segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

1706) Haiti e ajuda humanitaria (4)

O Haiti não precisa de circo
Coluna do Augusto Nunes
16 de janeiro de 2010

Assim que o perigo passou, Nelson Jobim apareceu na zona conflagrada pronto para o que desse e viesse. Em caso de tsunami, baixaria numa praia do Haiti com a farda de almirante que ganhou na Rússia. Em caso de invasão espacial, sobrevoaria o Caribe com o traje de gala de brigadeiro francês. Como se tratava de um caso de terremoto, o ministro da Defesa incorporou o general Jobim e irrompeu em Porto Príncipe enfiado num uniforme de campanha.

A missão foi cumprida em três dias. No primeiro, o destemido forasteiro recomendou aos sobreviventes que hospitalizassem os feridos e enterrassem os mortos. No segundo, determinou aos militares brasileiros em ação na cidade sem água nem mantimentos que dessem de beber a quem tem sede e de comer a quem tem fome. No terceiro, descobriu que o governo brasileiro sofrera uma perda muito mais dolorosa que as provocadas pelo terremoto.

Jobim manteve a placidez de quem prepara um chimarrão no fim da tarde ao comentar a morte em combate da doce guerreira Zilda Arns, do diplomata Luiz Carlos da Costa e dos 14 jovens heróis engajados na força de paz da ONU. Isso acontece, sugeriu o sorriso de aeromoça. O que lhe pareceu insuportável foi a perda do controle do aeroporto da capital. “Não podemos admitir o comando unilateral dos Estados Unidos”, avisou ao saber que militares americanos, ao toparem com o aeroporto em colapso e sem comando efetivo, haviam assumido as rédeas e normalizado o tráfego dos aviões sem pedirem licença ao Brasil.

Irritado com a insolência, Jobim perdeu a paciência de vez com a notícia de que cargueiros da FAB haviam sido impedidos de pousar na capital haitiana por controladores de voo ianques, que lhes recomendaram aterrissar em pistas menos inseguras. “Tudo isso pode ser visto como algo natural” concedeu o chanceler Celso Amorim, “mas é importante ter a clareza de que nós estamos sendo tratados com a prioridade adequada”. Agora nas montanhas de escombros, o Itamaraty continua a procurar o atalho que leva à vaga no Conselho de Segurança da ONU.

O espetáculo do oportunismo rastaquera foi engrossado na sexta-feira pela embaixadora do Brasil na ONU, Maria Luísa Viotti. “Estou em busca de informações sobre o caráter da presença das tropas americanas em Porto Príncipe”, revelou a diplomata, fustigada pela suspeita de sempre: depois de ter arrendado a Colômbia, o império de Barack Obama talvez tente a anexação do Haiti. Aliviou-se com a descoberta de que a missão é humanitária, mas ainda não sossegou. No momento, quer saber da Casa Branca se existe o risco de “interferências na missão de paz comandada por militares brasileiros”.

Segundo a ONU, uma nação miserável foi devastada pela maior tragédia ocorrida desde a fundação da entidade há 60 anos. Mergulhado no pesadelo incomparável, desprovido de tudo, o Haiti precisa de muito pão, mas no momento não precisa de circo. A trupe do governo está liberada para envergonhar o Brasil em outras paragens.

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Nossa embaixatriz: notas sobre a atuação diplomática
Blog: Pesquisadores da Unicamp no Haiti
16 de Janeiro de 2010

Após conversar com nossos colegas do Viva Rio, diante da chegada de novos quadros desta organização em Porto Príncipe e em função de uma situação volátil, que muda a cada instante do que diz respeito ao acesso à água e comida, optamos por pedir abrigo à embaixada do Brasil. Diga-se de passagem, há dias amigos e parentes do Brasil insistem em que deveríamos recorrer à embaixada. Afinal, somos um grupo de brasileiros que viu seu trabalho no Haiti interrompido pela violência do terremoto, e estamos na expectativa do que fazer: ficamos e ajudamos? Podemos ajudar? Ou devemos partir para o Brasil em meio uma situação incerta e que se agrava todos os dias? E se decidimos partir, como partir? Seguindo a orientação de nossos colegas do Viva Rio, nos preparamos para seguir para a embaixada hoje pela manhã. Acordamos às 6 da manhã, após mais uma noite dormindo no jardim, e nos preparamos para esperar o veículo que viria nos buscar.

Ela irrompeu o portão do Viva Rio por volta das 8:30 da manhã e pediu que nos chamassem. Trazia um vestido curto algo entre o roxo e o verde, quase um furta cor, apresentava uma expressão rígida e abatida. Na certa estava tocada pelos últimos eventos. Os cabelos devidamente penteados pra trás, uma maquiagem excessiva e um colar de ouro ostensivo. Enquanto permanecíamos na sombra, ela se manteve no sol. Aos poucos, enquanto sua proeminente testa e suas bochechas se enchiam de suor, ela discorreu sobre grandes temas, aliando ciência, religião e política de maneira única. Em poucos minutos, a embaixatriz do Brasil no Haiti explicou por que um rabino, as placas tectônicas, seu marido, os mortos e o Brasil eram interdependentes.

