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sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Um ano de muita diplomacia presidencial e nenhum-resultado - Duda Teixeira (Crusoé); Nota da Secom só enaltece Lula: Itamaraty não existe, nem Ucrânia

Como destaca o jornalista Duda Teixeira, a nota da Secom sobre as realizações em política externa do governo Lula só enaltece o próprio. O Itamaraty sequer é mencionado e a Ucrânia simplesmente não existe. O próprio encontro de Lula com o presidente Zelensky em NY desapareceu completamente, como se não tivesse existido. Tudo o Lula fez sozinho. 

Tamanha concentração no chefe não tinha ocorrido nos primeiros mandatos. (PRA)

 

 

Um ano de muita diplomacia presidencial e nenhum-resultado

Duda Teixeira

Crusoé, 05.01.24

 

A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Secom, divulgou na manhã desta sexta, 5, um texto e um vídeo com destaques do ano na área de política externa. O título fala que 2023 foi um ano “orientado à reconstrução da política externa brasileira”. Fala-se ainda que “em quase todos os temas” o Brasil foi “protagonista no cenário global” tecendo “novos diálogos”.

 

Chama a atenção que a Secom, ligada à Presidência, tenha sentido a necessidade de elaborar uma peça de propaganda para justificar a política externa brasileira. O fato só confirma que a diplomacia está sendo feita do Palácio do Planalto, por meio de Lula e do assessor especial Celso Amorim, e não do Itamaraty, comandado pelo chanceler de ofício Mauro Vieira. Aliás, em momento algum da nota aparecem as palavras “Itamaraty” ou “Ministério de Relações Exteriores”.

 

Mauro Vieira aparece uma única vez no texto, justamente no trecho em que a nota registra um fracasso da diplomacia brasileira.

 

Em outubro do ano passado, quando o Brasil assumiu como presidente do Conselho de Segurança da ONU, Lula aventou a possibilidade de alcançar a paz na guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas, por meio de uma resolução. Nada foi alcançado.

 

Diz a nota da Secom: “Encontro convocado pelo Brasil foi conduzido pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira. Proposta de paz brasileira recebeu amplo apoio, mas acabou sendo recusada pelos EUA, que têm poder de veto“. A culpa, claro, é sempre dos americanos.

 

Algumas ausências chamam ainda mais a atenção.

 

Em busca de um “protagonismo global”, Lula tinha afirmado que atuaria para mediar a guerra na Ucrânia e falou de criar um clube de paz. Na nota da Secom, a palavra “Ucrânia” simplesmente não aparece.

 

Na América Latina, o principal acontecimento que mais pode chacoalhar a região é uma possível guerra entre a Venezuela, do ditador Nicolás Maduro, e a vizinha Guiana. Lula nunca criticou seu aliado Maduro por querer tomar um naco de 74% do país vizinho. O assunto foi ignorado na peça de propaganda elaborada pela Secom.

 

O vídeo de 28 minutos que acompanha a nota deixa claro que o país está colocando em prática a “diplomacia presidencial”, aquela que entende que basta a figura e o carisma de Lula para que todos os problemas do mundo se resolvam.

 

Logo no início, o vídeo fala em “26 viagens internacionais”, “11 cúpulas pelo mundo”, “87 bilaterais”, mostrando Lula cumprimentando inúmeros chefes de governo ao som de acordes de violão ao ritmo da Bossa Nova.

 

Em dois momentos, o presidente petista aparece dizendo que é urgente assinar um acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Mas o tratado, como já tratamos diversas vezes na Crusoé, não foi assinado, após ter sido sucessivamente bombardeado pelo governo petista.

 

E a peça da Secom ainda mostra Lula se encontrando com pessoas que nem sequer são chefes de Estado ou de governo, como o ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica e as Mães da Praça de Maio, na Argentina.

 

O presidente, é certo, nunca viajou tanto, e a primeira-dama Janja o acompanhou em quase todos esses passeios internacionais.

 

Mas só o fato de que a Secom tenha sentido a necessidade de publicar uma nota com os destaques do ano já não é bom sinal.

 

https://crusoe.com.br/diario/um-ano-de-muita-diplomacia-presidencial-e-nenhum-resultado/

 

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Nota da Secom sobre as realizações do ano na política externa governamental:

 

RELAÇÕES EXTERIORES

2023 foi ano orientado à reconstrução da política externa brasileira

Em quase todos os temas nos quais o Brasil havia sido protagonista no cenário global foi preciso tecer novos diálogos, tanto no contexto global quanto regional.

 

Janeiro:

Lula reafirma importância dos laços com a América Latina, em suas primeiras missões internacional após a posse à Argentina e ao Uruguai (Cúpula da CELAC)

(21/01/2023) – Escolha de Lula em iniciar a agenda internacional na Argentina refletiu a prioridade em retomar a integração com os países da região, negligenciada pelo governo anterior. Ele discursou na abertura da VII Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e comemorou o retorno do Brasil à comunidade.

 

Fevereiro:

A convite de Joe Biden, Lula vai a Washington e debate defesa da democracia e do meio ambiente

(10/02/2023) – Lula enfatizou, na Casa Branca, a necessidade de uma governança global com medidas para o fortalecimento da democracia e defesa do meio ambiente. A reunião também foi marcada pelo anúncio da primeira contribuição dos EUA ao Fundo Amazônia.

