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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Resenha de Pierre RENOUVIN (ed): Histoire des Relations Internationales (3 vols) - Paulo Roberto De Almeida (1994)

 Contribuições à História Diplomática

Pierre Renouvin, ou a aspiração do total

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Pierre RENOUVIN (ed):

Histoire des Relations Internationales

Nova edição, em 3 volumes

Apresentação do Prof. René Girault, Paris I

(Presidente do “Institut Pierre-Renouvin”)

Paris: Hachette, 1994

Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (xxviii + 876 pp.)

Volume II: De 1789 à 1871 (706 pp.)

Volume III: De 1871 à 1945 (998 pp.)

 

 

A reedição, agora em três volumes de capa dura, da monumental coleção organizada na década de 50 por Pierre Renouvin é uma grande notícia para todos os estudiosos que, por simples curiosidade intelectual ou por obrigação professional, interessam-se ou são levados a ocupar-se da temática das relações internacionais. Com efeito, todos aqueles que se dedicam à pesquisa, ao ensino ou à mera leitura diletante nessa área, sempre souberam apreciar a riqueza analítica e fatual, a qualidade estilística, bem como a abundante aparelhagem bibliográfica e cartográfica dos oito volumes (encadernados nas edições precedentes) coordenados pelo grande mestre francês da história diplomática global. 

Desde essa época, os oito tomos sequenciais – por quatro autores – da Histoire des Relations Internationales(publicados pela mesma editora entre 1953 e 1958) foram motivo de leitura obrigatória e objeto de referência indispensável de todo e qualquer estudioso das relações internacionais, de modo geral, e das políticas exteriores dos Estados modernos em particular, sobretudo a partir de uma perspectiva europeia. Reeditados pela última vez em 1972, eles tinham se tornado praticamente inacessíveis, sobretudo do outro lado do Atlântico, constituindo-se em verdadeiras preciosidades de bibliófilos e colecionadores. Junto com outros trabalhos de história diplomática do mesmo mestre, falecido em 1974, assim como de Jean-Baptiste Duroselle, seu discípulo e sucessor na Sorbonne, essa obra coletiva (mas concebida por Renouvin em torno de 1950) marcou época na então nascente disciplina das relações internacionais e constitui, ainda hoje, um marco da pesquisa histórica, mesmo se aparentemente influenciada por uma “visão francesa” da política externa dos Estados.

Quarenta anos depois de seu lançamento original e tendo em conta não só a multiplicação de estudos nesse campo, mas também a diversidade de abordagens e o acesso ampliado a determinadas fontes documentais, como se sustenta o trabalho coordenado por Pierre Renouvin?  

 

Uma Totalgeschichte

O que distingue, antes de mais nada, os textos de François-L. Ganshof, Gaston Zeller, André Fugier e do próprio Pierre Renouvin é uma vontade de ultrapassar os limites da história política tradicional, na qual se comprazia ainda grande parte da história diplomática elaborada nas universidades e academias do velho mundo. Estamos bem longe da chamada histoire historisante, aquela feita de homens brilhantes e de momentos solenes, que aliás estava sendo cruelmente “massacrada” pelos partidários da histoire structurelle agrupados em torno da revista Annales, fundada no final dos anos 20 por Lucien Febvre e Marc Bloch e retomada depois da guerra por Fernand Braudel.

Trabalhando de forma independente ou paralelamente aos esforços desses renovadores, Pierre Renouvin, recusando-se a deixar levar unicamente pelos documentos revelados pelos arquivos diplomáticos, decide desde muito cedo colocar sua produção sob o signo da “história global”. Na verdade, antes mesmo de vários representantes da école des Annales (com a qual ele nunca foi formalmente identificado, provavelmente por trabalhar num setor mais restrito), Renouvin já mantinha uma preocupação primordial com a história “totalisante”, ou seja, com uma pesquisa extremamente diversificada, capaz de integrar de forma harmônica os resultados e métodos das diversas áreas da disciplina. 

Desde princípios dos anos 30, como explica o Prof. René Girault em sua apresentação à esta nova edição doHistoire des Relations Internationales, Renouvin sublinha o caráter relativo dos arquivos diplomáticos e faz apelo às “forças” morais e materiais que agitam o mundo, convertidas vinte anos depois em “forças profundas” (Volume I, p. vi). Consciente de que a análise dessas “forças profundas” levaria o seu trabalho um pouco além dos limites estritos da disciplina à qual iria dedicar toda sua vida, o próprio Renouvin diz nas conclusões gerais de sua obra: “A história das relações internacionais é (...) inseparável da história das civilizações” (Volume III, p. 913).  Na mesma época, aliás, Maurice Crouzet dirigia os muitos volumes da Histoire Générale des Civilisations, vasto empreendimento editorial que serviria de inspiração para Sérgio Buarque de Holanda propor entre nós uma História Geral da Civilização Brasileira.

Abrindo o empreendimento, em princípios dos anos 50, Renouvin afirmava que a obra então iniciada não era um “grande manual” de história da política internacional, mas pretendia ser un essai de synthèse (Volume I, p. 7). Deve-se reconhecer que ela realizou plenamente seu objetivo, tendo sido completada, dez anos depois, por outra obra de síntese metodológica, escrita em colaboração com Jean-Baptiste Duroselle, Introduction à l’histoire des relations internationales(Paris: Armand Colin, 1964).  

 

As bases da história global

O conceito que mais popularizou a obra de Pierre Renouvin é, sem dúvida alguma, o de “forças profundas”. No vasto e ambicioso panorama traçado pelo historiador francês, não são apenas os Estados que estão em causa, mas também os povos e os interesses dos agentes econômicos, enfim o conjunto das circunstâncias históricas em um momento dado. Ao introduzir o primeiro volume de sua monumental série de história das relações internacionais, assim se exprimiu o historiador francês: 

“Nós tentamos, portanto, ‘situar’ as relações internacionais no quadro da história geral – história econômica e social, história das ideias e das instituições. Papel das condições geográficas, dos interesses econômicos ou financeiros e da técnica dos armamentos, das estruturas sociais, dos movimentos demográficos; impulsão dada pelas grandes correntes de pensamento e pelas forças religiosas; influências exercidas pelo comportamento de um povo, seu temperamento, sua coesão moral: estes são os pontos de vista que nós sempre tivemos em mente. Nós não negligenciamos, contudo, o papel dos homens de governo que foram, de forma mais ou menos consciente, influenciados por essas forças, ou que tentaram controlá-las e que por vezes o conseguiram; mas sua ação pessoal nos interessa sobretudo na medida em que ela modifica o curso das relações internacionais. Nós também achamos necessário estudar as condições do trabalho diplomático onde esse estudo (é o caso da Idade Média) jamais tinha sido empreendido.  (...) Mas, nós não quisemos que esta busca de explicações estivesse destacada do estudo dos fatos... Era indispensável colocar na base de nosso relato o ‘quadro fatual’ [cadre événementiel], retraçando, em consequência, o desenvolvimento das rivalidades e dos conflitos e mostrando sua trama. Estudar as influências que se exercem sobre as relações internacionais deixando de lado o conjunto de circunstâncias de um momento ou de uma época, seria falsear a perspectiva histórica” (Volume I, p. 12).

Esse método, que tinha sido traçado por Pierre Renouvin antes mesmo de conceber sua coleção mais famosa, seria seguido à risca no desenvolvimento dos diversos textos que se ocuparam das relações entre os Estados e da evolução do sistema internacional desde a Idade Média até 1945. Com efeito, como se encarrega de lembrar Girault, desde 1931 Renouvin buscava escapar ao ponto de vista “trop étroit” da documentação diplomática. Apresentando na Revue historique um balanço dos trabalhos de uma comissão sobre a história da guerra de 14-18 que ele integrava, dizia o professor de história diplomática da Sorbonne:

“Despachos, notas, telegramas nos permitem perceber os atos; é mais raro que eles permitam entrever as intenções dos homens de Estado, mais raro ainda que eles tragam o reflexo das forças que agitam o mundo: movimentos nacionais, interesses econômicos. Não porque os agentes diplomáticos negligenciem inteiramente essas forças morais e materiais; mas, eles têm tendência a atribuir maior importância à atitude das chancelarias e dos ministros, a analisar a influência do fator pessoal. É em corrigir esse erro de ótica que os historiadores poderão e deverão se aplicar” (“La publication des documents diplomatiques français, 1871-1914”, Revue historique, tome CLXVI, 1931, p. 10; citado na Apresentação do Prof. René Girault, Volume I, p. v).

Vinte anos mais tarde, na introdução geral do Histoire des Relations Internationales, Renouvin confirmaria essa recusa do curto prazo e sua visão mais ampla do processo histórico:

“Não é portanto o objeto da história diplomática que está aberto a contestações; é o seu método, tal como o praticam muito frequentemente seus adeptos. (...) Ora, as instruções [das chancelarias] se aplicam muitas vezes a nada dizer de essencial, e os relatórios, que dão informações dia a dia, omitem também frequentemente a busca das causas: mesmo no século XIX, a correspondência de muitos embaixadores atribui apenas uma função restrita, muitas vezes derrisória, às questões econômicas e ao problema das nacionalidades – a todas as ‘forças profundas’ – porque, para o diplomata de então, a ‘grande política’ plana muito acima dessas contingências” (Volume I, p. 10).

Ele não pretende, no entanto, descartar o estudo do papel dos homens de Estado – retendo apenas os “movimentos profundos” da história econômica e social, ao estilo da “história estrutural” – mas, tão somente, recolocá-lo numa perspectiva mais ampla: “na origem desses conflitos, as condições econômicas desempenharam o seu papel; mas, a crise só apareceu quando as paixões entraram em jogo” (Idem, p. 11). Em todos os seus cursos dados na Sorbonne (na qual ele se aposenta em 1964) ou alhures, Renouvin dava a seus alunos uma orientação ilustrada por notas deste tipo: “Nunca fazer unicamente história diplomática, mas procurar ver o pano de fundo ec. financ. pol. int., em seus diversos aspectos, preocupações pessoais H. de Estado, estado dos armamentos e estado op. pública” (segundo papéis de curso depositados no Institut Pierre Renouvin, citados na Apresentação do Prof. René Girault, op. cit., p. vii).