Ela não nos perguntou nada. Não sabia quem éramos, ou o que fazíamos aqui. Quando soube que de um grupo da Unicamp se tratava, não titubeou: “A EMBAIXADA NÃO TEM NENHUM COMPROMISSO COM A UNICAMP. O EMBAIXADOR PROIBIU QUE FOSSEM HOSPEDADOS EM NOSSAS DEPENDÊNCIAS. ELE É O EMBAIXADOR, ELE MANDA; SE HOSPEDAMOS VOCÊS TEMOS QUE HOSPEDAR TODOS”.

E seguiu, com pérolas: “A EMBAIXADA NÃO VAI EVACUAR NINGUÉM PORQUE EU NÃO VOU SAIR DAQUI. VOCÊS DEVEM VOLTAR PARA O BRASIL COMO VIERAM. VOCÊS SABEM ONDE FICA O AEROPORTO, COMPREM PASSAGEM; VOCÊS SABEM ONDE FICA A RODOVIÁRIA, DE LÁ SAEM ÔNIBUS PARA A REPÚBLICA DOMINICANA”. E prosseguiu com a máxima: “NÃO TEMOS NENHUMA RESPONSABILIDADE SOBRE VOCÊS. VOCÊS ESTAVAM NO LUGAR ERRADO NA HORA ERRADA, SINTO MUITO”.

Poderíamos reproduzir detalhes de suas observações sobre a situação atual do Haiti ou sobre a política haitiana. Não o fazemos porque, com franqueza, sentimos vergonha alheia. Seu auto-centramento e sua falta de sensibilidade quanto aos impasses vividos pelos haitianos não fizeram nada além de nos constranger: ela pode ocupar a posição que ocupa?

Nos restringiremos àqueles elementos que nos afetam diretamente: pode uma embaixatriz simplesmente dizer “VOCÊS ESTÃO PROIBIDOS DE SE HOSPEDAR NA EMBAIXADA”? Ela não nos perguntou nada, não sabe da nossa situação, nada. Suponhamos que tivéssemos passagens de avião saindo de Porto Príncipe. Como chegar ao aeroporto? Não há transporte, não há combustível. Porto Príncipe é uma cidade grande e destruída. A “rodoviária”, na verdade, não existe, é a garagem da Caribe Tours, de onde saem os ônibus diários para Santo Domingo, e fica em Pétionville. Como chegar a Pétionville? Há lugares no ônibus? Os telefones estão colapsados. Pode o Brasil ter como representante neste país alguém que manifesta tamanho descaso por seus concidadãos abdicando das obrigações mínimas de uma embaixada em qualquer lugar do mundo? O que o Haiti pode esperar de embaixador e embaixatriz que atuam desta maneira? O que aconteceu conosco não tem a menor importância. Só é revelador do lugar que o Haiti parece realmente ocupar no universo de nossas relações internacionais.

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Devido ao fato de termos postado este texto hoje pela manha alguns minutos antes de viajarmos, pois nao tivemos acesso a internet ontem (dia 15/01), esquecemos de colocar nossas assinaturas. Assinam este texto:

Omar Ribeiro Thomaz, Otavio Calegari Jorge, Diego Bertazzoli, Werner Garbers, Joanna da Hora, Cris Bierrembach, Daniel Santos, Rodrigo C. Bulamah, Marcos Rosa

domingo, 17 de janeiro de 2010

1705) Haiti e ajuda humanitaria (3)

Rottweiler sem dentes
Clovis Rossi
Folha de S.Paulo, 17.01.2010

O Brasil mudou de complexo. Antes, abrigava n’alma o de vira-lata, segundo Nelson Rodrigues, o notável escafandrista da alma brasileira. Agora, na crise haitiana, mostra complexo de rottweiler.
Pena que não tenha dentes. Refiro-me à ciumeira de autoridades brasileiras em relação a rápida e decidida ação do governo norte-americano. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, reage com pura masturbação diplomática, ao dizer que se trata de “assistencialismo unilateral”.
Qualquer pessoa que não tenha perdido o senso comum sabe que os haitianos não estão preocupados com a cor do assistencialismo, se unilateral, bilateral, multilateral. Querem que funcione.
No aeroporto da capital, está funcionando, conforme relato desta Folha: “Depois que os americanos assumiram o aeroporto, os voos aumentaram e também o envio de medicamentos e alimentos”.
É claro que precisa haver coordenação, como cobra o chanceler Celso Amorim, mas é bobagem resmungar sobre os Estados Unidos assumirem um papel mais relevante que o das forças da ONU. É brigar com os fatos da vida. Os EUA podem mais que qualquer outro país, o que é escandalosamente óbvio.
Ajuda-memória aos resmungões, extraída do texto de Sérgio Dávila: os EUA enviaram vários navios da Guarda Costeira com helicópteros, o porta-aviões Carl Vinson, com 19 helicópteros, 51 leitos hospitalares, três centros cirúrgicos e capacidade de tornar potáveis centenas de milhares de litros de água por dia.
Nos próximos dias, chegam mais dois navios com helicópteros e uma força-anfíbia com 2.200 fuzileiros e um navio-hospital.
O Brasil tem condições de chegar a um décimo disso? Não. Então que pare de rosnar e reforce o seu pessoal no Haiti, que fez e está fazendo notável trabalho, dentro de seus limites bem mais modestos.

