Editorial – RBPI 2/2014 – Os sessenta anos do
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais
Antonio Carlos Lessa e Paulo Roberto de Almeida
Talvez – e aqui vai um pouco de imaginação – o
punhado de intelectuais, de acadêmicos, de burocratas de alto coturno (entre
eles vários diplomatas e magistrados), de vários outros mandarins públicos e
privados da República de 1946, que se reuniu no velho Palácio do Itamaraty, no
Rio de Janeiro, no final do mês de janeiro de 1954, para fundar o Instituto
Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), talvez esse pequeno grupo de
desbravadores de um terreno ainda inexplorado no Brasil estivesse pensando no
modelo do Council on Foreign Relations, dos Estados Unidos, como uma fonte de
inspiração para a fundação, o estabelecimento oficial e o funcionamento prático
da nova instituição que então surgia de forma inédita no país, no governo
constitucional de Getúlio Vargas.
Pode ser. É legítimo supor que aquelas
personalidades bem informadas, todas elas cosmopolitas, abertas aos ares do
mundo, conhecessem o trabalho do Conselho de Nova York, provavelmente pela
existência de seu principal instrumento de análise, de reflexões e de
prescrições sobre a política internacional e para a diplomacia americana, a Foreign
Affairs, sobretudo porque a revista havia completado seu primeiro quarto de
século pouco tempo antes, e seu editor havia feito um Reader
comemorativo na ocasião. Ela já era intensamente lida nesses meios conectados
às realidades da política mundial na era da Guerra Fria, e o volume especial,
reunindo os textos mais significativos dos 25 anos anteriores, tinha sido
publicado justamente quando certo Mr. X, o diplomata George Kennan, ainda
baseado em Moscou, havia publicado um artigo intrigante sobre as fontes do
poder soviético, que constituiria não só a base conceitual, mas também a
legitimação política para a doutrina do containment, que seria rigorosa
e religiosamente aplicada pelos EUA no meio século seguinte, até praticamente a
derrocada da União Soviética.
Talvez. Não sabemos, de fato, qual era o
pensamento dominante entre aqueles visionários, que queriam colocar o Brasil no
mapa da análise, da reflexão, e da ação em temas de política internacional,
conceito que acabou sendo impresso no título da revista que surgiria pouco mais
de quatro anos depois, período extremamente movimentado sob qualquer critério
que se examine no contexto de nossa história republicana: suicídio do
presidente incumbente – do qual, aliás, vários dos fundadores do IBRI eram
assessores diretos –, seguido da sucessão tumultuada de três outros
presidentes, de golpes e contragolpes, com a participação de militares, de uma
campanha eleitoral e da posse de um presidente contestada como inconstitucional
pelo principal líder da oposição – e que depois seria um dos mentores do golpe
de 1964 –, de todo um clima de efervescência geral no país, de otimismo pela
promessa dos “cinquenta anos em cinco”, mas também um período permeado por mais
tentativas de sublevações militares, marcado por um rebrote preocupante da
inflação, bastante empurrada pela construção de Brasília e pelas primeiras
diatribes contra o FMI, então demonizado politicamente como um “obstrutor” do
desenvolvimento brasileiro. Foi nesse ambiente febril que surgiu a Revista
Brasileira de Política Internacional, que em breve também comemorará os
seus 60 anos.
O Reader da Foreign Affairs,
volume especial publicado pelo Council em 1947, já estava integrado à
Biblioteca do Itamaraty, e seu artigo inaugural [de 1922] tinha sido assinado pelo então
decano da diplomacia americana, Elihu Root, que tinha estado no Rio de Janeiro
em 1906, para uma das conferências das repúblicas americanas, acolhida por Rio
Branco, sob recomendação de Joaquim Nabuco, mas cujas posições pró-império já
eram contestadas por um competidor de ambos, o historiador Oliveira Lima. Pode
ser, ainda assim, que os “pais fundadores” do IBRI se inspirassem no modelo do
Council, e da Foreign Affairs, e tomassem inspiração nas figuras de Rio
Branco e de Elihu Root para impulsionar um projeto que não só sobreviveu às
intempéries políticas que soem se abater sobre um país em estado de recriação
permanente como é o Brasil. Mas é um fato que esse empreendimento desafiador
foi mantido por mais de duas gerações, em duas capitais da República, por
cosmopolitas dedicados, que têm a intenção de fazê-lo chegar ao seu primeiro
centenário, da mesma forma como o fará, dentro de pouco mais de sete anos, o
Council e a própria Foreign Affairs.
