Não iria entrar diretamente nessa polêmica chata sobre gasto público, mas dado que estou recebendo consultas sobre um parágrafo do artigo do economista André Lara Resende no valor vou explicar rapidamente aqui e, depois, vou fazer algo mais detalhado. Vou escrever um artigo com Samuel Pessoa para explicarmos em detalhe isso e colocar posts no blog sobre Finanças Públicas 101. O parágrafo polêmico do André Lara Resende é o seguinte:
“Apesar de extrair da sociedade mais de um terço da renda nacional, o Estado perdeu a capacidade de realizar seu projeto. Não o consegue entregar porque, apesar de arrecadar 36% da renda nacional, investe menos de 7% do que arrecada, ou seja, menos de 3% da renda nacional. Para onde vão os outros 93% dos quase 40% da renda que extrai da sociedade? Parte, para a rede de proteção e assistência social, que se expandiu muito além do mercado de trabalho organizado, mas, sobretudo, para sua própria operação. O Estado brasileiro tornou-se um sorvedouro de recursos, cujo principal objetivo é financiar a si mesmo. Os sinais dessa situação estão tão evidentes, que não é preciso conhecer e analisar os números. O Executivo, com 39 ministérios ausentes e inoperantes; o Legislativo, do qual só se tem más notícias e frustrações; o Judiciário pomposo e exasperadoramente lento.”
Olha só. Eu gostaria que o André Lara estivesse correto porque todo mundo detesta governo gastador e, assim, seria mais fácil fazer uma reforma fiscal para valer, reduzindo gasto com a manutenção da máquina para reduzir carga tributária e aumentar investimento. Mas isso está errado. É tão óbvio que “nem precisa analisar os números”.
Primeiro, a ideia de que o aumento do numero de ministérios é o grande responsável por um aumento excepcional do gasto é uma falácia. Isso atrapalha muito a coordenação do governo mas não é o motivo da expansão do gasto público desde 2003. Alguém quer apostar comigo? eu topo colocar $$ nesta aposta. Vários dos atuais ministérios já existiam e foram transformados de secretarias para ministérios. Por exemplo, nessa conta entra o Banco Central e a Advocacia-Geral da União. Os titulares dessas pastas não eram ministros e foram transformados em ministros. Será que isso aumentou o gasto? Nos outros casos é possível que tenha ocorrido aumento de gasto mas poderíamos até acabar com essas pastas que o ganho em economia fiscal seria mínimo.
Segundo, no mundo todo, países que gastam mais como % do PIB são aqueles que gastam mais com politicas sociais: transferência de renda, educação e saúde. Gasto do governo como % do PIB entre países e ao longo do tempo é explicado por esse tipo de gasto. Leiam o livro do Peter Lindert de 2004 “Growing Public”. Eu não conheço base alguma que explique tamanho de setor público em um país baseado em gastos com manutenção da máquina pública.
Terceiro, alguém me falou que pelos dados do Banco Mundial o consumo do governo no Brasil (que exclui transferências) é de 21% do PIB. Como o gasto total do setor público no Brasil é cerca de 38% a 40% do PIB, mais da metade do gasto seria então gasto do leviatã com a sua própria existência. Isso está ERRADO. Nesse dado do Banco Mundial, consumo do governo inclui pagamento de pessoal e compra de bens e serviços pelo setor público. O que concordo é que o valor não é pequeno; é alto. Mas aqui há coisas que para se resolver é preciso entrar no debate político: focalização dos gastos com saúde e educação.
Pelos dados do próprio Banco Mundial, o gasto com saúde pública no Brasil é de 4,1% do PIB e o gasto com educação pública é de 5,8% do PIB. Os dois juntos somam 9,9% do PIB. O investimento público total no Brasil é de 2,5% do PIB. Vamos supor (exageradamente) que metade seja para áreas de educação e saúde. Assim, gastos com custeio e pessoal nas áreas de educação e saúde no Brasil seriam de 8,7% do PIB. Assim, a conta de 21% do PIB seria reduzida para 12% do PIB se excluirmos gasto com pessoal e custeio das funções saúde e educação. Gasto com saúde é na sua grande maioria pagamento de internações, compras de remédios, etc. feitas pelo SUS e o gasto com educação inclui desde merenda escolar a pagamento de funcionários. Acho difícil alguém falar que merenda escolar é “gasto do governo com a sua manutenção” mas isso entra na estatística de consumo do governo.
Talvez haja um número excessivo de trabalhadores na área de educação não ligado as atividades de ensino, o que é verdade (ver esse excelente artigo do Gustavo Ioschpe). Mas isso não significa um bando de burocratas nos gabinetes em Brasilia dar a entender o texto do André Lara Resende (mas talvez essa não tenha sido a intenção do André). Na verdade, os dados com despesa com pessoal do link acima isso mostram que temos algum espaço para melhorar a oferta de serviços de educação sem precisar aumentar o gasto total (% do PIB).
