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quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guerra expõe a força da ala realista do governo - Fernando Exman (Valor Econômico)

 Guerra expõe a força da ala realista do governo


Grupo ideológico dificilmente irá retomar o Itamaraty

Fernando Exman
Valor Econômico, 27/04/2022 

Em 1996, Samuel P. Huntington registrou no livro “O choque de civilizações” o indigesto comentário de um general russo: “A Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia oriental voltará em 5, 10 ou 15 anos [para a Rússia]. A Ucrânia ocidental pode ir para o inferno”.

Polêmico, o livro foi produzido a partir de um artigo publicado anos antes pelo intelectual americano com a sua visão do que seria a nova fase das relações internacionais iniciada com o término da Guerra Fria.

A obra divide opiniões. Foi criticada pelos entusiastas da globalização e por aqueles que condenam o que consideram generalizações e preconceito contra muçulmanos contidos no texto. Mas até hoje ela é citada, por outro lado, entre os que temem um deslocamento de poder da “civilização ocidental para civilizações não ocidentais”.

Não é diferente no Brasil, onde a guerra na Ucrânia novamente expôs a rivalidade entre pragmáticos e ideológicos que coabitam o governo Jair Bolsonaro.

É antigo o antagonismo entre os dois grupos. Um momento de grande tensão ocorreu em meio às discussões sobre a possibilidade de o Brasil transferir sua embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, o que criaria severas dificuldades comerciais com parceiros árabes.

O agronegócio estava no centro das preocupações do governo, assim como hoje - a Rússia é importante fornecedora de fertilizantes. Pouco antes de Bolsonaro viajar para Israel, um proeminente representante dos militares chegou a bradar, com o dedo apontado para o rosto de um elemento da ala ideológica, que os interesses do Brasil estavam sendo colocados em risco por causa de uma “molecagem”.

O presidente, como se sabe, recuou: anunciou apenas a abertura de um escritório comercial em Jerusalém, dando fim a uma crise que o próprio governo criou. Com o passar do tempo, a ala ideológica foi acumulando desgastes. Até que perdeu o controle do Itamaraty e parte considerável da influência que tinha no Palácio do Planalto.

Sinais desse processo também foram vistos no início da sangrenta operação militar conduzida pela Rússia.

Bolsonaro chegou a ser criticado pelo ex-chanceler Ernesto Araújo. Sob a ótica do embaixador, a posição correta do país, compatível com valores morais e interesses materiais brasileiros, seria um apoio à Ucrânia e um alinhamento às grandes democracias ocidentais. A neutralidade representaria, na prática, uma preferência pela Rússia. Mais do mesmo: a política externa inaugural do governo Bolsonaro defendia a importância de o Brasil alinhar-se ao “Ocidente”.

No atual momento em que a guerra na Ucrânia completa dois meses, vale, portanto, passar os olhos pelas páginas de “O choque de civilizações”.

De acordo com a teoria de Huntington, os Estados são e continuarão a ser os atores mais importantes nos assuntos mundiais. Porém, seus interesses, associações e conflitos devem ser cada vez mais moldados por fatores culturais e civilizacionais.

Neste contexto, a Ucrânia é um caso a ser observado. Maior e mais importante ex-república soviética - excluindo, claro, a própria Rússia -, a Ucrânia é descrita por Huntington como um país rachado, com duas culturas distintas. A fratura entre o Ocidente e a civilização ortodoxa, diz o cientista político, ocorre através do coração da Ucrânia: em uma linha a leste da capital, Kiev, a qual estaria posicionada do “lado ocidental”.

Em sua história, a Ucrânia ocidental foi parte da Polônia, da Lituânia e do Império AustroHúngaro. Uma grande parcela da população pertence à Igreja Uniata, que pratica ritos ortodoxos, mas, ao mesmo tempo, reconhece a autoridade do papa. Em geral, aponta o autor, os ucranianos ocidentais buscam falar sua própria língua e têm adotado um comportamento nacionalista. Por outro lado, escreve, as pessoas da Ucrânia oriental são predominantemente ortodoxas e falam russo. Não teriam, segundo esta teoria, problemas em ver Moscou como o núcleo de um bloco ortodoxo.

A consolidação desse bloco seria justamente o objetivo russo. Já em 1996 o livro apontava que a situação entre Ucrânia e Rússia estava suficientemente madura para a eclosão de um “surto” de competição por segurança entre os dois países.

A partir dessa constatação, três cenários foram desenhados. No primeiro, o Ocidente apoiaria claramente a Ucrânia em sua defesa. Pelo menos por enquanto, os principais países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) ainda o fazem de forma indireta.

Outra possibilidade, considerada a mais provável pelo autor e que pode estar equivocada, é que a Ucrânia permanecerá, sim, rachada do ponto de vista civilizacional. Mas com seu atual território mantido na íntegra, independente e cooperando de forma estreita com a Rússia. Difícil.

O cenário intermediário seria a cisão da Ucrânia seguindo sua linha de fratura civilizacional. A entidade oriental poderia fundir-se com a Rússia. É sobre isso que falava aquele general citado pelo autor e, de fato, recentes movimentos do exército russo têm se concentrado na parte oriental da Ucrânia - sua área de maior influência cultural.

É preciso aguardar. Enquanto isso, um integrante da ala pragmática do governo explica a transição na política externa e os votos do país na ONU. “O Brasil votou de acordo com aquilo que são os nossos parâmetros, que também são os parâmetros do sistema internacional - o respeito à soberania dos países, a não intervenção e a solução pacífica dos conflitos. O Brasil tem que ser pragmático e também tem que ser flexível nesta situação toda”, diz a fonte.

“Estamos nos dirigindo a um momento que o mundo vai ficar dividido nesses dois polos: o polo democrático e o polo autoritário. Talvez a gente enverede por uma nova Guerra Fria. Tem gente que diz que a Guerra Fria não acabou, que ela sempre continuou. O Brasil é um país continental, democrático, e nós temos negócios com o outro lado. A gente tem que saber como se equilibrar. Nós não podemos queimar pontes.

Vez ou outra circulam informações de que podem ocorrer novas mudanças no Itamaraty até o fim do ano. No Palácio, essas notícias são relativizadas. Outras áreas do governo as classificam de especulações. O que se descarta por todos os lados, contudo, é a reconquista da pasta pela ala ideológica.


Fernando Exman é chefe da redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras
Trabalhou nas redações de “Investnews”, “Gazeta Mercantil”, “Jornal do Brasil”, “Reuters” e “Veja”. Entrou no Valor em 2011, e desde 2013 é coordenador digital
E-mail: fernando.exman@valor.com.br

https://valor.globo.com/politica/coluna/guerra-expoe-a-forca-da-ala-realista-do-governo.ghtml

After Putin - Brian D. Taylor (Foreign Affairs)

After Putin

Russia’s Inevitable Succession Crisis

By Brian D. Taylor 

Foreign Affairs, April 26, 2022

 

In a speech in late March, U.S. President Joe Biden veered off script and said out loud something about Russian President Vladimir Putin that many were thinking privately: “For God’s sake, this man cannot remain in power.” White House aides raced to walk back the president’s ad-libbed remark, emphasizing that the U.S. goal in Russia is not regime change. Intentionally or not, however, Biden’s quip reinforced the conviction of some in Washington that the simplest way to end Putin’s war of aggression in Ukraine is to end his grip on power. As Senator Lindsey Graham, Republican of South Carolina, tweeted in March, “the only way this ends is for somebody in Russia to take this guy out.”  

