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domingo, 3 de março de 2024

Lições da Ásia para acelerar o crescimento econômico - O Estado de S. Paulo

Lições da Ásia para acelerar o crescimento econômico 

O Estado de S. Paulo, 3/03/2024

https://www.estadao.com.br/economia/as-licoes-da-asia-para-o-brasil-reduzir-a-miseria-em-5-graficos/




Nas últimas décadas, os países asiáticos alcançaram um resultado extraordinário na redução da pobreza extrema, com impacto profundo em todo o mundo. Como mostrou a série de reportagens Os caminhos da prosperidade, publicada pelo Estadão, a Ásia tirou mais de um bilhão de pessoas da miséria em apenas vinte anos, de acordo com o Banco Mundial.

A queda no número de pessoas vivendo em situação de pobreza extrema – que engloba quem tem renda per capita inferior a US$ 2,15 (R$ 10,75) por dia em valores de 2017, pela paridade do poder de compra (PPP) – foi a maior, no menor prazo, em todos os tempos. E o mais impressionante é que isso aconteceu num período em que o número de habitantes da região teve um aumento de 46,9%, de 3,2 bilhões para 4,7 bilhões.

Em 30 anos, a renda per capita ajustada pelo poder de compra deu um salto. Nos países da Ásia Meridional, ela se multiplicou por seis, de US$ 1.249, em média, em 1990, para US$ 7.824, em 2022, em valores correntes. Na Ásia Oriental e na região do Pacífico, a renda per capita cresceu quase sete vezes, de US$ 3.250 para US$ 22.422. Enquanto isso, no Brasil, o crescimento foi de 2,7 vezes, de US$ 6.440 para US$ 17.270 – menos até do que o aumento ocorrido na média mundial, de 3,7 vezes, no mesmo período.

Afinal, qual o segredo da Ásia para ter reduzido de forma notável a miséria num prazo tão curto? O que os países asiáticos fizeram de diferente para chegar lá? Que lições o Brasil – cuja taxa de pobreza extrema aumentou de 3,3% para 5,8% da população entre 2014 e 2021, conforme o Banco Mundial, atingindo 12,5 milhões de pessoas – pode tirar do sucesso alcançado pela região na diminuição da miséria?

Para responder a estas perguntas, o Estadão produziu cinco gráficos que permitem a visualização imediata de alguns dos fatores que levaram a Ásia – mais especificamente os países localizados na Ásia Meridional e Oriental e na chamada região do Pacífico, onde a evolução foi mais acentuada – a reduzir a pobreza extrema em quase 90% desde 1990.

Embora não exista, segundo os analistas, o que se poderia chamar de um “modelo asiático” para explicar a diminuição da miséria na Ásia nas últimas décadas, é possível apontar alguns caminhos trilhados por países da região – que, em maior ou menor grau, conforme o caso, levaram a este resultado fenomenal. Confira a seguir quais são eles e como o Brasil se coloca em relação a cada ponto.


1. Crescimento econômico acelerado

O economista Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, não deixa margem para dúvidas ao falar sobre o impacto do crescimento na redução da miséria. “Nada funciona mais que o crescimento econômico para as sociedades melhorarem as condições de vida de seus integrantes, incluindo os mais desfavorecidos”, afirma Rodrik, no livro Uma economia, muitas receitas: globalização, instituições e crescimento econômico.

Considerando o que ele diz, os países asiáticos têm sido imbatíveis. Entre 1960 e 2020, a Ásia foi a região que teve o maior crescimento médio por ano do mundo, como mostra o gráfico acima – bem superior ao do Brasil, em especial nas últimas décadas, justamente o período em que os países asiáticos mais cresceram.

Enquanto os países da Ásia Meridional cresceram, em média, 5,6% ao ano entre 1960 e 2021, e os da Ásia Oriental e da Região do Pacífico, 4,9%, o Brasil teve um crescimento anual de 3,9%. Na média, o crescimento do País nos últimos 60 anos até foi superior ao de outras regiões do mundo, graças principalmente ao resultado obtido entre os anos 1960 e 1980. Mas, de 1981 a 2010, a economia perdeu tração e a média foi de apenas 2,1% ao ano. E, de 2011 a 2021, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) foi de apenas 0,7%, em média, ao ano.

Resumindo: sem turbinar o crescimento econômico, o Brasil dificilmente conseguirá reduzir a miséria e melhorar a qualidade de vida da população, em especial dos mais vulneráveis, como a Ásia conseguiu.


2. Liberdade econômica 

Nas últimas décadas, quando o crescimento ganhou velocidade na região, a maioria dos países asiáticos melhorou sua colocação no principal ranking global de liberdade econômica, produzido pela Heritage Foundation, dos Estados Unidos, favorecendo o desenvolvimento e a redução da miséria.

O Vietnã, por exemplo, que era um país fechado aos investimentos estrangeiros e adotava o sistema de planejamento centralizado até meados dos anos 1980, conforme a orientação do Partido Comunista, aderiu à economia de mercado.

Com isso, o Vietnã, que andava de lado ou até de marcha à ré até então, cresceu uma média de 6,7% ao ano de 1990 a 2022, conforme dados do Banco Mundial, e deu um salto em sua posição na lista dos países com maior liberdade econômica. Nos últimos dez anos, o Vietnã subiu 89 posições no ranking, saindo da 148ª colocação para a 59ª, entre 176 países. Só na lista de 2024, divulgada recentemente, o país subiu 13 posições em relação ao ano passado.

A Indonésia, que também liberalizou de forma considerável sua economia, ganhou 52 posições na lista no mesmo período, passando de 105ª colocada no ranking para 53ª. Embora ainda mantenha o protagonismo do Estado em certas atividades, o país teve um crescimento do PIB um pouco mais baixo que o do Vietnã, de 4,7% ao ano, em média, entre 1990 e 2022 – mas ainda ficou bem acima da media mundial, de 2,9%.