 

Os historiadores engajados e a divisão intelectual do trabalho

Para realizar a vasta síntese que ele pretendia (que deveria comportar apenas cinco volumes), Renouvin convida profissionais que, como ele, tinham uma visão global da história das relações internacionais: o professor belga François Ganshof, especialista em história medieval; seu colega na Sorbonne, Gaston Zeller, autor de diversos trabalhos sobre a diplomacia de Luís XIV; André Fugier, professor da Universidade de Lyon, autor de uma tese sobre Napoleão e a Esspanha publicada nos anos 30. Ele próprio, finalmente, se encarregaria dos séculos XIX e XX.

Ganshof trabalha portanto no primeiro tomo da coleção, não sem algumas reticências metodológicas, pois que ele era inovadoramente dedicado ao estudo das técnicas de relações internacionais na Idade Média (Tome premierLe Moyen Âge, publicado em janeiro de 1953). O trabalho de Gaston Zeller, cobrindo a idade moderna, estendeu-se perigosamente, num sentido “narrativo” e “cronológico” (o que Renouvin reprovava em parte), tendo então de ser dividido em dois volumes (Tome secondLes Temps modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell, junho de 1953; Tome troisième: Les Temps modernes, II. De Louis XVI à 1789, outubro de 1954). André Fugier terminou por sua vez a redação de seu texto sobre o período napoleônico desde fevereiro de 1952, cuja publicação antecipou-se portanto ao volume precedente a cargo de Zeller (Tome quatrième: La Révolution française et l’Empire napoléonien, fevereiro de 1954).

Quanto a Renouvin, seus dois volumes dedicados respectivamente aos séculos XIX e XX estenderam-se desmesuradamente: o primeiro volume tinha não menos de 692 páginas, o que obrigou à sua divisão em dois tomos, o mesmo acontecendo em relação ao século XX. Entre novembro de 1954 e novembro de 1958 são portanto publicados os quatro outros volumes da coleção: Tome cinquième: Le XIXe siècle, I. De 1815 à 1871. L’Europe des nationalités et l’éveil de nouveaux mondes; Tome sixième: Le XIXe siècle, II. De 1871 à 1914. L’apogée de l’Europe; Tome septième: Les Crises du XXe siècle, I. De 1914 à 1929; Tome huitième: Les Crises du XXe siècle, II. De 1929 à 1945.

A nova edição, em três volumes, introduzida pelo Professor René Girault, atual presidente do Institut Pierre Renouvin e eminente herdeiro da noção “renouviana” de “história dos tempos presentes”, reproduz fielmente o texto da última edição dos oito tomos da série, com apenas duas modificações: a bibliografia de cada um dos capítulos foi suprimida, conservando-se a bibliografia geral de cada tomo, e os fac-símiles das cartas geográficas foram reagrupadas no final de cada volume. Dessa forma, a introdução geral a cargo de Renouvin e os três primeiros tomos de Ganshof e de Zeller estão contidos no primeiro volume, que vai portanto da Idade Média a 1789. O trabalho sobre as relações internacionais na época da Revolução francesa, a cargo de Fugier, e o primeiro tomo sobre o século XIX da responsabilidade de Renouvin ocupam o segundo volume, indo portanto de 1789 a 1871. Finalmente, o terceiro volume cobre os três últimos tomos, tratando da época 1971 a 1945, escritos inteiramente por Renouvin.

O sucesso da obra, desde a primeira edição foi rápido, justificando reimpressões em princípios dos anos 60 e traduções imediatas em italiano e em espanhol (não sem problemas de censura franquista, que recusava o termo “guerra civil” ou o conceito de “fascista” em relação à guerra espanhola de 1936-1939). A obra tornou-se um “clássico”, portanto, da história das relações internacionais, o que se explicava plenamente pelo caráter inovador do método ou a vastidão de propósitos, mas também pela fama já consagrada do seu autor principal. 

O impacto fora das fronteiras francesas, e propriamente internacional, deveu-se também ao fato de que, no imediato pós-guerra, a escola histórica francesa estava na vanguarda da renovação metodológica então empreendida em vasta escala. Se assistia então a uma rejeição clara do “positivismo esclarecido”, praticado pelos mestres de princípios do século, como também à incorporação de conceitos e metodologias marxistas na pesquisa histórica, como revelado nos trabalhos de Ernest Labrousse, de Pierre Villar e, mais tarde, de Jean Bouvier.

 

Múltiplas causalidades, relações complexas entre atores

Mas, não se pode dizer que os autores da Histoire des relations internationales tenham rejeitado a história diplomática tradicional (ou seja, política) em favor de uma nova determinação “materialista” do processo, com causas econômicas “dominantes” das crises ou dos conflitos entre Estados. A concepção é mais complexa, colocando em relevo o jogo de causalidades diversas e as diversas teias de relações entre fatos econômicos e financeiros, ação das personalidades e influência das mentalidades. O historiador italiano Federico Chabod, cuja Storia della politica estera italiana del 1870 a 1896 havia impressionado Renouvin, era aliás um dos promotores do estudo do papel da psicologia coletiva nas relações internacionais.

Não só as perspectivas analíticas são múltiplas, mas o campo geográfico é vasto, cobrindo praticamente o mundo inteiro, com uma ênfase lógica na Europa, afinal de contas, o centro das relações internacionais até praticamente o final da segunda guerra mundial. Os desafios eram, portanto, imensos. Como advertiu o Prof. Girault, havia o duplo perigo de se reduzir a multiplicidade dos fatos a algumas ideias simplificadoras ou de deixar esses fatos heterogêneos sem nenhum ordenamento em função de algumas explicações globais. “Para evitar esses dois obstáculos, apenas os aspectos gerais e os fatos significativos deveriam ser considerados. Em consequência, apesar da imensidade do campo coberto por essa história englobando o mundo inteiro, desde a alta Idade Média até 1945, o leitor tem a impressão de estar sendo conduzido com simplicidade e naturalidade até o essencial, saltando, no caminho, da Europa ao resto do mundo, das querelas dinásticas às rivalidades mercantis, dos grandes diplomatas aos homens de negócios, das nacionalidades às Internacionais, etc.” (Apresentação, Volume I, p. xiv).

O mesmo historiador sublinha o fato de que, apesar de terem renovado os dados e a própria maneira de escrever a história diplomática, convertendo-a verdadeiramente numa reflexão sobre as relações internacionais contemporâneas, terreno antes exclusivamente ocupado pelo direito ou pelos cientistas políticos, os aportes da “escola” de Renouvin e seguidores (a expressão não é de Girault) deixaram de suscitar a atenção que mereceriam por parte dos partidários da escola dos Annales, sempre tímidos em face da história política. Também aqui parece ter se operado uma espécie de divisão intelectual do trabalho, que deixou a estes últimos uma espécie de monopólio, para não dizer o exercício de uma certa “ditadura conceitual”, sobre a história econômica e social.

Fazendo o balanço dos ensinamentos de Renouvin, Girault renova a visão de uma história das relações internacionais concebida de maneira não-linear e sem fatores dominantes invariáveis, como o peso das guerras ou das relações interestatais. Para ele, “as relações internacionais conheceram estágios diferentes porque elas são descendentes das civilizações que as cercam” (Apresentação, op. cit., p. xxvi, ênfase no original). No século XIX, predominaram as relações entre Estados, sobretudo na Europa. Um segundo tipo de civilização se desenvolve entre 1914 e meados dos anos 50, estendido ao mundo inteiro pela crise da dominação colonial e imperialista a partir de 1945. Nessa fase, as relações entre Estados permanecem dominantes, mas dois processos mudam a civilização: por um lado, a mundialização real da economia e das técnicas (transportes e comunicações) reforça o papel das relações econômicas; de outro, as relações internacionais são transformadas pela intervenção das ideologias (fascismos, racismo hitlerista, comunismo e anticomunismo). Uma terceira geração de civilizações aparece a partir do final dos anos 50, com o término da guerra fria “quente”. De um lado, sob o sistema capitalista, desenvolveu-se uma sociedade transnacional, na qual o Estado-nação perdeu peso em face das novas organizações internacionais e inter-regionais: esse sistema privilegia as relações econômicas obedecendo às leis do mercado e à potência nuclear, verdadeiro critério de poder. De outro, o sistema dito comunista faz da ideologia sua alavanca mais importante e do centralismo ditatorial um meio de conduzir as relações internacionais. Em posição à parte, os Terceiros Mundos hesitam na busca de uma via autônoma, na verdade submetida às pressões contraditórias dos dois outros contendores (pp. xxvi-xxvii). 

Teria a queda do mundo comunista gerado um novo período das relações internacionais, através do estabelecimento de uma nova civilização mundial?, pergunta Girault. O transnacional tornou-se dominante e, mesmo se atores em alguns Estados continuam a acreditar em sua capacidade de atuar isoladamente, as ideologias parecem ter morrido, pelos menos as que se pretendiam globais. Mas, segundo Girault, ainda é muito cedo para pretender descrever as formas e a extensão geográfica dessa civilização, podendo ela mesmo ser composta de civilizações regionais (mundo islâmico, chinês, africano), cuja natureza particular deve levar em conta as situações geográficas e humanas.

O extraordinário crescimento das instituições regionais de cooperação política e econômica é talvez indicativo de uma nova era histórica. Em todo caso, os diversos níveis interdependentes de análise – política, econômica, social, cultural – no estudo das relações internacionais desses vastos conjuntos regionais de civilizações ou de “sistemas” (para empregar o conceito dos cientistas políticos), nos traz de volta, como sublinha Girault, à fórmula de Pierre Renouvin: “A história das relações internacionais é inseparável da história das civilizações”.

 

O Brasil chez Renouvin

Uma tão larga perspectiva e um tratamento inevitavelmente centrado sobre as relações interestatais e internacionais europeias ofereceria, como parece óbvio, pouco espaço a grandes digressões históricas ou políticas voltadas para um país como o Brasil, economicamente periférico, dependente politicamente, pois que, durante a maior parte de sua história, colônia de um país que era por sua vez essencialmente periférico e dependente. De resto, sem nunca ter constituído um centro de poder político, econômico ou militar próprio, o Brasil sempre foi relativamente ou absolutamente marginal do ponto de vista das relações internacionais globais.

Não obstante, o Brasil comparece nas páginas dos vários volumes da Histoire des relations internationales, a partir da idade moderna evidentemente, sendo que metade das 35 citações se referem à sua condição de colônia ou ao movimento de independência, cabendo o resto ao próprio Renouvin dentro do período independente. Seria excesso de otimismo esperar encontrar, nos diversos textos, desenvolvimentos minuciosos sobre as relações exteriores ou a posição internacional do Brasil, pois que a coleção tem um compromisso básico com o seu objeto próprio, as relações internacionais, no mais amplo sentido geopolítico da palavra. Mas, uma verificação rápida permitirá algumas constatações interessantes.