 

Abril:

Cooperação Brasil – China prevê investimentos de R$ 50 bilhões

(14/04/2023) – Viagem de Lula à China resulta em investimentos da ordem de R$ 50 bilhões. Foram firmados 15 acordos, com destaque para áreas de facilitação do comércio e cooperação tecno-científica, em temas como agricultura, pesquisa espacial e energia. Viagem também incluiu paradas em Xangai, para a posse de Dilma Rousseff na presidência do NDB (“Banco dos BRICS”) e nos Emirados Árabes, onde foram anunciados investimentos da ordem de 12 bilhões de reais em energias renováveis.

 

Brasil e Portugal firmam acordo de equivalência dos ensinos Fundamental e Médio

(22/04/2023) – O presidente Lula e o primeiro-ministro de Portugal, António Costa, assinaram uma série de 13 acordos bilaterais em diversas áreas, entre eles o que trata da Concessão de Equivalência de Estudos no Brasil (Ensino Fundamental e Médio) e em Portugal (Ensino Básico e Secundário), facilitando a cidadãos dos dois países a realização de estudos em nível superior e a prática profissional.

 

Maio:

A convite, Lula participa da Cúpula do G7 e reforça defesa da paz e do multilateralismo

Após 14 anos, Brasil voltou a ser convidado para a Cúpula das sete economias mais industrializadas do mundo (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido).

 

Durante visita de Lula, Japão anuncia isenção de vistos para brasileiros

Acordo anunciado pelo primeiro-ministro Fumio Kishida, em reunião com o presidente Lula, libera de vistos os turistas brasileiros que entram no Japão e japoneses que chegam ao Brasil. Medida passou a valer em 30 de setembro.

 

Lula trata da proteção das florestas tropicais com presidente da Indonésia

20/05/2023) – Em reunião à margem da Cúpula do G7, em Hiroshima, o presidente Lula conversou com o presidente da Indonésia, Joko Widodo, sobre a agenda comercial, política e ambiental, com destaque para a articulação de um grupo de países detentores de grandes florestas tropicais, para defesa de posições conjuntas na proteção dos biomas. Em agosto, na Cúpula da Amazônia, o presidente trataria do tema também com os presidentes do Congo e da República Democrática do Congo.

 

Confirmação de Belém do Pará como sede da COP-30, a conferência para o clima

(26/05/2023) – O presidente Lula anunciou que o Brasil sediará a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em novembro de 2025, em Belém (PA). A confirmação do Brasil como sede do mais importante evento ambiental do planeta é resposta ao pleito do próprio Lula, durante participação na COP- 27, no Egito, logo após vencer as eleições.

 

Lula realiza cúpula de presidentes sul-americanos em Brasília

(30/05/2023) – Lula liderou encontro com presidentes dos países da América do Sul. Na ocasião, também foi comemorado o retorno do Brasil à União de Nações Sul-Americanas (Unasul), da qual volta a fazer parte após quatro anos.

 

Junho:

Lula e Papa Francisco falam sobre a paz em audiência no Vaticano

(21/06/2023) – Encontro reservado ressaltou a convergência de visões entre o presidente e o pontífice nas áreas ambiental e social e na promoção da paz.

Em Paris, Lula cobra de países ricos financiamento à preservação ambiental

(22/06/2023) – Viagem do presidente Lula à França foi marcada por discurso na abertura do ‘Novo Pacto de Financiamento Global’ e pela participação na iniciativa ‘Power Our Planet’, que reuniu grande público no Campo de Marte. Lula cobrou de governantes mundiais o combate às desigualdades, o cumprimento dos compromissos ambientais dos países desenvolvidos e a reforma das instituições de governança global.

 

Julho:

Brasil assume presidência temporária do Mercosul e Lula pede união entre países

(04/07/2023) – O presidente Lula recebeu do presidente Alberto Fernández, da Argentina, a presidência temporária do Mercosul durante a 62ª Cúpula de Chefes de estado do bloco sul-americano em Puerto Iguazu. Em seu discurso, Lula defendeu a união entre os países vizinhos como forma de enfrentar os desafios contemporâneos.

 

Lula participa de acordo eleitoral entre governo e oposição da Venezuela

(18/07/2023) – Em paralelo à terceira Cúpula União Europeia - Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), os presidentes do Brasil, Argentina, Colômbia e França lideraram iniciativa que trouxe à mesa de negociações o governo e a oposição da Venezuela, para entendimentos que levem à organização de eleições justas, transparentes e inclusivas no país. Um dos resultados imediatos da iniciativa foi o levantamento temporário de algumas sanções impostas à Venezuela pelos EUA.

 

Agosto:

Brasil realiza a primeira Cúpula da Amazônia

(09/08/2023) – O Brasil realizou a primeira Cúpula da Amazônia, reunindo líderes dos países da região. O encontro foi antecedido pelos Diálogos da Amazônia, com ampla participação social, e resultou na Declaração de Belém, documento que ressalta os compromissos e prioridades conjuntas na proteção e desenvolvimento sustentável da Amazônia.

 

Lula participa da Cúpula do BRICS na África do Sul

(22/08/2023) – O presidente Lula participou da 15ª Cúpula de Chefes de Estado do BRICS, em Joanesburgo. O tema do encontro foi “BRICS e a África: parcerias para o crescimento mutuamente acelerado, desenvolvimento sustentável e multilateralismo inclusivo”. Destaque para a decisão conjunta de expandir o bloco, com a adesão de novos países-membros.