Comentário:
CELSO AMORIM É SÓ UM HOMEM RIDÍCULO
Reinaldo Azevedo, 17/01/2010

Não é meu, não. É de Clóvis Rossi, da Folha. Quando se trata de avaliação política, não me lembro de ter concordado com Rossi antes. E ele e seus admiradores podem ficar tranqüilos: não pretendo macular a sua reputação junto a certo leitorado — e, eventualmente, eleitorado — elogiando-o. Em benefício de Rossi, farei de tudo para que isso não aconteça. E sei que alguns se esquecerão de ligar a tecla SAP para ler o texto.

Ocorre que há circunstâncias em que as pessoas que têm compromisso com os fatos — independentemente do lugar que ocupem no espectro ideológico ou das opiniões que tenham sobre isso ou aquilo — são obrigadas a constatar… os fatos!!!

A canalha esquerdopata se fingiu de chocada quando escrevi o texto “Haiti: palco e atoleiro”, em que acusei, de pronto, o assanhamento protagonista de Lula. Escrevi depois um outro texto afirmando que não será a tragédia a me impedir de pensar. Alguns pessoas até de boa fé e muitos bocós vieram me dar conselhos: “Pô, numa hora como essa, você diz essas coisas; os haitianos estão precisando…” Como se eu estivesse contra o auxílio àqueles pobres coitados, vítimas dos homens, vítimas da natureza…

Não! Eu sou favorável à ajuda, é evidente. Eu só percebi a mobilização assanhada para tentar desempenhar o papel de um grande líder — e nada posso fazer, a não ser relatar a vocês o que vejo, se fui mais rápido do que os outros; admito que tem acontecido com freqüência. Acontece que a tragédia era imensamente maior do que a jactância de Lula e Celso Amorim. Pedia a intervenção de alguém acostumado a se comportar como sede do Império (alguns acham ruim; eu, como sou imperialista, acho bom). Em questão de horas, os EUA tinham conseguido mobilizar recursos para nós inimagináveis porque intangíveis — não, melhor usar uma palavra mais forte: INEXISTENTES.

E Celso Amorim fez o quê? Começou a rosnar. Ficou à beira de gritar: “Abaixo o imperialismo” quando os EUA resolveram botar ordem no caos do espaço aéreo, uma precondição para se tentar fazer alguma coisa no espaço terrestre, onde o inferno persiste. E passou a bater os pezinhos de anão enciumado (refiro-me à sua estatura interna, não à externa, como sempre). A inenarrável tragédia haitiana abria uma janela de oportunidades para o nosso… protagonismo!!! Ou melhor: “deles”. Abro uma janela para falar nos soldados brasileiros e retorno ao ponto.

Os soldados brasileiros
Não! Isso nada tem a ver com o duro trabalho, certamente heróico, dos nossos soldados naquele país. Muitos perderam a vida. Mesmo antes do terremoto, faziam um trabalho meritório, embora lutassem, NÃO POR VONTADE DAS FORÇAS ARMADAS, a guerra errada. Já estavam lá por causa desse complexo de rottweiler desdentado, enviados pelo governo Lula. Nelson Jobim diz agora que o Brasil deve ficar mais cinco anos por lá… Ele está chutando. Se não sabia, no caos relativo, quanto tempo permaneceríamos nos comportando como polícia em Cité Soleil, como vai saber agora, no caos absoluto? Ele fala o que lhe dá na telha.

A ONU, para não variar, largou o Haiti ao Deus-dará. E o Brasil ficou pendurado na brocha. Nos quase seis anos de intervenção, quase nada havia mudado por lá. O país continuava praticamente sem instituições. As tropas da ONU, lideradas pelos soldados brasileiros, já se viam obrigadas a intervir, militarmente mesmo, em confrontos armados entre gangues. Antes desse terremoto, houve outros, só que políticos. A pá de cal no país foi jogada por um ex-padre esquerdista, doidivanas e, tudo indica, ladrão também chamado Jean-Bertrand Aristide, que governou o país, pela última vez, entre 2001 e 2004. A grande idéia deste cretino para evitar a instabilidade militar foi extinguir as Forças Armadas… Sabem o que isso significava e significa? Que as forças da ONU haviam assumido esse papel. Cinco anos? Jobim não tem noção do que está falando. Agora, Aristide diz estar pronto para deixar seu conforto na África do Sul, onde está exilado, e voltar ao país. Será que sobrou alguma cadeia na parte do país não atingida pelo terremoto?

Retorno ao ponto
A crítica política — assim como a econômica, a gastronômica ou outra qualquer — não deve ser insensível aos dramas humanos. Ao contrário: a rigor, eles são a razão essencial que nos leva a escrever sobre qualquer assunto: de um tratado de engenharia a um tratado moral. Em tese ao menos, estamos todos empenhados em melhorar a vida do homem.

