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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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quinta-feira, 20 de junho de 2024

"Livres da Polarização" - Roberto Freire, Eduardo Jorge, Gilberto Natalini, Augusto de Franco e Elena Landau (artigo no Estadão)

Livres da Polarização

https://www.youtube.com/live/whaF71IQdD8

Link para o WhatsApp do Livres da Polarização: 


Livres da polarização

Quem falará pelos 40% de brasileiros que não são petistas nem bolsonaristas, nem apoiam essas forças políticas populistas?

sábado, 11 de maio de 2024

Livres da polarização - Roberto Freire, Eduardo Jorge, Gilberto Natalini e Augusto de Franco (O Estado de São Paulo)

Livres da polarização

Quem falará pelos 40% de brasileiros que não são petistas nem bolsonaristas, nem apoiam essas forças políticas populistas?

Roberto Freire, Eduardo Jorge, Gilberto Natalini e Augusto de Franco

 O Estado de São Paulo, 11/05/2024

Há no Brasil de hoje dezenas de milhões de eleitores que não se sentem representados pelas forças que dominam a arena política. São esses – em boa parte – os que apoiam a democracia como um valor universal e que são contra toda sorte de preconceitos e discriminações. São os que acreditam na eficiência do Estado, mas defendem uma economia livre, querem aliar desenvolvimento e sustentabilidade, desejam empreender, mas precisam de apoio ou, quando menos, que não sejam atrapalhados, os que sabem que segurança é inteligência e a violência, irmã da desigualdade.

São os que não acham que um pouquinho de inflação faz bem, nem querem leis dos anos 1940 regulando o trabalho, como ficou patente com a decisão dos líderes governistas de abandonar o projeto com o qual o governo pretendia transformar em trabalhadores CLT os motoristas e entregadores de aplicativo. São os que não veem legitimidade em invasões e depredações de patrimônio público ou privado, sejam eles patrocinados pelo MST ou por partidários de golpes de Estado. São os que defendem, de forma intransigente, as liberdades de expressão, organização e manifestação de acordo com as regras do Estado Democrático de Direito.

Eles não estão nos extremos ou polos que viraram instrumento de análise da divisão a que o lulismo e o bolsonarismo submeteram a sociedade, ambos em busca do poder pelo poder. Eles não defendem, nem justificam, grupos terroristas como o Hamas, o Hezbollah, os Houthis e demais milícias do Oriente Médio que servem aos propósitos da teocracia iraniana e estão sendo usados pelas grandes autocracias do planeta contra os regimes democráticos – tampouco apoiam Nicolás Maduro, Vladimir Putin ou outros ditadores, de esquerda, de direita ou fundamentalistas religiosos.

Quem falará pelos cerca de 40% de brasileiros que não são petistas nem bolsonaristas, nem apoiam essas forças políticas populistas? Os partidos políticos falharam em interpretar os sentimentos, captar as aspirações e endereçar soluções para os problemas desse imenso contingente populacional. Os que não minguaram viraram satélites dos dois campos que alimentam a clivagem social e política brasileira. Não por outra razão, pesquisa recente do Datafolha mostra que aumentou a desconfiança da população dos partidos políticos. Os números, aliás, são alarmantes: só 43% confiam “um pouco”.

A construção de alternativas à polarização, portanto, terá de partir dos insatisfeitos com esse estado de coisas. E, nesse campo, há grande diversidade. De intelectuais a políticos, passando por jovens idealistas, professores, profissionais liberais, trabalhadores de chão de fábrica e de empresas de tecnologia, entregadores e motoristas de aplicativos, empresários, agricultores, artistas, sindicalistas, cientistas, enfim, pessoas comuns que querem viver, estudar, trabalhar, empreender, se divertir, amar e se congraçar com seus semelhantes sabendo que somente a democracia pode configurar ambientes pacíficos onde seus direitos políticos e suas liberdades civis sejam respeitados e valorizados.

Uma oposição democrática aos populismos, no governo ou fora dele, já existe no Brasil. Ela ainda é pequena e está dispersa, mas não crescerá por mágica nas eleições deste ano ou nas próximas. Isso só vai acontecer se as forças políticas democráticas começarem a se articular para influenciar de pronto a agenda nacional, resgatando o espaço público dos populismos de esquerda e direita que o sequestraram. Isso exige conversação livre e franca entre pessoas que não imaginam ter o monopólio da verdade e que estão abertas a ouvir e entender os pontos de vista do outro e, se necessário, a mudar seus próprios pontos de vista, seja em busca de convergência, seja porque alguém teve uma ideia melhor. Isso exige empenho contínuo, um exercício permanente de olhar para a frente, de pensar o País para além das disputas de poder.

Há muita gente disposta a isso, dentro e fora dos partidos, centristas, à esquerda ou à direita, nos mais diversos Estados. Gente cansada do destrutivo e paralisante “nós contra eles”. Gente que espera há anos por políticas que deram certo em outros lugares do mundo, independentemente da ideologia de seus idealizadores, mas que aqui são sabotadas pela polarização. Seja na educação, com a reforma do ensino médio, ou no saneamento básico, com o marco legal, para ficar em dois exemplos recentes de tentativa de retrocesso.

Que todos esses comecem a se conectar, virtual ou presencialmente, não importa se em grande ou pequeno número. O resultado desse esforço não será uma frente de pessoas que pensam igual, mas uma ecologia de diferenças coligadas. Não se articularão apenas para lançar candidatos, embora daí nascerão opções aos extremos, mas para congregar quem deseja trabalhar pela despolarização. Em nome dos milhões de brasileiros que almejam viver em um país melhor e estão fartos de quem lucra com a divisão da sociedade brasileira.