 

Lula participa de cúpula dos países de língua portuguesa em São Tomé e Príncipe

(24/08/2023) – O presidente Lula participou da 14ª Conferência de Chefes de Estado e Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). O grupo, unido pelo idioma e por uma herança histórica comum, inclui Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal e Timor Leste.

 

Brasil e Argentina firmam acordo de US$ 600 milhões para financiar exportações

(28/08/2023) – Cooperação entre Banco do Brasil, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF) poderá disponibilizar US$ 600 milhões para garantir o fluxo das exportações brasileiras ao país vizinho.

 

Brasil assumirá pela primeira vez a Presidência do G20

(30/08/2023) – O mandato brasileiro na presidência do G20, o bloco que reúne as 21 maiores economias do mundo, vai de 01/12/23 a 30/11/24 e se concentra nos temas da inclusão, da sustentabilidade e da reforma da governança global. Mais de 200 reuniões estão previstas por todo o território nacional, incluindo a Cúpula, a ocorrer em novembro/24, no Rio de Janeiro.

 

Setembro:

Em discurso na ONU, Lula defende o diálogo como ferramenta para construção da paz

(19/09/2023) – Em discurso muito elogiado, o presidente Lula abriu a 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, reafirmando a necessidade de uma união global contra a desigualdade e a fome, a adoção de medidas urgentes contra as mudanças climáticas e a reforma de instituições de governança global.

 

Brasil e EUA lançam iniciativa conjunta sobre dignidade do trabalho

(20/09/2023) – Iniciativa inédita que visa a valorizar os empregos dignos e combater a precarização do trabalho nos dois países e em escala global foi lançada pelos presidentes Lula e Joe Biden à margem da Assembleia Geral da ONU, em 20/9.

 

Outubro:

Brasil preside reunião do Conselho de Segurança da ONU sobre guerra no Oriente Médio

(11/10/2023) – Encontro convocado pelo Brasil foi conduzido pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira. Proposta de paz brasileira recebeu amplo apoio, mas acabou sendo recusada pelos EUA, que têm poder de veto.

 

Operação Voltando em Paz: mais de 1.400 brasileiros transportados da zona de conflito no Oriente Médio em voos da Força Aérea Brasileira

(23/12/2023) – O Brasil iniciou a Operação Voltando em Paz resgatando civis brasileiros e seus familiares de zonas de conflito no Oriente Médio, em Israel, Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Até o mês de dezembro mais de 1.400 pessoas foram repatriadas pelo governo brasileiro e acolhidas no território nacional.

 

Novembro:

Presidente Lula instala Comissão Nacional do G20

(23/11/2023) – O presidente Lula instalou a Comissão Nacional do G20 – grupo que reúne as vinte maiores economias do mundo. A solenidade no Palácio do Planalto contou com a participação dos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, do Supremo Tribunal Federal (STF), Roberto Barroso, do Banco Central, Roberto Campos Neto, além de ministros, ministras e outras autoridades.

 

Dezembro:

Visita de Lula a Berlim consolida retorno da parceria estratégica Brasil-Alemanha

(03/12/2023) – O presidente Lula esteve na Alemanha, marcando o fechamento de um ano intenso de cooperação bilateral, em que o Brasil recebeu visitas de diversas autoridades germânicas. A reaproximação diplomática resultou na assinatura de acordos em áreas como energia, indústria e transição ecológica. Destaque para declaração conjunta sobre cooperação tecnológica para a promoção da integridade da informação e combate à desinformação (fake news).

 

Governo celebra resultados da COP 28 nos Emirados Árabes

(13/12/2023) – Evento em Dubai tratou, pela primeira vez, do tema da superação do uso de combustíveis fósseis, estabelecendo objetivos globais para a transformação de sistemas energéticos rumo à neutralidade climática até 2050. Outro importante resultado da COP28 foi a conclusão do primeiro balanço global sob o Acordo de Paris.

 

Fundo Amazônia soma R$ 3,9 bilhões em doações em 2023

(11/12/2023) – O Fundo Amazônia recebeu, desde janeiro de 2023, R$ 3,9 bilhões em novas doações. A retomada do fundo foi acompanhada e resulta do retorno de políticas efetivas de controle do desmatamento pelo Brasil, com resultados já muito significativos. O Fundo, que contava com contribuições de Alemanha e Noruega, havia sido congelado pelo governo anterior. Sob o governo do presidente Lula, recebeu recursos também da Dinamarca, EUA, Reino Unido, Suíça e União Europeia.

 

sábado, 30 de setembro de 2023

Entrevista para o Boletim de RI Acauã - Paulo Roberto de Almeida

 https://acaua.info/paulo-roberto-de-almeida-entrevista-para-o-numero-11/

Paulo Roberto de Almeida: Entrevista para o Número 11

Entrevista que ampara o Editorial de nº 11, conduzida pelo Editor do Boletim Marcelo de Almeida Medeiros com o Diplomata Paulo Roberto de Almeida. 