There is no reason to think Putin faces an immediate risk of assassination. Nor does a coup or a popular revolution seem to be in the offing any time soon. But Putin is 69 years old and possibly in ill health. Russian investigative journalists have alleged that he may have had thyroid cancer. Whether he dies in office, is deposed, or willingly gives up power, Putin’s reign over Russia will end one way or another.

Far from a stabilizing event, however, the inevitable end of his rule will be an uncertain and likely perilous moment for Russia. For the last two decades, Putin has held on to power by weakening the country’s formal rules and institutions—removing the guardrails that would ensure an orderly transfer of power. As a result, the range of plausible scenarios for what would happen if he dies or leaves office is much wider than if a U.S. or even a Chinese leader were to do the same. Although Russia’s constitution spells out a process for electing a new leader, in practice, Russia’s next president is likely to be determined by a behind-the-scenes struggle between elites. By building a highly personalist autocracy, in other words, Putin has made it impossible to predict what will happen when the inevitable occurs.   

From a legal standpoint, it is clear what should happen if Putin were to leave office unexpectedly: according to Russia’s constitution, if the president “is incapable of fulfilling his duties,” the prime minister becomes acting president for no longer than three months while elections are organized. Although Russia is not a democracy, elections there still carry formal procedural weight. The country has had nearly three decades of regular elections since 1993. These votes have become progressively more bogus under Putin, but electoral rules still determine such questions as timing, procedures, and term lengths. They do not determine who stands for office, however, or who gets the backing of the Kremlin. Those things are determined behind the scenes by Putin and a small coterie of elites.

For the last 20 years, Putin has kneecapped the country’s formal institutions and made himself the center of everything. He rewrote the constitution twice—first to extend the length of presidential terms and then to “nullify” his previous service so that he can potentially remain in office until 2036. He has also reduced the two houses of Russia’s parliament and the Constitutional Court to virtual Kremlin puppets and harassed, banned, imprisoned, or killed any opposition candidates capable of challenging him.

In the event that Putin dies or leaves office unexpectedly, therefore, alliances between elites will be at least as important as formal rules in determining who succeeds him. The most likely scenario is that Prime Minister Mikhail Mishustin would become the acting president, as the formal rules dictate, and the upper house of Russia’s parliament would have two weeks to schedule an election. During that time, a fierce battle would take place behind the scenes to determine a consensus candidate from among the key players that make up Team Putin. The whole point of electoral authoritarianism, after all, is to know the winner in advance. 


The world could witness a Russian presidential election in which the results were not decided in advance.

As the incumbent—albeit, acting—president, Mishustin would have a big advantage in this succession struggle. He is one of a small handful of politicians in the second tier behind Putin in terms of public trust. He has had consistently high approval ratings, even before the war in Ukraine caused his approval ratings to soar. In some ways, he would be seeking to follow the same path that another colorless prime minister took to the presidency. On New Year’s Eve in 1999, Putin took over as acting president when Boris Yeltsin unexpectedly resigned. Three months later, Putin was formally elected president, after other prominent contenders stepped aside and most elites coalesced around his candidacy.

Mishustin is a relative newcomer to the heights of Russian politics. Appointed prime minister by Putin in January 2020, he was previously the head of Russia’s Federal Tax Service. He was brought in to oversee economic issues and improve government efficiency, but he has forged ties to other key insiders and, according to the Russia analyst Tatiana Stanovaya, “increase[d] his political weight.” His lack of political charisma might be seen as an asset by other Putin loyalists hoping to control him as president, just as Putin’s relative inexperience endeared him to some oligarchs and officials who mistakenly thought they could control him. One thing that might work against Mishustin, paradoxically, is his relatively youthful age of 56. The old guard is in fact quite old, and many might prefer one of their own to a younger and potentially ambitious president.

Even if Mishustin wins the post-Putin sweepstakes, however, there is no guarantee that he will be able to hold together the fractious coalition of Kremlin insiders. Unlike most of Putin’s closest cronies, he is neither a KGB veteran nor a native of St. Petersburg. Members of both elite camps may fear that he will seek to erode their power and wealth, just as Putin did to some prominent Yeltsin associates after he took over. As a result, Mishustin may struggle to consolidate his authority, leaving open the possibility of electoral or even extralegal challenges down the road—neither of which would bode well for Russia’s stability.


UP TO THE CHALLENGE?

Mishustin would likely have the upper hand in any scramble to succeed Putin, but he is not the only candidate. Russia has no formalized chain of succession beyond the prime minister—a whopping legal gap. But others hoping to win enough allies to capture the presidency might try to do so from the Security Council, a body that brings together top political and military officials.

Although none of them is in the formal line of succession, possible contenders for the top job include Sergei Shoigu (the minister of defense), Dmitry Medvedev (a former president and the current vice chair of Russia’s Security Council), Vyacheslav Volodin (the speaker of the Duma), and Sergei Sobyanin (the mayor of Moscow). Given the fractiousness of the Russian elite and the low levels of public support most of these figures enjoy, however, it is difficult to imagine any of them outmaneuvering Mishustin to become the consensus candidate. More likely, all would conclude that a bid for power was too risky and that it was better to live to fight another day.

Still, it is possible that one of them might challenge Mishustin, either in the two-week period during which the Kremlin’s candidate would be anointed or in the subsequent special election as an independent candidate. In this scenario, Mishustin would have the advantage of controlling the presidential levers of power, including state television and the Central Election Commission. But if another Putin insider with national standing decided to compete openly for power, the world would witness something it hasn’t since 1996: a Russian presidential election in which the results were not decided in advance.

There is also the possibility of an extraconstitutional bid for the presidency. Multiple Russian agencies theoretically have the power to stage a coup—not only the military but the Federal Guard Service, the National Guard, and the Federal Security Service. But it is hard to imagine anyone being able to rally all those forces under a single banner, especially during wartime. Historically, Russian leaders have worked hard to avoid situations in which these forces might be employed to physically counterbalance one another. And perhaps more important, Russian military leaders have long deferred to civilian elites. It has been two centuries since the military made a bid for power when a ruler died in office, and a repeat of the 1825 Decembrist Revolt—which quickly collapsed—seems highly unlikely in today’s Russia.

One final scenario that could reduce uncertainty is if Putin were to make a planned departure—for health reasons, for example—and designate a successor. Moving a handpicked replacement into the premiership before leaving office would allow Putin to unify rival elite groups and thereby increase the odds of an orderly succession. It would also replicate his own path to the presidency. Should Putin opt for this route, there is little reason to think he would anoint Mishustin, who was widely seen as a technocrat when he was appointed prime minister.


THE AUTOCRAT’S ACHILLES’ HEEL

Most autocracies are surprisingly durable. Even after authoritarian leaders die in office, their regimes often survive for years or even decades. According to the political scientists Andrea Kendall-Taylor and Erica Frantz, who analyzed all succession events in authoritarian countries between 1946 and 2012, 87 percent of autocratic regimes were still in place one year after a leader’s death, and 76 percent were still in place after five years.

But not all forms of authoritarianism are equally durable. Kendall-Taylor and Frantz found that compared with monarchies, single-party regimes, and military juntas, personalist autocracies such as the one Putin has built are the most vulnerable to regime change. Seventy-eight percent of them were still in place a year after a leader’s death, but that number declined to just 44 percent after five years. In many cases, such as Syria under Hafez al-Assad and North Korea under Kim Il Sung, power passed directly to a family member, helping ensure the survival of the regime. But in Russia, Putin’s daughters are not being groomed for rule; the media are strongly discouraged from even talking about them.