As primeiras referências se encontram no texto escrito por Gaston Zeller para cobrir as relações internacionais na alvorada da idade moderna, tomo segundo da obra (Les Temps Modernes, I. De Christophe Colomb à Cromwell), tratando basicamente das consequências dos descobrimentos para as relações recíprocas entre Portugal e Espanha e destes com as demais potências europeias (em especial, como seria de se esperar, com a França, de certo modo o centro do primeiro concerto europeu, antes e depois de Westfália). Uma atenção particular é dada aos interesses mercantis dos comerciantes bretões na exploração dos parcos recursos florestais da maior e mais recente colônia portuguesa (vide Volume I, pp. 280 e 283).

Outras menções são feitas a propósito da substituição de hegemonias que se opera na Europa do século XVII, quando comerciantes e soldados mais agressivos, vindos da Holanda, Inglaterra e França, começam a dominar os principais circuitos de bens e metais, em detrimento dos antigos monopólios espanhóis e portugueses (vide o capítulo VIII do tomo segundo: L’Océan: les politiques d’expansion coloniale, Volume I, pp. 411-419, esp. 413 e 415, bem como o capítulo X, La guerre de trente ans et la fin de la prépondérance espagnole, pp. 438-464, cf. p. 448). A ascensão da potência inglesa terá, a partir de então, consequências decisivas não só para Portugal como para o próprio Brasil.

O mesmo Zeller oferece, no tomo terceiro (Les Temps Modernes, II. De Louis XIV à 1789), um panorama dessas mudanças hegemônicas, que consolidam ao mesmo tempo a dominação terrestre da França sobre o continente e a marítima da Inglaterra sobre quase todos os mares. Portugal, pressionado a escolher, mas procurando conservar sua autonomia, torna-se um mero pião nessas disputas, mesmo se ele consegue preservar o essencial de suas colônias, com destaque para o Brasil e Angola (Volume I, p. 513). Novamente, uma grande atenção é dada à França e à política de Luís XIV (em um grande capítulo I: La puissance française au temps de Louis XIV”, pp. 499-578), com uma breve referência à expedição de Duguay-Trouin de 1710-1711 ao Rio de Janeiro (vide pp. 567-8 desse volume).

Essa história de conflitos entre imperialismos rivais será retomada por André Fugier no quarto tomo do Histoire des relations internationales, sobretudo nos capítulos tratando das lutas entre a Espanha, de um lado, e os interesses respectivos de ingleses e franceses, de outro. A “vassalagem” política e militar de Portugal em relação à Inglaterra se faz cada vez mais presente, enquanto sua vida econômica passa a depender, cada vez mais estreitamente da “produção de ouro brasileiro, [da] frutuosa redistribuição de açúcar, café e algodão, compra de mercadorias inglesas...” (p. 66 do Volume II).

No momento do grande enfrentamento entre a “pérfida Albion” e o cônsul Bonaparte, Portugal se vê, no dizer de seus próprios diplomatas entre l’enclume et le marteau, mas continua seus proveitosos negócios com o immense Brésil(capítulo IV, Pacifications (1801-1802), pp. 105-133; cf. 119-120). As contradições da política portuguesa eram também de alcova, pois que o Príncipe Regente João tinha casado com Carlota, filha dos soberanos espanhóis, que no momento eram aliados de Napoleão. Essa situação iria prolongar-se até novos desenvolvimentos em 1807, quando uma vez mais, em razão da política de bloqueio continental e do jogo de pressões militares, Portugal tem de submeter-se ou enfrentar a ira de Bonaparte. A “economia política” dos bloqueios inglês e francês são objeto de duas seções bastante instrutivas no capítulo VII do tomo a cargo de Fugier (II. Économie de blocus britanique, pp. 187-190, III. La stratégie napoléonienne du blocus, pp. 190-196), nas quais se insere precisamente a circulação de mercadorias brasileiras (sobretudo algodão e produtos tropicais) em direção de um ou outro beligerante (pp. 190 e 194). 

André Fugier trata igualmente das razões estruturais da dominação europeia sobre o resto do mundo, com um excelente capítulo sobre seus fundamentos espirituais, intelectuais, demográficos, militares, científicos e econômicos (capítulo X, Courants d’Europe, pp. 269-294), onde se insere a questão das “transferências demográficas”, ou seja a emigração europeia para o novo mundo, e a própria partida de toda a elite e administração portuguesa para o Brasil, em 1807 (p. 284). O capítulo seguinte, sobre a independência das colônias americanas (XI, Émancipation du Nouveau Monde, pp. 295-312), não trata exatamente do processo brasileiro de autonomia, mas das iniciativas de Carlota Joaquina no Prata, a partir de 1808 (pp. 306-7), e da sustentação econômica e financeira da Inglaterra pela Coroa portuguesa, com as relações privilegiadas (e desiguais) que são então estabelecidas pelos tratados comerciais de 1809 e 1810. Data dessa época, igualmente, o estabelecimento de novas correntes de comércio entre o Brasil e seus parceiros do continente, a começar pelos Estados Unidos (p. 311).

O próprio Pierre Renouvin tratará da independência brasileira, no quinto tomo de sua coleção, todo ele dedicado ao século XIX. Depois de quatro capítulos iniciais sobre as “forças profundas”, sobre os “homens de Estado e as políticas nacionais”, as “ameaças à ordem europeia” e os “movimentos revolucionários” no velho continente, Renouvin dedica todo o capítulo V à independência da América Latina. O tratamento é bastante sumário e os autonomistas brasileiros são chamados de créoles portugais, que seguem o exemplo dado pelos créoles espagnols nos demais países (p. 401). Mas, os eventos são enquadrados por Renouvin num panorama mais vasto: 

Nas relações internacionais, o lugar desses dois eventos é bastante desigual. A independência do Brasil só chama a atenção da Grã-Bretanha: o governo inglês que, em 1810, tinha defendido Portugal contra a França, aproveitou para se ver atribuída, no Brasil, uma tarifa alfandegária bastante favorável à importação dos seus produtos manufaturados; em 1822, frente ao fait accompli, ele se preocupa em manter essa vantagem; à medida em que Pedro consente, a política inglesa faz pressão sobre o governo português para levá-lo a reconhecer a independência do Brasil. Mas, a independência das colônias espanholas é uma questão de grande impacto para os Estados Unidos e as potências europeias. (segundo volume, p. 401)

 

Ele ainda faz uma pequena referência ao Brasil, no contexto dos primeiros esforços de “solidariedade pan-americana”, com o convite bolivariano ao congresso do Panamá, de 1825, que deveria reunir os novos Estados do continente. Nem os Estados Unidos, que já tinha proclamado sua “doutrina Monroe” (1823), nem o Brasil ou a Argentina participarão da conferência (p. 412). A derrota do esforço de cooperação política dá lugar ao começo da preponderância britânica sobre o continente, hegemonia que vai durar cerca de um século. 

Uma última menção ao Brasil nesse texto intervém nas conclusões gerais do tomo sob sua responsabilidade, quando Renouvin se contenta em apontar o papel dos fluxos migratórios europeus no crescimento de países como os Estados Unidos, a Argentina ou o “Brasil meridional” (segundo volume, p. 653), questão repetidamente levantada em diversas passagens ulteriores e mesmo na conclusão geral da obra (vide p. 910 do terceiro volume). Não há, em contrapartida, para o período em que as jovens nações sul-americanas já se tinham completamente desvencilhado da tutela metropolitana, qualquer referência às lutas entre caudilhos na própria região, como os conflitos do Prata ou a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai: o equilíbrio de poderes, numa região tão excêntrica para a política mundial como a América do Sul, não entra certamente nos esquemas conceituais das relações internacionais vistas da Europa.

O terceiro e último volume da nova edição dessa obra clássica, traz os três tomos finais do Histoire des relations internationales, todos redigidos pessoalmente por Pierre Renouvin e cobrindo o período de 1871 a 1945. Em cada um deles, as referências ao Brasil são, para dizer o mínimo, reduzidas e, em geral, insatisfatórias do nosso ponto de vista: as relações internacionais do continente sul-americano são sempre consideradas a partir de uma perspectiva europeia ou norte-americana. É o caso, por exemplo, do capítulo XVI do sexto tomo, Les Influences Européennes en Amérique Latine(pp. 237-244), onde Renouvin começa por afirmar:

O campo de predileção para a expansão europeia, não apenas do ponto de vista demográfico ou do ponto de vista econômico e financeiro, mas no terreno da vida intelectual, é a América do Sul. A influência demográfica é importante sobretudo na Argentina e no Brasil” (p. 237).

 

Seguem, nas páginas seguintes, comentários e informações sobre esses imigrantes, sobre os investimentos estrangeiros ou sobre infraestrutura ferroviária no Brasil que, lidos na ótica da historiografia contemporânea, seriam considerados ingênuos ou, enquanto dados parciais, mesmo irrelevantes, mas que podem ser provavelmente explicados pelo estado da bibliografia disponível sobre o Brasil à época da elaboração do trabalho: velhas monografias de Pierre Denis sobre o café, alguns outros estudos de Roger Bastide (sobre raças ou a dualidade da geografia humana), de Pierre Monbeig (sobre os pioneiros e fazendeiros de São Paulo) ou de Charles Morazé (sobre a evolução política do Brasil), por exemplo.

Da mesma forma, seus argumentos sobre a influência cultural francesa nas repúblicas sul-americanas – marcadas por um latinisme de sentiments, de pensée et d’action, avec tous ses avantages primesautiers et ses défauts de méthode, segundo Georges Clemenceau, que voltava de viagem (pp. 243-244) – e sobre as lacunas de sua prática efetiva, beiram o ridículo, tanto o amalgama e o julgamento superficial caracterizam o discurso: “Vassales de l’Europe au point de vue économique et financier, ces Républiques en restent profondement séparées par l’esprit de la vie politique” (p. 244). 

No tomo seguinte, sobre as crises do século XX entre 1914 e 1929, Renouvin retoma o argumento sobre a influência cultural e econômica da Europa, agora contestada pela influência dominante dos Estados Unidos em ascensão. O capítulo XIV, especificamente dedicado à posição internacional da América Latina, não agrega nenhum dado significativo sobre o Brasil e o amalgama com outras repúblicas sul-americanas continua a ser praticado com o agravante da visão política eurocêntrica: o conflito entre o Chile e o Peru a propósito de Tacna e Arica, por exemplo, é pensado em termos de “Alsace-Lorraine”. 