Roberto Freire é político e advogado, Eduardo Jorge e Gilberto Natalini são políticos e médicos, Augusto de Franco é político e escritor.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Ênnio Candotti e o Progresso da Ciência - Simon Schwartzman (O Estado de São Paulo)

Ênnio Candotti e o Progresso da Ciência

By Simon Schwartzman on Mar 08, 2024 06:40 am

Publicado em O Estado de São Paulo, 8 de março de 2024)

Tempos atrás, se você fosse brilhante e quisesse salvar o mundo, o caminho era se tornar físico.  Assim era e foi o que fez Ênnio Candotti, que nos deixou em dezembro passado. Nascido na Itália, Ênnio chegou no Brasil ainda criança e estudou física na Universidade de São Paulo e depois na Itália, procurando seguir os passos da geração de Marcelo Damy, Mario Schenberg, José Leite Lopes, Sérgio Mascarenhas, Oscar Salla e outros que, na década de 40, trouxeram para o Brasil os conhecimentos e as esperanças que as descobertas dos segredos dos átomos e do universo anunciavam. Ênnio, nos anos mais recentes, foi o fundador e presidente do Museu da Amazônia, depois de ter sido, por quatro vezes, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e criador da revista Ciência Hoje.

Eles eram não  só cientistas, mas intelectuais públicos. Por um lado, ajudavam a desvendar os segredos na natureza, trabalhando nos limites do que o raciocínio matemático, as observações experimentais e a livre troca de ideias entre os pares permitiam. Por outro, acreditavam que, se os mesmos métodos fossem aplicados para produzir riqueza e organizar a sociedade, o futuro estava garantido. Além pesquisar, se valiam das cátedras para difundir suas ideias entre os alunos, escreviam nos jornais e se mobilizavam para que os governos dessem aos cientistas os recursos e a autonomia que precisavam para trabalhar. Em 1948, sessenta cientistas paulistas, em grande parte professores da USP, criaram a SBPC nos moldes da American Association for the Advancement of Science, estabelecida cem anos antes para  “promover a cooperação entre cientistas, defender a liberdade científica, incentivar a responsabilidade científica e apoiar a educação e a divulgação científica para o bem da humanidade”.

Qual era exatamente este papel intelectual não era muito claro. Para muitos, o importante era fortalecer a cultura da ciência, apoiando os cientistas, garantindo a autonomia da pesquisa e fazendo com que o público entendesse e respeitasse o trabalho que faziam. Se todos reconhecessem a importância da ciência, a racionalidade passaria a preponderar sobre a ignorância, novas descobertas trariam benefícios para todos, e este seria o caminho do progresso. Para outros, era necessário ir além, e direcionar a pesquisa para atender às prioridades da economia e sociedade. Para outros ainda, era necessário empreender uma luta política pelo predomínio da razão sobre o obscurantismo, que era também uma luta dos oprimidos contra os opressores.

A SBPC influenciou a criação da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo, em 1962, e durante o governo militar suas reuniões anuais, com milhares de participantes, tinham grande repercussão,  como espaço livre de expressão de ideias que desafiavam o regime. A SBPC era conduzida por cientistas de renome, como Maurício Rocha e Silva, José Goldemberg, Oscar Salla e Mauro Salzano, que davam respaldo a suas atividades. Com a democratização, os cientistas da nova geração começaram a priorizar suas associações especializadas, e a SBPC passou a se dedicar cada vez mais à divulgação científica e temas de política universitária e acadêmica. Ênnio Candotti assumiu a vice-presidência 1985, quando já tinha, na prática, deixado a vida de pesquisador para, a partir daí, se dedicar ao papel de  intelectual público, divulgador e defensor da ciência.

O relativo esvaziamento da SBPC, que também afetou a Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, se explica em parte pelas incertezas que, sobretudo após a segunda guerra, passam a afetar o mundo da ciência. A física trazia a promessa da energia barata e inesgotável, mas seu primeiro grande produto foi a bomba atômica.  As ciências biológicas e agrícolas mostraram como reduzir as epidemias e a fome, mas, em muitas partes do mundo, as pessoas continuam morrendo por desnutrição e falta de tratamento. Os investimentos da pesquisa se concentram cada vez mais em aplicações civis e militares, produzindo conhecimentos que se mantêm em segredo, enquanto a pesquisa aberta, das universidades, tem perdido relevância. E a própria carreira de pesquisador, antes uma vocação de poucos idealistas, se transformou em uma profissão como as outras, pressionada pela lógica de “publicar ou morrer” e afetada pela incertezas  da política.

A pandemia da Covid levou os paradoxos da ciência moderna a seu extremo. Por um lado, a revolução que foi a produção de vacinas usando os conhecimentos mais avançados de engenharia genética; por outro, a grande onda de desconfiança e reação a seu uso, destruindo o consenso quase universal sobre a importância das imunizações. Aqui, como em relação à Amazônia, Ênnio Candotti tinha razão: a ciência é cada vez mais necessária e importante, não há como voltar atrás. Mas hoje sabemos que não basta mais proclamar suas virtudes e falar mal da ignorância, é necessário lidar com coragem com as contradições e paradoxos que ela traz. É isto que, no século 21, as sociedades científicas precisam aprender a fazer.


sábado, 2 de março de 2024

Confusa teoria anti-ocidental - Sergio Fausto (O Estado de São Paulo)

 Confusa teoria anti-ocidental

Sergio Fausto 

O Estado de São Paulo, 2 de março de 2024

Nos últimos anos, tornou-se moda atribuir ao Ocidente grande parte dos males que acometem o mundo. A moda tem adeptos sobretudo na esquerda, mas também na extrema direita nacionalista sob influência do Kremlin. Num caso e noutro, o ataque ao Ocidente parte de ângulos opostos, mas converge para um alvo comum.