Entrevistado: Paulo Roberto de Almeida

Entrevistado: Paulo Roberto de Almeida 

Paulo Roberto de Almeida (São Paulo, 1949) é Doutor em Ciências Sociais (Université Libre de Bruxelles, 1984), Mestre em Planejamento Econômico (Universidade de Antuérpia, 1977). Diplomata de carreira, por concurso direto em 1977; aposentado em 29/10/2021. Foi professor no Instituto Rio Branco, na Universidade de Brasília e no Instituto de Hautes Études de l’Amérique Latine (Sorbonne). Ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). De 2004 a 2021 foi professor de Economia Política no Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub). Como diplomata, serviu em diversos postos no exterior e na Secretaria de Estado, inclusive na embaixada do Brasil em Washington, de 1999 a 2003. De agosto de 2016 a março de 2019 exerceu o cargo de Diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag-MRE). É atualmente diretor de Relações Internacionais do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal. Livros mais recentes sobre a política externa e a diplomacia do Brasil: Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior (LVM, 2022); Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (Appris, 2021); Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019); Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (UFRR, 2019); Nunca Antes na Diplomacia (Curitiba: Appris, 2014).

Entrevistador: Marcelo de Almeida Medeiros

Entrevistador: Marcelo de Almeida Medeiros 

Editor do Boletim Acauã. Professor Titular do Departamento de Ciência Política da UFPE e Pesquisador PQ-1C do CNPq. Possui doutorado em Ciência Política.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Política internacional e relações econômicas internacionais do Brasil: podcast com alunos da UFPB - Paulo Roberto de Almeida

Política internacional e relações econômicas internacionais do Brasil: podcast com alunos da UFPB

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para entrevista oral com alunos de Relações Internacionais da UFPB.

  

1) A identidade brasileira no sistema internacional depende da imagem que os outros países têm do Brasil. Nesse sentido, podemos relacionar a busca por uma participação mais frequente em foros multilaterais à uma vontade brasileira em consolidar a imagem de um país confiável e engajado, que não se preocupa somente com questões de segurança e de desenvolvimento, mas também com as “low politics” como as temáticas ambientais e de direitos humanos?

PRA: A imagem do Brasil já estava relativamente consolidada até 2018: a de um país desigual, injusto com os seus pobres, os seus índios, com os seus recursos florestais, com muita corrupção, mas também vibrante do ponto de vista de avanços sociais, democráticos e com uma diplomacia de alta qualidade, ativo participantes em todos os foros regionais e multilaterais, com propostas originais e sempre buscando o consenso entre todos os membros de organismos multilaterais e nas mais difíceis negociações, seja no plano econômico e comercial, no terreno ambiental, nos direitos humanos e sociais. Ou seja, elementos negativos e positivos de nossa identidade nacional e da imagem internacional, sem necessariamente se fazer uma distinção entre high ou low politics, assuntos de paz e segurança, por um lado, temas sociais e ambientais, por outro. Os demais países sabem exatamente o que é o Brasil, pois possuem representação no país e existem muitos correspondentes internacionais aqui. Eles sabem distinguir, por exemplo, as frases atribuladas de um presidente sem qualquer credibilidade externa e as declarações formais feitas na ONU e em outros foros internacionais e regionais; sabem que o Itamaraty não é, pelo menos agora, aquela confusão mental e os argumentos ridículos contra o globalismo do ex-chanceler acidental. Acredito que a maior parte dos países aguardam uma mudança de direção no país em 2023. 

 

2) Na atualidade, você acha que o Brasil, ao votar na ONU junto com países como a Arábia Saudita e junto aos EUA pelo embargo contra Cuba, tem comprometido as iniciativas multilaterais e o prestígio internacional do país?

PRA: De fato, a postura ideológica da gestão anterior no Itamaraty prejudicou muito a imagem internacional do Brasil, mas algumas correções foram feitas a partir de abril de 2021, no plano da diplomacia, com alguns resíduos bizarros que ainda ficaram na política externa. Alguns desses temas que destoam muito dos governos anteriores, sobretudo no campo dos direitos sociais, dos direitos humanos e da proteção às minorias, são identificados com esses resíduos ideológicos da postura pessoal do presidente, não expressando a postura real da diplomacia, e sim a postura pessoal do pequeno grupo  que cerca o presidente.

 

3) Dos cinco países do BRICS, apenas a China e a Índia despontam como promessas de grandes economias no futuro. Tendo em vista esse cenário, nós poderíamos afirmar que o BRICS fracassou?

PRA: O BRICS não é uma agência formuladora de políticas econômicas ou produtora de ideias elaboradas de governança, e sim um mero mecanismo de consulta e coordenação criado de maneira totalmente artificial, pois que resultando de uma assemblagem arbitrária feita por um economista de um grande banco, focando bem mais oportunidades de negócios para investidores institucionais, com base numa projeção conjunturalmente otimistas em torno de perspectivas de crescimento. O BRICS não pode ter fracassado porque ele não desenha políticas macroeconômicas ou setoriais, sequer oferece planos de investimentos, a despeito de um banco que se comporta como os demais bancos multilaterais: análise de custo e benefício quanto a projetos de investimento. O BRICS sempre foi bem mais a China do que todos os demais membros reunidos, embora a Índia tenha apresentado um ciclo dinâmico de crescimento econômico nas últimas duas décadas. O fato é que os países membros do BRICS não possuem nenhum acordo de comércio preferencial entre si, e praticamente não são convergentes nas grandes definições de políticas públicas fundamentais. 