Segundo a interpretação de Renouvin, a existência da Sociedade das Nações poderia dar a esses Estados plus de courage para enfrentar a hegemonia dos Estados Unidos: “não podem eles esperar que o organismo genebrino lhes dará apoio e lhes fornecerá talvez um meio de escapar ao sistema pan-americano?” (p. 575). Na mesma linha, Pierre Renouvin parece lamentar que, tendo assinado o “tratado Gondra”, de 1923, os Estados latino-americanos se comprometem em resolver seus litígios no quadro pan-americano (dominé par les États-Unis), em lugar de entregá-los à Sociedades das Nações. Em todo caso, Renouvin nota o apoio apenas discreto (nuancé), em contraste com a vigorosa tomada de posição argentina, que o Brasil concede, na conferência de Havana em 1928, ao projeto de declaração da Comissão de juristas interamericanos – Comissão do Rio – sobre os princípios da “não-intervenção” (dos Estados Unidos, entenda-se) e da igualdade de direito entre os Estados americanos, como normas consagradas do direito internacional americano (p. 578).

No último tomo, finalmente, Les Crises du XXe siècle de 1929 à 1945, o Brasil e a América Latina comparecem muito pouco, apenas a título de figurantes secundários num ou noutro episódio ligado à guerra mundial (p. 820) ou como fornecedores de matérias-primas (p. 883), ou seja, numa posição afirmadamente marginal do ponto de vista das relações internacionais. Durante o conflito mundial, ele reconhece, por exemplo, que a América Latina contraiu em relação aos Estados Unidos des liens de dépendance que se desdobram numa hegemonia financeira a partir de 1947. (p. 884).

 

A Permanência de Renouvin

Profundamente marcado, como todos os homens de sua geração, pelas tragédias guerreiras que, de 1871 a 1945, retiram todo peso político ou econômico e toda influência internacional à Europa e à França, Pierre Renouvin consegue ainda assim produzir uma obra de referência que traz como fundamento metodológico e como premissa filosófica básica a essencialidade das relações interestatais europeias para as relações internacionais. Esse tipo de perspectiva pode ser considerado como fundamentalmente correto para a maior parte do período coberto, mas um historiador do novo mundo, eventualmente chamado a preparar um trabalho equivalente de síntese, provavelmente produziria uma obra com maior ênfase no peso relativo dos Estados Unidos ou nos fundamentos materiais e políticos da bipolaridade que passaria a dividir o mundo do pós-segunda guerra.

Caberia entretanto observar que as relações internacionais, numa determinada era do desenvolvimento das civilizações, devem ser apreciadas em seu próprio contexto histórico, e não em função do futuro. Aplica-se aqui a famosa frase de Marx em seu 18 Brumário de Luís Bonaparte, segundo a qual a tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.

Em sua Conclusion Générale (Volume III, pp. 907-918), Renouvin retém os dois elementos que lhe parecem essenciais ao cabo de uma vista de conjunto sobre o desenvolvimento das relações internacionais no curso de dez séculos: 

um, o mais destacado sem dúvida, é a permanência das rivalidades e dos conflitos entre os grandes Estados, é o espetáculo das mudanças incorridas na hierarquia desses Estados; o outro é, por iniciativa dos europeus, o progresso das relações entre os continentes, ao ritmo dos progressos técnicos que facilitaram os deslocamentos dos homens, o transporte das mercadorias e o intercâmbio das ideias. A história das relações internacionais deve procurar identificar como esses dois aspectos de completam e se penetram; ela estende seu olhar sobre o mundo inteiro. (p. 907)

 

Depois de passar mais uma vez em revista o papel das condições econômicas, demográficas e psicológicas – as “forças profundas” – que influenciam essas relações internacionais, Renouvin volta a confirmar o papel essencial dos Estados nas relações internacionais. Ao mencionar l’action déterminante des États, sobretudo daqueles Estados que conseguiram salvaguardar, de século em século, seu poder, ele deveria certamente estar pensando na França, então ocupada em reconstruir seu poderio material e em recuperar seu antigo prestígio imperial. A mensagem de Renouvin é talvez um pouco voluntarista, mas o parti pris é digno de ser sublinhado: “O Estado impõe sua marca nas forças profundas, que ele acomoda ou utiliza em proveito do seu poder” (p. 915).

Essa mesma opção preferencial, de ordem metodológica e empírica, em favor do Estado comparece no conhecido manual, em coautoria, de história das relações internacionais. Sua importância, para os estudantes da área, justificaria talvez uma longa citação:

O estudo das relações internacionais está voltado sobretudo para a análise e a explicação das relações entre as comunidades políticas organizadas no quadro de um território, isto é, entre os Estados. Sem dúvida, ele deve levar em conta as relações estabelecidas entre os povos e entre os indivíduos que compõem esses povos – intercâmbio de produtos e de serviços, comunicações de ideias, jogo das influências recíprocas entre as formas de civilização, manifestações de simpatias ou de antipatias. Mas, ele constata que essas relações podem raramente ser dissociadas daquelas que são estabelecidas entre os Estados: os governos, frequentemente, não deixam a via livre a esses contatos entre os povos; eles lhes impõem regulamentos ou limitações, quer se trate do movimento de mercadorias ou de capitais, de movimentos migratórios, ou mesmo de circulação de ideias; eles podem também, por outros procedimentos, orientar as correntes sentimentais. Essas intervenções não têm somente como resultado mais frequente a restrição ou a atenuação das relações estabelecidas pelas iniciativas individuais; elas também lhes modificam o caráter. Deixadas a elas mesmas, essas relações entre os indivíduos poderiam constituir, algumas vezes, um fator de solidariedade; pelo menos, os antagonismos entre esses interesses individuais não acarretariam, na maior parte dos casos, consequências políticas diretas. Regulamentadas pelos Estados, elas se tornam elemento de negociações ou de contestações entre os governos. É portanto a ação dos Estados que se encontra no centro das relações internacionais. (Cf. Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle: Introduction à l’histoire des relations internationales; Paris: Librairie Armand Colin, 1964, Introdução, p. 1)

 

Essa mensagem de história global e ao mesmo tempo de confirmação do papel primordial do Estado nas relações internacionais constitui, por assim dizer, a lição de Pierre Renouvin às gerações de nossa própria época histórica, um ensinamento que se pretende também um convite à modéstia de pretensões explicativas em sua disciplina. Com efeito, ele termina sua monumental Histoire des relations internationales por uma lição que é sobretudo uma advertência contra as pretendidas “lições da história”: 

“A política exterior está ligada a toda a vida dos povos, a todas as condições materiais e espirituais dessa vida, ao mesmo tempo que à ação pessoal dos homens de Estado. Na busca de explicações, que permanece o objetivo essencial do trabalho histórico, o maior erro consistiria em isolar um desses fatores e atribuir-lhe uma primazia, ou mesmo em querer estabelecer uma hierarquia entre eles. As forças econômicas e demográficas, as correntes da psicologia coletiva e do sentimento nacional, as iniciativas governamentais se completam e se penetram; sua parte de influência respectiva varia segundo as épocas e segundo os Estados. A pesquisa histórica deve tentar determinar qual foi essa parte. Ela oferece assim oportunidade para necessárias reflexões; mas, ela não pretende dar receitas e muito menos ditar lições” (Volume III, p. 918) 

Esta é a grande lição que mestre Pierre Renouvin deu em sua Histoire des relations internationales e na maior parte de suas obras: seu sentido e seus propósitos continuam plenamente válidos. Voilà!

 

 

[Paris, 08/08/1994]

[Relação de Trabalhos n. 444]

Publicado na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol. 3, n. 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194). [Relação de Publicados n. 169]

 

 

444. “Contribuições à História Diplomática: Pierre Renouvin, ou a aspiração do total”, Paris, 8 agosto 1994, 16 pp. Resenha crítica de Pierre Renouvin (org.): Histoire des Relations Internationales (Paris: Hachette, 1994, 3 volumes: Volume I: Du Moyen Âge à 1789 (876 pp.) Volume II: De 1789 à 1871 (706 pp.) Volume III: De 1871 à 1945 (998 pp.). Publicado na seção Livros da revista Política Externa (São Paulo: vol. 3, n. 3, dezembro-janeiro-fevereiro 1994/1995, pp. 183-194). Relação de Publicados n. 169.

Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44745355/444_Contribuicoes_a_Historia_Diplomatica_Pierre_Renouvin_ou_a_aspiracao_do_total_Book_Review_1994_).

 

 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Uma História Monetária... não monetarista; Resenha de Carlos Manuel PELAEZ e Wilson SUZIGAN: História Monetária do Brasil (1993)

Uma História Monetária... não monetarista

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26/04/1993

 

Carlos Manuel PELAEZ e Wilson SUZIGAN:

História Monetária do Brasil: Análise da 

Política, Comportamento e Instituições Monetárias

(2ª edição, revisada e ampliada. Brasília: Editora

Universidade de Brasília, 1981; Coleção Temas Brasileiros, 15)

 

No Brasil, falar em monetarismo costuma ser uma receita quase garantida de opróbio e danação, já que ser identificado com esse conceito é um caminho certo para a conspurcação pelos “desenvolvimentistas”. E, no entanto, não existe maior incompreensão do que essa, ou seja, ver no interesse pelos problemas monetários do País apenas um sinal de frieza tecnocrática, insensibilidade economicista ou seja lá o que for. O desconhecimento do – ou o desinteresse pelo – lado “monetário” da economia costumam enganosamente passar por uma identificação reversa com o estruturalismo e a economia social, como se a busca do desenvolvimento pudesse dispensar o País de praticar uma saudável política monetária, ainda que não “monetarista”. Muitos desses equívocos derivam de uma incompreensão real do que foi – e do que é – a questão monetária no desenvolvimento brasileiro ou do que seja o papel da política monetária no correto encaminhamento dos atuais problemas de estabilização e de luta contra a inflação.

