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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Minha vida de koala - Paulo Roberto de Almeida (2004)

A "descoberta" desta foto na internet, totalmente por acaso, me fez lembrar de um antigo texto que fiz, sobre um novo estilo de vida, tentando imitar esses simpáticos bichinhos:
1356. “Minha vida de koala: fábula fabulosa (à la manière de La Fontaine)”, Brasília, 19 nov. 2004, 3 p. Digressão ligeira sobre uma reencarnação ideal, a partir de uma ideia formulada em Washington, em 7/09/2003. Postado no blog Diplomatizzando (20/11/2011; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2011/11/minha-vida-de-koala-um-texto-pra-jamais.html). 

Será que ainda se aplica?



Minha vida de koala
fábula fabulosa (à la manière de La Fontaine)

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

E se eu não fosse quem eu sou?
A pergunta faz sentido, sobretudo se colocada no contexto da herança deixada pelos “anos de chumbo”, nas décadas de 60 e 70, quando muitos opositores ao regime militar então em vigor tiveram de assumir outras identidades, de maneira a resguardar a segurança pessoal ou a dos familiares. Alguns aderiram à nova identidade e gostaram tanto da “personalidade alternativa” que preservaram a vida do alter ego mesmo depois de plenamente restabelecida a democracia no Brasil.
Não foi o meu caso, mas ainda assim a pergunta toca numa corda sensível, já que implica que eu poderia ter nascido sob outro nome, ter tido uma outra história de vida, ter sido uma pessoa completamente diferente daquela que se apresenta agora sob esta identidade de funcionário público e professor universitário, completamente desprovido desta aparência anódina de intelectual de gabinete. Eu bem que poderia ter sido, a despeito deste ar tranqüilo de “combatente da pluma”, um perigoso contraventor da lei e da ordem, um “subversivo” como então se dizia, um marxista enragé (e engagé) ou então um anarquista franco-atirador, tão ameaçador da saúde das instituições en place quanto o libertário radical que de fato eu sou atualmente. Tampouco foi o meu caso, mas caberia considerar seriamente a hipótese levantada acima, pelo menos teoricamente, e talvez até mesmo hipoteticamente, num terreno situado externamente à espécie humana.
Sim, vejamos: se eu não fosse este bípede leitor e escrevinhador, com este jeito de eternamente distraído e sempre absorto em alguma leitura atrasada, o que eu poderia ser? Ou melhor: o que eu gostaria de ser? Boa pergunta esta, mas a resposta já foi dada acima, assim que o resto da fábula não apresenta mais surpresas, apenas curiosidades.
Com efeito, considerando todas as possibilidades disponíveis no reino animal – não, eu não estava considerando nada nos reinos vegetal ou mineral – e as alternativas indicadas no caso de um cidadão pacato como este que vos fala e escreve, fiquei bastante tentado a, numa segunda (ou em qualquer outra) encarnação de vida, formular ao todo poderoso senhor criador de todas as coisas meu desejo de voltar ao mundo como koala. Pausa para explicar essa do “criador”, num texto de um “materialista vulgar”, ou pelo menos um “irreligioso” assumido. A justificativa é perfeitamente lógica: num exercício que se pretende de “reencarnação”, o mínimo que se poderia querer, como fiat inescapável, é a existência de um criador supremo, que fica brincando com a vida da gente, dando a um sapo a conformação de um príncipe, a uma barata a beleza de Nefertite ou a um fracote poderes de Napoleão (mas existem muitos concorrentes neste caso).