 

4) Sobre a área comercial do multilateralismo, gostaríamos de perguntar sobre como tem sido a abordagem brasileira nesses espaços nas últimas décadas. FHC em sua gestão como presidente, por exemplo, lidou bastante com a inserção do Brasil no mundo globalizado e desde então essa passou a ser a grande linha de atuação do país nas instituições internacionais. O quanto dessa redefinição perdura até o contexto atual?

PRA: O liberalismo econômico da era FHC foi, de fato, plantado na curta era Collor, que deu início a uma revisão das grandes linhas das políticas comercial, industrial e até nuclear do Brasil, que perdurou, de forma surpreendente no curto governo Itamar Franco e foi expandido nos dois mandatos do governo FHC. A parte multilateral foi de certa forma continuada nos governos lulopetistas, mas não ocorreu mais abertura econômica ou liberalização comercial, como tampouco privatizações no plano interno. Mas foi reforçada a dimensão regional da política externa, mas praticamente sem nenhum conteúdo econômico, a não ser atuação do BNDES no financiamento – em muito casos misturados a corrupção – de grandes projetos em benefício de corporações brasileiras, na América Latina e na África, sobretudo. Mas essas mesmas empresas foram responsáveis por uma projeção externa exagerada da corrução nesses negócios com parceiros regionais e africanos. No cômputo global, houve poucos avanços no campo das cadeias de valor, ou seja, o Brasil continua ausente dos grandes intercâmbios globais, a não ser como fornecedor de commodities. 

 

5) Tratando do multilateralismo, sabemos que as instituições exercem um papel de grande importância. Em relação ao Brasil, podemos estabelecer que o nosso país pôde se beneficiar do multilateralismo através da expansão da sua diplomacia política, ainda que estivesse inserido em acordos não tão benéficos economicamente.

PRA: A política diplomática do Brasil já era multilateralista no período anterior à ONU e desde então a vertente multilateral tornou-se o eixo central da política externo do país, junto com a dimensão regionalista, mais afirmada a partir dos anos 1990. Houve certa letargia nas negociações de acordos comerciais e de investimentos, mas persistia uma inclinação favorável até o advento da diplomacia bizarra do governo Bolsonaro. Desde 2019, os sinais emitidos foram os mais contraditórios, sobretudo na vertente multilateral, justamente, e de forma ainda mais enfática no terreno do meio ambiente, contribuindo para isolar o Brasil no plano internacional. Pela ação exclusiva do seu presidente, e do anterior chanceler acidental, o Brasil realmente converteu-se num pária internacional, jamais consultado para tratar de alguns dos grandes temas da agenda internacional. Desacordos internos ao Mercosul também dificultaram avanços em novos acordos bilaterais ou plurilaterais. 

A partir de um novo governo, dotado de uma diplomacia “normal”, isto é, convergente com valores e princípios clássicos em nossa postura externa, será possível recuperar o terreno perdido em quatro anos de quase total nulidade diplomática.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4138: 27 abril 2022, 3 p.


terça-feira, 26 de abril de 2022

Política internacional e teorias conspiratórias: considerações pessoais - Paulo Roberto de Almeida (Psicoeducação)

 Política internacional e teorias conspiratórias: considerações pessoais 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Notas para entrevista oral no quadro de emissão no YouTube, “Psicoeducação”, animado porVitor Matos de Souza, no YouTube, em 27/04/2022, 20hs (link: https://www.youtube.com/channel/UCtGmAFkxO7RzofDE4ROSGYw) .

  

1) Falar um pouco sobre a tese dos três blocos, globalista, islâmico, e russo-chinês numa perspectiva de modo a sinalizar o que é real e o que delírio nessas teses.

PRA: Não existem três blocos estritamente configurados sob essas três designações, o que de toda forma seria altamente aleatório apresentar tais configurações como “teses”, sob tais “agrupamentos” definidos dessa forma. O que existe, sim, mas com arquiteturas muito diferentes, são instâncias de coordenação, consulta e cooperação entre países ou grupos de países, sob diferentes instrumentos regionais ou globais (eventualmente mundiais, mas não necessariamente universais), que congregam Estados – os do arco ocidental das democracias de mercado, por exemplo – ou comunidades civilizatórias ou religiosas – como é o caso da Organização da Conferência Islâmica, congregando 57 países de línguas e culturas diversas, mas de maioria islâmica em suas populações –, ou, bem mais recentemente, a declaração de “aliança sem limites” entre a Rússia e a China, mas neste caso congregando duas nações bastante diferentes entre si, apenas unidas por motivos circunstanciais, que é a oposição virtual ao G7, ou ao bloco supostamente hegemônico das potências ocidentais.