O Brasil, enquanto isso, continuou como um país majoritariamente não livre, ocupando uma posição vexatória na lista. De 2015 até 2024, o País caiu seis posições no ranking, do 118º lugar para o 124º, ficando bem abaixo do Vietnã, da Indonésia e de outros países emergentes de alto crescimento na Ásia, como Bangladesh e Cambodja. O crescimento médio do Brasil entre 1990 e 2022 foi de apenas 2,1% ao ano, três vezes menor que o do Vietnã e duas vezes menor que o da Indonésia.

A China é a exceção que confirma a regra. Mesmo tendo liberalizado sua economia no fim dos anos 1970 e crescido 9% ao ano, em média, desde 1990, um recorde mundial, a China ocupa apenas a 151º colocação no ranking dos países mais livres na economia, perdendo 12 posições de 2023 para 2024.

Apesar da liberdade existente no comércio internacional e na área monetária, além da relativa liberdade que há nos negócios e na área tributária, de acordo com o levantamento, a China é considerada como uma economia reprimida no direito de propriedade, na liberdade de investimento, na saúde fiscal e na efetividade da Justiça, entre outras áreas, o que acaba afetando sua avaliação final.

“A liderança do Partido Comunista da China detém o controle direto da atividade econômica”, diz o relatório de 2024 da pesquisa da Heritage Foundation. “O quadro regulatório permanece complexo e desigual. As regras arbitrárias e frequentemente revisadas para os negócios e a legislação trabalhista submetem o setor privado aos caprichos do governo comunista.”

Em geral, porém, a liberdade econômica tem uma relação direta com o crescimento e leva à redução da miséria e à melhoria da qualidade de vida da população. A tendência normalmente é de os países com a economia mais reprimida terem menor probabilidade de obter sucesso na redução da pobreza.

“As economias (asiáticas) começaram a crescer mais rápido quando deixaram de lado as políticas de intervenção do Estado e focaram no mercado, enquanto os governos continuaram a desempenhar um papel proativo”, afirma Takehiko Nakao, ex-presidente executivo e do Desenvolvimento da Ásia (ADB, na sigla em inglês), no prefácio do livro A viagem da Ásia para a prosperidade, publicado pela instituição em 2020.

Segundo Nakao, a política de substituição de importações, ancorada no protecionismo, na falta de concorrência e em taxas de câmbio sobrevalorizadas, que foi largamente adotada por países em desenvolvimento no pós-guerra – inclusive no Brasil, onde está sendo ressuscitada –, levou a “sérias ineficiências” e a crises na balança de pagamentos, especialmente na América Latina.


3. Abertura comercial e integração na economia global

Para crescer em progressão geométrica, gerando milhões de empregos e melhorando a renda dos mais pobres, os países asiáticos – muitos deles fechados ao exterior até três ou quatro décadas atrás – deram uma guinada radical e procuraram se integrar à economia global.

Apesar de alguns terem crescido em ritmo acelerado mesmo com a manutenção de certas restrições às importações, como Indonésia e Bangladesh, os que obtiveram os melhores resultados foram aqueles que abriram para valer o comércio exterior, como Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura e, numa segunda onda, a China, e mais recentemente o Vietnã.

Ao se abrirem para o mundo, promovendo uma redução substancial nas tarifas incidentes sobre as importações e multiplicando as exportações, especialmente de manufaturados e de serviços de alta tecnologia, eles alavancaram o crescimento econômico. A participação de muitos países asiáticos em acordos de livre comércio também deu uma grande contribuição para dinamizar as economias locais.

O Brasil, ao contrário, continua a ser um país relativamente fechado, cuja participação em acordos de livre comércio resume-se ao Mercosul – e, mesmo assim, com diversas restrições nas trocas entre os países do bloco. O acordo do Mercosul com a União Europeia, que estava bem encaminhado, acabou “fazendo água” porque o governo Lula queria, entre outras reivindicações, restringir a participação das empresas estrangeiras nas compras governamentais.

Em nome da proteção à indústria nacional, o Brasil ainda mantém elevadas tarifas sobre importações, encarecendo a modernização da produção, que permitiria ganhos de eficiência e produtividade, e restringindo a concorrência com os produtos importados, em prejuízo dos consumidores – sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.

Na média, as importações dos países da Ásia Oriental e da Região do Pacífico representam hoje 28,8% do PIB, de acordo com o Banco Mundial. Na Ásia Meridional, as importações chegam a 25,9% do PIB. Em ambos os casos, ainda é um volume inferior à média global, de 30,5% do PIB, mas as duas regiões já estão quase chegando lá.

No Brasil, apesar de as importações terem crescido de 7% para 19,3% do PIB entre 2000 e 2022, continuam bem abaixo das médias asiáticas e internacional, dificultando o desenvolvimento do País e a redução da pobreza.

As exportações brasileiras até ganharam corpo nas últimas décadas e hoje estão mais ou menos no nível da Ásia Meridional, na faixa de 20% do PIB. No entanto, isso ocorreu principalmente em razão da explosão das vendas de commodities agrícolas e minerais ao exterior e não pela integração do País na cadeia global de suprimentos ou pela venda de produtos manufaturados e de maior valor agregado.

Agora, mesmo com o crescimento verificado nos últimos 20 anos, o volume de exportações do Brasil ainda está bem abaixo da média mundial e dos volumes negociados pela Ásia Oriental, o que mostra o enorme espaço ainda existente para o País ampliar sua fatia no comércio exterior e sua integração na economia mundial, com efeitos positivos no desenvolvimento e na diminuição da miséria.


4. Atração de investimentos estrangeiros 

Nos últimos 30 anos, o ingresso de investimentos estrangeiros contribuiu de forma decisiva para alavancar o crescimento econômico da Ásia, gerando emprego e renda, principalmente nos países que alcançaram a maior redução na pobreza. Embora demonizados como uma forma de “imperialismo” por partidos e militantes anticapitalistas, os investimentos estrangeiros se tornaram fundamentais para dinamizar a economia até em países comunistas como o Vietnã e a própria China.

Apesar de classificada como um país reprimido na atração de investimentos pela Heritage Foundation, a China conseguiu atrair um volume espetacular de dólares desde a liberalização da economia, nos anos 1970. Segundo os números da Unctad (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), o estoque de investimentos estrangeiros no país passou de 5,24% do PIB em 1990 para 21,2% em 2022.