Pois bem, por que, exatamente, eu gostaria de ser esse estranho animal do tão distante continente australiano? Por algumas razões muito simples: aprendi que o koala passa 80% do seu tempo dormindo, 10% comendo e os 10% restantes apenas esperando a próxima refeição ou o próximo dodô (sitting-by, dizem os australianos). Para quem só passa 20% do seu tempo dormindo, essa perspectiva é verdadeiramente fabulosa, digna de algum La Fontaine do sono. Não sei se os koalas são todos funcionários públicos do Serviço Zoológico Nacional da Austrália, mas esse emploi du temps me parece bom para aposentados, preguiçosos ou hedonistas de maneira geral (o que eu ainda não sou, mas um dia chegarei lá). Trata-se de uma repartição de ocupações que melhor reflete um ideal de cultura zen, contemplativa, que não pode fazer nenhum tipo de mal à humanidade, à condição, obviamente, que se tenha de onde tirar o alimento.
Os ecologistas mais radicais por certo me apoiariam nessa reencarnação, pois eles estão sempre querendo nos fazer voltar ao equilíbrio da vida natural, distanciada da vida agitada da civilização e seus nefastos efeitos poluidores. Como isso não parece perto de ocorrer na minha vida terrena, vejamos como eu poderia organizar minha vida para me aproximar daquela distribuição fabulosa de tempo, desde que invertendo, está claro, a repartição de tarefas para melhor refletir minhas prioridades de vida.
Atualmente, passo 60% do tempo trabalhando (no meu emprego assalariado e em tarefas acadêmicas auto-assumidas), 20% dormindo e o quinto restante numa variedade de ocupações familiares, locomotoras, alimentícias e duchísticas (sem esquecer a lista do supermercado). Não está mal, mas poderia estar melhor se eu tivesse um modo koala de ser. Vejamos como isso seria possível.
Eu acordaria às 11 horas da manhã, não precisaria ler as últimas notícias daquele chatérrimo jornal conservador do qual sou assinante, não correria para consultar e-mails, não teria, sobretudo, de sair correndo de casa para o trabalho, tentando demonstrar a mim mesmo que as muitas horas empregadas durante a noite em leituras sonolentas e em navegações na internet são de fato “úteis” para aquele novo trabalho que pretendo terminar ainda nesta manhã (hélàs, ainda não foi desta vez). Não precisaria mais usar gravata nem paletó e poderia sair de casa sem lenço e sem documento.
Ou melhor: eu não sairia, eu ficaria. Eu simplesmente desceria lentamente do meu galho-cama para o galho-cozinha, me serviria de algumas folhas de eucalipto e, voilà, já teria ganhado metade do meu dia. A caminho (lentamente) do galho-biblioteca, eu daria um bom-dia à patroa e às crianças, não teria de me ocupar do horário da escola, do dever de casa, das compras de supermercado, da arrumação da mesa da sala, da retirada de jornais do dia anterior e, sobretudo, de lavar a louça das refeições. Em muito menos tempo do que se emprega para dizer saperlipopette, eu teria alisado os pêlos, lambido os beiços do resto de suco de eucalipto e estaria pronto para me dedicar ao esporte favorito de todo koala: dormir (não sei quando eles arrumam tempo para a reprodução da espécie).
Mas, alto lá: eu sou um koala diferente. Nasci e me criei no galho-biblioteca, para onde devo ter sido arrastado por alguma lufada dos bons ventos australianos. Desde então me acostumei a dormir no meio dos livros, a caminhar lendo livros, a sonhar com livros e a me imaginar vivendo uma vida só de leituras e de resenhas de livros. Ainda vou fazer isso e talvez nem precise de uma outra encarnação; esta mesma daria conta do recado. Só preciso de um orçamento do tamanho do da Library of Congress, de uma boa rede à sombra das palmeiras, de um estoque de água mineral com gás, de um laptop wireless dotado de dictavoice e de uma assinatura da The New York Review of Books. O resto é supérfluo, inclusive as palmeiras (na verdade detesto exibicionismos).
Ainda vou fazer isso, ainda que possa demorar mais um pouco: só me falta aprender a gostar de folhas de eucalipto (que devem ser horríveis…).