E uma das formas que a crônica e a análise política têm de demonstrar a sua sensibilidade é acusar a manipulação, a marquetagem, a patifaria. O mundo viu o senhor Celso Amorim tentando medir forças com o governo dos EUA para ver quem iria liderar a ajuda ao Haiti. O gigante não entendeu, até agora, o que é integrar forças da ONU. Por qualquer razão, ele passou a se comportar como uma espécie de governo de fato do Haiti, cobrando que os EUA lhe dessem satisfações sobre os seus atos. É um despautério.

O Haiti pede todos os esforços que estiverem ao nosso alcance. Mas nem aquela tragédia terá feito o número de mortos que um terremoto humano no Sudão chamado Omar Hassan al-Bashir já fez. Este é o nome do ditador daquele país: responde por, ATENÇÃO!!!, 300 MIL MORTOS. E o Brasil de Celso Amorim, não o nosso, nega-se sistematicamente a votar contra o déspota na ONU. Ao contrário: já atuou para protegê-lo. Por quê? Porque quer o apoio dos países islâmicos, especialmente árabes, para ser membro permanente do Conselho de Segurança. Entenderam?

Em nome do protagonismo, o governo Lula tanto pode ignorar os 300 mil mortos de Darfur como pode reivindicar uma espécie de mando sobre os estimados 100 mil mortos do Haiti. Montanhas de cadáveres não são fronteira para as ambições de Lula e Celso Amorim.

E eu continuarei a chamar as coisas pelo nome que as coisas têm. Ainda que isso aborreça muita gente. É o compromisso que tenho firmado com os meus leitores.

1704) Haiti e ajuda humanitaria (2)

Amorim nunca me deixa errar. Nunca!
Reinaldo Azevedo, 16/01/2010
(a propósito do post anterior, 1703)

É, meus caros, Tio Rei não é, assim, um Matusalém, mas já viveu o bastante para antecipar alguns lances do jogo. Escrevi ontem o post “Haiti, palco e atoleiro”, em que acusei a lentidão do governo brasileiro no atendimento às vítimas das enchentes em contraste com a prontidão em tentar assumir a liderança na ajuda ao Haiti. E, obviamente, deixei claro que o erro não estava em prestar socorro aos haitianos, mas na desídia com os brasileiros. E apontei, vejam lá, o esforço para fazer da tragédia haitiana um palco para protagonismo. Aí a canalha gritou: “Está explorando politicamente a tragédia!!!” Eu???

Então releiam o post abaixo e observem o que diz este sem-noção e sem-limite chamado Celso Amorim. Reparem como ele especula sobre a liderança do Brasil, a atuação dos outros países, a cobertura da imprensa estrangeira. E, no auge da inconveniência, Amorim resolve moderar as críticas porque, oh!!!, mais importante é socorrer as vítimas.

Por mais severo que eu seja, Celso Amorim é o homem que nunca me deixa errar. Que os brasileiros destacados para ajudar os haitianos dêem o melhor de si. Isso não faz com que o chanceler brasileiro deixe de ser quem é. Ele se define por suas palavras. E não teme a escala que vai da tolice à abjeção. Não, meus caros, eu não estava sendo muito severo. Estava sendo apenas realista.

1703) Haiti e ajuda humanitaria (1)

Itamaraty critica ajuda financeira de países ricos
DENISE CHRISPIM MARIN
Agencia Estado, quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

BRASÍLIA - Em plena fase de articulação de uma Conferência de Doadores para o Haiti, o Itamaraty criticou hoje a promessa de ajuda financeira de países ricos ao Haiti. Mostrou-se igualmente preocupado com a montagem de canais para que os recursos cheguem ao país atingido pelo terremoto da última terça-feira.

Descontadas as ofertas do Brasil, de US$ 15 milhões, e dos Estados Unidos, que prometeu US$ 100 milhões, a diplomacia brasileira considerou "acanhada" a ajuda prometida pela União Europeia, de 4 milhões de euros, e do Canadá, de US$ 5 milhões. "Consideramos que os países ricos poderiam ser mais generosos", afirmou um diplomata que acompanhou as reuniões internas do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim.

Segundo o diplomata, o Itamaraty iniciou hoje conversas com os cerca de 20 países e com os organismos internacionais que compõem o grupo de doadores para o Haiti. A boa recepção do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, teria dado o aval para o começo dessas articulações. Em abril do ano passado, a mesma agrupação havia prometido a remessa de um total de US$ 324 milhões para ajudar o país, que havia enfrentado a passagem de vários furacões em 2008.

Em princípio, o Itamaraty considera que a ideia da realização da conferência está em linha com a sugestão do presidente francês, Nicolas Sarkozy, de convocar uma reunião entre a França, Estados Unidos e Brasil para tratar da reconstrução do Haiti.

Minustah
Membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas desde 1º de janeiro, o Brasil já começou a se movimentar também para a alteração do mandato da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), força que foi criada em 1993 e que sempre esteve sob o comando brasileiro.

O Itamaraty avalia que os militares da Minustah, dentre os quais os brasileiros, assumirão funções que não estão previstas no mandato original e terão de se coordenar com forças que não a compõem. Entre elas, as tropas enviadas ao Haiti pelo governo Obama no porta-aviões Carl Vinson, da Quarta Frota americana.

