusão na globalização oferecem oportunidades
inigualáveis para o crescimento e o desenvolvimento de qualquer país, como a
própria China demonstra a cada dia.
Enquanto não for conduzido
um diagnóstico correto da presente situação, e uma autocrítica sincera, da
qual, aliás, todos os marxistas deveriam gostar – sobretudo os leninistas, como
ainda existem alguns – enquanto não se reconhecer todas as políticas
equivocadas que têm sido implementadas nos últimos anos, no plano interno e no
plano externo, não será possível superar os desafios do presente. O mundo é
complicado, talvez, mas a cabeça de certas pessoas parece ser muito mais. O
mundo, por sinal, oferece exemplos fabulosos de progresso e melhorias de
bem-estar com algumas receitas muito simples. Algumas das mais comprovadas por
sua eficácia podem ser assim resumidas: estabilidade macroeconômica; abertura e
competição no nível microeconômico; níveis excelentes de governança e de gestão
próxima à de mercados competitivos para a maior parte dos bens e serviços; alta
qualidade dos recursos humanos; e, por fim, mas não menos importante, abertura
ao comércio e aos investimentos internacionais. Tudo isso requer, obviamente,
elites esclarecidas, uma mercadoria talvez rara nos tempos atuais.
Paulo Roberto de Almeida
[Hartford, 19 de outubro de 2013;
Revisão: 17 de janeiro de 2014]