Another source of regime longevity is the tendency of the regime loyalists to come together after a leader’s death in order to head off potential challengers and preserve their power and perks. Members of Putin’s inner circle will be incentivized to do this after he is gone, but without an obvious successor to unite around, they could be especially likely to succumb to factionalism. Infighting of this sort has dominated previous eras of Russian history. After Vladimir Lenin died in 1924, it took Joseph Stalin years to consolidate his position as the undisputed leader. A similar power struggle played out after Stalin’s death in 1953, when Nikita Khrushchev had to call on members of the military to arrest his rival, Lavrenty Beria, who controlled the secret police and the Kremlin’s security services.


Not all forms of authoritarianism are equally durable.

Succession is sometimes said to be the Achilles’ heel of autocracies, especially personalist ones. And indeed, a nontrivial share of them—56 percent, according to Kendall-Taylor and Frantz—experience regime change within five years of a ruler’s death. Even if Putin’s regime ultimately survives intact, Russia could be in for a chaotic and even violent period of transition.

Recent Russian history provides some clues as to what it might look like if things go off the rails. In 1993, a power struggle between Yeltsin and the leftover Soviet parliament yielded two weeks of “dual power” in Russia that ended with tanks firing on parliament. In 1999, the transition from Yeltsin to Putin coincided with the resumption of war in the breakaway region of Chechnya and a series of mysterious bombings in Moscow apartment complexes that killed hundreds. When Putin had to temporarily step away from the presidency in 2008 due to term limits, rival factions orchestrated the arrest of key figures from each other’s ranks—a form of political hostage taking aimed at gaining leverage in the succession struggle. In short, leadership transitions in Russia have the potential to be very messy.

Someday, somehow, Putin’s rule will come to an end. When that day comes, his inner circle will be strongly incentivized to cooperate to preserve his regime. As Benjamin Franklin warned in 1776, “We must all hang together, or, most assuredly, we shall all hang separately.” But sometimes, those on the losing end of power struggles would rather fight back than give in. Most often, they grasp for economic and political weapons, but occasionally they use tanks and guns. And in the case of a nuclear superpower currently waging a brutal war against the second-largest country in Europe, even a modest chance of regime collapse is cause for global concern.

 

terça-feira, 26 de abril de 2022

Política internacional e teorias conspiratórias: considerações pessoais - Paulo Roberto de Almeida (Psicoeducação)

 Política internacional e teorias conspiratórias: considerações pessoais 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para entrevista oral no quadro de emissão no YouTube, “Psicoeducação”, animado porVitor Matos de Souza, no YouTube, em 27/04/2022, 20hs (link: https://www.youtube.com/channel/UCtGmAFkxO7RzofDE4ROSGYw) .

  

1) Falar um pouco sobre a tese dos três blocos, globalista, islâmico, e russo-chinês numa perspectiva de modo a sinalizar o que é real e o que delírio nessas teses.

PRA: Não existem três blocos estritamente configurados sob essas três designações, o que de toda forma seria altamente aleatório apresentar tais configurações como “teses”, sob tais “agrupamentos” definidos dessa forma. O que existe, sim, mas com arquiteturas muito diferentes, são instâncias de coordenação, consulta e cooperação entre países ou grupos de países, sob diferentes instrumentos regionais ou globais (eventualmente mundiais, mas não necessariamente universais), que congregam Estados – os do arco ocidental das democracias de mercado, por exemplo – ou comunidades civilizatórias ou religiosas – como é o caso da Organização da Conferência Islâmica, congregando 57 países de línguas e culturas diversas, mas de maioria islâmica em suas populações –, ou, bem mais recentemente, a declaração de “aliança sem limites” entre a Rússia e a China, mas neste caso congregando duas nações bastante diferentes entre si, apenas unidas por motivos circunstanciais, que é a oposição virtual ao G7, ou ao bloco supostamente hegemônico das potências ocidentais.

Existe um lado real, mas vagamente identificado com três “blocos” tal como acima mencionado, mas obedecendo a diferentes critérios de “agregação”, bem mais evolutiva e natural, no caso das democracias de mercado vulgarmente chamadas de potências ocidentais e essa entidade mais vagamente unida em torno de uma mesma religião (mas com diversas vertentes dentro do conjunto) que é a Conferência Islâmica, constituída em grande medida em reação à dominação ocidental, mais exatamente europeia, sobre antigos territórios, povos e Estados colocados no grande arco civilizatório da comunidade islâmica, mas com fracos laços políticos e econômicos entre eles. Por fim, é um fato que se formou uma “aliança” entre a Rússia e a China, depois de séculos de evolução diferenciada, de uma fugaz identidade comum sob o comunismo da III Internacional, mas logo distanciados por grandes diferenças de visão quanto ao mesmo comunismo e tornados até hostis por disputas territoriais e visões distintas quanto à ordem mundial. A “aliança sem limites” proclamada por Putin e Xi Jinping em fevereiro de 2022 deve encontrar seus limites políticos, econômicos e geopolíticos, à medida em que os dois grandes irmãos do socialismo tiveram marcados processo de desenvolvimento econômico e político nas últimas décadas, o que deve se acentuar nos anos à frente, sobretudo com as consequências duradouras da guerra de agressão de Rússia contra a Ucrânia. A Rússia será o irmão menor dessa aliança, a despeito de possuir um poder de fogo razoável em termos bélicos.

 

2) Qual foi o efeito de devastação do governo Bolsonaro para a diplomacia brasileira e se ele conseguiu ser pior que o governo Lula.

PRA: O qualificativo de pior não é o mais adequado para colocar numa linha de comparação as diplomacias lulopetista e a bolsonarista, tão diferentes quanto água e vinho. A despeito de desvios partidários e ideológicos em alguns aspectos da política externa, a diplomacia do lulopetismo representou uma continuidade de desenvolvimentos anteriores, notadamente no terreno regional, no campo multilateral e na questão do tratamento dos temas inscritos nas agendas sociais, culturais e ambientais mundiais. Já o bolsonarismo diplomático representou uma ruptura com tudo o que havia antes, começando pela recusa absolutamente ridícula do globalismo, um fantasma que se traduziu numa recusa do multilateralismo, o eixo central das relações internacionais contemporâneas.

O show de horrores teve início ainda antes da inauguração do governo e mesmo antes do pleito eleitoral de outubro de 2019, quando o deputado venceu as eleições com discurso enganador, até mentiroso, prometendo luta contra a corrupção, política econômica liberal, fim do que tinha sido caracterizado como “velha política” – ou seja, cargos e subsídios em troca de apoio congressual – e postura eminentemente técnica na formulação e implementação das políticas públicas. O prenúncio da ruptura com os valores e princípios da diplomacia profissional, com as linhas tradicionais da política externa brasileira já tinha sido feito na entrega do programa de governo do candidato ao TSE, em agosto de 2018: nele constavam apenas cinco parágrafos da pior qualidade substantiva sobre quais seriam as grandes metas e diretrizes da nova política externa, supostamente não ideológica, mas totalmente tomadas por orientações essencialmente ideológicas, já prometendo um alinhamento com governos de direita e uma adesão unilateral à política dos Estados Unidos, e mais especificamente ao então presidente Trump. 