Em termos absolutos, o estoque aumentou de US$ 249 bilhões em valores correntes para US$ 3,8 trilhões, 15 vezes mais, e o fluxo continua forte. Só em 2022, ingressaram US$ 189,1 bilhões em aportes externos na China – 2,5 vezes mais do que no Brasil, mesmo com as empresas estrangeiras buscando novos pontos de produção nos últimos anos, para diversificar suas bases por um número maior de países.

A Ásia Meridional, que só mais recentemente mudou de atitude em relação ao capital estrangeiro, ainda tem um estoque relativamente baixo de investimentos externos, equivalente a 13,1% do PIB, enquanto no Sudeste Asiático como um todo o estoque chega a 99,3% do PIB, segundo a Unctad, e a 98,2% no mundo.

No Brasil, embora o estoque de investimentos estrangeiros, de 43,6% do PIB, seja bem maior do que o da Ásia Meridional, ainda representa mais ou menos a metade do volume do Sudeste Asiático e do estoque mundial. Além disso, o aumento do estoque de capital externo no País ficou em 107,6% desde 2000, bem abaixo dos 211,9% da Ásia Meridional, dos 158,8% da Ásia Oriental e dos 142,2% do Sudeste Asiático, de acordo com a Unctad – o que ajuda a explicar o crescimento mais acelerado dos países da Ásia, que criou condições para a redução da miséria na região.


5. Investimento em infraestrutura e máquinas

Além da liberalização da economia, da abertura comercial e do ingresso de capital estrangeiro em grande escala, os investimentos em infraestrutura, na construção civil e em máquinas e equipamentos puxaram o crescimento econômico asiático. O alto volume de investimentos na região também deu uma contribuição relevante para o aumento da produtividade, a modernização da produção e a melhora nas condições de vida da população, com avanços nos transportes, no acesso a energia e no saneamento básico, entre outras áreas.

Na Ásia Oriental e na Região do Pacífico, que inclui a China, onde os investimentos em obras de infraestrutura e na modernização da produção foram gigantescos nas últimas décadas, a taxa de investimento chegou a 35% do PIB em 2022, quase dez pontos acima da média mundial, de 26% do PIB. Na Ásia Meridional, a taxa alcançou 28% do PIB, também acima da média mundial.

No Brasil, onde os economistas costumam dizer que seria preciso uma taxa de investimento de pelo menos 25% do PIB ao ano para o País melhorar sua infraestrutura e modernizar sua produção, com ganhos de produtividade e eficiência, a taxa não passou de 19% em 2022 – e, ainda assim, foi a maior desde 2014. Em 2023, no primeiro ano do governo Lula 3, o volume de investimentos voltou a cair, para 16,5% do PIB. Isso explica, em boa medida, o baixo crescimento do Brasil nos últimos anos.

Em alguns países asiáticos, como a China, a Indonésia e Bangladesh, o Estado ainda responde por boa parte dos investimentos em infraestrutura. Tal estratégia contribui para gerar emprego e renda e turbinar o crescimento econômico, mas quase sempre leva a uma deterioração significativa nas contas públicas e acaba tendo impacto negativo na economia mais adiante.

E é este o caminho que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quer seguir mais uma vez no Brasil, com o lançamento de uma nova versão PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), adotado em gestões anteriores do PT, fortemente ancorado em investimentos de empresas estatais, financiamentos subsidiados de bancos públicos e em obras realizadas diretamente pelo governo federal.

Não dá para minimizar, porém, o papel dos investimentos privados nos resultados alcançados pela Ásia. A maioria dos estudos sobre o desenvolvimento econômico e a redução da miséria (na região) se concentra nas políticas macroeconômicas”, afirma o pesquisador Scott Paul Hipsher, na publicação O papel do setor privado na redução da pobreza na Ásia. “Mas eles dependem tanto das decisões microeconômicas tomadas pelas empresas privadas quanto das decisões macroeconômicas tomadas pelos governos.”

No Brasil, os dados mostram o quanto o protagonismo do setor privado é relevante para alavancar os investimentos, apesar de o debate sobre o tema se concentrar nos aportes governamentais. Em 2022, o crescimento na taxa de investimento se deu exatamente quando as operações do governo federal atingiram um dos menores níveis em todos os tempos, de 0,78% do PIB, incluindo os aportes das estatais, em razão do espaço reduzido existente no Orçamento e da necessidade de manter as contas públicas sob controle.

Considerando só os investimentos diretos do governo, a taxa foi de apenas 0,26%, patamar semelhante ao de 2021, o menor em 17 anos. Mas, graças ao aumento dos investimentos privados, estimulados pela manutenção das regras do jogo no mundo dos negócios e a redução das alíquotas de importação e dos impostos, que agora estão sendo revertidas, a taxa chegou aos 19% mencionados acima, voltando ao nível de oito anos antes.


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O dever fundamental de pagar impostos, de Casalta Nabais - Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy (Conjur)

Mais um Embargo Cultural de Arnaldo Godoy, chagando, se já não alcançou, seu 500o. embargo, sempre falando de livros e da cultura em geral.

 

O dever fundamental de pagar impostos, de Casalta Nabais

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Conjur, 3/03/2024

https://www.conjur.com.br/2024-mar-03/o-dever-fundamental-de-pagar-impostos-de-casalta-nabais/

 

Já se vão alguns anos, eu estava no Recife, participando de um Congresso de Direito Tributário, então muito tradicional. Mary Elbe Queroz e Heleno Taveira Torres estavam à frente do evento. A palestra de Heleno foi memorável. No elevador, encontrei-me com um autor português, jurista convidado, que eu já admirava, que já havia lido, e cuja obra apreciava. Era José Casalta Nabais, professor em Coimbra. Não podia perder a oportunidade de ouvi-lo. Puxei conversa. Fiz referência ao sucesso que sua tese de doutoramento fazia entre nós. Muito espontaneamente, ele me respondeu que o título do livro era mal-entendido[1]. Fiquei intrigado.

