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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Quem são os liberais, e o que eles têm a dizer? - Paulo Roberto de Almeida


Quem são os liberais, e o que eles têm a dizer?
Paulo Roberto de Almeida


O liberalismo é uma doutrina forjada mais sistematicamente em meados do século 19, embora possa ter raízes mais antigas, seja no iluminismo escocês (David Hume, Adam Smith) e na filosofia política britânica (John Locke é o mais distinguido, mas o economista John Stuart Mill também é representativo da corrente), seja já no constitucionalismo francês (Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville), e mesmo em algumas correntes da filosofia e do pensamento social alemão (como Immanuel Kant e Wilhelm Humboldt, por exemplo). No século 20, ele está mais identificado, no terreno econômico, com Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman, e com Isaiah Berlin e Raymond Aron, na filosofia da história e no pensamento político. Há também uma vertente do liberalismo social, que poderia ser representada pelo italiano Norberto Bobbio, que sempre tentou fazer uma ponte entre o pensamento liberal clássico e a moderna socialdemocracia, de corte reformista, ou socialista liberal. Já nos Estados Unidos, esse conceito se identificou de modo negativo com a socialdemocracia em sua vertente intervencionista, mas republicanos conservadores, como Ronald Reagan (que não era nada teórico), encarnaram uma vertente prática da doutrina liberal. Na Grã-Bretanha tivemos Margaret Thatcher, que leu, e gostou, de Hayek, e aplicou-o tanto quanto possível.
Existem, portanto, variantes do liberalismo, nas vertentes filosóficas, políticas ou econômicas, mas todas elas parecem exibir certos traços, ou compromissos, comuns: uma desconfiança do poder e a resistência a Estados muito fortes; uma crença básica no progresso social, ou seja, que os homens e suas instituições podem ser melhorados pela aplicação racional de políticas respeitando as liberdades políticas e econômicas; uma aceitação inquestionada do fato que mercados livres sempre funcionarão melhor do que suas alternativas planejadas ou dirigidas pela via do Estado; uma tolerância fundamental em relação às crenças e sentimentos pessoais, no simples entendimento de que sempre haverá algum tipo de conflito entre os interesses concretos dos indivíduos e suas crenças subjetivas, ou religiosas (que sempre são o resultado de construções humanas e sociais).
Em resumo, liberais não são absolutamente conservadores, e sim progressistas e adeptos de reformas contínuas. Eles não são religiosos, ou não é isso que os distingue no plano doutrinal, pois aceitam que as pessoas possam ter fé em doutrinas ou crenças religiosas. Eles são profundamente democráticos, pois acreditam que sempre se deve recorrer a consultas na comunidade, com vistas a um largo debate e o encaminhamento negociado de soluções racionais aos desafios sociais e aos problemas humanos. Eles têm um compromisso fundamental com as liberdades econômicas as mais amplas, base indispensável de sistemas políticos abertos e responsáveis.
Liberais se posicionam contra todos os privilégios, de qualquer tipo e origem, e acreditam na educação e na experiência do aprendizado prático como a melhor via para desenhar soluções a questões que emergem nas interações humanas. Por isso mesmo, eles confiam em que a pesquisa científica de boa qualidade, eticamente responsável, pode oferecer respostas tentativas aos problemas que aparecem na relação do homem com o ambiente. São pacifistas por convicção, não como princípio imutável, mas no sentido de sempre buscar o entendimento racional em caso de disputas ou de conflitos entre interesses e posturas divergentes; não repugnam, porém, ao uso da força, quando alguma vontade autoritária tenta impor soluções com uso de violência. Os valores da democracia e os direitos humanos devem ser resolutamente defendidos contra tiranos e usurpadores, se preciso for pela coerção física dos seus inimigos e contraventores.
Dito isto, os liberais verdadeiros não possuem respostas definitivas para todos os problemas de organização social ou dilemas humanos, com base justamente na modesta crença de que os homens são capazes de encontrar as soluções as mais adequadas, por vezes apenas aproximativamente, a certos problemas complexos, que envolvem não apenas crenças religiosas, mas também sentimentos morais e conflitos éticos. Por exemplo, os liberais deveriam ser a favor ou contra a liberação das drogas? Eles devem ser a favor ou contra a descriminalização do aborto? Eles são por um Estado laico irredutível, ou defendem a total liberdade religiosa, inclusive de catequese e exercícios de conversão de crianças no ensino público? Eles são por casamentos de pessoas do mesmo sexo? Concordam em que bebês e crianças sejam adotadas por tais casais?
Não é seguro que existam respostas unívocas, liberais ou de qualquer outra extração, a determinadas questões, que colocam pessoas em choque umas com as outras, independentemente de suas outras crenças políticas ou econômicas. Os liberais não pretendem ter respostas prontas e soluções “definitivas” a todos os problemas humanos e conflitos sociais, sobretudo de crenças, que devem ser deixados para a esfera dos sentimentos individuais. Na dúvida, ou na incerteza, eles propugnarão acompanhar a evolução dos costumes sociais, que já foram bem mais intolerantes no passado, nos terrenos referidos, do que aparentemente são hoje, com os progressos civilizatórios acumulados ao longo do tempo. Liberais são tolerantes e sempre defenderão a total liberdade das pessoas de adotar suas opções individuais, sem prejuízo de direitos e obrigações estabelecidas democraticamente pela comunidade.
O liberalismo é antes de mais nada uma construção social em constante estado de aperfeiçoamento doutrinal – nos campos do direito, da economia, da política – e por meio de experimentos de “ensaio e erro” no campo mais prático das políticas públicas, pois não existem respostas simples, ou universais, para problemas tão corriqueiros na vida das nações como educação, saúde, sistemas securitários, normas laborais ou para a política fiscal (que envolve um debate sobre o peso do Estado, o sistema tributário e, sobretudo, os desejos de certas correntes respeitáveis por maior igualitarismo social). Nesse campo de escolhas econômicas e de políticas públicas, os liberais procuram sempre privilegiar as mais amplas liberdades econômicas, com total garantia para a propriedade legítima e para a acumulação de riquezas que sejam fruto do trabalho (e não de privilégios administrados pelo Estado), mas também reconhecem a existência de diferenças sociais e de fortuna que merecem encontrar respostas adequadas no quadro de um amplo debate democrático sobre as melhores alternativas a esses problemas. Os liberais entendem que as melhores respostas a essas questões se situam na organização voluntária da sociedade, e não na distribuição pelas mãos de burocratas estatais, que sempre serão volúveis a alguma “taxa de intermediação” pelo “trabalho social”.
Liberais têm dúvidas, sobretudo quanto a projetos de engenharia social, contra os quais eles se posicionam racionalmente, com base na experiência histórica: tentativas de moldar a sociedade, ou de “corrigir os mercados”, sempre resultaram em desastres maiores do que os problemas supostamente na origem de imperfeições de mercado ou de desigualdades sociais. Também se opõem a todos os fundamentalismos, inclusive o do liberalismo, concebido como verdade inquestionável, e infenso ao debate aberto e tolerante com marxistas ou keynesianos, por exemplo, que exibem alguma legitimidade com base em suas propostas de “correção” dos problemas econômicos e sociais. Todas as sociedades apresentam componentes ideológicos e filosóficos os mais diversos e os liberais são herdeiros de uma das correntes da teoria social, o das liberdades individuais, contra o igualitarismo principista (e irrealizável) dos marxistas e contra pretensão dos keynesianos de erigir o Estado em guia e orientador supremo das forças econômicas.
Por fim, quem escreveu estes argumentos não se classifica em absoluto como liberal, pois entende que todo rótulo pode ser redutor ou simplificador das realidades necessariamente complexas do mundo concreto. Se algo poderia ser dito sobre o que guia o seu pensamento, apenas duas palavras o definem: racionalista e irreligioso.