O que se assistiu nos primeiros dois anos e meio do governo Bolsonaro na frente externa foi muito pior do que o esperado, com o abandono de relações longamente cultivadas na região e fora dela, assim como a inversão totalmente ideológica de posturas anteriormente assumidas, sobretudo no plano multilateral, objeto de uma ridícula, na verdade, atroz, rejeição do multilateralismo, assimilado, por um raciocínio tão irracional quanto estúpido, ao fantasmagórico inimigo do “globalismo”, que seria uma coalizão de banqueiros de esquerda, de burocratas não eleitos da ONU e de esquerdistas tradicionais, todos eles devotados a retirar soberania dos Estados nacionais, para substituí-la por uma governança mundial de caráter antinacional e de cunho comunista. Os diplomatas foram chamados a partilhar desse manancial de bobagens oferecidas em discursos, entrevistas e artigos, da parte do primeiro chanceler acidental e de alguns ideólogos do olavismo, uma das seitas influentes no novo esquema de poder. 

A diplomacia brasileira deixou para trás uma avaliação de grande prestígio, de que gozava anteriormente, pelo seu profissionalismo exemplar na defesa dos grandes temas e questões do multilateralismo contemporâneo, para se refugiar num antiglobalismo não só estéril, como sumamente ridículo. O Brasil ficou isolado internacional. Descrevi e analisei toda essa deriva alucinante em diversos livros que acompanharam a fase mais aguda do bolsolavismo delirante: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras, seguido de Uma certa ideia do Itamaraty (2020), completados por O Itamaraty Sequestrado e Apogeu e demolição da política externa(2021), este último já abrangendo as quatro últimas décadas da diplomacia brasileira. 

 

3) Qual o caminho para o desenvolvimento brasileiro agora que o liberalismo foi associado ao bolsonarismo e que o próximo governo tende a ter uma ideologia cepalina e dirigista em relação a economia?

PRA: Há um equívoco de percepção em certos setores ao se acreditar que o liberalismo está associado ao bolsonarismo. Talvez esta tenha sido uma impressão induzida por uma falsa propaganda de uma pretensa vocação liberal do novo governo durante a campanha eleitoral e nas primeiras semanas de governo, quando se anunciavam privatizações de grandes empresas estatais, abertura econômica e liberalização comercial, quando nada disso se fez, sobretudo por oposição do próprio presidente, um estatista nacionalista dos mais medíocres, e também pelo tradicional protecionismo das elites econômicas tradicionais, tanto industriais quanto agrícolas. Diversos assessores importantes da área econômica foram se distanciando do governo, justamente pelo abandono de todas as promessas enganosas de campanha, assim como pela total contradição entre as promessas de luta contra a corrupção e as práticas efetivas de apoio aos setores políticos mais corruptos do sistema político brasileiro, em especial a partir de meados de 2020, quando o governo se rende definitivamente ao chamado Centrão, o núcleo duro do fisiologismo corrupto da política brasileiro. Se alguns liberais ainda acham que o governo Bolsonaro ainda possui qualquer vocação liberal podem ser pessoas mal-informadas, iludidas, equivocadas ou de má-fé. 

Não se sabe ainda que tipo de governo teremos em 2023, assim que não cabe antecipar qualquer tipo de política pública mais ou menos identificada com as linhas básicas do antigo cepalianismo de cunho dirigista. Cabe esperar para ver o que será o próximo governo.

 

4) Como você vê a questão do globalismo? É possível que a integração econômica mundial coexista com uma integração política? Até que ponto as autoridades nacionais podem continuar relevantes nesse cenário?

PRA: O mundo caminhou, desde a era moderna, da formação e consolidação dos Estados nacionais – cujos princípios básicos de funcionamento foram sendo definidos e moldados em algumas grandes etapas das relações internacionais, em Vestfália (1648), em Viena (1815), em Paris (1919 e em San Francisco (1945) – até o advento de um sistema internacional baseado na preeminência do multilateralismo de cunho político. Ao mesmo tempo, no campo econômico, coexistiam grandes impérios e empreendimentos coloniais que sustentaram a dominação europeia sobre os assuntos do mundo durante os últimos cinco séculos. Paralelamente, esses processos de primazia da Europa ocidental – a partir do século XIX complementado pela ascensão dos Estados Unidos – sobre os assuntos do mundo foram sendo complementados por uma nova onda de globalização (a primeira tinha ocorrido nos Descobrimentos, mas logo compartimentada pelos impérios coloniais excludentes), que se acelerou tremendamente na primeira (1750-1830) e na segunda Revolução Industrial (1870-1914), integrando mercados, estabelecendo as grandes linhas de uma economia mundial que ainda permanecem no século XX, a despeito da Grande Guerra (1914-1918) e do advento do socialismo (com uma duração de aproximadamente 70 anos, mas um alcance apenas parcial sobre os grandes vetores da economia mundial). 

O globalismo econômico, de fato mais consolidado, sobretudo quando a ordem desenhada em Bretton Woods alcançou as antigas economias socialistas, conseguiu integrar praticamente todos os continentes e regiões a uma grande divisão mundial do trabalho, passando a definir grandes cadeias de valor e o comércio internacional a partir dos interesses das grandes empresas multinacionais, mas também de ofertantes competitivos em economias menores ao redor do planeta. Não ocorreu, entretanto, nenhum processo de globalismo político – ao contrário do que afirmam as teorias conspiratórias sobre o poder mundial de uma superburocracia global, não eleita –, uma vez que a ONU e suas múltiplas agências continuam dependendo do que decidem os Estados nacionais, sobretudo as grandes potências, jamais de acordo sobre as grandes linhas de um alegado governo global. Alertas e alarmes nesse sentido são simplesmente desprovidos de qualquer fundamentação empírica e são unicamente disseminadas a partir de pequenos grupos e movimentos que entretêm um tipo de crença sem qualquer consistência no plano do funcionamento efetivo da agenda mundial. Os grandes itens da agenda mundial – na área econômica, social, ambiental e no tratamento dos chamados problemas comuns – continuam a ser determinadas pelos Estados mais poderosos e por coalizões flexíveis de grupos de países que convergem em vários desses temas, o que não existe, entretanto, no campo da segurança internacional e no da capacitação militar, que resta exclusivamente baseado em concepções realistas de poder e prestígio internacionais. Basta apenas recordar que o dispositivo da Carta da ONU prevendo uma Comissão Militar dotada de poderes para movimentar forças próprias da ONU, segundo decisões de seu Conselho de Segurança, jamais foi implementado como previsto no texto de San Francisco. Em outros termos, os temores de um governo global, onipotente ao ponto de ameaçar a soberania e a autonomia dos Estados nacionais são altamente exagerados e totalmente infundados.

 

5) Na Europa, é comum que os populistas culpem Bruxelas por tudo. Hoje a direita é contrária a existência da Otan, ONU, Unicef e qualquer entidade global de gestão. Quais seriam as consequências da falência dessas entidades para o mundo.