Moral da história: você não precisa deixar de ser quem você é, para fazer aquilo que mais lhe dá prazer na vida: basta um pouco de imaginação e paciência de koala…

Washington, 7 de setembro de 2003.
Brasília, 19 de novembro de 2004.

domingo, 20 de novembro de 2011

E por falar em koala (mais um texto sugestivo, esquecido nos arquivos...) - Paulo Roberto de Almeida


O koala e a coruja
Paulo Roberto de Almeida
( 23 de dezembro de 2005)
            Os chineses têm o curioso costume de batizar, segundo um ciclo que se repete após um determinado período, cada ano do calendário com o nome de um animal, existente na natureza ou pertencente à mitologia: ano do macaco, do cachorro, da cobra, da lebre, do dragão, e por aí vai.
            Não sei se existe algum ano do koala e outro da coruja, mas agora me deu vontade de batizar, não o ano que começa, mas o ano que acaba de passar, como o ano do koala e da coruja, assim mesmo, com dois animais ao mesmo tempo. Explico porque e dou logo as minhas razões, para ninguém pensar que eu fiquei louco ou que estou, de repente, adquirindo manias chinesas. Se isso virar um hábito, assim seja: no ano que vem, invento dois outros animais (ou mantenho esses mesmos).
            É que eu tenho a maior simpatia por esses dois animais, que deveriam ser erigidos à categoria de ícones da paciência e da sabedoria, respectivamente (ou vice-versa). Já tive a oportunidade de escrever sobre “minha vida de koala”, e não vou repetir o prazer que senti em me imaginar um koala, desses bem normais, comendo suas folhas de eucalipto e descendo vagarosamente de galho em galho para ir se acomodando a uma vida tranqüila e modorrenta (na verdade, eu estava imaginando usar dois terços do meu tempo útil para ler, não para dormir, como faz o koala, mas isso não vem ao caso agora). Também admiro as virtudes “hegelianas” da coruja que, segundo aquele filósofo dialético, sempre acompanhava Minerva – Palas Atena para os gregos –, a deusa da sabedoria.
Pois bem, o que me faz introduzir esse novo hábito estranho de pretender batizar, duplamente e retrospectivamente, o ano que se passou com o nome desses dois animais? Acho que este ano de 2005 foi particularmente rico para mim, em dois sentidos: primeiro adquiri uma tranqüilidade e uma satisfação com a vida que não tinha conhecido em muitos anos; depois porque adquiri mais alguns grãos de sabedoria, que acho que têm a ver mais com a sensibilidade do que propriamente com o conhecimento.
Por um lado, parei de ter aquele frenesi de sempre escrever e publicar (talvez um livro por ano), essa terrível mania de estar sempre sentado na minha mesa de trabalho, lendo algum livro ou escrevendo algum texto. Passei a contemplar mais a vida, a ver as coisas com outros olhos, a caminhar pensando no muito que já fiz e no muito que ainda tenho por fazer. Nem tudo é uma questão de produtividade: aliás, se formos aplicar esse conceito ao koala, ele entra no Guinness dos recordes da improdutividade, vagabundagem e preguiça. A sua produtividade deve ser marginal ou próxima do zero: ele é a própria “teoria da classe ociosa” – a famosa leisure class, copyright do Thorsten Veblen –, a imagem mesmo do dolce far niente, um monumento ao droit à la paresse, como diria o Paul Lafargue, uma completa oisiveté, ou como diria o douto Bertrand Russell, in praise of idleness. Agora, me dou ao luxo de não fazer nada, ou melhor, contemplar a natureza e as coisas belas da vida, de preferência algo que combine beleza interna e externa, forma e conteúdo, caráter e substância.
Por outro lado, adoro a coruja, pelo que ela tem de simbolicamente profundo, de sensível, de olhos inteligentes e argutos, sempre atentos e prontos para entrar em ação no melhor momento de fazê-lo. Ela é, ao mesmo tempo, contemplativa e ativa, silenciosa e altaneira, expansiva e retraída, triste e alegre, aberta e fechada, enfim, “filósofa” e “normal”, digamos assim. Ter uma coruja como companhia é uma garantia de reflexão ponderada, mas também de raciocínio rápido, impecável na lógica, mas dotado de rara sensibilidade, como se ela nos transmitisse, de uma só vez, certezas e dúvidas, segurança e inquietação. Acho que todas essas características contraditórias são próprias do pensamento curioso, animado de um ceticismo sadio, das almas sensíveis aos desígnios da criação inovadora, mas também da preservação da boa tradição. É a coruja quem fica por cima do ombro do filósofo, provavelmente assoprando-lhe ao ouvido o que ele poderia cogitar sobre uma dada situação na vida, ou sugerindo-lhe alguma solução genial a um problema inesperado.
Por tudo isso, e também pelo prazer que essas figuras mais do que simbólicas me deram ao introduzir um novo significado em minha vida neste ano de 2005, não hesito um só instante em batizar, retrospectivamente, este ano que se encerra como o ano do koala e da coruja. Espero que esses simpáticos animais venham me visitar novamente em 2006, e que esta situação possa durar até onde a vista alcança...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, Sexta-feira, 23 de dezembro de 2005