Existe um lado real, mas vagamente identificado com três “blocos” tal como acima mencionado, mas obedecendo a diferentes critérios de “agregação”, bem mais evolutiva e natural, no caso das democracias de mercado vulgarmente chamadas de potências ocidentais e essa entidade mais vagamente unida em torno de uma mesma religião (mas com diversas vertentes dentro do conjunto) que é a Conferência Islâmica, constituída em grande medida em reação à dominação ocidental, mais exatamente europeia, sobre antigos territórios, povos e Estados colocados no grande arco civilizatório da comunidade islâmica, mas com fracos laços políticos e econômicos entre eles. Por fim, é um fato que se formou uma “aliança” entre a Rússia e a China, depois de séculos de evolução diferenciada, de uma fugaz identidade comum sob o comunismo da III Internacional, mas logo distanciados por grandes diferenças de visão quanto ao mesmo comunismo e tornados até hostis por disputas territoriais e visões distintas quanto à ordem mundial. A “aliança sem limites” proclamada por Putin e Xi Jinping em fevereiro de 2022 deve encontrar seus limites políticos, econômicos e geopolíticos, à medida em que os dois grandes irmãos do socialismo tiveram marcados processo de desenvolvimento econômico e político nas últimas décadas, o que deve se acentuar nos anos à frente, sobretudo com as consequências duradouras da guerra de agressão de Rússia contra a Ucrânia. A Rússia será o irmão menor dessa aliança, a despeito de possuir um poder de fogo razoável em termos bélicos.

 

2) Qual foi o efeito de devastação do governo Bolsonaro para a diplomacia brasileira e se ele conseguiu ser pior que o governo Lula.

PRA: O qualificativo de pior não é o mais adequado para colocar numa linha de comparação as diplomacias lulopetista e a bolsonarista, tão diferentes quanto água e vinho. A despeito de desvios partidários e ideológicos em alguns aspectos da política externa, a diplomacia do lulopetismo representou uma continuidade de desenvolvimentos anteriores, notadamente no terreno regional, no campo multilateral e na questão do tratamento dos temas inscritos nas agendas sociais, culturais e ambientais mundiais. Já o bolsonarismo diplomático representou uma ruptura com tudo o que havia antes, começando pela recusa absolutamente ridícula do globalismo, um fantasma que se traduziu numa recusa do multilateralismo, o eixo central das relações internacionais contemporâneas.

O show de horrores teve início ainda antes da inauguração do governo e mesmo antes do pleito eleitoral de outubro de 2019, quando o deputado venceu as eleições com discurso enganador, até mentiroso, prometendo luta contra a corrupção, política econômica liberal, fim do que tinha sido caracterizado como “velha política” – ou seja, cargos e subsídios em troca de apoio congressual – e postura eminentemente técnica na formulação e implementação das políticas públicas. O prenúncio da ruptura com os valores e princípios da diplomacia profissional, com as linhas tradicionais da política externa brasileira já tinha sido feito na entrega do programa de governo do candidato ao TSE, em agosto de 2018: nele constavam apenas cinco parágrafos da pior qualidade substantiva sobre quais seriam as grandes metas e diretrizes da nova política externa, supostamente não ideológica, mas totalmente tomadas por orientações essencialmente ideológicas, já prometendo um alinhamento com governos de direita e uma adesão unilateral à política dos Estados Unidos, e mais especificamente ao então presidente Trump. 

O que se assistiu nos primeiros dois anos e meio do governo Bolsonaro na frente externa foi muito pior do que o esperado, com o abandono de relações longamente cultivadas na região e fora dela, assim como a inversão totalmente ideológica de posturas anteriormente assumidas, sobretudo no plano multilateral, objeto de uma ridícula, na verdade, atroz, rejeição do multilateralismo, assimilado, por um raciocínio tão irracional quanto estúpido, ao fantasmagórico inimigo do “globalismo”, que seria uma coalizão de banqueiros de esquerda, de burocratas não eleitos da ONU e de esquerdistas tradicionais, todos eles devotados a retirar soberania dos Estados nacionais, para substituí-la por uma governança mundial de caráter antinacional e de cunho comunista. Os diplomatas foram chamados a partilhar desse manancial de bobagens oferecidas em discursos, entrevistas e artigos, da parte do primeiro chanceler acidental e de alguns ideólogos do olavismo, uma das seitas influentes no novo esquema de poder. 

A diplomacia brasileira deixou para trás uma avaliação de grande prestígio, de que gozava anteriormente, pelo seu profissionalismo exemplar na defesa dos grandes temas e questões do multilateralismo contemporâneo, para se refugiar num antiglobalismo não só estéril, como sumamente ridículo. O Brasil ficou isolado internacional. Descrevi e analisei toda essa deriva alucinante em diversos livros que acompanharam a fase mais aguda do bolsolavismo delirante: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras, seguido de Uma certa ideia do Itamaraty (2020), completados por O Itamaraty Sequestrado e Apogeu e demolição da política externa(2021), este último já abrangendo as quatro últimas décadas da diplomacia brasileira. 

 

3) Qual o caminho para o desenvolvimento brasileiro agora que o liberalismo foi associado ao bolsonarismo e que o próximo governo tende a ter uma ideologia cepalina e dirigista em relação a economia?

PRA: Há um equívoco de percepção em certos setores ao se acreditar que o liberalismo está associado ao bolsonarismo. Talvez esta tenha sido uma impressão induzida por uma falsa propaganda de uma pretensa vocação liberal do novo governo durante a campanha eleitoral e nas primeiras semanas de governo, quando se anunciavam privatizações de grandes empresas estatais, abertura econômica e liberalização comercial, quando nada disso se fez, sobretudo por oposição do próprio presidente, um estatista nacionalista dos mais medíocres, e também pelo tradicional protecionismo das elites econômicas tradicionais, tanto industriais quanto agrícolas. Diversos assessores importantes da área econômica foram se distanciando do governo, justamente pelo abandono de todas as promessas enganosas de campanha, assim como pela total contradição entre as promessas de luta contra a corrupção e as práticas efetivas de apoio aos setores políticos mais corruptos do sistema político brasileiro, em especial a partir de meados de 2020, quando o governo se rende definitivamente ao chamado Centrão, o núcleo duro do fisiologismo corrupto da política brasileiro. Se alguns liberais ainda acham que o governo Bolsonaro ainda possui qualquer vocação liberal podem ser pessoas mal-informadas, iludidas, equivocadas ou de má-fé. 