PRA: As entidades de cunho universalista criadas ao final da Segunda Guerra Mundial são certamente imperfeitas e muitas vezes inoperantes para os fins delineados na própria Carta da ONU e nos estatutos constitutivos de suas diferentes agências: paz e segurança internacional, cooperação para o desenvolvimento de países e regiões mais pobres, ausência de ameaças ao bem-estar de diversos povos, seja por fatores internos (os mais frequentes), seja por pressões externas (como ocorre atualmente na guerra de agressão da Rússia contra a vizinha Ucrânia, que já fez parte dos impérios russo e soviético), ou por desafios ambientais e crimes transnacionais. O mundo ainda é muito desigual, e certamente um maior grau de abertura econômica, de liberalização comercial, de integração das políticas públicas nacionais num sentido convergente com objetivos de prosperidade e bem-estar global, seria muito bem-vindo, na medida em que avança, a despeito de percalços, a globalização econômica. No entanto, ambições nacionais, miopia de dirigentes políticos, corrupção em governos de todos os tipos (democráticos ou não) dificultam a consecução desses objetivos meritórios, que demandariam um amplo acordo político interestatal e uma visão compartilhada quanto à necessidade dessa convergência de políticas, tentativamente implementadas ao longo das últimas décadas em diferentes projetos desenhados e discutidos na ONU, desde sua origem. Depois das metas do milênio – e anteriormente de diversas décadas do desenvolvimento dos países mais pobres – e agora, com os objetivos do desenvolvimento sustentável, governos nacionais e tecnocracia onusiana fazem tentativas de disseminar educação, segurança, promoção do bem-estar para as populações mais frágeis e vários outros indicadores de prosperidade compartilhada, mas o próprio princípio da soberania nacional absoluta, escrupulosamente consolidado e em princípio respeitado na Carta da ONU torna difícil concretizar e disseminar tais objetivos nobres e meritórios. 

O mundo ainda vive sob o domínio dos Estados nacionais, com talvez alguns grandes impérios informais, com um poder incontrastável de determinar as agendas globais, seja pela força de suas economias, seja pela intimidação de seus aparelhos militares. Entre esses impérios informais é possível distinguir o americano (notadamente a partir de 1917 e, em especial, desde 1945), o chinês (praticamente desaparecido durante alguns séculos, mas de volta ao grande jogo geopolítico desde o início desde milênio), o russo (anteriormente estabelecido na vastidão dos territórios sob a dominação czarista dos Romanov, depois novamente refeito sob os setenta anos de jugo soviético, agora tentando renascer numa vertente neoczarista sobre os mesmos antigos territórios da Europa e da Ásia centrais), e possivelmente o europeu, organizado coletivamente sob a forma da União Europeia, depois da derrocada dos antigos impérios coloniais dos países da Europa ocidental. A esses grandes impérios informais – pois que desprovidos de centralização política e de uma governança única, reconhecida como tal –, podem ser alinhadas potências médias, como diversos países do G20, como Índia, Japão, Canadá, Brasil, Indonésia, África do Sul e vários outros. 

Não é certo que todas essas economias, Estados nacionais e agrupamentos regionais possam ser definidos em termos de alinhamento político a uma determinada corrente ou ideologia, mas é possível, sim, identificar democracias de mercado – na América do Norte, na Europa ocidental e representantes esparsos em diversos outros continentes – e alguns grandes e pequenos Estados dominados por regimes autocráticos ou iliberais, como se convencionou chamar aqueles não exatamente caracterizados pela alternância política entre partidos nacionais dispondo de plena liberdade de organização, expressão e atuação. As democracias vêm, inclusive, recuado temporariamente ou parcialmente, sob os golpes de diferentes lideranças populistas que resvalam frequentemente para o autoritarismo. A evolução para regimes plenamente democráticos em todos os continentes, na maioria das regiões do mundo, é um processo lento, nem sempre irreversível, e sempre dependente de crises econômicas, pressões migratórias provenientes de culturas diferentes e sujeitas a constantes ameaças por parte de candidatos a ditadores, abertos ou disfarçados.

O mundo não dispõe de nenhuma garantia de que os direitos humanos e as liberdades democráticas – tais como expressas, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em protocolos democráticos aprovados em escala regional, e em dispositivos da própria Carta da ONU – possam efetivamente se impor com a força do Direito, uma vez que se trata de meras declarações de intenção, sem a compulsoriedade de tratados dotados de meios efetivos de implementação. Daí que o direito da Força ainda continua a ser exercido em diferentes quadrantes do globo, sem que ele possa ser coibido por alguma força supranacional que é simplesmente inexistente. O mundo contemporâneo não é mais tão hobbesiano como ele foi até meados do século XX, mas ele ainda é, e assim será por algum tempo mais, insuficientemente kantiano ou lockeano. A educação cidadã ainda precisa progredir bem mais, em praticamente todos os países do mundo – e os retrocessos podem ocorrer inclusive em países avançados, como nos revela a força de autocratas autoritários nos Estados Unidos e na própria Europa ocidental –, para que os ideais de liberdades, de democracia, de bem-estar, de segurança e de justiça possam ser disseminados de maneira mais resoluta e mais efetiva. 

Exercícios e tentativas de Idealpolitik podem até ser desprezados pelos partidários do realismo cru dos nacionalistas irredutíveis, aqueles que acreditam unicamente na expressão totalmente soberana dos interesses exclusivamente nacionais, mas eles constituem um objetivo sempre meritório no plano das aspirações humanas e sociais. Prefiro acreditar que esse mundo venha a existir algum dia, pois ele corresponde à racionalidade civilizatória, que vem se expandindo cada vez mais, a despeito dos soluços autoritários e destrutivos que se manifestam ocasionalmente. O mundo atual é melhor do que aquele que tivemos em qualquer época passada, e o mundo do futuro será certamente melhor do que o atual.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4136: 26 abril 2022, 7 p.

Emissão “Psicoeducação”, a convite de Vitor Matos de Souza, por via do YouTube, em 27/04/2022, 20hs (link: https://www.youtube.com/channel/UCtGmAFkxO7RzofDE4ROSGYw).

 

A DESTRUIÇÃO do Mercosul pelos novos bárbaros: artigo-denúncia do embaixador Rubens Barbosa (OESP)

 O governo do Bozo-Guedes tem sabotado o Mercosul na maior inconsciência do que ele representa para o Brasil, como denunciado pelo embaixador Rubens Barbosa (abaixo, em um IMPORTANTE ARTIGO, que recomendo ler).