O título, segundo Nabais, não se resumia em “O dever fundamental de pagar impostos”. Segundo o autor, o livro deveria ser recepcionado como “O dever fundamental de pagar impostos, de acordo com a lei”. Ele enfatizou a vírgula, pronunciando em voz alta o sinal de pontuação, gesticulando. Certamente, o dever de pagar impostos é um dever, fundamental, o que não significa que o Estado possa cobrar impostos como bem entenda. Há limites. E é justamente esse o tema central desse texto canônico da literatura jurídico-tributária de expressão portuguesa.

Trata-se de um livro escrito com profunda erudição, redigido como tese definitiva. Nabais enfrentava o tema da tributação sobre a ótica de “deveres fundamentais”. Essa opção metodológica representava uma virada de chave na literatura do direito público, então empolgada com “direitos fundamentais”. Só se falava de direitos. Não se falava de deveres. Nabais mudou a perspectiva.

Na parte I há capítulo que cuida de um efetivo regime dos deveres fundamentais. O autor tratava de um regime geral, de sua aparente inaplicabilidade direta, de seu significado normativo, bem como das relações entre os deveres fundamentais e o legislador, a par da revisão constitucional, em face dos deveres fundamentais, que é o núcleo conceitual do livro.

De fato, segundo Nabais, “o tratamento constitucional e dogmático dos deveres fundamentais tem sido descurado nas democracias contemporâneas”. O autor chamava a atenção para o fato (indiscutível) de que a agenda dos direitos fundamentais contava com uma sólida construção dogmática, o que não se podia afirmar em relação aos deveres fundamentais. Nabais rejeitava “os extremismos de um liberalismo que só reconhece direitos e esquece a reponsabilidade comunitária dos indivíduos”. O tema é de permanente atualidade.

Nabais discutia os fundamentos da tributação. O Direito Tributário é o ramo do Direito Público que se ocupa da arrecadação de recursos com os quais o Estado atende suas despesas. Trata-se de conjunto sistematizado de regras e princípios que orienta a atividade financeira do Estado, com fortes reflexos na organização da economia e da vida dos cidadãos.

John Marshall, juiz da Suprema Corte norte-americana, afirmou, em julgado célebre (de 1819) que o poder de tributar envolvia, necessariamente, o poder de destruir. Por outro lado, Oliver Wendell Holmes Jr., também juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, afirmava (em 1927) que o pagamento de tributos o tornava feliz, porque era o preço que pagava pela vida civilizada. Não sei. Tenho dúvidas. Essa tensão, que opõe a organização da vida privada à necessidade de recursos, por parte do Estado, é um dos pontos centrais da discussão que Nabais apresentava.

O Direito Tributário tem como objeto central a construção conceitual das várias modalidades tributárias, bem como os arranjos institucionais que organizam as exigências fiscais. Radica no Direito Constitucional, de onde colhe seus princípios norteadores e suas linhas gerais. As normas de direito tributário são de natureza cogente. O Direito Tributário cuida da instituição, da arrecadação e da fiscalização das várias espécies tributárias. A justificação da tributação e a discussão acerca da justiça tributária é assunto para a Ciência das Finanças. Esses postulados são incontornáveis.

A tributação é assunto constante na história dos povos. Ainda que não se possa afirmar que houve um modelo tributário racionalmente organizado no passado, há evidências de que civilizações que nos antecederam se preocuparam seriamente com o problema da tributação.

Quais são os fundamentos da tributação nas sociedades contemporâneas? Em que extensão se revelam como obrigações (deveres) sem as quais não se podem fruir direitos? Nabais propõe que há uma categoria jurídico-constitucional própria para os deveres fundamentais, que integram, por uma razão muito mais do que óbvia, os direitos, também fundamentais. É que esses (direitos) não se realizam sem aqueles (deveres).

Para Nabais, deveres fundamentais também qualificam a soberania do Estado, que radica na dignidade da pessoa humana. Os deveres fundamentais submetem-se “ao princípio da tipicidade ou da lista constitucional”, revelando-se (na prática) na esfera de seus destinatários. Mencionados deveres fundamentais, prosseguia o Professor, contam com uma estrutura externa (que radica em várias relações jurídicas) e com uma estrutura interna (que é seu próprio conteúdo).

Os deveres fundamentais, continua Nabais em seu livro, são diretamente ligados à realização de valores que a comunidade escolheu, e que de alguma forma se encontram constitucionalizados. No caso de Portugal, os deveres fundamentais também se destinam a estrangeiros e a apátridas, premissa que também vale para a realidade empírica brasileira. Os deveres fundamentais afetam também as pessoas jurídicas, que Nabais nomina de pessoas coletivas.

O que chama a atenção é que Nabais vincula os deveres fundamentais aos direitos fundamentais, no sentido de que ambas as expressões qualificam o estatuto constitucional dos indivíduos. Intui-se, assim, que não há como se usufruir de direitos fundamentais sem que se tenha a necessária concretude para tal. Isto é, os direitos somente podem ser usufruídos se há financiamento.

Pode-se perceber, nessa linha, alguma semelhança com o pensamento de Stephen Holmes e Cass Sunstein, em livro que vincula a tributação ao exercício de direitos. O argumento central do livro “Os Custos dos Direitos- Por que a liberdade depende da tributação “consiste na afirmação de que direitos custam dinheiro; é que direitos não podem ser protegidos sem apoio e fundos públicos.

Holmes e Sunstein tratam dos custos enquanto custos orçamentários e de direitos como interesses que podem ser protegidos por indivíduos ou grupos mediante o uso de instrumentos governamentais. Direitos somente existiriam quando efetivamente passíveis de proteção. E a proteção se faz com recursos que o Estado obtém da sociedade. Para simplificar: tem-se na realidade uma justificativa para a tributação, que se reconheceria como legítima.

A lógica de Nabais aproxima-se da lógica dos autores norte-americanos acima citados, com a diferença de que o autor português se preocupa com os limites da extração fiscal, que devem ser fixados em lei. Vale dizer, se os direitos fundamentais contam com um delineamento constitucional objetivo, o outro lado da relação, os deveres fundamentais, de igual modo, escora-se com igual razão na lei. Não há como se fixar um dever fundamental de pagamento de impostos sem que se operacionalize essa obrigação dentro dos exatos limites da lei.