 

Uma história monetária schumpeteriana

É precisamente a um passeio pela história da moeda e seu papel na economia brasileira a que nos convida o livro de Carlos Manuel Peláez e Wilson Suzigan, resultado de quinze anos de pesquisa segundo os melhores modelos e teorias disponíveis na disciplina: a “interpretação monetária da história” de Friedman-Schwartz-Cagan, filiada ao chamado modelo da “teoria neo-quantitativa da moeda”; a abordagem mais eclética desenvolvida pelo Professor Rondo Cameron, que adota os argumentos de Joseph Schumpeter e Gurley-Shaw sobre o papel da intermediação financeira no desenvolvimento econômico; e a interpretação histórica de Alexander Gerschenkron sobre a ênfase no papel do sistema bancário durante os estágios iniciais do processo de industrialização. 

Publicado originalmente em 1976, pela Editora Atlas, esse livro deve ser lido junto com um segundo trabalho desenvolvido pelos autores num mesmo projeto, Economia Monetária: Teoria, Política e Evidência Empírica (São Paulo: Editora Atlas, 1978), ou com o livro de Carlos Manuel Pélaez, História Econômica do Brasil (São Paulo: Editora Atlas, 1979). História Monetária do Brasil, na edição ampliada oportunamente publicada pela Editora da UnB, apresenta-se como uma análise econômica das moedas brasileiras, da evolução das instituições e da política monetária no Brasil e das relações entre o setor monetário com os demais setores da economia brasileira ao longo dos dois últimos séculos.

O primeiro capítulo, que é propriamente metodológico, enfoca as abordagens disponíveis para o estudo da história monetária, segundo as três interpretações já referidas, de Friedman-Schwartz-Cagan, de Cameron e de Gerschenkron e, em função desses métodos, trata da experiência monetária brasileira de longo prazo, com ênfase nas relações entre a moeda, a renda e os preços no desenvolvimento brasileiro.

A abordagem de Milton Friedman e seus colaboradores enfoca principalmente a covariância entre a moeda e a atividade econômica e, para tal, privilegia a análise dos determinantes do volume dos meios de pagamentos, resultando numa “interpretação monetária da história”. O “enfoque Cameron” é mais eclético, partindo da constatação de que o desenvolvimento dos atuais países avançados foi acompanhado pela diversificação e crescimento das instituições financeiras: essa relação, no entanto, pode ser de natureza passiva, mas também pode, alternativamente, facilitar ou, ao contrário, restringir o crescimento econômico. Trabalhando segundo os métodos da história comparativa, Cameron e seus colaboradores examinaram as etapas iniciais da industrialização nos países desenvolvidos, onde a principal função da estrutura financeira e bancária é permitir uma crescente monetização da economia. A teoria de Gerschenkron é baseada, como se sabe, no argumento sobre as “vantagens do atraso”, que atribui maior papel relativo ao sistema bancário e ao Estado na impulsão inicial do crescimento, em substituição à capacidade empresarial mais escassa.

 

Brasil: crescimento = desenvolvimento?

Na parte sobre a experiência monetária brasileira de longo prazo, os autores indicam, antes de mais nada, o extraordinário dinamismo da economia brasileira desde o século XIX até os anos 1970. Com base nos indicadores de crescimento real eles se lançam numa uma profecia retrospectiva extremamente arriscada, pelo menos em termos sociológicos. Com efeito, a partir dos dados brutos de crescimento para uma série de países, eles afirmam que “Se o crescimento tivesse ocorrido a partir de um nível maior do produto por habitante, na década de 1850, quando o Brasil começou a modernização, o país encontrar-se-ia hoje entre os mais desenvolvidos” (p. 20, ênfase agregada).

Cabe contudo questionar a legitimidade desse tipo de afirmação que coloca o desenvolvimento como um efeito necessário do crescimento do produto per capita, quando sabemos que outros fatores propriamente sociais estão em jogo, como a capacidade de inovação e de difusão tecnológica, a qualidade dos recursos humanos e, sobretudo, a natureza da estrutura social, que pode ser mais ou menos propensa à distribuição social da riqueza e, portanto, dos ganhos da acumulação. O famoso livro de Celso Furtado sobre a história econômica brasileira — Formação Econômica do Brasil — também não deixou de enfatizar que o nível de renda média nas regiões exportadoras de açúcar do Brasil colonial (séculos XVI e XVII) se aproximava bastante dos índices conhecidos na Europa dessa época, sem que com isso se possa chegar à conclusão de que a estrutura social brasileira pudesse conduzir ao mesmo tipo de desenvolvimento que o experimentado pelas sociedades europeias nos séculos XVIII e XIX.

É verdade, como indicam os autores, que o Brasil conseguiu diminuir o diferencial de renda em relação aos países desenvolvidos, tendo gerado um processo de crescimento autossustentado, pelo menos até os anos 1970. Mas, também é verdade, como eles não deixam de sublinhar, que “a aceleração do crescimento coincidiu com a aceleração do fenômeno inflacionário” (p. 23), com as distorções resultantes em termos de redistribuição de renda. Caberia no entanto indagar se a péssima distribuição de renda é causada tão simplesmente pelo fenômeno da inflação crônica, ou se outros fatores sociais não estão também em jogo, como o baixíssimo nível de educação formal da maior parte da população. 

Em todo caso, a análise conduzida nesse capítulo sobre a relação entre moeda, renda e preços no crescimento brasileiro é tecnicamente bem estruturada, com base num modelo das variações percentuais entre renda nacional e estoque de moeda. Eles evidenciam que os impulsos de política monetária afetam plenamente a atividade econômica corrente mensurada pela renda nominal e que as flutuações a curto prazo na economia se originam nos choques de política econômica (pp. 26-7). Eles ilustram a análise através da experiência de três programas de controle inflacionário: 1947-49, 1964-67 e 1976-78, quando se tentou reverter a pressão inflacionária através de políticas monetárias e fiscais austeras que criaram uma defasagem entre inflação e moeda.

Na fase mais recente do período examinado, isto é, anos 70, o governo passou a ter menor controle sobre o estoque de moeda, devido à crescente complexidade da inflação e do próprio sistema financeiro. “Consequentemente, os esforços de controle inflacionário encontrarão, necessariamente, maiores dificuldades do que no passado” (p. 27), uma conclusão que se tornou ainda mais verdadeira para o período atual, no qual as expectativas inflacionárias alimentam continuamente o processo.

 

Estrutura e conteúdo dos capítulos

Os oito capítulos centrais, do II ao IX, tratam pormenorizadamente da moeda na evolução econômica brasileira e seus títulos respectivos são um indicativo de seu conteúdo. Um rápido sumário de cada um deles, com maior ênfase sobre o período republicano, pode dar uma ideia da estrutura e conteúdo dessa obra exemplar de história econômica.

 

II. Monopólio dos Serviços Bancários

Discorre sobre as origens do liberalismo econômico no Brasil, o deslocamento da monarquia portuguesa e seu impacto na formação do sistema monetário brasileiro, a constituição do primeiro banco oficial e seu desempenho, antes e depois da Independência, que se conclui aliás pela liquidação do Banco do Brasil em 1829.

 

III. O Insucesso na Reforma do Mercado Monetário e o Estabelecimento dos Bancos Emissores, 1830/51

Este capítulo cobre os problemas do estoque de moeda no período regencial, o debate sobre o cobre e o papel-moeda, a lei do padrão-ouro e a legislação alfandegária de 1844.

 

IV. Consolidação do Sistema Monetário Brasileiro, 1849/69 

Trata da política econômica do Segundo Reinado, com a Lei Bancária de 1853 e o estabelecimento do segundo Banco do Brasil, a Lei Bancária de 1860, ademais da pluralidade de emissão e os diversos “pânicos” por que passou, em 1857 e 1864, o sistema bancário brasileiro, em face da “desordem” emissionista nessas fases. “A reforma monetária metalista de 1860 foi elaborada com o propósito de restringir a atividade bancária na crença de que o rápido crescimento dos bancos emissores durante o período 1850/60 teria sido a principal causa da crise de 1857. O objetivo da reforma foi assegurar a conversibilidade do papel-moeda em ouro e o pleno funcionamento do sistema do padrão ouro. (...) O rápido desenvolvimento do sistema bancário foi um dos aspectos mais significativos do progresso mundial durante o século XIX, sob o padrão ouro, nos países que se beneficiavam com o crescimento do comércio internacional, mas o Brasil impediu intempestivamente esse desenvolvimento com a reforma monetária de 1860” (p. 107).

 

V. A Política e Instituições Monetárias durante o Segundo Ciclo do Preço Internacional do Café, 1869/85

Cobre o período final do Império brasileiro, tratando do problema do financiamento da guerra do Paraguai e da política monetária nesses anos, a estrutura do sistema bancário nessa fase, inclusive o “pânico” de 1875 e a lei bancária de 1888, terminando por um resumo da história monetária durante o Império. A lei bancária de 1888, introduzida para paliar os efeitos da abolição e concedendo autorização para criação de bancos de emissão, foi, segundo os autores, “o marco institucional de onde se propagou uma das inflações mais notórias na história brasileira” (p. 121).

 

VI. A Política e as Instituições Monetárias durante a Primeira República

Este importante capítulo cobre um vasto e complexo período, com diversos experimentos monetaristas, emissionistas e deflacionistas a começar por uma análise do terceiro ciclo dos preços do café e o movimento dos indicadores agregados. Sobre a política restritiva de Murtinho, os autores são claros: “Enquanto o Brasil sempre teve um padrão fiduciário, a experiência de 1898/1904 constituiu um de muitos casos em que se imitava o comportamento do padrão ouro mas com grandes custos sociais em termos de desemprego e redução do bem estar” (p. 148). Murtinho foi muito além dos “ortodoxos” dos países desenvolvidos ao argumentar que a indústria não era viável no Brasil devido à inferioridade racial de seus habitantes em relação aos países já industriais: o progresso apenas viria através do libre intercâmbio comercial, da construção de ferrovias e de políticas monetárias austeras.

É dada ênfase particular à política monetária durante a valorização do café, entre 1906 e 1912, com seus efeitos nefastos para o desenvolvimento do País. O impacto da Primeira Guerra na economia brasileira é tratado numa seção especial, segundo a teoria dos períodos adversos, isto é, de fechamento externo, que, aliás, não favoreceram absolutamente o desenvolvimento industrial. Faz-se, finalmente, uma análise do insucesso das políticas monetária e fiscal na década de 1920.