Já num primeiro e único encontro que tive com Paulo Guedes, no primeiro semestre de 2018, constatei que ele não tinha a menor ideia do que era o Mercosul, e tampouco sabia qualquer coisa sobre política comercial. Tive de interrompê-lo imediatamente para esclarecer o que era o Mercosul, assim como contestar sua postura de apoio às medidas de Trump no terreno do sistema multilateral de comércio. Conclui que seria um desastre nessa área e tentei demonstrar a importância do Mercosul no plano microeconômico, senão no macroeconômico também. Não adiantou: os novos bárbaros estão destruindo tudo o que existia de governos anteriores. Paulo Roberto de Almeida MERCOSUL: PROJETO ESTRATÉGICO Rubens Barbosa O Estado de S. Paulo, 26/04/2022 Nos últimos quatro anos, o Mercosul foi relegado a um perigoso segundo plano. Desde a campanha eleitoral, Paulo Guedes mostrou desinteresse pelo bloco regional integrado pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Já como ministro da economia, declarou que o subgrupo não seria prioridade para o novo governo com a justificativa de que era restritivo e deixava o Brasil prisioneiro de alianças ideológicas. Mais recentemente, disse que o Mercosul não estava correspondendo às expectativas e que o Brasil iria levar adiante planos para a modernização do grupo e que quem não estivesse de acordo que se retirasse. Nessa linha, o Brasil propôs a redução de 20% da Tarifa Externa Comum (TEC) com forte oposição da Argentina e acabou reduzindo unilateralmente 10% da TEC para uma lista de 87% de produtos, mantendo fora o setor automotriz e o sucroalcoleiro. O Uruguai, no mesmo diapasão, propôs a flexibilização das negociações para permitir que os países membros pudessem avançar individualmente entendimentos para a conclusão de acordos comerciais, com o apoio inicial de Paulo Guedes. Agora, surge a informação de que à revelia do Mercosul, o Brasil quer fazer novo corte na TEC. A ideia gerada no Ministério da Economia é reduzir em mais 10% as alíquotas do imposto de importação de grande parte dos produtos transacionados com países de fora do bloco, sem o acordo dos parceiros do bloco, com a justificativa, sem sentido para a maioria dos produtos, de “proteção da vida e da saúde das pessoas”, no dizer oficial. Na realidade, o fim é político e tem a ver com as eleições de outubro: busca-se reduzir o preço dos produtos para tentar conter a subida da inflação, agravada pelas consequências da guerra na Ucrânia. A medida será inócua, mas trará mais desgaste para o Brasil. Para quem não sabe, o Tratado de Assunção prevê que as medidas de política comercial propostas só podem ser implementadas com o consenso de todos os países membros e que a coordenação das negociações cabe aos ministérios das relações exteriores. É verdade que o Itamaraty, nos últimos anos, vem perdendo competência em áreas que tradicionalmente coordenava, como as negociações comerciais e meio ambiente, por exemplo, mas não consta que o Tratado que criou o Mercosul tenha sido alterado. A ação isolada do Ministério da Economia deve estar causando sério incomodo ao Itamaraty não só pela descoordenação interna e inclusive com o setor privado, pelo descumprimento do Tratado de Assunção, mas sobretudo pelo fato das autoridades econômicas desconsiderarem os aspectos estratégicos do Mercosul para o Brasil. O Mercosul não é apenas um acordo econômico e comercial, mas tem uma visão de médio e longo prazo importante para os interesses do setor privado, em especial do industrial. O Mercosul passa, nos dias que correm, por um período de grandes turbulências e dificuldades. Embora abalado e sem perspectiva, a vontade política que impulsionou a criação do Mercosul em 1991 ainda está viva. O Mercosul, assim, não vai desaparecer pois nenhum dos países membros assumirá o ônus político de pedir sua dissolução. A questão é saber como o Mercosul poderá, nos próximos anos, servir aos interesses de cada um de seus membros, se permanecerá irrelevante ou se transformará em uma alavanca para o progresso da região. No caso do Brasil, o descaso com o Mercosul não ocorre por acaso. Ele se insere no quase total abandono das relações do Brasil na América do Sul. Considerações ideológicas e falta de uma visão pragmática a respeito dos acontecimentos nos últimos anos no tocante ao lugar do Brasil no mundo, na prática, isolaram o país do seu entorno geográfico, uma de suas prioridades estratégicas, segundo a Política Nacional de Defesa. Algumas decisões podem ser vistas mesmo como contrárias ao interesse brasileiro, como o fim da UNASUL. A guerra da Rússia na Ucrânia inaugura uma nova era na geopolítica e na geoeconomia global. A tendência é o mundo ficar dividido entre o Ocidente e a Eurásia (China e Rússia). O governo dos EUA já está definindo políticas comerciais restritivas para a China e para “países pouco amigos”, que mantiverem comércio e relações com o outro lado. O fortalecimento do regionalismo deverá ser uma das consequências da guerra. Com a redução do ritmo da globalização e o novo ímpeto de medidas restritivas e protecionistas, em decorrência de medidas nacionalistas e de segurança, o Brasil deveria formular uma política comercial ativa, inclusive com o estabelecimento de cadeias produtivas regionais e respeito ao meio ambiente. A América do Sul já forma uma área de livre comércio com pouco aproveitamento de parte das empresas nacionais. A crescente presença da China na Américas do Sul em concorrência com produtos brasileiros e o pouco interesse de empresas norte-americanas em desenvolver negócios e investir na região são outros fatores que uma política externa do novo governo deverá levar em conta. Espera-se que o governo que vai se iniciar em 1 de janeiro de 2023 leve em consideração essa realidade e coloque o Mercosul novamente como um projeto de grande valor estratégico e, por isso, uma prioridade para os interesses brasileiros, sob a coordenação do Itamaraty. Rubens Barbosa, primeiro coordenador nacional do Mercosul e presidente do IRICE

Cumprimentos do “governo” (não do Bozo) e de Lula a Macron pela vitória

 

Itamaraty saúda Macron, mas Bolsonaro mantém silêncio

há 4 horas

Em nota, governo brasileiro cumprimenta presidente francês pela reeleição e se diz disposto a aprofundar laços. Bolsonaro ainda não se manifestou. Recebido por Macron em 2021, Lula o parabeniza por "ampla vitória".

https://www.dw.com/pt-br/itamaraty-sa%C3%BAda-macron-mas-bolsonaro-mant%C3%A9m-sil%C3%AAncio/a-61593845?maca=bra-GK_RSS_Chatbot_Mundo-31505-xml-media
No fim da tarde desta segunda-feira (25/04), cerca de 24 horas depois da vitória de Emmanuel Macron nas eleições na França, o governo brasileiro finalmente saudou o presidente reeleito. 

"O governo brasileiro cumprimenta o senhor Emmanuel Macron por sua reeleição à Presidência da República Francesa", disse o Itamaraty em nota. "O Brasil reafirma a disposição de trabalhar pelo aprofundamento dos laços históricos que unem os dois países e trazem benefícios mútuos a brasileiros e franceses, e manifesta expectativa de seguir implementando a ampla agenda bilateral."

A concisa nota à imprensa do Ministério das Relações Exteriores é a única reação oficial do governo brasileiro à reeleição do centrista até o momento.

Contrastando com grande parte dos líderes mundiais, o presidente Jair Bolsonaro ainda não se pronunciou sobre a vitória de Macron – seu desafeto e crítico ferrenho da política ambiental de seu governo. Bolsonaro também não havia se manifestado a favor da extremista de direita Marine Le Pen, derrotada por Macron no segundo turno por 58,55% a 41,45%.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, que lidera pesquisas de intenção de voto para as eleições de outubro, não apenas manifestou seu respaldo a Macron antes do segundo turno, como também o parabenizou por sua "ampla vitória na urnas".

"Torço pelo sucesso do seu governo, pelo progresso das condições de vida do povo francês e pelo desenvolvimento da integração da União Europeia", escreveu Lula num tuíte que incluiu uma foto de seu encontro com Macron no ano passado.

"Confio que o presidente Macron contribuirá nos desafios globais das mudanças climáticas, das pandemias, da luta contra a desigualdade e para a construção da paz na Europa", prosseguiu o ex-presidente.

Lula foi recebido por Macron em Paris em novembro passado. Bolsonaro classificou de "provocação" o fato de o líder francês ter recebido o ex-presidente brasileiro com honras de chefe de Estado.

Relação conflituosa

Durante seu governo, Bolsonaro travou um relacionamento extremamente hostil com Macron, e as relações entre Brasil e França se deterioraram a um nível que não era visto desde o início dos anos 1960, quando os dois países travaram uma disputa sobre direitos de pesca.

Em julho de 2019, Bolsonaro esnobou em Brasília o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, cancelando em cima da hora uma reunião – pouco depois, o brasileiro apareceu numa live cortando o cabelo.

O "bolo" intencional não passou despercebido na França, e Bolsonaro justificou o gesto grosseiro afirmando que foi uma reação à agenda de Le Drian no Brasil que previa encontros com ONGs "que ferram" o Brasil.

No mês seguinte, o relacionamento se deteriorou ainda mais quando Macron começou a fazer objeções públicas ao acordo entre a UE e o Mercosul, citando as intensas queimadas que castigavam a Amazônia e a agenda antiambiental de Bolsonaro. Macron ainda sugeriu que os países do G7 discutissem a destruição da floresta.