É certo que o IBRI não se converteu, nem
poderia, num êmulo do Council, que pôde dispor, desde sua origem, dos enormes
recursos da aristocracia endinheirada da costa leste dos Estados Unidos, do
prestígio associado ao establishment acadêmico da região atlântica e do próprio
cadinho cultural e cosmopolita de Nova York, a mais internacionalizada das
metrópoles daquele país, até mesmo mais do que Washington, uma vez que a ONU,
os bancos de Wall Street, os milhões de turistas estrangeiros e de imigrantes,
antigos e recentes, fazem daquela cidade uma aglomeração multinacional por
excelência. O IBRI, na verdade, sequer dispunha de locais apropriados, abrigado
de favor aqui e ali, até se instalar, nos últimos anos, na Fundação Getúlio
Vargas do Rio de Janeiro, de onde foram trasladados alguns poucos arquivos
quando de sua transferência, na verdade a sua recriação em Brasília, em 1993.
Ele nunca dispôs de uma conta em banco que fosse minimamente capaz, como fazia
o Council, de manter staff próprio, pesquisadores contratados, bolsistas
convidados, e empreender projetos de certa magnitude. Os livros de sua pequena
biblioteca – cedida para a FGV quando da despedida do Rio – foram obtidos em
doações de seus associados, em intercâmbio com instituições estrangeiras e
nacionais, ou adquiridos com os recursos de seus próprios membros.
A figura de Cleantho de Paiva Leite, depois do
presidente inaugural do IBRI, Oswaldo Trigueiro, do diplomata Henrique Valle e
do historiador José Honório Rodrigues, na RBPI, merece aqui uma menção
especial, e uma reverência obrigatória, pois foi ele o animador principal, o
editor “eterno” e o financiador pessoal do Instituto e de sua revista, que
permanece como a realização principal, quase única, do IBRI. Escrevendo, no
volume 35, n. 139-140 (julho-dezembro de 1992), ainda sob o impacto da morte de
Cleantho, o Embaixador Sérgio Bath, um dos recriadores do IBRI e da RBPI
em Brasília, disse que em todas as atividades em que ele se engajou,
Cleantho marcou sua presença pelo otimismo, a
disposição para o trabalho, o espirito criativo; a seriedade de propósitos
temperada por perene bom humor. Em toda parte, em muitos países fez numerosos
amigos; no Itamaraty, no DASP, no BID, no BNDE, era uma figura carinhosamente
respeitada. Conheceu bem a sua geração, e quando falava sobre o passado
reconstruía com riqueza de pormenores e acentos pessoais a trama de muitas
vidas, comentando-as com sorriso ameno, a percepção aguda de humor e empatia.
Realista, compreendia e aceitava os defeitos alheios, que coloria com
benevolência; mantinha-se conciliado com o mundo, acentuando sempre o melhor,
em todos e em tudo. Cultivava intensa dedicação aos amigos, que fazia questão
de servir. Nada o agradava mais do que receber a encomenda de um livro
recém-publicado, dar um conselho, uma indicação útil. A amizade era para ele
uma arte, que praticava com prazer.
O IBRI, em sua fase de Brasília, empreendeu
diversos convênios, realizou muitos seminários – vários deles internacionais,
em cooperação com universidades e instituições congêneres do exterior – e
editou muitos livros, que hoje integram qualquer lista de referência na
literatura especializada na área que é a sua, desde a origem. A RBPI
constitui, sem qualquer sombra de dúvida, o mais belo fruto deste instituto,
que nunca foi um impávido colosso, como seu êmulo de Nova York, mas que não
deixa de ser a moldura institucional indispensável para que o projeto
inaugurado em 1954 possa evoluir para etapas ainda mais brilhantes de um
itinerário modestamente exemplar.
A RBPI, decana das revistas especializadas em
Relações Internacionais no Brasil, e uma das mais tradicionais da América
Latina, realmente desponta como o projeto mais constante do IBRI. A
transferência para Brasília, juntamente com o IBRI em 1993, foi o mais
importante passo da já longa trajetória da Revista, porque lhe permitiu a
confirmação da sua identidade científica, a partir de então mantida e velada
consistentemente por professores de Relações Internacionais da Universidade de
Brasília.
O IBRI agora se prepara para celebrar também,
em 2017, o sexagésimo aniversário da publicação do primeiro volume da Revista.
Ao longo da sua história brasiliense, o IBRI e os professores e diplomatas que
animam a instituição, não pouparam energias e recursos para manter a Revista
como o seu grande empreendimento intelectual, que a essas alturas, já é um
patrimônio de toda a comunidade brasileira de Relações Internacionais.
Referências bibliográficas
BATH, Sérgio. Cleantho de Paiva Leite
(1921-1992). Revista Brasileira de Política Internacional, Vol. 35, No.
139-140, 1992.
Antônio Carlos Lessa, professor do Instituto de
Relações Internacionais da Universidade de Brasília, é editor-geral da
Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI;
Paulo Roberto de Almeida , diplomata de
carreira, é editor-adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional –
RBPI;
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