Há um dever fundamental de se pagar impostos, como condição de exercício de direitos fundamentais na vida social. Estes dependem daquele. O que os equipara – direitos e deveres – é a fixação normativa, de índole constitucional. O dever de pagar impostos é um dever fundamental, cujo exercício (mandatório) é limitado pela lei. É essa, na minha compreensão, o “lead” do livro de Casalta Nabais, um clássico, publicado pela Almedina.

[1] Dedico essa resenha, em forma de ensaio, aos colegas Paulo Caliendo, Luis Alberto Reichelt e Édison Porto, com quem participei na banca de mestrado de Edimilson Cardias Rosa, também grande colega, autor de belíssima tese sobre economia comportamental e recolhimento de tributos, ocasião em que a contribuição de Nabais foi realçada.

 

 

 

Livro: Métodos da Historiografia do Direito contemporânea: olhares cruzados entre a Bélgica e o Brasil - Georges Martin, Arno Dal Ri Júnior

Um compêndio excepcional para os estudiosos do Direito, uma obra única no seu gênero, pelo menos no Brasil, graças ao trabalho primoroso do grande scholar do Direito. prof. Arno Dal Ri, e do seu colega belga Georges Martin.



Sumário da obra: 




 




sábado, 2 de março de 2024

Embaixador Carlos Henrique Cardim visita sede da ABI-Bahia, para falar sobre Rui Barbosa (ABI-Bahia)

Embaixador Carlos Henrique Cardim visita sede da ABI

Biógrafo de Ruy Barbosa, o diplomata vai participar da pré-estreia do filme A Voz de Ruy, na próxima segunda (4)

Associação Baiana de Imprensa, 1 de março de 2024


https://abi-bahia.org.br/embaixador-carlos-henrique-cardim-visita-sede-da-abi/

 

Nos 101 anos da morte de Ruy Barbosa, a Associação Bahiana de Imprensa recebeu em sua sede, nesta sexta-feira (1º de março), o diplomata e professor Carlos Henrique Cardim, autor da biografia “A raiz das coisas – Rui Barbosa: o Brasil no mundo”. O embaixador é uma das personalidades presentes no filme A Voz de Ruy, cujo lançamento exclusivo para convidados acontece na próxima segunda-feira (4), no Cine Glauber Rocha, em Salvador.


Conduzido pelo jornalista Ernesto Marques, presidente da ABI, e pelo diretor de Cultura da instituição, Nelson Cadena, o tour no Edifício Ranulfo Oliveira foi acompanhado por outros diretores, como o 1º vice-presidente Luís Guilherme Pontes Tavares, a 2ª vice-presidente Suely Temporal, a 1ª secretária Amália Casal e o conselheiro consultivo Joaci Góes, que também ocupa a presidência do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

O professor Cardim recebeu do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA), Inaldo Araújo, publicações produzidas pelo Tribunal no âmbito do centenário de morte de Ruy, no ano passado.

Ao lado da advogada Rosa Maria Brochado, sua esposa e companheira nas aventuras das últimas três décadas, o embaixador traçou um breve panorama da história da diplomacia brasileira, fez um esboço sobre o papel de Ruy Barbosa no quadro político do país, desde o início da República, que marcou a entrada do Brasil na política mundial e definiu seu lugar na Primeira Guerra Mundial, sua relação com o Barão do Rio Branco e outras histórias. “Ruy legou ao Brasil uma herança que interferiu diretamente nas relações internacionais até hoje”, pontuou o sociólogo.⁠

“A principal característica dele era a coragem. O Brasil tinha muita gente culta, de memória. Agora, coragem não é para qualquer um”, analisou Cardim.


Uma rica descrição da personalidade de Ruy – e sua importância – pode ser conferida nas páginas de A raiz das coisas, publicado originalmente em 2007 e que ganhou nova edição revisada e ampliada. A obra organiza o legado ruiano em matéria de relações internacionais, consolidando referências e produzindo um roteiro da documentação e bibliografia sobre o “Águia de Haia”. A publicação estará disponível já a partir da próxima semana, na Livraria Escariz do Shopping Barra (L2 Central).

“Cardim é um amigo que Ruy Barbosa nos deu. Eu havia ficado muito impressionado com o livro e para minha surpresa nos conhecemos na Fundação Casa de Rui. Ele prolongou sua estadia no Rio para conversarmos sobre a Casa da Palavra Ruy Barbosa, porque está muito entusiasmado com o projeto”, contou Ernesto Marques. O filme e a peleja pela reabertura do museu têm promovido bons encontros. Tem sido uma experiência enriquecedora.”

Carlos Cardim concluiu, em 1975, o curso de Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Tornou-se doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo em 1994. É professor da Universidade de Brasília, sendo fundador do Departamento de Relações Internacionais e Ciência Política, ex-presidente do Conselho Editorial da Editora da UnB (1978-1983).

Ingressou na carreira de diplomata após ter concluído o curso de preparação do Instituto Rio Branco em 1976. Ascendeu a Conselheiro em 1994. É embaixador (MRE) e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).


A Voz de Ruy

O filme A Voz de Ruy tem o patrocínio do Governo do Estado da Bahia, via Secretarias da Cultura e da Fazenda, através do Programa Estadual de Incentivo ao Patrocínio Cultural- Fazcultura e ACELENÉ uma produção da DPE Entretenimento e Giros Filmes, com apoio da Associação Bahiana de Imprensa (ABI), uma das instituições dedicadas a preservar a memória de Ruy no estado, por meio da Casa da Palavra Ruy Barbosa e seus acervos raros.

O evento de lançamento tem o apoio do Instituto Rui Barbosa-IRB, Caixa de Assistência dos Advogados da Bahia-CAAB, OAB/BA e Sebrae.