Aqui me interessa o campo da esquerda. Mal ou bem, com muitas contradições, nele se situaram forças que, desde a Revolução Francesa, impulsionaram conquistas civilizatórias da humanidade. Nele está uma nova geração de ativistas, ainda em formação, com energia para levar adiante, atualizando, o legado de gerações anteriores. Por isso, preocupa ver que ela se encanta com uma confusa ideologia antiocidental, que bateu asas a partir de uma vertente respeitável das ciências humanas: o “decolonialismo”, termo incorporado no Brasil diretamente do inglês e do francês, sem o “s” que permitiria descolonizá-lo.

Para os adeptos do “decolonialismo”, o Ocidente não seria a revolução científica, o Iluminismo, as Revoluções Americana e Francesa, a democracia e os direitos humanos, e sim o colonialismo e a escravidão que, sob novas formas, continuariam a ser os fatores principais da opressão no mundo contemporâneo. Nessa visão binária, o salto científico e tecnológico produzido na Europa a partir dos séculos 16 e 17 é visto como mero instrumento para a expansão brutal do colonialismo. Já o Iluminismo, no século seguinte, é reduzido à condição de ideologia justificadora da opressão colonial, do trabalho escravo e do racismo.

Da Revolução Francesa, os “decolonialistas” destacam seletivamente o restabelecimento da escravidão nas colônias francesas, com Napoleão, em lugar da sua abolição em 1794. A Revolução Americana, mãe das guerras de independência e parteira da primeira República no Novo Mundo, é desvalorizada em seu conjunto pela nódoa da escravidão.

O erro dessa visão é supor que um processo histórico tão complexo e longo quanto a modernidade ocidental possa ser compreendido em bloco e submetido a um juízo moral condenatório com base na ideia de que a “parte boa” nada mais é do que uma ilusão a encobrir a “parte má”, esta sim reveladora da essência opressiva da modernidade ocidental. Trata-se de uma ideia avessa à compreensão das contradições que constituem a realidade social, no passado e no presente.

É verdade – e nisso o “decolonialismo” está coberto de razão – que a Europa se serviu da ciência e da tecnologia para conquistar territórios, submeter e frequentemente escravizar populações autóctones da África, América e Ásia e da distorção das ideias iluministas para justificar o empreendimento colonial, primeiro, a expansão imperialista, depois, e teorias absurdas e abjetas de superioridade racial. Não menos verdadeiro, porém, é que os avanços científicos e tecnológicos e os novos valores da liberdade e da igualdade produzidos no Velho Continente permitiram e impulsionaram conquistas civilizacionais que beneficiaram a humanidade em seu conjunto nos séculos seguintes. E continuam a beneficiá-la.

Os mesmos valores professados de modo seletivo e praticados de maneira excludente, ao início, motivaram e orientaram grande parte das lutas emancipatórias que progressivamente expandiram a esfera dos direitos fundamentais e ampliaram a sua aplicação no transcurso posterior da história. O fato de que a generalização dos valores liberais e democráticos ainda hoje seja parcial é mais uma razão para reafirmá-los, sobretudo num momento histórico em que as forças obscurantistas e reacionárias ganham terreno em todas as partes do planeta.

Sim, Thomas Jefferson foi um senhor de escravos. Mas o Preâmbulo da Declaração da Independência dos Estados Unidos, escrito por ele, abriu um horizonte para lutas emancipatórias que se desdobram até hoje, incluídas as dos grupos (negros e mulheres, em especial) cujos direitos eram então negados. A ideia de que os seres humanos, além de iguais e livres, têm o direito à busca da felicidade (pursuit of happiness) ativou uma revolução silenciosa duradoura contra formas explícitas e implícitas de dominação e cerceamento da subjetividade. Essa concepção dos seres humanos é própria do Iluminismo, impensável fora da sua tradição.

Transformando-se em ideologia, o “decolonialismo” substitui a perspectiva crítica pertinente pela fúria moral condenatória incapaz de separar o joio do trigo. Inadvertidamente, rejuvenesce velhas ideologias anti-imperialistas e autoritárias presentes na esquerda, ao entusiasmar uma nova geração de ativistas de muito valor, mas frágil formação.

O resultado é que parte significativa da esquerda silencia diante das atrocidades cometidas pelo Hamas, hesita em condenar a Rússia na sua guerra de agressão à Ucrânia, dá de ombros diante da diferença crucial, para o mundo, entre dois homens igualmente brancos, héteros e idosos que disputarão a presidência dos Estados Unidos, apoia qualquer iniciativa feita em nome do “Sul Global” e, no Brasil, não compreende que o País é, sim, parte do Ocidente, com as suas marcas próprias e singulares.

terça-feira, 22 de agosto de 2023

A tirania da mediocridade - Rubens Barbosa (O Estado de São Paulo)

 A TIRANIA DA MEDIOCRIDADE

Rubens Barbosa

O Estado de São Paulo, 22/08/2023

 

     Poucos pensam e discutem o BRASIL acima de preocupações político-partidárias e de interesses pessoais. Não se trata de criticar a ação do governo de turno e de outros que o precederam. Hoje, na prática, o país está sem projeto de nação, que defina os rumos da economia, sem estratégia nacional de segurança, que defina o lugar do Brasil no mundo em rápida e profunda transformação, sem uma clara definição de objetivos modernos para a educação que dê base para a inovação e o desenvolvimento tecnológico, e sem saber como equacionar seus problemas sociais e ambientais a médio e longo prazo. Com forte influência populista, o país está dividido ideologicamente e politicamente. Ao não ousar, vê seu crescimento reduzido, as desigualdades aumentando, a violência crescendo, a base industrial se deteriorando e as vulnerabilidades econômicas, comerciais, sociais, militares e de defesa aumentarem. A segurança jurídica está abalada por decisões contraditórias e a competitividade da economia paralisada pela ineficiência da burocracia e do tamanho do Estado.

