Bem, isso não é grande coisa: os companheiros são amigos de qualquer um, mesmo de bandidos registrados na Yakuza, ou patifes consumados, desde que o indigitado em questão (pode até ser indiciado, não tem problema), lhes prometa apoio ou acene com ajutório em sua obra de consolidar o poder.
Tudo vale se a alma não é pequena, e o bolso se engrandece com qualquer coisa que não seja requerido falar a verdade...
Paulo Roberto de Almeida
Embelezamento autobiográfico Marcelo de Paiva Abreu
O Estado de São Paulo, segunda-feira, 20/02/2012
O suplemento EU & Fim de Semana, do jornal Valor, publicou em 10/2/2012 entrevista do ex-ministro Delfim Netto sob o título O homem que se reinventou. O título parece inspirado na evolução de ministro da ditadura a eminência parda dos governos do PT. Mas, no que diz respeito à avaliação que o entrevistado faz de vários episódios cruciais nos quais esteve envolvido, um título mais apto seria O homem que se repete. Embora a entrevista inclua simpáticas referências ao cotidiano do ministro e à sua família, sobre a vida pública foi uma repetição de interpretações baseadas em lembranças seletivas já ventiladas em entrevista anterior, ao próprio Valor Econômico, de 30/9/2005.
Repito o que escrevi sobre Delfim Netto, nesta mesma página, sob o título História e fábula, em 10/10/2005, comentando a entrevista de 2005: "É referência nacional em relação a vários atributos: astúcia, jogo de cintura, rapidez nos comentários ferinos. Jovem, escreveu tese sobre o café no Brasil que figura em qualquer lista das melhores obras sobre a economia brasileira. Foi figura importante na consolidação do ensino de Economia na USP, nas décadas de 1950 e 1960. Depois, durante longo período na ditadura militar, foi ministro todo-poderoso, responsável pela política econômica. Entre 1967 e 1974, emplacou a imagem de pai do "milagre brasileiro", quando a economia cresceu a taxas próximas a 10% ao ano, na esteira de um boom na economia internacional. Na sua volta, entre 1979 e 1985, já não teve tanto sucesso, a julgar com base na inflação alta e na intensidade da recessão".
Na entrevista recente, Delfim Netto repete afirmações que merecem, de novo, reparo. A primeira é quanto às suas relações com a ditadura. Ao ser perguntado se "sente algum incômodo, constrangimento, por ter participado dos governos militares", responde: "Me causa o incômodo natural que causa a todas as pessoas quando o Estado abusa do seu poder". Perguntado se "não lhe chegavam notícias dos porões do regime", responde: "Não! Há um equívoco completo nisso. Tinha uma divisão absolutamente total entre a política e a economia".
Não é o que se depreende de manifestações do ministro, em particular de sua incitação para que o Ato Institucional número 5, de 1968, fosse ainda mais radical. Suas palavras à época: "Estou plenamente de acordo com a proposição... direi mesmo que ela não é suficiente... deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez". Não parece leviano entender a declaração como justificativa econômica para o fechamento político.
A segunda afirmação questionável de Delfim Netto é a sua versão da demissão de Mário Henrique Simonsen, substituído por ele mesmo no Ministério do Planejamento. Segundo Delfim, Simonsen - "grande amigo" seu - resolveu pedir demissão porque acreditava que Paul Volcker, à frente do Federal Reserve, aumentaria a taxa de juros e, "com a dívida que fizemos no governo Geisel, não temos como pagar". Figueiredo teria ficado possesso com a forma com que Simonsen se demitira. Em suma: Simonsen não estava disposto a enfrentar o problema e preferiu abandonar estouvadamente o cargo, deixando uma dívida impagável.
No seu discurso de posse no Planejamento, em 15/8/1979, em meio a verdadeira apoteose empresarial, Delfim instou: "Senhores, preparem seus arados e suas máquinas, vamos crescer". Era uma crítica à estratégia de seu predecessor de crescer a taxas moderadas para conter a inflação. Como ministro da Agricultura, já havia saído vitorioso diante de Simonsen, quando em maio os preços mínimos agrícolas haviam sido aumentados acima de 50%. Nas palavras do próprio Delfim: "Eu tinha a obrigação de defender a agricultura. Ele, de defender a caixa" (V. Alberti, C. E. Sarmento e D. Rocha (orgs.), Mario Henrique Simonsen. Um homem e seu tempo, Rio de Janeiro, 2002).
Simonsen escreveu sobre 1979 com bastante senso de humor (M. H. Simonsen, 30 anos de indexação, Rio de Janeiro, 1995): "O discurso inicial de austeridade (do governo Figueiredo) foi posto de lado, em agosto de 1979, com a substituição do impopularíssimo ministro do Planejamento, que queria reduzir a taxa de crescimento do produto real para 3% ou 4% ao ano, a fim de ajustar o País ao segundo choque do petróleo e à escalada dos juros internacionais. Imediatamente, se lançou na aventura de uma expansão monetária... na tentativa de conter a inflação pela expansão da oferta de bens e serviços... A inflação quase imediatamente subiu de 45% ao ano para 45% ao semestre". Após crescer mais de 9% ao ano em 1980, a economia brasileira registrou no triênio seguinte a maior recessão de sua história, com a inflação além dos 200% ao ano. O governo, assim, fracassou a segunda tentativa de fuite en avant de Delfim Netto.
Ao se dedicar ao embelezamento autobiográfico, Delfim Netto desmerece os aspectos positivos de sua vida pública. Talvez mais grave, não faz bom uso da "boutade" que tanto aprecia: a de que "a gente fica mais virtuoso quando o futuro virou passado".
*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio.
Professor, você conhece a SiNUS? Pode me dizer algo?
ResponderExcluir"Me causa o incômodo natural que causa a todas as pessoas quando o Estado abusa do seu poder". O Estado continua abusando do seu poder e o Delfim o apóia...
ResponderExcluir