Não se sabe ainda que tipo de governo teremos em 2023, assim que não cabe antecipar qualquer tipo de política pública mais ou menos identificada com as linhas básicas do antigo cepalianismo de cunho dirigista. Cabe esperar para ver o que será o próximo governo.

 

4) Como você vê a questão do globalismo? É possível que a integração econômica mundial coexista com uma integração política? Até que ponto as autoridades nacionais podem continuar relevantes nesse cenário?

PRA: O mundo caminhou, desde a era moderna, da formação e consolidação dos Estados nacionais – cujos princípios básicos de funcionamento foram sendo definidos e moldados em algumas grandes etapas das relações internacionais, em Vestfália (1648), em Viena (1815), em Paris (1919 e em San Francisco (1945) – até o advento de um sistema internacional baseado na preeminência do multilateralismo de cunho político. Ao mesmo tempo, no campo econômico, coexistiam grandes impérios e empreendimentos coloniais que sustentaram a dominação europeia sobre os assuntos do mundo durante os últimos cinco séculos. Paralelamente, esses processos de primazia da Europa ocidental – a partir do século XIX complementado pela ascensão dos Estados Unidos – sobre os assuntos do mundo foram sendo complementados por uma nova onda de globalização (a primeira tinha ocorrido nos Descobrimentos, mas logo compartimentada pelos impérios coloniais excludentes), que se acelerou tremendamente na primeira (1750-1830) e na segunda Revolução Industrial (1870-1914), integrando mercados, estabelecendo as grandes linhas de uma economia mundial que ainda permanecem no século XX, a despeito da Grande Guerra (1914-1918) e do advento do socialismo (com uma duração de aproximadamente 70 anos, mas um alcance apenas parcial sobre os grandes vetores da economia mundial). 

O globalismo econômico, de fato mais consolidado, sobretudo quando a ordem desenhada em Bretton Woods alcançou as antigas economias socialistas, conseguiu integrar praticamente todos os continentes e regiões a uma grande divisão mundial do trabalho, passando a definir grandes cadeias de valor e o comércio internacional a partir dos interesses das grandes empresas multinacionais, mas também de ofertantes competitivos em economias menores ao redor do planeta. Não ocorreu, entretanto, nenhum processo de globalismo político – ao contrário do que afirmam as teorias conspiratórias sobre o poder mundial de uma superburocracia global, não eleita –, uma vez que a ONU e suas múltiplas agências continuam dependendo do que decidem os Estados nacionais, sobretudo as grandes potências, jamais de acordo sobre as grandes linhas de um alegado governo global. Alertas e alarmes nesse sentido são simplesmente desprovidos de qualquer fundamentação empírica e são unicamente disseminadas a partir de pequenos grupos e movimentos que entretêm um tipo de crença sem qualquer consistência no plano do funcionamento efetivo da agenda mundial. Os grandes itens da agenda mundial – na área econômica, social, ambiental e no tratamento dos chamados problemas comuns – continuam a ser determinadas pelos Estados mais poderosos e por coalizões flexíveis de grupos de países que convergem em vários desses temas, o que não existe, entretanto, no campo da segurança internacional e no da capacitação militar, que resta exclusivamente baseado em concepções realistas de poder e prestígio internacionais. Basta apenas recordar que o dispositivo da Carta da ONU prevendo uma Comissão Militar dotada de poderes para movimentar forças próprias da ONU, segundo decisões de seu Conselho de Segurança, jamais foi implementado como previsto no texto de San Francisco. Em outros termos, os temores de um governo global, onipotente ao ponto de ameaçar a soberania e a autonomia dos Estados nacionais são altamente exagerados e totalmente infundados.

 

5) Na Europa, é comum que os populistas culpem Bruxelas por tudo. Hoje a direita é contrária a existência da Otan, ONU, Unicef e qualquer entidade global de gestão. Quais seriam as consequências da falência dessas entidades para o mundo.