          A mediocridade da discussão e das ações burocráticas em grande parte explica essa situação de falta de perspectiva do país. A polarização política e a intolerância deixam a burocracia semiparalisada com receio de assumir decisões que possam ser vistas como partidárias e que poderiam gerar consequência políticas ou mesmo jurídicas contrárias. A sociedade civil está sem liderança para propor a revisão de políticas institucionais de desenvolvimento e reforma política de interesse do país e sem força para propor uma nova relação entre civis e militares, desgastados pelos envolvimentos recentes, para virar a página da histórica interferência militar na política. Os empresários, sobretudo no setor industrial, estão sem projetos e se acomodam aos governos de turno para defender seus interesses setoriais. O sistema político partidário é disfuncional pelo número de partidos, sem uma clara ideologia, atuam na defesa de seus próprios interesses econômicos, comerciais e patrimoniais. O Congresso Nacional tem avançado o exame e a aprovação de algumas reformas, mas a percepção é de que, sem programas claros na defesa dos interesses maiores do país, fica enredado na discussão menor de privilégios e muitos de seus representantes aparecem envolvidos com corrupção. O Judiciário sofre desgaste pela judicialização de questões que o Legislativo e o Executivo não conseguem resolver. Em muitos casos, decisões são tomadas com forte viés político, alterando substancialmente decisões anteriores ensejando a visão de que a política menor, e não a Constituição, prevalece em suas decisões.

         Em um mundo em que o conhecimento está na base das grandes mudanças, com os desafios da aplicação da Inteligência Artificial, o país não consegue superar as deficiências do sistema educacional. As escolas e Universidades, com honrosas exceções, não respondem às necessidades dos novos tempos. Os recursos públicos são mal administrados e o Brasil está muito baixo nos índices internacionais.

          As ONGs e os think-tanks, com uma visão setorial em suas atuações, examinam e atuam com competência nas matérias que discutem, mas, em raros casos, tem força e poder para influir na definição de políticas públicas que possam ser avaliadas e tenham um sentido e uma visão de médio e longo prazo.

           Nessa breve análise que não pretende esgotar o assunto, mas chamar a atenção para as armadilhas de que a sociedade foi vítima, em todas as áreas mencionadas, o que ressalta, lamentavelmente, é o triunfo da mediocridade.

            A mediocridade da classe dirigente historicamente refletida na incapacidade de aproveitar as potencialidades do país para deixar de ser um país do futuro e transformá-lo em uma força global, como ocorreu em Cingapura e na China.

        Para superar essa situação em que a mediocridade prevalece, inclusive pelo despreparo, pelo nepotismo, apadrinhamento, formas disfarçadas de corrupção, nas nomeações para o serviço publico e para as filiações partidárias, o Brasil teria de dar força à meritocracia, para buscar a eficiência e resultado nas políticas em todas as áreas. O termo meritocracia é um neologismo inventado nos anos 1950 pelo sociólogo britânico, Michael Young. No romance The Rise of Meritocracy (O surgimento da meritocracia), Young descreve uma sociedade onde os melhores e mais aptos detém o poder. Ao morrer em 2002, Young estava decepcionado com a vida pública estratificada na Inglaterra, mas tinha esperança na Terceira Via de Tony Blair. 

O valor do mérito é atacado hoje no Brasil todos os dias e em todos os lugares: veja-se como se desenvolve a carreira na classe política e o nivelamento por baixo, por muitos anos, nos principais setores do serviço público. Para muitos dos que o desprezam, o mérito seria uma vitrine enganosa, que dissimula mal a sobrevivência das elites. Os que atacam a meritocracia, com hipocrisia e cinismo, são os principais responsáveis pelos seus desvios.

                A busca da eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente, é o que o Brasil precisa. O setor privado fará sua parte.

Abaixo a tirania da mediocridade.


Rubens Barbosa é embaixador aposentado e presidente do IRICE.

 

 

Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE) e membro da Academia Paulista de Letras.

Putin e o direito internacional - Celso Lafer (O Estado de São Paulo)

Putin e o Direito Internacional Penal

Entre os desdobramentos jurídicos do conflito, cabe discutir o potencial de responsabilidade penal dele pela guerra da Ucrânia

Por Celso Lafer

O Estado de São Paulo, 20/08/2023 

A Carta da ONU deixa explícita em seu Preâmbulo a sua “ideia a realizar”: preservar a humanidade dos flagelos da guerra e dos seus indizíveis sofrimentos. Ela estabelece como grande propósito da ordem mundial do pós-Segunda Guerra: manter a paz e a segurança internacionais, reprimir atos de agressão, solucionar por meios pacíficos controvérsias e situações. Neste contexto, realça o cumprimento do princípio de igualdade e de autodeterminação dos povos.

A Carta não coonesta a guerra como a continuação da política internacional por outros meios e consagra como princípios básicos o respeito à integridade territorial e a independência política de qualquer Estado. Estes princípios representam um ingrediente-chave do potencial de convivência equilibrada entre nações, grandes e pequenas.

A guerra na Ucrânia foi desencadeada em 2022 pela unilateral agressão da Rússia à Ucrânia. É uma guerra de escolha. Putin recorreu, e continua recorrendo, ao uso da força militar para alcançar suas finalidades políticas: fulminar a independência política e a integridade territorial da Ucrânia, para inseri-la num espaço vital de segurança da Rússia. A ação de Putin desrespeitou manifestamente a Carta da ONU. Inseriu a insegurança dos riscos e tensões provenientes de uma guerra de generalizada e continuada repercussão na vida mundial.