Com direção de Fernanda Miranda e Pedro Sprejer e direção geral de Belisário Franca, o longa exibe cenas históricas e bastidores da vida do baiano, na sua trajetória como jornalista, político, jurista, diplomata, na Bahia, no Rio de Janeiro e no exterior, através de depoimentos de especialistas na vida e obra de Ruy, ilustrados com imagens da Cinemateca Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, acervo do documentarista Isaac Rozemberg e fotos e documentos da Fundação Casa de Rui Barbosa, ABI, Biblioteca Nacional e Arquivo Nacional.

“A minha expectativa é de termos uma noite muito rica. Vamos reunir pessoas da política, da imprensa, do audiovisual, pessoas que têm apreço pela história e por memória”, destacou o presidente da ABI. “Para nós, é uma satisfação dar uma pequena contribuição para conhecermos mais o personagem e o que ele fez mais de cem anos atrás”, concluiu o dirigente.

 

Em 'Zona de Interesse', o Holocausto visto do quintal - Filme premiado - Jerônimo Teixeira Brazil Journal

 Em 'Zona de Interesse', o Holocausto visto do quintal

Jerônimo Teixeira

Brazil Journal, 24/02/2024

https://braziljournal.com/em-zona-de-interesse-o-holocausto-visto-do-quintal/

 

Rudolf e Hedwig Höss recebem amigos em casa. Em plano amplo, a cena mostra o anfitrião, de costas, em um casual terno branco, observando as crianças que brincam na piscina. Sua mulher está adiante, perto da estufa de plantas, com o filho bebê no colo. Logo acima do telhado da estufa, uma linha de fumaça branca começa a se formar, da direita para a esquerda. É mais um trem que chega, carregando prisioneiros para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia ocupada pelos nazistas – uma usina de extermínio que produziu mais de um milhão de mortos, a maior parte deles judeus. Rudolf Höss, oficial da SS, foi seu principal comandante. Produção inglesa com elenco alemão que ganhou o Grand Prix em Cannes no ano passado e concorre a cinco Oscars, inclusive o de melhor filme, Zona de Interesse (The Zone of Interest), em cartaz nos cinemas, apresenta o genocídio dos judeus sob um ângulo raro e desconcertante. O espectador jamais verá os passageiros do trem descerem à plataforma, onde passarão pela triagem que separa os aptos a trabalhar dos velhos, crianças e doentes que vão direto para a câmara de gás. Os internos do campo quase não aparecem em cena – uma exceção é o soturno jardineiro que traz cinza dos crematórios para adubar as flores da senhora Höss. O filme oferece apenas vislumbres do que acontece do outro lado do muro com arame farpado que se vê do quintal da família Höss, constituída pelo casal e seus cinco filhos. O horror do Holocausto, no entanto, se torna mais presente e opressivo porque o filme o apresenta da perspectiva dos algozes. E não há deleite sádico nem fervor fanático no comportamento deles, apenas indiferença e o mais completo embotamento moral. Vivida pela ótima Sandra Hüller – que concorre ao Oscar por outro filme, Anatomia de uma Queda – Hedwig Höss gosta das mordomias a que tem acesso por ser mulher do comandante do campo de concentração. Vemos, por exemplo, ela experimentar o casaco de pele espoliado de uma prisioneira – e ainda usar o batom que encontra no bolso. É uma cena sem diálogo, que extrai significados tenebrosos de um gesto trivial que tantas mulheres fazem em frente ao espelho. Hedwig tem especial orgulho da confortável casa da família, com horta, jardim, piscina, piano e empregadas polonesas. Do quintal, ouvem-se ordens berradas em alemão, gritos de dor, tiros, mas nada disso incomoda os moradores. Para eles, é ruído branco, como o barulho do tráfego para quem mora em uma rua movimentada. Christian Friedel também compõe seu personagem de forma excepcional. É um pai devotado que leva a prole para passeios pela floresta e lê a história de João e Maria para a filha que sofre de sonambulismo. Ao mesmo tempo, é um diligente funcionário da indústria da morte, que discute detalhes técnicos dos fornos crematórios com os fabricantes (o forno em que a bruxa de João e Maria é queimada viva ganha uma ressonância sinistra aqui). Promovido a um cargo de supervisão na Alemanha – para revolta de sua mulher, que bate o pé para continuar ocupando sua bucólica casa em Auschwitz – ele monta um plano para transferir os judeus da Hungria para os campos. Dirigido e roteirizado pelo inglês Jonathan Glazer, o filme é livremente baseado em A Zona de Influência, excelente romance do também inglês Martin Amis, que morreu no ano passado (o título não é explicado no filme: “zona de interesse” era a área restrita ao redor do campo de concentração). No livro, porém, o comandante de Auschwitz era um personagem fictício chamado Paul Doll, e sua mulher, Hannah, tinha um caso com outro oficial da SS. Glazer dispensou o adultério. Também cortou personagens importantes como Szmul, o triste judeu polonês que faz parte dos Sonderkommando, grupos de prisioneiros forçados a colaborar com seus carrascos em tarefas degradantes, como arrancar os dentes de ouro dos mortos (no filme, porém, o filho mais velho dos Höss tem uma latinha onde guarda dentes de ouro). Reduzido a seus elementos básicos e com personagens mais próximos às figuras históricas, Zona de Interesse é uma exposição contundente da natureza do nazismo. É um filme de andamento lento, em que na aparência pouca coisa acontece, mas que abala a ilusão confortadora de que os nazistas afinal eram aberrações, pontos fora da curva na história da humanidade. Fatalmente, o filme evoca a “banalidade do mal” de que Hannah Arendt falou em Eichmann em Jerusalém. A certa altura dessa obra, a filósofa alemã fala do estado de auto-engano em que os alemães viveram durante o nazismo. Em um dos grandes momentos de Zona de Interesse, o véu do auto-engano rompe-se para uma visitante na casa dos Höss, quando ela vê as chamas do crematório erguerem-se na noite escura. É uma das poucas personagens do filme que compartilha a perturbação com que saímos do cinema.

Leia mais em https://braziljournal.com/em-zona-de-interesse-o-holocausto-visto-do-quintal/ .

