Quem são os liberais, e o que
eles têm a dizer?
Paulo Roberto de Almeida
O liberalismo é uma
doutrina forjada mais sistematicamente em meados do século 19, embora possa ter
raízes mais antigas, seja no iluminismo escocês (David Hume, Adam Smith) e na
filosofia política britânica (John Locke é o mais distinguido, mas o economista
John Stuart Mill também é representativo da corrente), seja já no
constitucionalismo francês (Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville), e mesmo
em algumas correntes da filosofia e do pensamento social alemão (como Immanuel
Kant e Wilhelm Humboldt, por exemplo). No século 20, ele está mais
identificado, no terreno econômico, com Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e
Milton Friedman, e com Isaiah Berlin e Raymond Aron, na filosofia da história e
no pensamento político. Há também uma vertente do liberalismo social, que
poderia ser representada pelo italiano Norberto Bobbio, que sempre tentou fazer
uma ponte entre o pensamento liberal clássico e a moderna socialdemocracia, de
corte reformista, ou socialista liberal. Já nos Estados Unidos, esse conceito
se identificou de modo negativo com a socialdemocracia em sua vertente
intervencionista, mas republicanos conservadores, como Ronald Reagan (que não
era nada teórico), encarnaram uma vertente prática da doutrina liberal. Na Grã-Bretanha tivemos Margaret Thatcher, que leu, e gostou, de Hayek, e aplicou-o tanto quanto possível.
Existem, portanto, variantes
do liberalismo, nas vertentes filosóficas, políticas ou econômicas, mas todas
elas parecem exibir certos traços, ou compromissos, comuns: uma desconfiança do
poder e a resistência a Estados muito fortes; uma crença básica no progresso
social, ou seja, que os homens e suas instituições podem ser melhorados pela
aplicação racional de políticas respeitando as liberdades políticas e
econômicas; uma aceitação inquestionada do fato que mercados livres sempre
funcionarão melhor do que suas alternativas planejadas ou dirigidas pela via do
Estado; uma tolerância fundamental em relação às crenças e sentimentos pessoais,
no simples entendimento de que sempre haverá algum tipo de conflito entre os interesses
concretos dos indivíduos e suas crenças subjetivas, ou religiosas (que sempre
são o resultado de construções humanas e sociais).
Em resumo, liberais não
são absolutamente conservadores, e sim progressistas e adeptos de reformas
contínuas. Eles não são religiosos, ou não é isso que os distingue no plano
doutrinal, pois aceitam que as pessoas possam ter fé em doutrinas ou crenças
religiosas. Eles são profundamente democráticos, pois acreditam que sempre se deve
recorrer a consultas na comunidade, com vistas a um largo debate e o
encaminhamento negociado de soluções racionais aos desafios sociais e aos
problemas humanos. Eles têm um compromisso fundamental com as liberdades
econômicas as mais amplas, base indispensável de sistemas políticos abertos e
responsáveis.
Liberais se posicionam
contra todos os privilégios, de qualquer tipo e origem, e acreditam na educação
e na experiência do aprendizado prático como a melhor via para desenhar
soluções a questões que emergem nas interações humanas. Por isso mesmo, eles
confiam em que a pesquisa científica de boa qualidade, eticamente responsável,
pode oferecer respostas tentativas aos problemas que aparecem na relação do
homem com o ambiente. São pacifistas por convicção, não como princípio imutável,
mas no sentido de sempre buscar o entendimento racional em caso de disputas ou
de conflitos entre interesses e posturas divergentes; não repugnam, porém, ao
uso da força, quando alguma vontade autoritária tenta impor soluções com uso de
violência. Os valores da democracia e os direitos humanos devem ser
resolutamente defendidos contra tiranos e usurpadores, se preciso for pela
coerção física dos seus inimigos e contraventores.
Dito isto, os liberais
verdadeiros não possuem respostas definitivas para todos os problemas de
organização social ou dilemas humanos, com base justamente na modesta crença de
que os homens são capazes de encontrar as soluções as mais adequadas, por vezes
apenas aproximativamente, a certos problemas complexos, que envolvem não apenas
crenças religiosas, mas também sentimentos morais e conflitos éticos. Por
exemplo, os liberais deveriam ser a favor ou contra a liberação das drogas?
Eles devem ser a favor ou contra a descriminalização do aborto? Eles são por um
Estado laico irredutível, ou defendem a total liberdade religiosa, inclusive de
catequese e exercícios de conversão de crianças no ensino público? Eles são por
casamentos de pessoas do mesmo sexo? Concordam em que bebês e crianças sejam
adotadas por tais casais?