Embora Obama tenha dito claramente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que os soldados americanos se coordenariam com os brasileiros, o Itamaraty está ciente que, por doutrina, as tropas dos Estados Unidos não se subordinam a oficiais de outros países.

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Brasil recua nas críticas de falta de ajuda internacional ao Haiti
Márcio Falcão
Folha Online, 15.01.2010

O governo brasileiro mudou o tom do discurso e recuou nas críticas ao valor das doações de países, especialmente europeus, para ajudar na reconstrução do Haiti –atingido por um forte terremoto na última terça-feira.

O ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) afirmou nesta sexta-feira que o momento é de “solidariedade” e que muitos países prometem reforçar a ajuda financeira ao longo do processo de reconstrução do país.

Amorim afirmou ainda que a ideia lançada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a convocação de uma reunião dos países doadores foi bem recebida pela comunidade internacional. O encontro deve ocorrer na sede da ONU (Organização das Nações Unidas).

O ministro evitou comentar se as doações de países desenvolvidos estão tímidas. Até agora, Brasil ofereceu US$ 15 milhões, Estados Unidos US$ 100 milhões, Austrália US$ 10 milhões, e Canadá US$ 5 milhões. Outros países, em especial europeus, doaram entre US$ 1 milhão e US$ 5 milhões. Nos bastidores, integrantes do ministério afirmavam que as doações de alguns países estavam um pouco “acanhadas” diante da necessidade dos haitianos.

“Eu não vou comentar. É momento de solidariedade. Eu acho que os EUA, o número prometido é bastante substancial, de US$ 100 milhões. O Brasil está proporcional, até um pouco mais, um número adequado levando em conta o nosso interesse. Alguns países podem complementar, alguns dizem que a cooperação é inicial”, disse.

Amorim lembrou que a doação brasileira recebeu destaque internacional. “O sentido geral de solidariedade é muito grande. Eu acho que a percepção do que nós temos feito é muito grande não só no Brasil, mas no mundo. BBC deu destaque à oferta brasileira, aos aviões brasileiros, o que é normal e é importante que ocorra”, afirmou.

O ministro disse que ficou surpreso com o empenho do governo australiano. “Falei hoje com autoridades australianas e o país está dando colaboração de US$ 10 milhões, o que é importante, país que está longe da situação”, disse.

Segundo o chanceler, a reunião do grupo de doadores pode ocorrer nos próximos dias. A avaliação do governo brasileiro é de que o encontro é importante para evitar o confronto de ações.

“O importante é coordenar para evitar problemas no terreno, evidentemente, porque às vezes muita gente querendo ajudar esbarra um no outro e não dá certo. [...] Eu não excluo que se possa convocar [uma reunião] nos próximos dias, se chegar à conclusão que a necessidade de recursos até mesmo para emergência é muito grande. Isso estamos conversando permanentemente com todos os interlocutores”, disse Amorim.

O ministro defendeu que o controle das ações seja da ONU. “É preciso que alguém coordene. E acho que quem tem que coordenar do ponto de vista das definições das necessidades são a própria Nações Unidas. Só as Nações Unidas têm as informações que chegam de todos os lados”, disse.

1703) Direitos humanos recicláveis - Demétrio Magnoli

Direitos humanos recicláveis
Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo, 17/01/2010

Conceito deixou de se aplicar a indivíduos reais para exprimir prerrogativas de coletividades imaginadas

Samuel Pinheiro Guimarães, o número 2 do Itamaraty feito secretário de Assuntos Estratégicos, renomeou os direitos humanos como "direitos humanos ocidentais" e qualificou a sua defesa como uma política que dissimula "com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das grandes potências em defesa de seus próprios interesses estratégicos". O ataque frontal aos direitos humanos é ineficaz e desqualifica o agressor. Os inimigos competentes dos direitos humanos operam de outro modo, pela sua usurpação e submissão a programas ideológicos estatais. O Plano Nacional de Direitos Humanos há pouco anunciado é uma ilustração acabada dessa estratégia. Desgraçadamente, os movimentos e ONGs que falam em nome dos direitos humanos não são apenas cúmplices, mas inspiradores da ofensiva de âmbito internacional.

A política internacional de direitos humanos nasceu de fato com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O texto célebre inscreve-se na tradição da filosofia política das Luzes, que se organiza ao redor do indivíduo. Ele proclama direitos das pessoas, não de coletividades étnicas, sociais ou religiosas. Tais direitos circulam na esfera política, mesmo quando se referenciam no mundo do trabalho ou da cultura. Por esse motivo, a sua defesa solicita, sempre e inevitavelmente, o confronto com o poder político que viola ou nega direitos. A Declaração de 1948 é, essencialmente, um instrumento de proteção dos indivíduos contra os Estados. Não é fortuito que seus detratores clássicos sejam os arautos das utopias totalitárias: o fascismo, o comunismo, o ultranacionalismo, o fundamentalismo religioso.

Na sua fase heroica, as ONGs engajadas na defesa dos direitos humanos figuravam na lista de desafetos dos Estados, inclusive das democracias ocidentais. Elas denunciavam implacavelmente a censura, a repressão política, as detenções ilegais e as torturas promovidas pelos regimes tirânicos, mas também as violações cometidas pelos serviços secretos das potências democráticas, a pena de morte, a discriminação oficial contra imigrantes, o preconceito racial nos sistemas judiciário e policial. Nada disso servia para a obtenção de financiamentos de governos, instituições multilaterais ou fundações filantrópicas globais. O ramo dos direitos humanos não era um bom negócio.