Concluem os autores que, “no longo prazo, a ênfase do Brasil em unir-se ao clube do padrão ouro não conduziu ao crescimento. (...) O caso brasileiro é um bom exemplo de como estruturas financeiras deficientes podem retardar o crescimento e a modernização. (...) Muito se tem dito sobre a influência da teoria clássica sobre a distribuição desfavorável dos lucros do comércio exterior e do progresso técnico entre os países industriais e as regiões menos desenvolvidas. [Nota de rodapé: “As políticas do padrão ouro seguidas no Brasil baseavam-se nos trabalhos de economistas como Heinrich Grossen, The Laws of Human Relations...”.] A história brasileira mostra a existência de uma transmissão das políticas econômicas ortodoxas. Mas aquelas políticas jamais foram favorecidas pelos economistas clássicos” (pp. 148-150).

 

VII. A Grande Depressão e a II Guerra Mundial 

Aqui se ensaia uma explicação keynesiana revista da depressão brasileira e se analisa a política cafeeira ao longo de todo o período. Já no capítulo anterior os autores tinham enfatizado o argumento de que “a experiência refuta o postulado básico da teoria dos períodos adversos, de que a indústria somente poderia estabelecer-se nas economias de exportação latino-americanas em períodos de redução maciça do comércio exterior” (p. 174). Eles também tinham sublinhado o fato de que “a redução do comércio internacional e a interrupção do fluxo de ideias e capital impediram a modernização do País sobre alicerces realmente eficientes” (p. 175).

Neste capítulo os autores fornecem base empírica para confirmar que, efetivamente, o Brasil contornou a Depressão da melhor forma possível, mas que “dificilmente se poderia considerar aqueles anos como período de progresso ou confirmação empírica das vantagens do modelo latino-americano de crescimento introvertido e muito menos como justificativa para maiores controles governamentais da atividade econômica” (p. 214).

 

VIII. A Política Monetária do Brasil, 1947/72

Cobre um vasto período com experimentos os mais diversos de política monetária, desde a fase da taxa de câmbio supervalorizada (seguindo no caso as recomendações do FMI emanadas de Bretton Woods), passando pelas reformas do mercado cambial dos anos 1950, até as diversas políticas tentativas de controle do problema inflacionário, com as diversas estratégias, graduais ou lentas, de correção, inclusive já no regime militar. Uma das mais notórias foi o Plano Nacional de Estabilização (PNE), de 1958, motivado pelo descontrole inflacionário e a crise cambial e abandonado em junho do ano seguinte sob forte ataque dos “estruturalistas”, que argumentavam que uma inflação de 20% ao ano era “compatível com as necessidades de desenvolvimento da economia brasileira”. Segundo os autores, “o que aconteceu foi a explosão inflacionária, caos econômico, tensão social e crise política” (p. 259).

O primeiro período militar coincide com importantes reformas estruturais, permitindo ao Governo obter recursos não inflacionários para financiar o déficit público, segundo receitas de um “monetarismo eclético” (p. 268). A partir de 1967, a política de gradualismo, com a combinação de medidas anti-inflacionárias de caráter monetário, fiscal e salarial, começou a dar resultados, a despeito mesmo da introdução de taxas de juros reais positivas. A partir de 1968, foi adotada a política de taxa de câmbio flexível, caracterizada por minidesvalorizações graduais e constantes, promovendo as exportações e incentivando os investimentos.

 

IX. A Crise do Petróleo e a Diversificação da Estrutura Financeira 

Parte do processo de industrialização na fase de grande crescimento dos anos 1970 e focaliza com maior detalhe a reforma do sistema financeiro brasileiro, seus instrumentos (como a correção monetária) e o desempenho geral desse período. O Brasil utilizou-se de instrumentos ortodoxos e não ortodoxos para melhorar o nível de eficiência de seu sistema econômico e permitir o crescimento sustentado. A crise do petróleo, aliás, reforçou ainda mais o planejamento estatal e o estímulo à industrialização, mas a inflação voltou a crescer, ainda que em ritmo de stop and go. Os desequilíbrios generalizados, a introdução de medidas compensatórias e o desenvolvimento da intermediação financeira conduziram a uma inflação crônica ou inercial, facilitada ainda pela correção monetária.

 

A Experiência Monetária do Brasil

O capítulo final, bastante sistemático, traz conclusões sobre cada um dos períodos analisados anteriormente, tanto do ponto de vista do comportamento monetário brasileiro, como das instituições monetárias em cada uma das fases selecionadas. Importância particular é dada ao mercado do café, o grande determinante dos equilíbrios fiscais e monetários durante boa parte da evolução econômica no Brasil independente. Na verdade, o período de defesa do café se estende até uma fase ainda recente da economia brasileira, mas sua importância era evidentemente maior na fase anterior à Segunda Guerra Mundial.

Como indicam os autores, uma grande deficiência das séries monetárias brasileiras é a impossibilidade, para quase todos os períodos enfocados, de identificar os fatores que influenciaram a variação da base monetária. Igualmente difícil é definir as relações entre a moeda em poder do público e o estoque de moeda, por um lado, e entre o encaixe bancário e os depósitos, por outro, que deveriam refletir, respectivamente, o comportamento do setor público, do público e dos bancos. A razão é que não existe, para o período anterior à Segunda Guerra Mundial, dados sobre o balanço de pagamentos, o estoque de ouro e outros dados importantes, a partir dos quais se poderia intentar “explicar as variações dos determinantes próximos do estoque de moeda” (p. 6). Eles indicam suas diferenças de método em relação ao modelo proposto por Friedman e Schwartz para os Estados Unidos, por exemplo, demonstrando como, no Brasil, se deve incluir os depósitos à vista no Banco do Brasil na base monetária, uma vez que essa instituição quase sempre funcionou como autoridade monetária e como banco comercial.

Ademais da construção de séries estatísticas, uma grande importância é igualmente dada às mudanças institucionais, particularmente importantes num país em que a política monetária se caracteriza por enormes descontinuidades, em todas as épocas.

Como demonstrado amplamente no livro, e a própria experiência se encarrega de confirmar, no século XX, a inflação e o crescimento do estoque de moeda aceleram-se consideravelmente no Brasil, a despeito mesmo do crescimento satisfatório do produto real per capita. Apenas no período do regime de 1964 (e somente em sua primeira fase) o Brasil conheceria crescimento econômico com taxas declinantes de inflação, sem ter no entanto conseguido resolver o problema secular do processo inflacionário: deficiências na política de financiamento do orçamento. Durante a maior parte de nossa história republicana (e mesmo imperial), a falta de responsabilidade fiscal dos governos resultava em déficits crônicos financiados por emissão de dinheiro, e o aumento da base monetária provocava sempre novos aumentos do estoque de moeda. 

No período anterior à Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o crescimento se deu a modestas taxas anuais de 1,7% [um número que talvez devesse ser revisto], ao passo que o estoque de moeda aumentava à razão de 10% anuais e os preços ao nível mais modesto de 4,6% ao ano. Já no período 1947/1970, o produto real per capita cresceu a taxas médias anuais de 3,3%, enquanto os preços o faziam a um ritmo de 23%, e o estoque de moeda em cerca de 27% (p. 335). Em 1964 se tentou interromper esse processo vicioso, com a introdução de uma reforma monetária e financeira.

Aliás, segundo os autores, um importante fator do atraso econômico brasileiro, em todo o período coberto pelo trabalho, foi a incapacidade de reformar os mercados monetários segundo os padrões requeridos para um desenvolvimento continuado. É claro que outros fatores também pesaram, como a alta taxa de crescimento demográfico, o baixo nível de investimento em educação e alfabetização em geral, as políticas nocivas de valorização do café que desviavam recursos e renda de setores ligados ao mercado interno, bem como o ambiente pouco propício à difusão de tecnologia, seja por problemas externos (crises e guerras mundiais), seja por fatores propriamente internos, mas o trabalho procura concentrar-se nas deficiências das instituições financeiras como fator de atraso.

Tentativas foram feitas, é verdade, de se corrigir o problema. No século passado, homens como Mauá e Souza Franco procuraram desenvolver instituições bancárias com direito de emissão, seguindo exemplos bem sucedidos na Europa. “A escola papelista de intermediação financeira foi derrotada pela escola metalista defensora do padrão ouro, das restrições ao desenvolvimento bancário, de um estoque de moeda puramente metálico e do monopólio de emissão e de quase todos os serviços bancários pelo Banco do Brasil, estritamente controlado pelo Governo. Conquanto o Brasil não obtivesse o estoque de moeda puramente metálico, o Banco do Brasil recebeu privilégios extraordinários que lhe permitiram absorver a maior parte dos bancos de emissão existentes.  Desde seu estabelecimento, a instituição controlou um mínimo de um terço dos serviços bancários brasileiros, contribuindo em alguns dos períodos para o financiamento inflacionário do déficit orçamentário” (pp. 336-338). 

No começo da República houve uma reversão nessas práticas, com autorização para o estabelecimento de instituições bancárias com direito de emissão, mas o aparente sucesso da contra-reforma de 1898-1902 aumentou o prestígio das políticas metalistas no Brasil, padrão ao qual se ateve a grande maioria das autoridades monetárias nas décadas seguintes. A estrutura bancária brasileira sempre foi muito deficiente, com um grande banco para assuntos governamentais – “servindo a determinados grupos de atividade privada de acordo com a tônica mutante do favorecimento político” – e um número reduzido de grandes bancos tradicionais fracionando o negócio bancário remanescente. Na verdade, o grande banco oficial também servia a interesses privados e, no mais das vezes, de instrumento relevante do processo inflacionário.

Para aqueles que consideram que a fixação de um limite máximo para a taxa de juros é uma loucura própria aos constituintes de 1988, cabe lembrar, como o fazem os autores, que uma Lei de Usura de 1933 fixou um teto para os juros. Como agora, a prática se encarregou de corrigir a deformação legal: “Se a Lei tivesse sido cumprida estritamente, todo o setor bancário brasileiro teria ido à falência. Contudo, os bancos encontraram outros expedientes para contornar o problema e cobrar juros maiores. Dentro dessa conjuntura irracional, fazia-se cada vez mais difícil emprestar dinheiro a taxas de juros reais positivas. Como as taxas de juros pagas aos depositantes eram também taxas reais negativas, o setor bancário descobriu uma fonte de lucros na atração de depósitos. Essa concorrência por atrair depósitos do público, assim como o interesse em adquirir propriedade urbana para contornar a inflação, explicam a alta artificial no número de estabelecimentos bancários. Tal experiência mostra o insucesso e adiamento da reforma bancária no Brasil. O resultado foi a criação de um sistema bancário altamente ineficiente e custoso” (p. 336).