Não é seguro que existam
respostas unívocas, liberais ou de qualquer outra extração, a determinadas
questões, que colocam pessoas em choque umas com as outras, independentemente
de suas outras crenças políticas ou econômicas. Os liberais não pretendem ter
respostas prontas e soluções “definitivas” a todos os problemas humanos e
conflitos sociais, sobretudo de crenças, que devem ser deixados para a esfera
dos sentimentos individuais. Na dúvida, ou na incerteza, eles propugnarão
acompanhar a evolução dos costumes sociais, que já foram bem mais intolerantes
no passado, nos terrenos referidos, do que aparentemente são hoje, com os
progressos civilizatórios acumulados ao longo do tempo. Liberais são tolerantes
e sempre defenderão a total liberdade das pessoas de adotar suas opções
individuais, sem prejuízo de direitos e obrigações estabelecidas
democraticamente pela comunidade.
O liberalismo é antes de
mais nada uma construção social em constante estado de aperfeiçoamento
doutrinal – nos campos do direito, da economia, da política – e por meio de
experimentos de “ensaio e erro” no campo mais prático das políticas públicas,
pois não existem respostas simples, ou universais, para problemas tão corriqueiros
na vida das nações como educação, saúde, sistemas securitários, normas laborais
ou para a política fiscal (que envolve um debate sobre o peso do Estado, o
sistema tributário e, sobretudo, os desejos de certas correntes respeitáveis
por maior igualitarismo social). Nesse campo de escolhas econômicas e de
políticas públicas, os liberais procuram sempre privilegiar as mais amplas
liberdades econômicas, com total garantia para a propriedade legítima e para a
acumulação de riquezas que sejam fruto do trabalho (e não de privilégios
administrados pelo Estado), mas também reconhecem a existência de diferenças
sociais e de fortuna que merecem encontrar respostas adequadas no quadro de um
amplo debate democrático sobre as melhores alternativas a esses problemas. Os
liberais entendem que as melhores respostas a essas questões se situam na
organização voluntária da sociedade, e não na distribuição pelas mãos de
burocratas estatais, que sempre serão volúveis a alguma “taxa de intermediação”
pelo “trabalho social”.
Liberais têm dúvidas, sobretudo
quanto a projetos de engenharia social, contra os quais eles se posicionam
racionalmente, com base na experiência histórica: tentativas de moldar a
sociedade, ou de “corrigir os mercados”, sempre resultaram em desastres maiores
do que os problemas supostamente na origem de imperfeições de mercado ou de
desigualdades sociais. Também se opõem a todos os fundamentalismos, inclusive o
do liberalismo, concebido como verdade inquestionável, e infenso ao debate
aberto e tolerante com marxistas ou keynesianos, por exemplo, que exibem alguma
legitimidade com base em suas propostas de “correção” dos problemas econômicos
e sociais. Todas as sociedades apresentam componentes ideológicos e filosóficos
os mais diversos e os liberais são herdeiros de uma das correntes da teoria
social, o das liberdades individuais, contra o igualitarismo principista (e
irrealizável) dos marxistas e contra pretensão dos keynesianos de erigir o
Estado em guia e orientador supremo das forças econômicas.
Por fim, quem escreveu
estes argumentos não se classifica em absoluto como liberal, pois entende que
todo rótulo pode ser redutor ou simplificador das realidades necessariamente
complexas do mundo concreto. Se algo poderia ser dito sobre o que guia o seu
pensamento, apenas duas palavras o definem: racionalista e irreligioso.
Hartford, 2782: 26 de fevereiro de 2015.
Um comentário:
Bom dia meu caro Roberto, adorei o artigo.
Antes de o ler eu lia Hayek, "O argumento completo em favor da liberdade" (https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2225). No final do texto Hayek propõe: "O racionalista que deseja sujeitar tudo à razão humana encontra-se, assim, diante de um verdadeiro dilema. O uso da razão visa ao controle e à possibilidade de previsão. Mas o processo evolutivo da razão baseia-se na liberdade e na imprevisibilidade da ação humana."
E quem sabe se voltarmos até Spinoza poderíamos chegar também a conclusão que "O que acontece na política é também o que acontece em nossas vidas psicológicas! Ou seja, agimos como agimos em consequência de uma instauração de afetos, eles circulam e nos moldam, canalizam o corpo, lhe dão um curso. Enquanto formos afetados da mesma maneira, agiremos e repetiremos sempre as mesmas coisas. Só é possível ter outra experiência da vida social se formos afetados de outras formas. Transformações não são questões de novas ideias, são questões de novos afetos." (Vladimir Safatle, Circuito dos Afetos)
Então me surgiu uma questão: o que professor entende por racionalismo citado ao final do artigo? "Se algo poderia ser dito sobre o que guia o seu pensamento, apenas duas palavras o definem: racionalista e irreligioso".
Pois eu vejo o seu artigo concorda com o Hayek, mas nesse ponto parece haver uma divergência.
Grato pela atenção, Daniel Santos
Postar um comentário