O giro estratégico começou há menos de duas décadas, por meio de uma reinterpretação fundamental dos direitos humanos. As ONGs inventaram a tese útil de que os direitos humanos, tal como expressos na Declaração de 1948, representam apenas direitos "de primeira geração". Eles deveriam ser complementados por direitos econômicos, "de segunda geração", e direitos culturais, "de terceira geração". A operação de linguagem gerou um oceano de direitos indefinidos, um livro vazio a ser preenchido pelos detentores do poder de preenchê-lo. Simultaneamente, propiciou a aliança e a cooperação entre as ONGs de direitos humanos e os Estados.

Sob o amplo guarda-chuva dos direitos "de segunda geração", quase todas as doutrinas políticas podem ser embrulhados no celofane abrangente dos direitos humanos. A reforma agrária promotora da agricultura camponesa converte-se num direito humano, tanto quanto a coletivização geral da terra, que é o seu oposto, segundo a vontade soberana do poder estatal de turno. O Plano de Direitos Humanos apresentado pelo governo Lula declara o "neoliberalismo", rótulo falseador usado como referência genérica às políticas de seu antecessor, como um atentado aos direitos humanos. As políticas assistenciais de distribuição de dinheiro transfiguram-se em princípios indiscutíveis de direitos humanos. Aqui ao lado, em nome dos direitos "de segunda geração", Hugo Chávez destrói meticulosamente aquilo que resta da economia produtiva venezuelana.

Os direitos "de terceira geração", por sua vez, funcionam como curingas dos tiranos e das lideranças políticas que fabricam coletividades étnicas, raciais ou religiosas. A perseguição à imprensa independente, nas ditaduras e nos regimes de caudilho, adquire a forma da proteção de direitos sociais contra o "poder midiático". A introdução de plataformas ideológicas no sistema educacional é envernizada com a cera dos direitos culturais. O mesmo pretexto propicia um discurso legitimador para a implantação de políticas de preferências étnicas ou religiosas no acesso aos serviços públicos, ao ensino superior e ao mercado de trabalho. O Plano de Direitos Humanos contém um pouco de tudo isso, refletindo a intrincada teia de acordos firmados entre o governo, os chamados movimentos sociais e redes diversas de ONGs.

A revisão do significado dos direitos humanos empreendida por iniciativa das ONGs esvaziou o sentido original da política internacional de direitos humanos. Eles deixaram de exprimir direitos dos indivíduos reais para se transfigurarem em direitos de coletividades imaginadas. O "negro" ou "afrodescendente" genérico, supostamente representado por uma organização política específica, tomou o lugar do indivíduo realmente esbulhado pela discriminação racial. O "índio" abstrato, "representado" pelo Instituto Sócio-Ambiental, sequestrou a voz do grupo indígena concreto que não tem acesso a remédios ou escolas. O Plano de Direitos Humanos contempla todas as coletividades fabricadas pela "política de identidades", inclusive as quebradeiras de coco. Ao reconhecimento oficial de cada uma dessas coletividades vitimizadas corresponde uma promessa de privilégios para seus "representantes", que são ativistas internacionais do próspero negócio dos direitos humanos.

Os direitos humanos de "segunda geração" e "terceira geração" diluíram os direitos humanos. As ONGs de direitos humanos incorporaram-se à paisagem geopolítica das instituições multilaterais e seus ativistas ingressaram numa elite pós-moderna de altos funcionários do sistema internacional. Em contrapartida, pagaram o preço de uma renúncia jamais explicitada, mas nítida e evidente, a fustigar as violações de direitos humanos praticadas pelos Estados.

A "guerra ao terror" de George W. Bush, com suas operações encobertas de transferência de presos para ditaduras cruéis, suas prisões off-shore e suas técnicas heterodoxas de interrogatório, escapou relativamente incólume do bombardeio das ONGs amestradas. A submissão do sistema judicial da Rússia de Vladimir Putin às conveniências políticas do Estado quase desapareceu dos radares dos ativistas. A vergonhosa deportação dos boxeadores cubanos por um governo brasileiro disposto a violar tratados internacionais precisos não mereceu uma denúncia no âmbito da OEA. O fechamento de emissoras de TV e a nova figura dos prisioneiros políticos na Venezuela não merecem manifestações significativas dos altos executivos de direitos humanos. A agressão recente à blogueira cubana Yoani Sánchez não gera nem mesmo uma protocolar nota de protesto das organizações que redigiram junto com Paulo Vannuchi o Plano de Direitos Humanos. De certo modo, Samuel Pinheiro Guimarães triunfou.

1702) Corrida ao ouro...

Well, sort of. Nada de garimpagem, depredação do meio ambiente, homens brutos atrás da pepita salvadora, bebendo demais em bares miseráveis, assediando mulheres e filhas do local, não, nada disso.
Uma corrida civilizada, só para quem tem dinheiro para investir. Bem, pode-se perder dinheiro, também, mas muitos vão tentar...