A posição do francês irritou membros do governo Bolsonaro e da família do presidente, que logo passaram a proferir insultos públicos contra Macron. As ofensas se intensificaram após o presidente francês afirmar em nota que Bolsonaro "mentiu" sobre as garantias que havia dado sobre a preservação da Amazônia à época da assinatura do acordo.

Ainda em agosto de 2019, Bolsonaro endossou nas redes sociais um comentário sexista sobre a aparência da esposa de Macron, Brigitte. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também repetiu a ofensa sexista em um evento com empresários. Macron respondeu publicamente ao insulto afirmando que esperava que os brasileiros "tivessem logo um presidente à altura do cargo". "É triste, é triste para ele, primeiramente, e para os brasileiros", disse o líder francês.

Já o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, chamou o presidente da França de "cretino" e "calhorda oportunista". O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, por sua vez, fez um trocadilho com o nome do francês, chamando-o de "Mícron".

lf/cn (Efe, DW, ots)

Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira - resenha de Paulo Roberto de Almeida

 Sergio Florêncio: um livro como não há igual na diplomacia brasileira


 
 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Resenha do livro: Sergio Abreu e Lima Florêncio, Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Appris, 2022; ISBN: 978-65-250-2114-0)


  

Diplomatas costumam ser funcionários discretos, afáveis, mas reservados; são muito cordiais, mas algo distantes; também são bem-informados, mas geralmente calados; quando escrevem memórias, elas são invariavelmente politicamente corretas, contando largos trechos do itinerário pessoal, mas evitando de ofender quaisquer parceiros diplomáticos, amigos ou “inimigos” do Brasil. Não é o caso deste livro de memórias pessoais e diplomáticas, de um grande e velho amigo de décadas na carreira e que teve uma das trajetórias mais fascinantes, tanto no plano pessoal e familiar, quanto no campo da diplomacia. 

O embaixador Sergio Florência compôs um relato inédito nos anais da diplomacia brasileira, talvez até mundial, o que transparece, aliás, no subtítulo da obra, “de Vila Isabel a Teerã”, antes e depois da revolução dos aiatolás. O título já chama a atenção, não só pelos termos, mas sobretudo pela proporção, inversa, de seus componentes: as “memórias” começam por sete capítulos dedicados à “revolução”, mais exatamente pelo “filho da revolução”, o do próprio Sérgio e de Sonia, nascido na capital iraniana na turbulência dos anos em que ele se desempenhou como “encarregado de negócios” na embaixada do Brasil, depois que o embaixador, muito ligado à família do xá, foi retirado pelo Itamaraty. 

A “diplomacia” aparece na segunda parte, dez densos capítulos, menos dedicados a temas de política internacional e bem mais a “personagens” da convivência profissional do autor, inclusive este que aqui escreve, homenageado duplamente, numa recepção em sua casa, quando de minha tardia promoção, e no segundo capítulo deste bloco, onde sou tratado como “o embaixador ombudsman”. Finalmente, a terceira parte, a mais emotiva e sensível, trata dos afetos, aparentemente apenas 26 deles, mas muito mais do que isso, como transparece em cada uma das linhas dedicadas a filhos, netos, à sua mulher, familiares, conhecidos, interações inesperadas, até animais. Finalmente, dois apêndices voltam a tratar da revolução iraniana e um final relata o refúgio na embaixada do Brasil em Quito, onde Sérgio era embaixador, do presidente do Equador, escapando de um golpe de Estado.

Quando digo que este livro de “memórias” não se parece em nada com outras memórias diplomáticas, fica transparente logo no primeiro capítulo da terceira parte, a dos afetos, quando Sérgio discorre de forma amorosa sobre o seu “meio século de flor amorosa” ao lado de Sonia, primeiro cercando aquela moça “muito linda, sabida e irreverente”, depois inventando uma desculpa qualquer para visitar a jovem revisora do Jornal do Brasil, para culminar no pedido de casamento, em 1971, e o que veio depois, como ele mesmo descreve numa mensagem ao filho, em 2021, sobre a lua de mel improvisada:

Cinquenta anos atrás eu partia com sua mãe, um Fusquinha branco, uma barraca, para uma aventura que gerou quatro filhos, oito netos, 27 mudanças de casa, sete países, uma Revolução Islâmica, um golpe de estado latino-americano e muitas coisas que as estatísticas não sabem contar. (p. 80)

 

A crônica seguinte, “A menina do Sacré-Coeur e o sertanejo do Seridó” vai no memo tom, relatando a miscigenação cultural entre uma estudante que falava francês e o migrante do sertão para a aventura no Rio de Janeiro dos anos 1930, que se encontraram alguns anos depois nos corredores do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores do Estado Novo: 

Nesse ministério..., a Menina do Sacré-Coeur, que falava francês e tocava piano, apaixonou-se pelo Sertanejo do Seridó, que gostava de trovadores, repentistas e de baião. Em certo sentido era a elite que se encontrava com o povo. (p. 83)

 

Mas não só a parte dos “afetos” tem esse tipo de tratamento coloquial, uma narrativa sobretudo intimista, um Proust de Vila Isabel, onde o casal se instalou, mas as duas outras partes também tratam de assuntos “sérios” num linguajar coloquial, quase um Balzac do subúrbio do Rio. Impagável é o relato da “avó monarquista”, a atalhar os netos que pretendiam que a República era mais democrática: “E a Inglaterra? Você quer dizer que o Brasil, essa republicazinha, é mais é mais democrática que a Inglaterra? Ora bolas, vocês são uns bobos.” (p. 96). Impressionante também é o relato, bem mais dramático, sobre a retirada da família de Teerã durante a revolução e a guerra contra o Iraque, quando Sérgio contrariou as instruções de Brasilia e fez pessoalmente a viagem de carro até a fronteira da União Soviética, quanto o Itamaraty queria que os familiares saíssem pela Turquia, o que revela o espírito decidido do então jovem diplomata encarregado de negócios: 

Considerava uma irresponsabilidade colocar os brasileiros diante de graves riscos apenas para cumprir uma ordem que desconhecia a realidade. Tive um bate-boca com um diplomata que minha memória seletiva apagou do mapa. Só me lembro esbravejando um grito de independência: ‘Vocês têm poder para fazer o que quiserem. Mas fiquem sabendo de uma coisa: minha mulher e nossos três filhos não vão pela Turquia de jeito nenhum. Vão pela União Soviética. Nem com ordem do Presidente da República.” O bate-boca chegou aos ouvidos do então Chefe da Divisão de Comunicações, que depois vim a descobrir ser uma pessoa encantadora – Claudio Sotero Caio – e foi aprovada a rota via União Soviética. (p. 35)

 

O resto desse relato é eletrizante, como se fosse um roteiro de filme de Hollywood, com lances sempre inesperados, inclusive trafegar a toda velocidade, com faróis apagados, numa Teerã em pleno toque de recolher. Mas não só os capítulos “revolucionários” são absolutamente fascinantes, todo o livro transparece a maneira otimista, e divertida, de relatar casos os mais bizarros e inusitados num estilo próprios dos grandes mestres da escrita, como aliás confirma o prefaciador, sob a pena do embaixador Rubens Ricupero: 

Se o livro de Sergio Florêncio fosse uma composição musical, não seria uma sinfonia, mas sim um ciclo de canções ou de peças de piano como as de Robert Schumann, ligadas por um fio comum. Isto é, em lugar de uma peça única cheia de som e fúria para orquestra grandiosa, o que nos oferece o livro é a escala humana intimista, em surdina, da música de câmara, um conjunto de breves textos alados, transpirando graça, leveza, humor e harmonia, durando dois ou três minutos no máximo, como as Cenas de Infância ou o Carnaval de Schumann. (p. 11)

 

Tenho especial satisfação de fazer esta resenha, não pela generosa dedicatória que Sérgio me fez, ao entregar-me o livro na Biblioteca do Itamaraty – na qual ele reconhece meu “trabalho competente e corajoso de denunciar os graves equívocos (e acertos) de nossa política externa” – mas também por dedicar um capítulo inteiro a este diplomata contrarianista, chamado de “embaixador ombudsman”, como já referido. Já seu primeiro parágrafo me soa inteiramente elogioso, mas também correto no plano institucional: 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função.

