Até a bíblia do liberalismo reconhece que a meritocracia é uma ilusão
Flavio Moura – seg, 9 de fev de 2015A revista TheEconomist pode ser criticada por vários motivos, mas jamais por ser uma publicação de esquerda. Fundada em 1843, é a mais influente divulgadora do pensamento liberal de recorte clássico, aquele com origem nos pensadores britânicos do século XVIII.
Metade dos colunistas da imprensa brasileira que se auto intitulam “liberais”, quando não estão vocalizando preconceitos de classe, se pautam por matérias publicadas nessa revista.
Por isso é particularmente revelador o silêncio desses mesmos colunistas a propósito da matéria de capa da edição da última semana de janeiro. “Uma meritocracia hereditária”, diz o título do texto principal.
O argumento é simples: nos Estados Unidos, a pátria da ideologia em torno das “oportunidades iguais”, virou piada falar em meritocracia. Pelo simples motivo de que os filhos dos ricos e poderosos estão cada vez mais aptos a ganhar mais dinheiro e poder que os demais.
Claro que as elites econômicas, em todo lugar, sempre souberam se perpetuar e o nepotismo nunca deixou de ser um instrumento à mão.
Mas agora os americanos se deram conta de que a fração privilegiada das crianças e adolescentes, aquela cujos pais têm curso superior, dinheiro e boa rede de relações, é a que se encaixa melhor nos critérios meritocráticos.
Em outros termos: alguns “merecem” mais do que outros.
Há dados interessantes para embasar o argumento. Entre 1960 e 2005, a porcentagem de homens com diploma universitário que se casaram com mulheres que também concluíram o ensino superior subiu de 25% para 48%.
Isso significa um aumento bastante significativo na preocupação dos pais com a educação dos filhos. “As pessoas tendem a encorajar nos seus filhos o que valorizam nelas mesmas e nos seus parceiros”, diz o autor do texto.
Mais relevante do que isso: casais com ensino superior tendem a ter mais dinheiro para investir em educação. E isso tem gerado uma lacuna cada vez maior, do ponto de vista de renda, entre casais com maior escolaridade.
Eles também têm números para exemplificar: entre 1979 e 2012, a distância entre o rendimento de casais com nível universitário, em comparação aos vencimentos daqueles que têm apenas segundo grau, cresceu quatro vezes mais do que a distância entre os famosos “um por cento” mais ricos e o restante da sociedade.
Como é sabido para todos, o grande funil para a ascensão social é a educação – e o que a reportagem mostra é como esse capital valioso está cada vez mais escasso e dominado pelos mais ricos e bem formados.
Esse truísmo já está entronizado no pensamento de qualquer corrente que se queira preocupada com a desigualdade social. Mas é significativo que mesmo as bíblias do “liberalismo” contemplem essa nuance importante para a noção de “meritocracia”.
É um exemplo contundente de como a discussão está rebaixada por aqui.
O economista de esquerda mais festejado do momento, o francês Thomas Piketty, é a favor da economia de mercado e tira sarro da mentalidade presa na dicotomia da guerra fria.
A bíblia do liberalismo dá matéria de capa para construir uma noção menos chapada de meritocracia.
Já na briga de torcidas que impera por aqui, o pessoal continua gritando os disparates em branco e preto de costume.
Meritocracia para quem, cara-pálida?
Nossos liberais mereciam estudar um pouco mais.
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