Entre os desdobramentos jurídicos do conflito, cabe discutir o potencial de responsabilidade penal de Putin pela guerra na Ucrânia.

O potencial de responsabilidade penal de Putin provém da lógica emanada da atuação do Tribunal de Nuremberg, que julgou e condenou figuras de proa do nazismo, a partir da perspectiva de que crimes contra o Direito Internacional são cometidos por indivíduos, e não por entidades abstratas.

Foi o que levou à elaboração do Direito Internacional Penal, lastreado no reconhecimento jurídico de valores fundamentais compartilhados pela comunidade internacional, que se sobrepõem à plenitude discricionária das soberanias estatais e de seus governantes.

O Direito Internacional Penal estipula que qualquer pessoa que cometa atos que constituem crimes tipificados nas suas normas é responsável e punível por sua conduta, independentemente do previsto no direito interno. Afasta, assim, as tradicionais imunidades de jurisdição de governantes e de suas justificativas no plano nacional.

O Estatuto de Roma, de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional, consolidou a tipificação dos crimes internacionais que constituem o núcleo duro do Direito Internacional Penal: crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão.

O recém-publicado livro de Badinter, Cotte e Pellet – três consagrados juristas franceses – é exemplar na precisão jurídica com a qual postulam o indiciamento penal de Putin pelo crime de agressão e seus desdobramentos em matéria de crimes de guerra e de suas implicações no que tange a crimes contra a humanidade.

[PRA: Celso Laffer refere-se ao livro recém publicado por Robert Badinter, Bruno Cotte e Alain Pellet, Putin, l'accusation (Paris: Fayard, 2023, 239 p.); ver abaixo]

Subsume-se no tipo penal de crime de agressão a conduta de quem, detendo o poder do exercício efetivo da ação política e militar de um Estado, planeja, prepara, inicia e dá seguimento a atos de agressão que consistem numa reconhecida violação da Carta da ONU. Os três eminentes juristas comprovam que Putin, como chefe de Estado e comandante militar da Federação Russa, preparou, entre 2014 e 2022, e deu início em 24/2/2022 à agressão militar à Ucrânia, e a conduz até hoje.

Assim procedendo, violou a Carta da ONU, sem poder invocar o direito de legítima defesa e outras causas exoneratórias de responsabilidade. Do crime de agressão resultam os sofrimentos do flagelo da guerra. Daí as imputações provenientes dos crimes de guerra e contra a humanidade.

As imputações têm a sua base em violações do Direito Humanitário, aplicáveis a conflitos armados internacionais. Estas estipulam que a Rússia, na condição de beligerante, não tem uma escolha ilimitada dos meios de combate à Ucrânia.

Entre os crimes de guerra elencados, destaco: os ataques dirigidos intencionalmente contra a população civil e contra civis não participantes diretamente das hostilidades, que vêm causando perdas de vidas humanas, ferimentos e danos a bens de caráter civil excessivos e sem possíveis vantagens militares concretas; ataques a edificações dedicadas às artes, ao ensino, hospitais e maternidades, assim como a cidades e habitações que não eram objetivos militares; atos de tortura e de tratamentos humilhantes e de pilhagem de localidades tomadas de assalto.

Entre os crimes contra a humanidade, menciono mortes, deportações e transferências forçadas de populações, prisões e privações à liberdade física, estupros e outras formas de violência sexual.

A possibilidade de Putin ser julgado por um tribunal internacional é remota nas atuais condições do sistema internacional e de suas jurisdições. No entanto, perante o tribunal da opinião pública do mundo jurídico, a límpida peça acusatória que sintetizei enseja sua qualificação como um criminoso.

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Vladimir Poutine, l'accusation

Sinopse

Cet ouvrage présente les fondements de l'accusation contre Vladimir Poutine, président de la Fédération de Russis, auteur du crime d'agression contre l'Ukraine et des crimes de guerre et contre l'humanité commis par les forces russes dont il est le chef suprême.

Robert Badinter est ancien ministre de la Justice et président du Conseil constitutionnel.
Bruno Cotte, membre de l'Institut, est président honoraire de la chambre criminelle de la Cour de cassation et ancien président de chambre de première instance à la Cour pénale internationale.
Alain Pellet est ancien président de la Commission du droit international des Nations unies et président de l'Institut de droit international.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

O Estado da Nação no Limiar de um Novo Governo (1994) - Paulo Roberto de Almeida

 O Estado da Nação no Limiar de um Novo Governo

 

Paulo Roberto de Almeida

Publicado, sob o título de “No Limiar do Novo Governo”, em O Estado de São Paulo (19/12/1994, p. 2). Relação de Publicados n. 171.

 

No triplo aspecto de sua situação econômica, de sua estrutura política e de suas condições sociais, o Brasil aparece, no cenário internacional, como um país complexo e contraditório, de acordo aliás com a própria leitura interna que dele se faz. Do ponto de vista econômico ele é considerado, com razão, como plenamente industrializado e dotado de um grande potencial de crescimento econômico, mas que permanece ainda largamente subutilizado em vista de uma persistente recusa a um modelo de desenvolvimento de tipo interdependente. Alguns consideram que se trata, melhor, de um incompreensível fechamento numa era de globalização econômica, outros de uma saudável rejeição à perda de soberania que decorreria de uma “internacionalização” precoce de sua economia.