Quarto e último ponto, é fácil ver como está dividido o gasto por nível de governo (municípios, estados e governo federal) a partir do balanço do setor público nacional. Aqui é preciso dois cuidados. Primeiro, não é possível somar os dados das três esferas de governo porque nessa base há problemas de dupla contagem. Assim, o correto é identificar por nível de governo como os recursos fiscais são gastos por função. Segundo, o gasto do setor público é dividido em 28 funções. A função 28 – encargos especiais- é onde aparece várias despesas de subsídios, pagamento de juros e amortização da dívida. Assim, na análise que faço abaixo vou deixar essa função de fora para que os dados de juros e refinanciamento da dívida não atrapalhem a análise.
Os dados abaixo são para 2011 e a divisão do gasto por função soma os três tipos de despesa (pessoal, custeio e investimento). O que os dados mostram?
Tabela 1 – Gasto Público por Função – Municípios, Estados e Gov Federal – % do PIB – 2011
Fonte: Balanço do Setor Público Nacional
Na tabela acima identifiquei as funções que mais pesam no orçamento de cada nível de governo. Vou começar a análise pelo governo federal. Os nomes não precisam de explicação, mas vale lembrar que as funções previdência (pública e privada), assistência social (LOAS, Bolsa-Familia) e trabalho (seguro-desemprego e abono salarial) são contas que envolvem transferências para as famílias. No caso do Governo Federal, essas três funções ligadas à transferências representaram 10,6% do PIB em 2011, que é 61% do gasto total do governo federal no ano (10,6% do PIB dividido por 17,34% do PIB). Se acrescentarmos gastos com as funções saúde e educação, quase 80% do gasto do governo federal (13,63% do PIB dividido por 17,34% do PIB) passa a ser explicado pelas contas de transferência+ saúde+ educação.
No caso dos estados, pesa a conta de educação, saúde, previdência social e segurança pública. Essas quatro contas somam 6,3% do PIB, que é 66% do gasto total dos estados (6,3% do PIB divido por 9,60% do PIB). Aqui, se você quiser falar em desperdício no âmbito dos estados tem que entrar na conta da educação, saúde e segurança pública. É possível que o dinheiro esteja sendo mal gasto, mas não é com passagens de avião ou xerox.
No caso dos municípios, tem um ponto interessante. Os três maiores gastos concentram-se em educação, saúde, e administração. Aqui parece que, finalmente, André Lara Resende parece ter acertado. Mas os 0,88% do PIB gasto com a função administração está longe de ser mais da metade do gasto dos municípios. Adicionalmente, se olharmos o crescimento da despesa para este nível de governo de 2002 a 2011, o que se destaca é o crescimento do gasto com educação e saúde como seria o esperado, pois são gastos com vinculação constitucional.
Tabela 2 - Gasto Público por Função nos Municípios- % do PIB – 2002 e 2011
Resumindo, a tese do André Lara Resende está errada. O setor público no Brasil gasta muito porque gasta muito com transferências (assistência social, previdência, e trabalho) e com educação e saúde. Essas cinco funções explicam muito mais de 50% do gasto do setor público e as ruas querem ainda mais!!!
O que precisamos discutir é porque os gastos com educação e saúde que tem crescido muito não dão o retorno esperado. Esse debate vai deixar claro que o problema não é apenas falta de dinheiro. Assim, ao invés de falar em “gasto do governo para financiar a si mesmo”, Lara Resende deveria ter sugerido um pente fino nos gastos com saúde e educação. Mas não se enganem. Se o SUS for mais eficiente, eu cancelo na mesma hora o meu plano de saúde privado de modo que a economia esperada nessa área é dúbia.
Por fim, não há como continuar fazendo mais do mesmo com os programas de transferências de renda- turbinando todas as políticas de transferências. Aqui o debate é tentar convencer à sociedade de que vale a pena concentrar esforços nos programas mais baratos e focalizados nos mais pobres. Independentemente de minha ou da sua vontade, o Brasil não escapará de uma reforma da previdência, mesmo que a mesma seja feita a conta-gotas. Se a sociedade não quiser fazer, paciência. Mas neste caso teremos que criar um novo imposto.
De qualquer forma, a ideia que podemos contratar um SUPER administrador que vai solucionar o problema do gasto público no Brasil é equivocada. É o tipo de proposta que muita gente faz e a culpa aqui não é apenas do André (um economista que admiro muito). Escuto isso de amigos meus. Infelizmente, o mundo nem sempre funciona de acordo com a nossa percepção. Eu tenho a percepção que sou tão bonito quando o Tom Cruise e o Brad Pitt, mas com exceção da minha esposa, ninguém mais acha isso.
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