 


Lula quer todas as empresas - Carlos Alberto Sardenberg (O Globo)

Lula quer todas as empresas Carlos Alberto Sardenberg, O Globo (02/03/2024) O Estado regula a atividade econômica como um todo, não esta ou aquela empresa. Concede licenças, fiscaliza, cobra impostos Já aconteceu uma vez. Lula conseguiu derrubar um presidente da Vale, Roger Agnelli, porque ele cometera a ousadia de encomendar navios de grande porte na China. Isso foi em 2011, quando Dilma já estava no Planalto, mas Lula cultivava uma longa bronca com o executivo. Este tocava a Vale — imaginem! — como se fosse uma empresa privada. Como hoje, Lula queria uma companhia que se alinhasse com os planos do governo. Que comprasse insumos no mercado nacional, mesmo que fossem piores e mais caros, e que partisse para a produção de aço, o que desviaria recursos e energia do negócio principal, a mineração. Tem mais: o governo petista estava empenhado em mais uma tentativa de construir navios no Brasil e contava com a Vale como compradora fiel. E Agnelli adquiriu não um, mas três enormes navios em estaleiros chineses, de capacidade internacionalmente reconhecida. Se tivesse esperado pela indústria brasileira, a Vale estaria até hoje — desculpem — a ver navios. Na ocasião, Lula e Dilma apelaram para o então presidente do Bradesco, Lázaro Brandão, que indicara Agnelli. E assim caiu o executivo que, em dez anos, transformara a Vale numa multinacional, a segunda mineradora global, multiplicando o lucro por dez. A Vale estava privatizada desde 1997, mas, como se viu, ainda estava à mercê de ações oportunistas do governo de plantão. Por isso, em 2021, depois de um longo processo, os acionistas transformaram a Vale numa corporation — uma sociedade anônima genuína, sem blocos de controle. Para Lula, não mudou nada. Ele continua achando que a empresa precisa “estar de acordo com aquilo que é o pensamento de desenvolvimento do governo brasileiro”. Não apenas a Vale, mas todas as empresas brasileiras, disse o presidente. Trata-se de uma barbaridade. As empresas se relacionam com o Estado, não com os governos. O Estado regula a atividade econômica como um todo, não esta ou aquela empresa. Concede licenças, fiscaliza, cobra impostos e royalties. Governos têm planos partidários, que mudam a cada eleição. Lula queria que a Vale fabricasse aço. Imaginem que a empresa topasse a determinação e investisse pesado nesse negócio. Aí troca o governo, e este decide que o investimento prioritário não é fabricar aço, mas produzir baterias de carros. A empresa teria de se desfazer das usinas e começar tudo de novo. Dirão: então para que serve ser governo, se não manda nada? Manda. O governo pode estimular um setor, concedendo subsídios para a indústria automobilística, mas não pode dizer às montadoras que carros devem produzir. Mais: nem pode obrigar as empresas a tomar os subsídios. Lembram a velha história? Você pode levar o cavalo até a beira do lago, mas não consegue obrigá-lo a beber água. As ações da Vale estão em queda desde o início do ano. As últimas declarações de Lula prejudicam não apenas a Vale — levando dúvidas sobre sua gestão —, mas geram desconfiança geral. A economia brasileira foi bem no ano passado, mas não nos investimentos. Se o PIB cresceu 2,9%, o investimento caiu expressivos 3% em relação a 2022, que já não tinha sido um bom ano. O consumo é PIB de hoje. O investimento é de hoje e amanhã. Como o governo está com as contas exauridas, o país necessita de investimento privado. Para isso, o governo deve oferecer um bom ambiente de negócios, de modo que as empresas se sintam confortáveis para aplicar aqui. Lula passa o recado contrário. A maioria dos acionistas da Vale está no exterior. E todos têm perspectiva desfavorável quando o presidente intervém numa companhia privada e anuncia que todas as empresas aqui instaladas têm de rezar pela sua cartilha. Sem contar que, com sua habitual desinformação, Lula passou uma série de fake news sobre a Vale. Disse, só em exemplo, que a empresa mais vende ativos do que produz minério. Errado: em 2023, a Vale produziu 321 milhões de toneladas de minério de ferro, quase 10% acima de ano anterior. Vendeu ativo, mas comprou outros.  

Mas quem se importa com fatos? 


Confusa teoria anti-ocidental - Sergio Fausto (O Estado de São Paulo)

 Confusa teoria anti-ocidental

Sergio Fausto 

O Estado de São Paulo, 2 de março de 2024

Nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin. Num caso e noutro, o ataque ao Ocidente parte de ângulos opostos, mas converge para um alvo comum.

Aqui me interessa o campo da esquerda. Mal ou bem, com muitas contradições, nele se situaram forças que, desde a Revolução Francesa, impulsionaram conquistas civilizatórias da humanidade. Nele está uma nova geração de ativistas, ainda em formação, com energia para levar adiante, atualizando, o legado de gerações anteriores. Por isso, preocupa ver que ela se encanta com uma confusa ideologia antiocidental, que bateu asas a partir de uma vertente respeitável das ciências humanas: o “decolonialismo”, termo incorporado no Brasil diretamente do inglês e do francês, sem o “s” que permitiria descolonizá-lo.

Para os adeptos do “decolonialismo”, o Ocidente não seria a revolução científica, o Iluminismo, as Revoluções Americana e Francesa, a democracia e os direitos humanos, e sim o colonialismo e a escravidão que, sob novas formas, continuariam a ser os fatores principais da opressão no mundo contemporâneo. Nessa visão binária, o salto científico e tecnológico produzido na Europa a partir dos séculos 16 e 17 é visto como mero instrumento para a expansão brutal do colonialismo. Já o Iluminismo, no século seguinte, é reduzido à condição de ideologia justificadora da opressão colonial, do trabalho escravo e do racismo.

Da Revolução Francesa, os “decolonialistas” destacam seletivamente o restabelecimento da escravidão nas colônias francesas, com Napoleão, em lugar da sua abolição em 1794. A Revolução Americana, mãe das guerras de independência e parteira da primeira República no Novo Mundo, é desvalorizada em seu conjunto pela nódoa da escravidão.