Do ponto de vista político, ele é visto, externamente, como decididamente pacífico no contexto das relações internacionais e como razoavelmente democrático no plano institucional interno, ainda que apresentando um sistema político-partidário suscetível de aperfeiçoamentos e adaptações aos novos requisitos e exigências da ordem democrática (integração de novos atores sociais, ética e transparência na vida pública). Na área internacional, o Brasil quer ser visto como um fator de paz e estabilidade, suscetível portanto de ser integrado à estrutura  macro política de decisão (Conselho de Segurança).

Do ponto de vista social, contudo, à parte uma extraordinária capacidade de criação cultural, sobretudo no campo musical, o Brasil é visto também, como injustificadamente injusto em termos de distribuição de riqueza e socialmente perverso no terrenos dos direitos humanos e sociais, em proporção maior talvez ao que seria razoavelmente esperado de um processo de “acumulação para o crescimento”. Em outros termos, o Brasil acumula um grau de miséria incompreensivelmente alto e a todos os títulos não necessário para os objetivos de acumulação e crescimento capitalistas.

O que é, afinal, o Brasil? Um país desenvolvido pobre, um gigante com pés de barro, uma potência cultural emergente? Tudo isso ao mesmo tempo e algo mais ainda? Essas diferentes percepções têm muito a ver com o que a Nação considera como suas prioridades fundamentais em termos de crescimento e de desenvolvimento social. Sempre houve, a partir dos anos 30, um compromisso básico com um projeto nacional de desenvolvimento e de progresso social, mas, a despeito de um culto irrestrito e disseminado à noção de industrialização (considerada como o sustentáculo central desse projeto), todos os demais instrumentos de conquista daqueles objetivos foram perseguidos de maneira bem menos engajada, para não dizer de forma insuficiente: educação primária e técnica, investimentos em ciência e tecnologia, reforma agrária e repartição da renda, reforma administrativa, racionalização do aparelho do Estado, inserção internacional.

Cada inauguração de um novo governo representa, de certa forma, uma espécie de contrato social que a Nação estabelece consigo mesma para, a médio prazo, repensar globalmente sua estratégia de desenvolvimento, reorientar suas escolhas táticas e decidir sobre suas prioridades de investimento. O próximo, encabeçado por um sociólogo e contando sobretudo com economistas e planejadores em sua equipe dirigente, não foge à regra, ao contrário: quando candidato, Fernando Henrique Cardoso, buscou detalhar suas ideias em um programa de governo, muitas vezes quantificando objetivos e proclamando metas precisas a serem atingidas. Seu discurso de posse, em janeiro, e sua primeira mensagem ao Congresso, em fevereiro, deverão esclarecer um pouco melhor suas prioridades de curto e médio prazo.

Caberia, no entanto, superar a discussão sobre os projetos de curto prazo em torno dos quais se concentrou a campanha eleitoral e o debate sobre seu ministério para refletir de maneira ampla sobre as escolhas da Nação, aquilo que em linguagem hoje fora de moda se designa por “objetivos nacionais permanentes”. Estes são, evidentemente, o desenvolvimento material (econômico e tecnológico) do país, o progresso social e cultural da nação, a segurança interna e externa da sociedade, a participação, enfim, nas grandes decisões que afetam a comunidade internacional.

Para atuar em todas essas frentes, a Nação brasileira dispõe, como todas as outras, de um aparelho de Estado, mas apresentando este, como parece óbvio, certas disfunções e insuficiências, algumas típicas de um país ainda em transição para a completa modernidade, outras construídas nestes últimos anos de equívocos administrativos. Deixando de lado, no momento, o funcionamento dos poderes legislativo e judiciário, alguns grandes desafios se colocam atualmente ao novo Executivo para alcançar os objetivos definidos acima de forma muito geral.

O Estado brasileiro, em sua vertente operacional, compõe-se basicamente de três grandes núcleos de atuação institucional e de implementação de políticas, nas frentes interna e externa: uma “ferramenta” militar, um estamento diplomático e uma burocracia civil. As duas primeiras são instrumentos da política externa do país, muito embora possam participar igualmente da formulação da política nacional. O estado atual e as perspectivas de atuação de cada uma dessas duas corporações – a militar e a diplomática – podem obviamente causar preocupações quanto à qualidade de seu recrutamento em face dos baixos níveis de remuneração prevalecentes, mas não em excesso.

O instrumento militar, que teve uma preeminência política no passado, encontra-se hoje relegado a segundo plano, ocupando uma fração relativamente menor da despesa nacional. De certa forma, esse rebaixamento da função propriamente militar da atividade do Estado é normal, considerando-se que o Brasil não enfrenta a qualquer risco externo podendo colocar em perigo a soberania do país, não necessita afirmar seus interesses através do vetor dissuasório ou da ameaça do uso da força, nem apresenta, para sermos claros, um problema de defesa nacional. Tendo renunciado voluntariamente à posse da arma atômica e outras de destruição de massa, o Brasil pode legitimamente colocar-se como candidato a membro permanente do Conselho de Segurança assumindo plenamente sua condição de desnuclearizado e orgulhoso de sê-lo.

Na vertente do serviço exterior, não há muito o que observar, uma vez que o estamento diplomático é reconhecidamente de grande qualidade e profissionalismo. A corporação já forneceu, aliás, muitos quadros a diversos governos. No que concerne, contudo, a máquina do Estado, enquanto tal, a situação é reconhecidamente muito grave, com uma erosão brutal de sua eficiência e capacidade de intervenção. Desde meados dos anos 80, mas com o choque brutal introduzido pela desorganização administrativa do Governo Collor, o setor público enfrenta um de seus mais profundos desafios desde sua primeira estruturação na era Vargas e seu aperfeiçoamento sob o regime militar de 64. 