L'or dure, mais...
Le Monde, 16.01.2010

Matières premières

Ruez-vous sur l'or, car la fête de l'once ne devrait pas se prolonger au-delà de cette année. C'est Philip Klapwijk, le président du cabinet GMFS réputé pour le sérieux de ses études sur les métaux précieux, qui l'a dit, mercredi 13 janvier à Londres, en présentant les perspectives du marché : "La lune de miel ne sera pas éternelle."

Quelle lune de miel ? L'or devrait retrouver et battre son record historique de décembre 2009 à 1 226,56 dollars. Vendredi, l'once est retombée à 1 131 dollars à Londres, mais M. Klapwijk "pense qu'au second semestre, nous pourrions voir les prix pousser au-delà des 1 300 dollars". A condition qu'un courant vigoureux d'argent frais se dirige vers le marché de l'or, "en provenance des institutions comme les compagnies d'assurances, les fonds de pension et les fonds souverains de plus en plus actifs".

Qu'est-ce qui inciterait ces riches moutons de Panurge à miser sur le métal précieux ? "La peur d'une rechute dans la récession, la persistance d'énormes déficits publics, une politique monétaire très laxiste et la conviction qu'une inflation forte, sinon galopante, va faire son retour", explique le patron de GMFS. "Comme la reprise économique sera molle, poursuit-il, il y aura donc peu ou pas de tour de vis monétaire dans les grandes économies cette année, et cela soulève de sérieuses questions sur la solvabilité des gouvernements."

"Cela tisse une toile de fond qui reste très favorable à l'investissement or", poursuit-il. Autrement dit, la vocation de coffre-fort de l'or devrait se confirmer de façon éclatante. C.Q.F.D.

Mais alors pourquoi M. Klapwijk parle-t-il de "lune de miel" qui pourrait tourner mal ? Pourquoi, après nous avoir fait miroiter un eldorado, parle-t-il de "possibilité d'une correction significative dans les six prochains mois" ?

D'abord parce que, comme tous les prévisionnistes, il se protège en disant que le contraire de ce qu'il annonce peut arriver. On ne sait jamais. Ensuite, parce que la pierre philosophale pourrait tout à fait fonctionner à l'envers, changeant l'or en métal plus vulgaire.

Si le dollar redresse la tête, parce que l'euro pâtit des malheurs de la Grèce, les investisseurs miseront sur le billet vert et plus sur l'or. Si les belles Indiennes persistent à snober la bijouterie en or devenue hors de prix (- 23 % pour la demande mondiale en 2009), l'argent en profitera.

Sauve-qui-peut
Si la production minière (+6 % en 2009) et le recyclage (+27 %) continuent à doper l'offre d'or, les investisseurs pourraient y voir les prémices d'une baisse des cours et se lancer dans un sauve-qui-peut.

Si la reprise économique et un retour du goût pour le risque se confirment, on verra les capitaux quitter le douillet refuge de l'or et se placer dans des valeurs de vraie croissance.

Combien pariez-vous que le cours du beau métal qui ne craint "ni la rouille ni les vers" sera tout sauf un long fleuve tranquille en 2010 ?

Alain Faujas
Article paru dans l'édition du 17.01.2010

1701) Como a internet mudou a minha vida...

A crônica de Janer Cristaldo se refere às perguntas anuais do site The Edge.
Para quem não conhece, é um forum de debates sobre questões científicas, que todo ano faz uma provocação com seus associados, instando-os a responder uma pergunta incisiva.
Já fiz, de minha parte, uma resposta unilateral, aqui consignada:

Em que você mudou de opinião? E por quê?, Via Política, 17.02.2008 (Trabalho 1861)

Janer Cristaldo é um colunista independente, no sentido mais libertário da palavra. Vale uma visita ao seu site.
O que vai abaixo é sua resposta à pergunta do final de 2009 do The Edge.
Paulo Roberto de Almeida (17.01.2010)

COMO A INTERNET MUDOU MINHA VIDA
Janer Cristaldo
Terça-feira, Janeiro 12, 2010

Um amigo me envia um site chamado Edge, que funciona como um "salão" de pensadores (físicos, psicólogos, neurocientistas, matemáticos, artistas, jornalistas, filósofos...) do qual fazem parte alguns nomes relativamente famosos como Nassim Taleb, Richard Dawkins e Steven Pinker. Durante todo o ano os participantes escrevem sobre assuntos relacionados especialmente ao seu trabalho, e a cada ano o fundador, John Brockman, faz uma pergunta que todos, ou quase todos, respondem com um texto. Este ano a pergunta foi "Como a Internet mudou a sua forma de pensar?", e apareceu em diversos lugares das media mundiais.

Para quem quiser dar uma olhada, a página inicial do site, relacionada à pergunta do ano, é http://www.edge.org/q2010/q10_index.html. Os textos realmente começam em http://www.edge.org/q2010/q10_1.html. Perguntas passadas do site incluem:

- No que você acredita, mas não pode provar?
- Qual é sua idéia perigosa?
- A respeito de quê você mudou de idéia? Por quê?