PRA: As entidades de cunho universalista criadas ao final da Segunda Guerra Mundial são certamente imperfeitas e muitas vezes inoperantes para os fins delineados na própria Carta da ONU e nos estatutos constitutivos de suas diferentes agências: paz e segurança internacional, cooperação para o desenvolvimento de países e regiões mais pobres, ausência de ameaças ao bem-estar de diversos povos, seja por fatores internos (os mais frequentes), seja por pressões externas (como ocorre atualmente na guerra de agressão da Rússia contra a vizinha Ucrânia, que já fez parte dos impérios russo e soviético), ou por desafios ambientais e crimes transnacionais. O mundo ainda é muito desigual, e certamente um maior grau de abertura econômica, de liberalização comercial, de integração das políticas públicas nacionais num sentido convergente com objetivos de prosperidade e bem-estar global, seria muito bem-vindo, na medida em que avança, a despeito de percalços, a globalização econômica. No entanto, ambições nacionais, miopia de dirigentes políticos, corrupção em governos de todos os tipos (democráticos ou não) dificultam a consecução desses objetivos meritórios, que demandariam um amplo acordo político interestatal e uma visão compartilhada quanto à necessidade dessa convergência de políticas, tentativamente implementadas ao longo das últimas décadas em diferentes projetos desenhados e discutidos na ONU, desde sua origem. Depois das metas do milênio – e anteriormente de diversas décadas do desenvolvimento dos países mais pobres – e agora, com os objetivos do desenvolvimento sustentável, governos nacionais e tecnocracia onusiana fazem tentativas de disseminar educação, segurança, promoção do bem-estar para as populações mais frágeis e vários outros indicadores de prosperidade compartilhada, mas o próprio princípio da soberania nacional absoluta, escrupulosamente consolidado e em princípio respeitado na Carta da ONU torna difícil concretizar e disseminar tais objetivos nobres e meritórios. 

O mundo ainda vive sob o domínio dos Estados nacionais, com talvez alguns grandes impérios informais, com um poder incontrastável de determinar as agendas globais, seja pela força de suas economias, seja pela intimidação de seus aparelhos militares. Entre esses impérios informais é possível distinguir o americano (notadamente a partir de 1917 e, em especial, desde 1945), o chinês (praticamente desaparecido durante alguns séculos, mas de volta ao grande jogo geopolítico desde o início desde milênio), o russo (anteriormente estabelecido na vastidão dos territórios sob a dominação czarista dos Romanov, depois novamente refeito sob os setenta anos de jugo soviético, agora tentando renascer numa vertente neoczarista sobre os mesmos antigos territórios da Europa e da Ásia centrais), e possivelmente o europeu, organizado coletivamente sob a forma da União Europeia, depois da derrocada dos antigos impérios coloniais dos países da Europa ocidental. A esses grandes impérios informais – pois que desprovidos de centralização política e de uma governança única, reconhecida como tal –, podem ser alinhadas potências médias, como diversos países do G20, como Índia, Japão, Canadá, Brasil, Indonésia, África do Sul e vários outros. 

Não é certo que todas essas economias, Estados nacionais e agrupamentos regionais possam ser definidos em termos de alinhamento político a uma determinada corrente ou ideologia, mas é possível, sim, identificar democracias de mercado – na América do Norte, na Europa ocidental e representantes esparsos em diversos outros continentes – e alguns grandes e pequenos Estados dominados por regimes autocráticos ou iliberais, como se convencionou chamar aqueles não exatamente caracterizados pela alternância política entre partidos nacionais dispondo de plena liberdade de organização, expressão e atuação. As democracias vêm, inclusive, recuado temporariamente ou parcialmente, sob os golpes de diferentes lideranças populistas que resvalam frequentemente para o autoritarismo. A evolução para regimes plenamente democráticos em todos os continentes, na maioria das regiões do mundo, é um processo lento, nem sempre irreversível, e sempre dependente de crises econômicas, pressões migratórias provenientes de culturas diferentes e sujeitas a constantes ameaças por parte de candidatos a ditadores, abertos ou disfarçados.

O mundo não dispõe de nenhuma garantia de que os direitos humanos e as liberdades democráticas – tais como expressas, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em protocolos democráticos aprovados em escala regional, e em dispositivos da própria Carta da ONU – possam efetivamente se impor com a força do Direito, uma vez que se trata de meras declarações de intenção, sem a compulsoriedade de tratados dotados de meios efetivos de implementação. Daí que o direito da Força ainda continua a ser exercido em diferentes quadrantes do globo, sem que ele possa ser coibido por alguma força supranacional que é simplesmente inexistente. O mundo contemporâneo não é mais tão hobbesiano como ele foi até meados do século XX, mas ele ainda é, e assim será por algum tempo mais, insuficientemente kantiano ou lockeano. A educação cidadã ainda precisa progredir bem mais, em praticamente todos os países do mundo – e os retrocessos podem ocorrer inclusive em países avançados, como nos revela a força de autocratas autoritários nos Estados Unidos e na própria Europa ocidental –, para que os ideais de liberdades, de democracia, de bem-estar, de segurança e de justiça possam ser disseminados de maneira mais resoluta e mais efetiva. 

Exercícios e tentativas de Idealpolitik podem até ser desprezados pelos partidários do realismo cru dos nacionalistas irredutíveis, aqueles que acreditam unicamente na expressão totalmente soberana dos interesses exclusivamente nacionais, mas eles constituem um objetivo sempre meritório no plano das aspirações humanas e sociais. Prefiro acreditar que esse mundo venha a existir algum dia, pois ele corresponde à racionalidade civilizatória, que vem se expandindo cada vez mais, a despeito dos soluços autoritários e destrutivos que se manifestam ocasionalmente. O mundo atual é melhor do que aquele que tivemos em qualquer época passada, e o mundo do futuro será certamente melhor do que o atual.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4136: 26 abril 2022, 7 p.

Emissão “Psicoeducação”, a convite de Vitor Matos de Souza, por via do YouTube, em 27/04/2022, 20hs (link: https://www.youtube.com/channel/UCtGmAFkxO7RzofDE4ROSGYw).