Pode-se dizer que o sucesso político e administrativo do Governo Fernando Henrique Cardoso se coloca na estrita dependência de sua capacidade em fazer funcionar a pleno vapor uma máquina pública corroída pelas pressões corporatistas e fragilizada pelos baixos níveis de remuneração e de treinamento especializado. Se a continuidade do processo de estabilização macroeconômica parece assegurada, considerando-se a boa qualidade das burocracias do Banco Central e do subsistema fazendário, é de temer-se pela implementação das demais políticas setoriais (inclusive em termos de segurança pública) em vista da inoperância atual da máquina do Estado. Será que o Governo FHC se verá obrigado a passar os próximos quatro anos tentando recompor um aparato estatal destruído pela incúria administrativa de seus antecessores?

 

Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais e funcionário público federal.

[Paris, 396: 08.12.94]

 

465. “O Estado da Nação no Limiar de um Novo Governo”, Paris, 8 dezembro 1994, 4 pp. Artigo jornalístico sobre a agenda de temas do próximo Governo, nas frente interna e externa. Publicado, sob o título de “No Limiar do Novo Governo”, em O Estado de São Paulo (19.12.94, p. 2). Relação de Publicados n° 171. 

 

 

domingo, 20 de janeiro de 2019

Jose Fucs (1): a balcanização do governo Bolsonaro

Excelente matéria do jornalista José Fucs, repórter especial do Estadão.
Paulo Roberto de Almeida

Divergências afetam frente de apoio a Bolsonaro

Vinte dias depois da posse, conflitos entre alas ideológicas causam fissuras no governo

José Fucs - O Estado de S.Paulo
Ao completar os primeiros vinte dias, o governo Bolsonaro começa a revelar os traços básicos de seu perfil. Com as movimentações iniciais dos 22 ministros e as nomeações de boa parte dos ocupantes do segundo e terceiro escalões, tornou-se possível identificar algumas marcas do novo governo. É um período curto para tirar conclusões definitivas, mas já dá para ter ao menos uma ideia do que pode vir por aí. 
Em meio a declarações desencontradas e recuos do presidente e de seus ministros em anúncios de medidas oficiais, ficou clara a existência de uma babel ideológica no governo, que gerou diversos conflitos desde a posse, em 1.º de janeiro. 
Aparentemente, as divergências até agora não deixaram feridas profundas. Mas podem ameaçar a unidade da grande frente formada para eleger Bolsonaro, refletida no novo Ministério, se os conflitos aumentarem, em vez de diminuírem, nas próximas semanas e meses. 
A frente inclui seis grandes grupos, com pesos diferentes na administração e influência distinta junto ao presidente – os militares, os liberais, os lavajatistas, os políticos, os evangélicos e os ideólogos e olavistas, que seguem as teorias do pensador e escritor Olavo de Carvalho (veja o quadro)