Hartford, 2782: 26 de fevereiro de 2015.

Um comentário:

Castagna disse...

Bom dia meu caro Roberto, adorei o artigo.

Antes de o ler eu lia Hayek, "O argumento completo em favor da liberdade" (https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2225). No final do texto Hayek propõe: "O racionalista que deseja sujeitar tudo à razão humana encontra-se, assim, diante de um verdadeiro dilema. O uso da razão visa ao controle e à possibilidade de previsão. Mas o processo evolutivo da razão baseia-se na liberdade e na imprevisibilidade da ação humana."

E quem sabe se voltarmos até Spinoza poderíamos chegar também a conclusão que "O que acontece na política é também o que acontece em nossas vidas psicológicas! Ou seja, agimos como agimos em consequência de uma instauração de afetos, eles circulam e nos moldam, canalizam o corpo, lhe dão um curso. Enquanto formos afetados da mesma maneira, agiremos e repetiremos sempre as mesmas coisas. Só é possível ter outra experiência da vida social se formos afetados de outras formas. Transformações não são questões de novas ideias, são questões de novos afetos." (Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos)

Então me surgiu uma questão: o que professor entende por racionalismo citado ao final do artigo? "Se algo poderia ser dito sobre o que guia o seu pensamento, apenas duas palavras o definem: racionalista e irreligioso".
Pois eu vejo o seu artigo concorda com o Hayek, mas nesse ponto parece haver uma divergência.

Grato pela atenção, Daniel Santos