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. (p. 54)

 

Sou imensamente grato ao Sérgio Florêncio por ter reconhecido minhas tribulações profissionais, já pela segunda vez, durante a “tragédia” que foi a gestão do ex-chanceler acidental, como eu sempre me referi ao autor dos delírios diplomáticos durante a primeira metade do governo negacionista e antiglobalista: 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do presidente e do Chanceler. (p. 55; texto de 30 de janeiro de 2021, pouco antes da queda do desequilibrado gestor)

 

Mas ele também presta homenagem a um dos seus mais agradáveis chefes de posto, o romancista e acadêmico Josué Montello, que foi o titular da delegação do Brasil junto à Unesco, em Paris, quando Sérgio ali serviu com esse “Grande Contador de Histórias”, como se chama esse capítulo, no qual descreve o “método” de um escritor compulsivo que, acometido por insônia, encontrou a técnica para “enganar” a necessidade de dormir, com isso conseguindo produzir mais de cem livros:

Todas as madrugadas, por volta das três da manhã, ele despertava, sentava em frente a uma folha de papel em branco e não resistia. Era preciso preencher aquela ‘tabula rasa’ que nada continha. Mas que despertava irresistível encanto em meu Grande Contador de Histórias. (...)

Compreendi então sua máxima a respeito da irresistível atração que uma folha de papel em branco exerce sobre todo homem. Seria essa atração um movimento, uma inclinação de toda a humanidade? Seria o mero resultado de um metabolismo individual que passou a ser respeitado? Fica a pergunta no ar. (...)

Mas a atração da folha virgem alimentava uma criatividade exponencial, gerava frutos de uma mente que não parava de produzir histórias, de contar um conto sempre acrescentando um ponto. Tão grande era sua pulsão criativa, que nas manhãs de trabalho, como Embaixador do Brasil na Unesco, precisava contar a seu colaborador a arte de ocupar o espaço de uma folha de papel em branco. (p. 72)

 

Creio que eu e Sérgio padecemos do mesmo “mal”: não podemos ver uma folha de papel em branco, no meu caso prolongando a noite durante várias horas, madrugada adentro, nos velhos tempos preenchendo cadernos e mais cadernos de notas, de uns tempos para cá, contemplando uma desafiadora tela em branco no processador de textos. Assim concluo, pois, às 3hs da madrugada, a leitura deste fascinante livro de Sérgio Florêncio. Recomendo a todos que façam o mesmo, nos horários que julgarem mais convenientes. Comecem pelos afetos, depois enfrentem o roteiro da revolução e terminem pela diplomacia. Mas, em qualquer ordem, as crônicas desta autobiografia emotiva são absolutamente encantadoras.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4135: 26 abril 2022, 4 p.


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Permito-me incluir aqui, nesta postagem, o capítulo do livro que ele dedica a mim: 


 

2.2 PAULO ROBERTO, O EMBAIXADOR OMBUDSMAN 


     In: Sergio Abreu e Lima Florêncio: Diplomacia, Revolução e Afetos: de Vila Isabel a Teerã (Curitiba: Editora Appris, 2022; p. 54-55) 


 

Toda instituição de excelência necessita, com certa regularidade, fazer autocrítica. Entretanto, entre seus integrantes, poucos são aqueles com vocação ou capacidade para exercer essa difícil função. 

O Itamaraty tem o privilégio de contar, em seus quadros, com um diplomata com esse perfil. Tem nas veias o sangue da contestação intelectual, o fascínio pelo debate de ideias e o respeito ao contraditório. Pessoas com essas virtudes têm, em geral, um percurso profissional marcado por incompreensão, crítica e injustiça. Esse é o caso de Paulo Roberto de Almeida. 

Personifica a inteligência contestatária que, apesar dos pesares, a instituição teve a sabedoria de preservar. Entretanto, essa vertente iluminista foi esquecida ao longo de uma década e meia e, nos últimos dois anos, sepultada da forma mais devastadora e abjeta. 

Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu, Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto a talentosos jovens diplomatas, como Eduardo Saboia, João Mendes, Haroldo Ribeiro e Raphael Azeredo. Já naquele tempo era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida, pela irreverência intelectual, pela destruição criadora shumpeteriana que estimula seus neurônios. 

Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “chama da alma”. Diversas vezes o aconselhei a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade, meu receio maior não residia na sua essência anímica, mas nos Bombeiros de Farenheit 451, sempre prestes a inverter a direção das labaredas. 

Paulo deu relevante contribuição para a política externa do período de Fernando Henrique, em especial no momento-chave da criação do Mercosul. Soube reconhecer os méritos da diplomacia de Lula, ao mesmo tempo em que se revelou crítico contundente dos graves excessos e desvios, particularmente comprometedores na gestão ineficaz e equivocada de Dilma. 

Pela crítica corajosa à influência negativa do PT sobre a diplomacia brasileira, foi vítima de prolongada e injusta marginalização que estacionou sua carreira. Apenas no governo Temer, com o Chanceler Aloysio Nunes, teve o reconhecimento merecido, mas adiado de forma injustificável por uma década e meia. Foi então nomeado Diretor do IPRI – Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais. Ali estava o homem certo no lugar certo. Teve desempenho brilhante e altamente dinâmico. 

Nessa época, os jovens diplomatas que, junto comigo, conheceram Paulo nos chamados tempos heroicos do Mercosul, haviam então galgado posições de direção e souberam fazer justiça a esse batalhador da nossa política externa. Além disso, Embaixadores de grande prestígio, como Rubens Ricúpero e Rubens Barbosa (seu chefe durante anos), defenderam Paulo e se empenharam por sua promoção a Embaixador. Foi nesse momento que organizei encontro em nossa casa para celebrar o tão adiado reconhecimento do mérito. Disse então que não estávamos festejando a promoção do Paulo, porque era o Itamaraty que estava sendo promovido. Promovido pelo resgate da justiça. 

Com a eleição de Bolsonaro, a política externa brasileira perdeu prin­cípios, valores e paradigmas que marcaram sua história. Nas áreas de meio ambiente, direitos humanos, multilateralismo, relações bilaterais, o Brasil tem hoje a diplomacia do delírio, da submissão e do prejuízo ao interesse nacional. É uma tragédia a gestão do Chanceler Ernesto Araújo. 

Paulo, uma das primeiras vítimas desse desvario, foi logo afastado da direção do IPRI. O motivo, de tão ridículo, vale aqui ser lembrado – autorizou a publicação de entrevistas de FHC, Rubens Ricúpero e do próprio nos Cadernos de Política Exterior da Funag. 

Nesse momento sombrio, Paulo tem sido o mais obstinado e contundente crítico da desastrosa política externa. Ele personifica o Ombudsman de uma instituição dilapidada em seus alicerces pela irresponsabilidade do Presidente e do Chanceler.

 

Brasília, 30 de janeiro de 2021.