Em paralelo, com forte influência sobre as decisões do presidente e uma identidade maior com militares e olavistas, opera o núcleo familiar, composto pelos três filhos de Bolsonaro: Flávio, senador eleito pelo Rio de Janeiro, suspeito de envolvimento em operações irregulares com funcionáriosEduardo, deputado federal por São Paulo e talvez o mais influente da troika, e Carlos, vereador no Rio, todos integrantes do PSL, o mesmo partido do pai. 
Mosaico ideológico. Muitas vezes, esses grupos têm ideias e visões divergentes e contraditórias sobre o País e o mundo. Não por acaso alguns analistas estão chamando esse processo de “balcanização”, em referência à divisão de poder entre grupos conflitantes ocorrida na Península Balcânica, localizada na região sudeste da Europa, entre o início dos séculos 19 e 20. 
De certa forma, o mosaico ideológico montado pelo novo governo também existia nas gestões do PT e mesmo do PSDB. Agora, porém, a fragmentação parece mais acentuada, talvez porque os grupos só tenham se aproximado para valer após as eleições e, em alguns casos, só depois da posse. 
Um exemplo que ilustra com perfeição o “cabo de guerra” travado dentro do governo é a disputa pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), entre a ala liberal, liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e a ala dos olavistas, representada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo
Guedes contava com a transferência da Apex para sua órbita, com o objetivo de dinamizá-la e transformá-la numa ferramenta poderosa de negócios no exterior. Mas o órgão, que já foi ligado ao extinto Ministério do Desenvolvimento, Comércio Exterior e Serviços, acabou ficando mesmo com o Itamaraty, onde já estava no governo Temer. A decisão foi consumada apesar dos sinais emitidos por Araújo de que poderá levar em conta aspectos ideológicos na atuação da Apex, em prejuízo de uma filosofia mais pragmática do comércio internacional. 
Pivô das divergências. Para completar o quadro, Araújo ainda nomeou dois diretores da Apex ligados a Eduardo Bolsonaro – a empresária Letícia Catelani e o advogado Márcio Coimbra, ex-assessor parlamentar do Senado, que acompanhou o filho do presidente em sua recente viagem aos Estados Unidos. Letícia teria sido responsável pela tumultuada saída do ex-presidente da empresa, Alex Carreiro, substituído pelo diplomata Mário Vilalva apenas uma semana depois de nomeado. 
Numa outra frente, o grupo dos lavajatistas, capitaneado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, levou a pior num conflito com a ala dos políticos, à qual pertence o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, talvez o grande pivô das divergências no governo desde a eleição de Bolsonaro. Moro, a quem a Fundação Nacional do Índio (Funai) era ligada até ser transferida para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, havia determinado a exoneração de Azelene Inácio, diretora de Proteção Territorial do órgão. Mas uma semana depois Onyx ainda não havia levado adiante a decisão e publicado o desligamento de Azelene no Diário Oficial da União. 
Nas próximas semanas, novas disputas do gênero estão no radar. No início de fevereiro, com o provável encaminhamento do projeto de reforma da Previdência ao Congresso, tudo indica que as tensões vão se acentuar entre a ala dos militares, que defende em público a manutenção dos privilégios da categoria – com a exceção do vice-presidente, o general Hamilton Mourão –, e a dos liberais, que apoia uma mudança ampla, englobando o pessoal da caserna. 
O próprio presidente terá de tomar partido nesta questão e pelo que se pode deduzir do que tem dito a tendência é ele cerrar fileira com os militares e a ala política representada por Onyx, também defensor de uma reforma mais branda, mesmo com o déficit da Previdência chegando à estratosfera e comprometendo o equilíbrio das contas públicas. “A melhor reforma é a que passa na Câmara e no Senado”, disse Bolsonaro, sugerindo que está pouco inclinado a apresentar um projeto mais duro para resolver o problema de vez, como propõe a ala liberal
Vantagem militar. A avaliação da força dos grupos não pode ser feita apenas com base no número de ministérios conquistados por cada um. Ela tem de incluir seus tentáculos nos escalões inferiores em todas as pastas. Depende também do orçamento total controlado por cada ala, do impacto das pastas na economia e do grau de prestígio de seus representantes junto ao presidente e a seus filhos, cuja participação ativa no governo preocupa até os aliados mais próximos. 
Dito isso e levando em conta apenas o primeiro escalão, pode-se dizer que os grupos militar e político, à frente de sete ministérios cada um, são os que concentram a maior fatia de poder no governo. Depois deles, vêm as alas liberal, com três ministérios, incluindo o Banco Central, lavajatista e olavista, com dois cada, e evangélica, com apenas um ministério. 
Quando se consideram também as nomeações de segundo escalão claramente identificadas com uma das alas, o grupo militar leva larga vantagem, com nada menos que 32 representantes, espalhados por 13 ministérios, seguido pelos núcleos político, com 16 integrantes, liberal, com 13, olavista, com 12, lavajatista, com 10, e evangélico, com 3. 
Cartilha. Conhecido até pouco tempo atrás por um contingente restrito de iniciados e seguidores, entre eles Bolsonaro e seus filhos, Olavo de Carvalho ganhou os holofotes e conquistou trincheiras importantes na nova gestão. “Vivi para ver um filósofo indicar mais gente para o governo que o MDB”, afirmou na semana passada o cineasta Josias Teófilo, diretor do filme O Jardim das Aflições, sobre a vida e a obra de Olavo. No primeiro escalão, o MDB amealhou apenas o Ministério da Cidadania, ocupado pelo deputado federal gaúcho Osmar Terra. 
Além de ter indicado os ministros Ernesto Araújo, de Relações Exteriores, e Ricardo Velez Rodriguez, da Educação, duas áreas consideradas essenciais pelos seus pupilos para determinar o sucesso do governo, Olavo também é o “padrinho” de Filipe Garcia Martins Pereira, assessor internacional de Bolsonaro, instalado no Palácio do Planalto, de Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização do Ministério da Educação, e de Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, um território dominado por liberais que não rezam pela sua cartilha. 
Como se pode observar, na babel ideológica do governo Bolsonaro, parece complicado os diferentes grupos falarem a mesma língua. Só o tempo vai dizer se o presidente conseguirá administrar as divergências entre as alas e se ele vai enfrentar o problema sem causar grandes solavancos. 
Para manter unida a frente heterogênea que lhe dá suporte, Bolsonaro terá de mostrar que está preparado para atuar como um magistrado nos conflitos. 
Divisor de águas. Segundo relatos de quem já teve contato com Bolsonaro e por tudo o que se pôde observar desde a campanha, ele tende a mudar de opinião conforme a visão de seu interlocutor sobre uma questão qualquer. Ele também já mostrou que costuma falar sobre temas que não domina, antes de formar uma convicção a respeito do melhor caminho a seguir. Assim, acaba dando a impressão de ser uma espécie de biruta, que oscila de acordo com a direção do vento, gerando insegurança não só no mundo dos negócios, mas para todos os brasileiros que acompanham seus movimentos e têm de tomar decisões para si mesmos e suas famílias. 
Como diz a expressão criada pelo poeta inglês John Donne (1572-1631) e imortalizada pelo escritor americano Ernest Hemingway (1899-1961), a grande questão é saber por quem dobrarão os sinos de Bolsonaro nos próximos meses e anos. 
Aparentemente, nas primeiras semanas de governo, ele se curvou às alas política, militar e olavista nas questões que envolviam a economia, em detrimento da ala liberal, encarregada de conduzir as reformas de que o Brasil precisa para voltar a crescer. 
Bolsonaro também demonstrou enorme interesse nas questões de costumes e educacionais, caras às alas olavista e evangélica, e nas de política externa, uma espécie de fetiche para os seguidores de Olavo. Sua postura em relação à reforma da Previdência pode ser um “divisor de águas” ou confirmar as previsões mais sombrias. Logo mais, se o envio da reforma previdenciária ao Congresso no início de fevereiro se confirmar, a gente saberá a resposta. 

Bolsonaro e seu grupo de ministros após a posse
Bolsonaro e seu grupo de ministros após a posse Foto: Joédson Alves/EFE
Jair Bolsonaro e ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo
Jair Bolsonaro e ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo Foto: Dida Sampaio/Estadão
Sérgio Moro foi o primeiro a ser empossado como ministro do governo Bolsonaro
Sérgio Moro foi o primeiro a ser empossado como ministro do governo Bolsonaro Foto: Ueslei Marcelino/Reuters
O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Economia, Paulo Guedes.
O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Economia, Paulo Guedes. Foto: WILTON JUNIOR/ESTADAO
O filósofo Olavo de Carvalho
O filósofo Olavo de Carvalho Foto: REPRODUÇÃO
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