 

Crescimento em fase de abertura ou retração externa?

No período anterior à Segunda Guerra, de modo geral, a defesa do café foi uma política consistentemente seguida pelos diversos governos republicanos, antes e depois da crise de 1929 e da revolução de 1930: essa defesa “concentrou artificialmente a renda no setor cafeeiro em detrimento dos outros ramos da atividade econômica, constituindo-se num fenômeno social lamentável” (p. 344). No que se refere à crise de 1929 e a depressão que se seguiu, os autores demonstram que o Brasil sofreu menos que os Estados Unidos e sua recuperação foi mais rápida. De toda forma, o Brasil já tinha experimentado uma contração econômica durante os anos 1920, resultado de políticas restritivas, e quando, nos anos 1930, os controles cambiais dificultaram as importações, as indústrias já instaladas receberam um estímulo para o crescimento da produção. Eles negam, assim, algumas virtudes proclamadas da teoria da industrialização substitutiva, preferindo ver o fenômeno como uma espécie de “acidente histórico”.

No geral, os períodos “extrovertidos” foram mais favoráveis à industrialização do que os “introvertidos”, estes fortemente marcados pela redução nos níveis de intercâmbio, inclusive importação de tecnologia e know-how. “Na verdade, um dos fatores do atraso do Brasil reside na ocorrência dos períodos adversos. O processo de modernização e industrialização do País já tinha começado em condições de expansão do comércio internacional e é possível especular que na ausência das guerras e da Grande Depressão o Brasil teria progredido em ritmo muito mais acelerado” (p. 350). A despeito disso, o fato é que, no período posterior à Segunda Guerra, o Brasil segue, com algumas exceções em anos isolados, “políticas típicas de desenvolvimento introvertido”. A substituição de importações foi premiada e as foram exportações penalizadas. “De fato, o Brasil caracterizou-se por uma das piores experiências em matéria de exportação no mundo” (p. 350).

É também nesse período que a inflação cresce para patamares nunca conhecidos. “A irresponsabilidade orçamentária e a política de maximização das receitas de divisas provenientes da exportação de café constituíram os fatores mais importantes da inflação brasileira. A base monetária contribuiu com quase todo o aumento do estoque de moeda. O processo de aumento da base monetária resultou do financiamento do déficit orçamentário, da conta café e do crédito a diversos grupos de atividade empresarial privada de acordo com o favoritismo político esporádico feito através do Banco do Brasil. A inflação causou as mais diversas distorções da atividade econômica salientadas nos livros-texto assim como todas as injustiças sociais concomitantes” (p. 351). O Plano de Estabilização intentado no Governo Kubitschek, com a combinação de medidas graduais de política orçamentária, monetária e salarial, foi abandonado por motivos políticos, originando-se aí a forte onda inflacionária que assolou a economia brasileira no começo dos anos 60.

 

Uma História Monetária não monetarista

Esse mesmo quadro de irresponsabilidade orçamentária e favorecimentos políticos parece caracterizar o cenário econômico brasileiro no período da redemocratização ulterior a 1985, que está obviamente fora do período coberto pelo excelente trabalho de Peláez e Suzigan. Seríamos tentados a aplicar o tradicional refrão sobre a repetição da história, mas os próprios autores advertem, no parágrafo final sobre história e política econômica, que a principal contribuição da história econômica — talvez a única, eles sublinham — é proporcionar parte dos alicerces culturais de um país; mais do que isso, ela não pode fazer. “Mesmo dentro desse esquema, a contribuição dos historiadores econômicos é bem reduzida por poderem somente fornecer algumas partes empíricas de uma estrutura cuja harmonia global depende das contribuições dos historiadores-padrão dotados de visão schumpeteriana do processo social” (pp. 351-2).

O livro contém um excepcional apêndice estatístico, com tabelas relativamente completas de dados relativos ao papel-moeda emitido no Brasil, aos volumes de encaixe nos bancos comerciais e de moeda em poder do público, em depósito e o estoque de moeda, desde meados do século passado até o começo dos anos 1970, com uma indicação detalhada de todas as fontes e da metodologia utilizada na reconstrução serial. Elas constituem, desde já, a base indispensável a outros estudos pormenorizados de história monetária do Brasil. Infelizmente, a bibliografia, tanto a de caráter teórico geral, como a de cunho empírico-histórico sobre o Brasil, está disseminada em notas de rodapé ao longo dos capítulos, quando teria sido útil uma visualização sistemática ao final do trabalho.

O livro, em todo caso, é um brilhante exemplo de utilização de teorias econômicas e de comprovação histórica por via de uma fundamentação empírica real, aplicadas ao caso brasileiro. Os autores acreditam, acertadamente, que “é cientificamente impossível isolar relações puras e unidirecionais de causa e efeito em economia, e muito menos em história econômica” (p. 7). Para eles, “a história econômica deve usar a teoria para identificar os aspectos substantivos da experiência econômica passada. Mas a solução não é teoria sem realidade. Muito pelo contrário, o sucesso em adquirir conhecimento sobre os aspectos fundamentais do passado econômico depende da conjugação apropriada da teoria com a realidade” (p. 352).

 

[Brasília, 26.04.93]

[Revisto em 21.05.93]

[Relação de Trabalhos nº 338]

 

 

338. “Uma História Monetária... não Monetarista”, Brasília: 26 abril 1993, 12 pp., revisto em 21 maio 1993, 12 p. Resenha do livro de Carlos Manuel PELAEZ e Wilson SUZIGAN: História Monetária do Brasil: Análise da Política, Comportamento e Instituições Monetárias (2ª ed., revista e ampliada. Brasília: Editora Universidade de Brasília: 1981; Coleção Temas Brasileiros, 15). Inédito.

 

Covid-19 – Deve ou não o governo promover a vacinação?, por Felipe A. P. L. Costa (Jornal GGN)

Covid-19 – Deve ou não o governo promover a vacinação?

 SIM, responde este biólogo, Felipe A. P. L. Costa, autor de muitos livros de biologia, evolucionismo, história da ciência, entre eles, O Evolucionista Voador e Poesia Contra a Guerra. Este artigo traz evidências históricas sobre a luta de médicos e cientistas contra as grandes epidemias que ceifaram milhares, milhões de vidas ao longo dos séculos. NÃO, a Covid não nos deixará, como foi o caso da varíola, mas os governos têm a obrigação de organização a vacinação e imunização em massa. Essa dama em trajes turcos, uma nobre ingles, participou dos esforços de erradicação da varíola. Leiam...

Paulo Roberto de Almeida 

Covid-19 – Deve ou não o governo promover a vacinação?, por Felipe A. P. L. Costa

Doenças epidêmicas não são eventos aleatórios que afligem as sociedades de modo caprichoso e sem aviso prévio. Ao contrário, cada sociedade produz suas próprias vulnerabilidades específicas.

https://jornalggn.com.br/coronavirus/covid-19-deve-ou-nao-o-governo-promover-a-vacinacao-por-felipe-a-p-l-costa/

Doenças epidêmicas não são eventos aleatórios que afligem as sociedades de modo caprichoso e sem aviso prévio. Ao contrário, cada sociedade produz suas próprias vulnerabilidades específicas. Estudá-las é compreender a estrutura dessa sociedade, seu padrão de vida e suas prioridades políticas. – Frank Snowden (2019).



A.

Seres humanos abrigam centenas de espécies de organismos infecciosos, muitos dos quais são patogênicos. A lista inclui vírus, bactérias, protozoários, fungos e vermes (helmintos). Doenças infeciosas (e.g., pneumonia, amebíase, tuberculose, Aids, malária e meningite) são responsáveis por cerca de 15% das mortes registradas anualmente em todo o mundo [1]. A maioria dessas doenças teve origem em alguma população animal, sendo então transmitida aos seres humanos por meio do consumo ou de algum outro tipo de contato íntimo ou repetido. Doenças que procedem de animais são referidas como zoonoses (do grego: zoo–, animal + –nose, doença) [2].

B.

Uma zoonose bem conhecida é a raiva, doença causada por um rabdovírus (vírus da família Rhabdoviridae). Indivíduos sadios adquirem o patógeno por meio da mordida de algum animal infectado, na maioria das vezes um cão. O vírus infecta as células do sistema nervoso central, o que quase sempre resulta em uma encefalite fatal. Em 2016, mais de 24 mil seres humanos morreram em decorrência da doença. Mordidas em regiões ricas em fibras nervosas, como a face e as mãos, são especialmente perigosas [3].

No entanto, embora ainda seja um grave problema de saúde pública, sobretudo em certas regiões da Ásia e da África (ver aqui), a raiva já não é mais o bicho-papão de outrora. Em outras palavras, ser mordido por um cão infectado já não é mais uma sentença de morte. Meios de cura e prevenção vêm sendo investigados desde o final do século 19.

Uma vacina pioneira contra a raiva, desenvolvida pelo químico e biólogo francês Louis Pasteur (1822-1895), foi aplicada pela primeira vez em um ser humano em 6/7/1885. O ‘voluntário’ foi Joseph Meister (1876-1940), então com 9 anos de idade (ver o artigo Por que o Dia Mundial das Zoonoses é comemorado em 6 de julho?). O garotinho francês, que havia sido mordido por um cão, conseguiu se recuperar. A invenção de Pasteur foi um marco na história da luta contra as doenças infecciosas. Para lembrar o feito e marcar a data, a Organização Mundial da Saúde (OMS) instituiu o Dia Mundial das Zoonoses [4].

C.

Uma zoonose de grande importância histórica é a varíola, doença causada por um ortopoxvírus (vírus da família Poxviridae). Diferentemente da raiva, trata-se de uma doença contagiosa: indivíduos infectados transmitem o parasita para novos hospedeiros pela simples proximidade ou por meio de contato físico.

O vírus da varíola infecta vários órgãos internos do corpo antes de ganhar a corrente sanguínea e ir se alojar na epiderme. O crescimento do vírus nas camadas epidérmicas da pele causa as lesões (pústulas). A letalidade da doença é das mais expressivas: cerca de 20% dos indivíduos infectados morriam.

Ademais, sendo a varíola uma doença contagiosa, os riscos de surtos epidêmicos sempre foram muito elevados. De fato, até meados do século 18, em cidades europeias densamente povoadas, como Londres e Paris, 10% ou mais de todos os óbitos eram atribuídos à doença. Entre as crianças pequenas, mais especificamente, costumava ser a principal causa de morte.