Minha vida de Koala (um texto PRA, jamais publicado)


Minha vida de koala
fábula fabulosa (à la manière de La Fontaine)

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

E se eu não fosse quem eu sou?
A pergunta faz sentido, sobretudo se colocada no contexto da herança deixada pelos “anos de chumbo”, nas décadas de 60 e 70, quando muitos opositores ao regime militar então em vigor tiveram de assumir outras identidades, de maneira a resguardar a segurança pessoal ou a dos familiares. Alguns aderiram à nova identidade e gostaram tanto da “personalidade alternativa” que preservaram a vida do alter ego mesmo depois de plenamente restabelecida a democracia no Brasil.
Não foi o meu caso, mas ainda assim a pergunta toca numa corda sensível, já que implica que eu poderia ter nascido sob outro nome, ter tido uma outra história de vida, ter sido uma pessoa completamente diferente daquela que se apresenta agora sob esta identidade de funcionário público e professor universitário, completamente desprovido desta aparência anódina de intelectual de gabinete. Eu bem que poderia ter sido, a despeito deste ar tranqüilo de “combatente da pluma”, um perigoso contraventor da lei e da ordem, um “subversivo” como então se dizia, um marxista enragé (e engagé) ou então um anarquista franco-atirador, tão ameaçador da saúde das instituições en place quanto o libertário radical que de fato eu sou atualmente. Tampouco foi o meu caso, mas caberia considerar seriamente a hipótese levantada acima, pelo menos teoricamente, e talvez até mesmo hipoteticamente, num terreno situado externamente à espécie humana.
Sim, vejamos: se eu não fosse este bípede leitor e escrevinhador, com este jeito de eternamente distraído e sempre absorto em alguma leitura atrasada, o que eu poderia ser? Ou melhor: o que eu gostaria de ser? Boa pergunta esta, mas a resposta já foi dada acima, assim que o resto da fábula não apresenta mais surpresas, apenas curiosidades.
Com efeito, considerando todas as possibilidades disponíveis no reino animal – não, eu não estava considerando nada nos reinos vegetal ou mineral – e as alternativas indicadas no caso de um cidadão pacato como este que vos fala e escreve, fiquei bastante tentado a, numa segunda (ou em qualquer outra) encarnação de vida, formular ao todo poderoso senhor criador de todas as coisas meu desejo de voltar ao mundo como koala. Pausa para explicar essa do “criador”, num texto de um “materialista vulgar”, ou pelo menos um “irreligioso” assumido. A justificativa é perfeitamente lógica: num exercício que se pretende de “reencarnação”, o mínimo que se poderia querer, como fiat inescapável, é a existência de um criador supremo, que fica brincando com a vida da gente, dando a um sapo a conformação de um príncipe, a uma barata a beleza de Nefertite ou a um fracote poderes de Napoleão (mas existem muitos concorrentes neste caso).
Pois bem, por que, exatamente, eu gostaria de ser esse estranho animal do tão distante continente australiano? Por algumas razões muito simples: aprendi que o koala passa 80% do seu tempo dormindo, 10% comendo e os 10% restantes apenas esperando a próxima refeição ou o próximo dodô (sitting-by, dizem os australianos). Para quem só passa 20% do seu tempo dormindo, essa perspectiva é verdadeiramente fabulosa, digna de algum La Fontaine do sono. Não sei se os koalas são todos funcionários públicos do Serviço Zoológico Nacional da Austrália, mas esse emploi du temps me parece bom para aposentados, preguiçosos ou hedonistas de maneira geral (o que eu ainda não sou, mas um dia chegarei lá). Trata-se de uma repartição de ocupações que melhor reflete um ideal de cultura zen, contemplativa, que não pode fazer nenhum tipo de mal à humanidade, à condição, obviamente, que se tenha de onde tirar o alimento.