O erro dessa visão é supor que um processo histórico tão complexo e longo quanto a modernidade ocidental possa ser compreendido em bloco e submetido a um juízo moral condenatório com base na ideia de que a “parte boa” nada mais é do que uma ilusão a encobrir a “parte má”, esta sim reveladora da essência opressiva da modernidade ocidental. Trata-se de uma ideia avessa à compreensão das contradições que constituem a realidade social, no passado e no presente.

É verdade – e nisso o “decolonialismo” está coberto de razão – que a Europa se serviu da ciência e da tecnologia para conquistar territórios, submeter e frequentemente escravizar populações autóctones da África, América e Ásia e da distorção das ideias iluministas para justificar o empreendimento colonial, primeiro, a expansão imperialista, depois, e teorias absurdas e abjetas de superioridade racial. Não menos verdadeiro, porém, é que os avanços científicos e tecnológicos e os novos valores da liberdade e da igualdade produzidos no Velho Continente permitiram e impulsionaram conquistas civilizacionais que beneficiaram a humanidade em seu conjunto nos séculos seguintes. E continuam a beneficiá-la.

Os mesmos valores professados de modo seletivo e praticados de maneira excludente, ao início, motivaram e orientaram grande parte das lutas emancipatórias que progressivamente expandiram a esfera dos direitos fundamentais e ampliaram a sua aplicação no transcurso posterior da história. O fato de que a generalização dos valores liberais e democráticos ainda hoje seja parcial é mais uma razão para reafirmá-los, sobretudo num momento histórico em que as forças obscurantistas e reacionárias ganham terreno em todas as partes do planeta.

Sim, Thomas Jefferson foi um senhor de escravos. Mas o Preâmbulo da Declaração da Independência dos Estados Unidos, escrito por ele, abriu um horizonte para lutas emancipatórias que se desdobram até hoje, incluídas as dos grupos (negros e mulheres, em especial) cujos direitos eram então negados. A ideia de que os seres humanos, além de iguais e livres, têm o direito à busca da felicidade (pursuit of happiness) ativou uma revolução silenciosa duradoura contra formas explícitas e implícitas de dominação e cerceamento da subjetividade. Essa concepção dos seres humanos é própria do Iluminismo, impensável fora da sua tradição.

Transformando-se em ideologia, o “decolonialismo” substitui a perspectiva crítica pertinente pela fúria moral condenatória incapaz de separar o joio do trigo. Inadvertidamente, rejuvenesce velhas ideologias anti-imperialistas e autoritárias presentes na esquerda, ao entusiasmar uma nova geração de ativistas de muito valor, mas frágil formação.

O resultado é que parte significativa da esquerda silencia diante das atrocidades cometidas pelo Hamas, hesita em condenar a Rússia na sua guerra de agressão à Ucrânia, dá de ombros diante da diferença crucial, para o mundo, entre dois homens igualmente brancos, héteros e idosos que disputarão a presidência dos Estados Unidos, apoia qualquer iniciativa feita em nome do “Sul Global” e, no Brasil, não compreende que o País é, sim, parte do Ocidente, com as suas marcas próprias e singulares.

A la recherche du temps perdu - Paulo Roberto de Almeida

 O que nos espera? Perdemos o século XXI inteiro já no seu primeiro quarto, ao não conseguirmos resolver problemas básicos da sociedade. O déficit de produtividade ligado à educação requer três gerações para apresentar resultados. O mesmo se aplica à redução da corrupção no estamento político. Portanto, só esperem melhorias no próximo século.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 2/03/2024

sexta-feira, 1 de março de 2024

Editor do principal jornal independente russo é preso em Moscou

 Editor do principal jornal independente russo é preso em Moscou

 https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2024/02/29/editor-do-principal-jornal-independente-russo-e-preso-em-moscou.htm?cmpid=copiaecola

MOSCOU, 29 FEV (ANSA) - O editor-chefe do renomado jornal independente russo Novaya Gazeta foi detido em Moscou nesta quinta-feira (29) após ter sido acusado de desacreditar as forças armadas da Rússia.

A informação foi confirmada pela própria publicação, que especifica que Serghei Sokolov foi levado por oficiais do Centro Russo de Combate ao Extremismo.

Ainda segundo o jornal, a acusação contra o editor russo está relacionada a um artigo publicado no Novaya Gazeta. Até o momento, não há informações sobre a data da audiência.

Sokolov foi oficialmente nomeado editor do Novaya Gazeta em setembro de 2023, após a demissão do vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Dmitry Muratov, que foi considerado um "agente estrangeiro" pelas autoridades russas.

Na mesma ocasião, um tribunal de Moscou revogou a licença do jornal independente, que há anos critica o Kremlin, como parte da contínua repressão das autoridades à dissidência.

Na sequência, também foi aprovada uma legislação para proibir a depreciação dos militares russos ou a divulgação de "informações falsas" sobre as ações do país liderado por Vladimir Putin no território ucraniano. Com a medida, os jornais independentes russos foram banidos.

Cincurso para novo professor de História da América na UnB

A UnB seleciona um novo professor de História da América, cadeira na qual brilhou nosso amigo Francisco Doratioto. 



A ameaça do uso unilateral da arma nuclear agora é explícita: Putin o fez

Uma novidade na agenda internacional: violador da Carta da ONU promete escalar se sua violação for contida por países respeitadores do Direito Internacional, como é sua obrigação pelos artigos da Carta.

Desde o discurso de Putin ao povo russo, em 28/02/2024, a possibilidade do uso unilateral de arma atômica foi aberta de forma inédita na trajetória da humanidade.

Pela primeira vez na história um invasor de um país soberano ameaça os aliados do país invadido de catástrofe nuclear unilateral se forem em socorro da parte agredida. O invasor dotado de poderio nuclear deseja total impunidade para violar o Direito Internacional em sua agressão ao país desnuclearizado. 

O Brasil considera isso justo, razoável, legítimo? A diplomacia brasileira, que prega a abolição das armas nucleares, não pretende protestar contra esse absurdo?

O Itamaraty, que solta notas sobre quaisquer assuntos relevantes nas relações internacionais, pretende ficar completamente silente em face dessa declaração formal de uso possível, até provável, de arma atômica?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 1/03/2024