São questões que fazem pensar. Quanto à pergunta deste ano, minha resposta é singela. A Internet não mudou em nada minha forma de pensar. Quando cheguei à Internet já tinha bem mais de 50 anos e uma visão de mundo consolidada. A questão não é muito feliz. Não vejo como uma forma de comunicação possa mudar a maneira de pensar de alguém. Se me perguntassem o que mudou em minha vida, bom, aí eu teria muito a dizer.

Para começar, na vida de um jornalista a Internet se tornou sinônimo de liberdade de expressão. Os jornais enchem a boca falando de imprensa livre, mas nenhuma imprensa é realmente livre. Todos os jornais têm interesses a defender – que mais não seja, os interesses dos anunciantes – e sempre censuram, de uma ou outra forma, seus redatores. Você até pode xingar o governo. Mas não pode xingar o anunciante. Nos dias em que escrevi em papel, sempre me autocensurei um pouco. Sabia que certas afirmações não podiam ser publicadas. Então, para não incomodar-me, as deixava de lado.

Hoje, mudou o trote da mula. Na Internet, você pode escrever o que quiser. Claro que continua submetido à legislação. Se cometer crime de calúnia ou difamação, estará incurso nas mesmas penalidades que um conversador de boteco. Mas pode-se xingar o papa à vontade, denunciar a manipulação da grande imprensa, abordar temas-tabu. Verdade que alguns juízes já se alertaram para esta brecha e começam a censurar blogs. Mas, uma vez destapada a garrafa, o gênio não volta à garrafa. Censurar a Internet é como tentar parar a chuva a golpes de sabre.

Neste sentido, minha vida mudou e muito. Nossas vidas mudaram. Hoje, qualquer jornalista pode fazer jornalismo sem depender de jornal algum. Furar um jornal não exige maior esforço. Os jornais saem sempre amanhã. O blogueiro escreve agora. Além do mais, faz sua própria pauta e não depende de patrão algum. A liberdade de imprensa, tão apregoada pelos jornais, só surge a meu ver com a Internet.

Outra mudança em meus dias: hoje, não recebo mais cartas. A não ser de bancos e empresas ou entidades públicas. Carta virou peça de museu. Em 2000, passando por Évora, em Portugal, comprei dois pesados estribos de madeira. Não que pretendesse cavalgar. É que me pareceram muito adequados para guardar cartas. O que não me ocorreu é que, naqueles dias, eu já não recebia cartas. Enfim, para algo servem. Para guardar aqueles papeluchos que infestam minha escrivaninha, contas de luz, água e telefone.

Posso até ter saudades das cartas, mas não me queixo. Email é mais rápido e não precisamos ir ao correio, entrar em filas, lamber selos, postar. Podemos enviar sons e imagens em poucos segundos. Neste sentido, a Internet mudou a vida de todo mundo.

Outra mudança fundamental, particularmente para quem vive em pequenas cidades: você quer um livro ou filme que jamais iria encontrar em sua aldeia? Simples. Alguns cliques e uma ou duas semanas depois chega em sua casa aquele livro ou DVD que só existem em Paris ou Nova York. Isso sem falar nos ebooks. Por um livro eletrônico não preciso esperar uma semana. Ele chega em segundos às minhas mãos. Você precisa consultar já uma obra de Platão? Estão todas na rede. Alguns toques de teclado e o livro está em suas mãos, mesmo que você viva na mais remota aldeia do país.

Sim, havia um certo charme na correspondência epistolar. Em meus dias de Paris, na correspondência com minhas amigas, eu escolhia um papel bonito, envelope idem, comprava um selo significativo, caprichava na datilografia e tinha um especial prazer em despachar minhas cartas. Sem falar na tensão da espera. Uma semana depois, a resposta. Buscar correspondência na caixa do prédio era sempre uma expectativa prazerosa. Hoje, basta ligar o computador.

Não, não deploro os tempos modernos. Mas aqueles outros tempos também eram muito bons. De minha epistolografia parisiense fiz um grosso volume, de umas trezentas páginas. (Hoje caberia num disquete, se é que disquete ainda existe). Guardo este volume como uma relíquia do passado, uma espécie de diário de dias em que era feliz e não sabia.

Passagens, reservas de hotéis, roteiros de viagem. Hoje, posso fazer tudo isto sentado em minha casa. Antes da Web, estas diligências exigiam horas de consultas a um agente de turismo. Outra mudança importante em minha vida foi o reencontro de amigos e amigas que não via há trinta ou mais anos. (Já encontrei pessoa que não via há 45 anos). Sem a Internet, jamais os reencontraria.

Isso sem falar nos amigos que surgem. Se nem sempre temos idéia do que pode interessar a nosso vizinho de porta, é muito fácil encontrar na rede quem participe de nossa Weltanschauung, mesmo que viva nas antípodas. Hoje, alguém que vive em outro continente está potencialmente mais perto de mim do que alguém que vive a meu lado. Nestes dias, temos mais amigos no planetinha do que no prédio onde vivemos.

A Internet não mudou em nada minha forma de pensar. Mas tornou minha vida mais ágil e rápida. Acho que voltarei ao assunto.

- Enviado por Janer @ 8:28 PM

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