Os ecologistas mais radicais por certo me apoiariam nessa reencarnação, pois eles estão sempre querendo nos fazer voltar ao equilíbrio da vida natural, distanciada da vida agitada da civilização e seus nefastos efeitos poluidores. Como isso não parece perto de ocorrer na minha vida terrena, vejamos como eu poderia organizar minha vida para me aproximar daquela distribuição fabulosa de tempo, desde que invertendo, está claro, a repartição de tarefas para melhor refletir minhas prioridades de vida.
Atualmente, passo 60% do tempo trabalhando (no meu emprego assalariado e em tarefas acadêmicas auto-assumidas), 20% dormindo e o quinto restante numa variedade de ocupações familiares, locomotoras, alimentícias e duchísticas (sem esquecer a lista do supermercado). Não está mau, mas poderia estar melhor se eu tivesse um modo koala de ser. Vejamos como isso seria possível.
Eu acordaria às 11 horas da manhã, não precisaria ler as últimas notícias daquele chatérrimo jornal conservador do qual sou assinante, não correria para consultar e-mails, não teria, sobretudo, de sair correndo de casa para o trabalho, tentando demonstrar a mim mesmo que as muitas horas empregadas durante a noite em leituras sonolentas e em navegações na internet são de fato “úteis” para aquele novo trabalho que pretendo terminar ainda nesta manhã (hélàs, ainda não foi desta vez). Não precisaria mais usar gravata nem paletó e poderia sair de casa sem lenço e sem documento.
Ou melhor: eu não sairia, eu ficaria. Eu simplesmente desceria lentamente do meu galho-cama para o galho-cozinha, me serviria de algumas folhas de eucalipto e, voilà, já teria ganhado metade do meu dia. A caminho (lentamente) do galho-biblioteca, eu daria um bom-dia à patroa e às crianças, não teria de me ocupar do horário da escola, do dever de casa, das compras de supermercado, da arrumação da mesa da sala, da retirada de jornais do dia anterior e, sobretudo, de lavar a louça das refeições. Em muito menos tempo do que se emprega para dizer saperlipopette, eu teria alisado os pêlos, lambido os beiços do resto de suco de eucalipto e estaria pronto para me dedicar ao esporte favorito de todo koala: dormir (não sei quando eles arrumam tempo para a reprodução da espécie).
Mas, alto lá: eu sou um koala diferente. Nasci e me criei no galho-biblioteca, para onde devo ter sido arrastado por alguma lufada dos bons ventos australianos. Desde então me acostumei a dormir no meio dos livros, a caminhar lendo livros, a sonhar com livros e a me imaginar vivendo uma vida só de leituras e de resenhas de livros. Ainda vou fazer isso e talvez nem precise de uma outra encarnação; esta mesma daria conta do recado. Só preciso de um orçamento do tamanho do da Library of Congress, de uma boa rede à sombra das palmeiras, de um estoque de água mineral com gás, de um laptop wireless dotado de dictavoice e de uma assinatura da The New York Review of Books. O resto é supérfluo, inclusive as palmeiras (na verdade detesto exibicionismos).
Ainda vou fazer isso, ainda que possa demorar mais um pouco: só me falta aprender a gostar de folhas de eucalipto (que devem ser horríveis…).

Moral da história: você não precisa deixar de ser quem você é, para fazer aquilo que mais lhe dá prazer na vida: basta um pouco de imaginação e paciência de koala…

Washington, 7 de setembro de 2003.
Brasília, 19 de novembro de 2004.