Em regiões densamente povoadas, portanto, a varíola era uma temida fonte de mortalidade. Razão pela qual havia uma justificada expectativa de que algum método de cura ou prevenção fosse inventado. Foi nesse contexto que emergiu uma discussão a respeito da variolação (= enxertia ou inoculação) [5], uma técnica rudimentar de imunização induzida que havia sido introduzida na Europa em 1721.

Entre os críticos da inoculação estava o matemático e naturalista francês Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783). Entre os defensores estava o seu colega suíço Daniel Bernoulli (1700-1782). Na opinião desde último, o problema poderia ser colocado da seguinte maneira: Deve ou não o governo promover a vacinação de todos os recém-nascidos?

Em um artigo escrito em 1761 (mas que só seria publicado em 1766), Bernoulli confrontou os riscos e os benefícios das duas alternativas em questão: não vacinar (assumindo o risco de morrer da doença) versus vacinar (assumindo o risco de morrer em decorrência da vacinação) [6]. E concluiu a sua análise de modo afirmativo, sustentando que a inoculação deveria ser encorajada, visto que resultava em um aumento significativo na expectativa média de vida.

D.

A inoculação pode ser vista como um processo em duas etapas: (i) extrair material das pústulas de varíola de um indivíduo doente; e (ii) esfregar o material extraído sobre um arranhão feito na pele (em geral na mão ou no braço) de um indivíduo sadio.

Não era um procedimento inteiramente seguro. No entanto, visto que as probabilidades envolvidas eram desiguais (i.e., as chances de um indivíduo sadio morrer em decorrência da inoculação eram menores que as chances de um indivíduo infectado morrer da doença), o uso da técnica terminou se estabelecendo entre os médicos europeus. Tudo correndo bem, o indivíduo inoculado desenvolvia uma forma branda da doença, da qual se recuperava gradativamente. A partir de então estava protegido (imunizado).

A inoculação foi introduzida na Inglaterra – de onde foi levada para outros países ocidentais – por Mary Wortley [Pierrepont] Montagu (1689-1762), aristocrata e escritora inglesa, esposa do embaixador britânico junto ao Império Otomano (Turquia) [7].

Além de ter perdido um irmão para a varíola (1713), a própria Montagu teve a doença (1715). Enquanto esteve na Turquia (1716-1718), entrou em contato com um grupo de senhoras que aplicavam a técnica (chamada pelos turcos de enxerto). Chegou a presenciar ao menos uma sessão. O processo que Montagu conheceu – o mesmo que ela aplicaria mais tarde em seus dois filhos – já seria uma modificação do procedimento original, desenvolvido na China. Consta que crianças chinesas sadias eram preventivamente imunizadas. O procedimento consistia em fazer com que elas inalassem partículas de pó de material seco previamente retirado das feridas de algum doente. Desse modo, elas ganhariam alguma imunidade.

E.

A inoculação continuou sendo usada em toda a Europa. Não tardou muito, porém, para que um método alternativo fosse desenvolvido.

Em 1796, o naturalista e médico inglês Edward Jenner (1749-1823), ele próprio vítima da varíola durante a infância, descobriu que a forma bovina da doença (cowpox, em inglês) conferia aos seres humanos que estavam em contato com os animais alguma proteção contra a forma letal (smallpox). Após uma série de estudos e testes, Jenner desenvolveu uma técnica de imunização artificial (vacinação). Publicou seus achados em 1798.

F.

A varíola é uma doença muito antiga, havendo indicações de que o vírus esteve conosco desde tempos pré-históricos [8]. É também a única doença infecciosa que nós conseguimos erradicar. Consta que o último portador conhecido da doença (infectado de modo natural) vivia na Somália, tendo sido curado em 1977 (ver aqui). Em 1980, a OMS declarou que a varíola havia sido extinta.

É pouco provável que nós consigamos extinguir a Covid-19. Todavia, se Bernoulli estivesse vivo, não tenho dúvidas de que ele responderia à pergunta do título de modo afirmativo e bastante taxativo: “Sim, o governo deve vacinar a população. E o mais rápido possível.”

No caso brasileiro, a julgar pelo que vem ocorrendo desde o início de novembro, cada dia de atraso (deliberado) na campanha de vacinação implicará inevitavelmente na morte (criminosa) de algumas centenas a mais de brasileiros – algo entre 500-1.000 mortes/dia, levando em conta os resultados obtidos para a semana passada (7-12/12) (ver o artigo O ‘V’ da pandemia: País ladeira abaixo, estatísticas ladeira acima).

Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço meiterer@hotmail.com. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui.

[1] De acordo com as estatísticas de 2016 (WHO 2018): pneumonias (e outras infecções do trato respiratório inferior) mataram 2,96 milhões de seres humanos; diarreia (amebiana e outras), 1,38 milhão; tuberculose, 1,29 milhão; Aids, 1 milhão; malária, 446 mil; e meningite, 279 mil. Esse percentual já foi maior, tendo caído significativamente ao longo dos últimos anos: 33% (1996), 23% (2000) e 15% (2016) – ver WHO (1996) e WHO (2018).

[2] Todos os grupos taxonômicos que abrigam patógenos humanos possuem percentuais expressivos de espécies de origem zoonótica: 80% dos vírus que infectam seres humanos são de origem zoonótica, 50% das bactérias, 40% dos fungos, 70% dos protozoários e 95% dos vermes. Para detalhes, ver Taylor et al. (2001).

[3] Mesmo a lambida de um animal infectado pode ser perigosa, pois o vírus presente na saliva pode penetrar em lesões ínfimas. Para detalhes, ver Tortora et al. (2006). Sobre a estatística mencionada, ver WHO (2018).

[4] Entre nós, a data (6 de julho) passou despercebida. Quer dizer, nem mesmo a pandemia da Covid-19 (mais uma doença de origem zoonótica) foi capaz de fazer com que a nossa imprensa abrisse os olhos e saísse de sua habitual letargia. Em outros países, a imprensa costuma manter ao menos um dos olhos abertos – ver aqui.

[5] Para uma caracterização do processo, ver Fenner et al. (1988).

[6] Sobre a polêmica Bernoulli versus D’Alembert, ver Colombo & Diamanti (2015).

[7] Sobre a introdução da variolação na Inglaterra, ver Weiss & Esparza (2015); para detalhes sobre a vida e obra de MWM, ver Brunton (1991) e Soares (2018). Personagem das mais fascinantes, Montagu nos legou uma rica e variada obra literária (e.g., aqui).

[8] Há evidências de varíola em múmias egípcias com mais de 3.000 anos de idade. Do Egito a doença teria sido exportada para a Índia, há uns 2.000 anos, onde se tornou endêmica. E teria sido introduzida na China no século 1. Na Europa, a despeito de surtos ocasionais, a doença só teria se estabelecido entre os séculos 11 e 12, já durante as Cruzadas. Para detalhes, ver Fenner et al. (1988).

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Referência citadas.

++ Brunton, D. 1991. Pox Britannica: Smallpox inoculation in Britain, 1721-1830. Tese de Doutorado. Filadélfia, University of Pennsylvania.

++ Colombo, C & Diamanti, M. 2015. The smallpox vaccine: the dispute between Bernoulli and d’Alembert and the calculus of probabilities. Lettera Matematica 2: 185-92.

++ Fenner, F. & mais 4. 1988. Smallpox and its eradication. Genebra, World Health Organization.

++ Snowden, FM. 2019. Epidemics and society: From the black death to the present. New Haven, Yale UP.

++ Soares, MJO. 2018. Mary Montagu e a inoculação da varíola na Inglaterra no século XVIII. Khronos, Revista de História da Ciência 5: 35-46.

++ Taylor LH; Latham SM & Woolhouse MEJ. 2001. Risk factors for human disease emergence. Philosophical Transactions of the Royal Society of London B 356: 983-9.

++ Tortora, GJ; Funke, BR & Case, CL. 2006. Microbiologia, 8ª ed. Porto Alegre, Artmed.

++ Weiss, RA & Esparza, J. 2015. The prevention and eradication of smallpox: a commentary on Sloane (1755) ‘An account of inoculation’.  Philosophical Transactions of the Royal Society of London B 370: 20140378.

++ WHO. 1996. World health report 1996: fighting disease, fostering development. Genebra, World Health Organization.

++ —. 2018. Global health estimates 2016: disease burden by cause, age, sex, by country and by region, 2000-2016. Genebra, World Health Organization.

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A parábola do crescimento brasileiro: do sucesso (dos anos 40 aos 80) à estagnação (dos 80 a 2020): um declínio secular? - Ricardo Bergamini, Gustavo Patu (FSP)

 Depois de alguns anos de retomada do crescimento – no início dos anos 2000, e ainda assim com, demanda puxada pela China – o Brasil volta a decepcionar: 

De 2011 até 2019, sem pandemia, o Brasil cresceu 6,78% no período, ou seja 0,75% ao ano. 

Em 2020, com pandemia, há uma previsão de queda de 4,40%. Com isso a década fechará com um crescimento de 2,38%, ou seja: 0,24% ao ano. E o mundo uma média de 3,0% ao ano.

Ricardo Bergamini

www.ricardobergamini.com.br



Brasil cresce apenas 2,2% na década, enquanto mundo avança 30,5%

​​

Gustavo Patu na Folha de S.Paulo 20 dezembro, 2020


 

Em poucos dias o Brasil completará 40 anos em que sua economia cresce abaixo do ritmo mundial. No período, nunca essa disparidade foi tão grande quanto nesta década prestes a acabar.

 

De 2011 a 2020, o país empobreceu em termos absolutos e relativos. Seu PIB (Produto Interno Bruto) terá crescido não mais de 2,2%, se considerada uma projeção de queda de 4,5% neste ano — em razão do impacto da Covid-19 — feita pelo Ministério da Economia.

 

No mesmo período, segundo cálculos do FMI (Fundo Monetário Internacional), o PIB global terá crescido 30,5%, mesmo com recuo semelhante ao brasileiro neste 2020.

 

A taxa de 2,2% numa década, que seria fraca até como um resultado anual, é bem inferior à do crescimento da população brasileira ao longo desses dez anos, estimada pelo IBGE em 8,7%. Em outras palavras, a renda média nacional por habitante encolheu.

 

Para além da estatística, a cifra se traduz em óbvia perda de bem-estar da população, mensurável em índices como os de desemprego e pobreza.