Percival Puggina
"A venalidade, disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?"
Puxei ao acaso da estante, anteontem, o livro de contos "Histórias sem data" de Machado de Assis. A narrativa que abre a coletânea chama-se "A igreja do Diabo". Ao folheá-lo, me deparei com o período transcrito acima, sublinhado pela mão de minha mãe, que o lera em 1939. Tenho certeza de que a diabólica construção mental que o Capeta, entre outras igualmente criativas, urdira para atrair fieis à sua igreja surpreendeu mais a jovem Eloah do que a mim. A ela, encantou a originalidade do raciocínio do Diabo. A mim, que me tocou viver no Brasil nestes anos de moral gelatinosa, aquelas palavras pareceram proféticas. O que era raciocínio satânico, obra de um finório Belzebu, apresentado aos leitores do século 19, chega-nos agora aos olhos como expressão de conduta corrente. Onde? Precisamente nos circuitos onde a opinião, o voto, a palavra e a fé tem valor. Valor que pode ser convertido em moeda corrente.
O Maligno não reúne freguesia tão numerosa e influente, num país vasto como o Brasil, sem antes haver percorrido laboriosos caminhos na deformação das consciências. E não executa sua obra de demolição à base de trombadas e atropelamentos, mas com sutileza que convém identificar. Tanto na literatura quanto na vida das pessoas, a religiosidade (e no Ocidente, de modo especial, o Cristianismo) exercia no tempo de Machado grande influência sobre a cultura e os valores morais. Assim, para atrair fieis à sua paróquia, o Diabo do conto machadiano não cuidou de arrancar a fé do coração dos indivíduos. Não, isso é muito difícil e custoso. As pessoas, a imensa maioria delas, se recusa a acreditar em nada ou no Absoluto Nada. O Diabo tem razões que a razão conhece.
E a razão dele é conhecida, mesmo. Muito mais fácil do que retirar do coração das pessoas a ideia de Deus e de uma ordem moral, é transmitir a elas um - digamos assim, por falta de algo melhor - "princípio regrador", facilmente aceito pelas mentes da pós-modernidade: o Estado deve ser laico e a religião tema de foro íntimo, para ser exercitado nos recessos dos lares e dos templos. A portas fechadas, cortinas corridas, com produção de um mínimo de decibéis.
Fácil como comprar maconha no Uruguai. Basta, depois, mostrar às pessoas que os valores e princípios que elas adotam decorrem de uma moral de base religiosa. E menos de meio sermão será suficiente para extrair dessa evidência uma conclusão de lógica satânica: também ela, a moral, com vistas ao bem da laicidade do Estado, deve ser expurgada para aqueles mesmos compartimentos estanques e privados onde jazem os cultos e as expressões de fé.
No conto de Machado, a igreja do Diabo acaba perdendo seu público. No Brasil, por enquanto, ela vai como o Diabo gosta
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