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domingo, 6 de setembro de 2015

A grave crise de governança no Brasil - Paulo Roberto de Almeida

Não se trata de comemoração do 7 de Setembro, talvez o contrário: nunca o panorama pareceu tão sombrio...
Um trabalho rapidamente composto a partir de reflexões efetuadas ao início do poder companheiro.
Paulo Roberto de Almeida


A grave crise de governança no Brasil
Duas ou três coisas que eu sei dela e algumas maneiras de superá-la

Paulo Roberto de Almeida

Um problema grave de governança
O Brasil enfrenta atualmente uma das mais graves crises econômicas de toda a sua história, sendo que ela mesma, reconhecidamente, está na origem de outra grave crise, de natureza política, que teve início nas próprias eleições de outubro de 2014, e que se acentuou desde o primeiro dia do governo atual, inaugurado em janeiro de 2015 (sem prazo certo para terminar). Na verdade, quero demonstrar que, independentemente dos contornos mais ou menos graves dessas duas crises, a econômica, e sua consequência “natural”, a política, o país tem, sim, uma séria e grave crise de governança, que:
(a) paralisa a máquina pública;
(b) aumenta a volatilidade do ciclo econômico;
(c) diminui a confiabilidade do (e no) sistema judiciário; e
(d) influencia de modo negativo o quadro político-institucional.

Essa situação redunda:
(e) no acirramento dos conflitos entre os poderes, essencialmente entre o Executivo e o Legislativo, mas envolvendo igualmente o Judiciário; e, obviamente,
(f) na redução dramática das perspectivas de melhoria da mesma governança política.

Desejo, desde já, sublinhar o adjetivo “grave”, pois o quadro compromete a possibilidade de quaisquer políticas de correção parcial dos problemas existentes, uma vez que, no centro da crise, se situa a incapacidade completa da mais alta autoridade do Executivo de encaminhar, de modo racional e legítimo, soluções razoáveis às duas crises setoriais referidas. Não há governança porque não há governante legítimo, sendo que o atual perdeu a confiança de mais de quatro quintos da cidadania, que já demonstrou ter preferência pelo impeachment ou pela renúncia. No momento em que escrevo, não existem perspectivas muito claras quanto ao desenlace das crises conjugadas, ou sequer o vislumbre de uma solução positiva quanto à falta completa de governança política, por incapacidade própria e por uma visível carência de legitimidade da atual incumbente do poder político.

A crise latente em perspectiva histórica
Os contornos da crise econômica parecem evidentes no país. Registra-se, de forma aparentemente delongada, um ciclo de crescimento negativo do PIB, de aumento do desemprego, de fragilidade continuada nas contas públicas, de depreciação crescente da moeda nacional e de incapacidade do atual governo de enfrentar novas demandas por recursos públicos por parte dos agentes públicos e da própria sociedade. Tudo isso se reflete em indicadores negativos que nos remetem às semanas e meses de outro ciclo de falta de confiança que foi aquele despertado pela conjuntura eleitoral de 2002, quando o mesmo grupo dirigente da atualidade apresentou-se para dirigir o país, prometendo mudar tudo e alterar profundamente as regras do jogo.
O cenário, naquela conjuntura, era complicado por causa dos problemas existentes em escala regional, a partir da crise argentina do regime de conversibilidade, que se manifestava desde antes da derrocada fatal das políticas econômicas em curso no país vizinho, no final de 2001. O próprio Brasil tinha problemas de fragilidade interna e externa desde alguns anos, praticamente desde a fase da redemocratização – que jamais produziu anos de crescimento sólido e sustentável – e vinha penosamente, ao longo dos anos 1990, tentando colocar em ordem esses desequilíbrios, com base em políticas consistentes e adeptas do rigor fiscal, com maior ênfase a partir da mudança no regime cambial em 1999.
Quando o Brasil, finalmente, parecia ter colocado a casa em ordem, no decorrer do ano seguinte, a crise argentina e uma crise interna de abastecimento energético, ambas em 2001, vieram novamente testar a capacidade das lideranças políticas em conduzir políticas adaptativas e corretivas dos desafios mais prementes. Mais grave ainda, as promessas econômicas esquizofrênicas da oposição companheira ameaçavam desfazer o edifício macroeconômico das políticas que vinham sendo montadas para tentar colocar novamente o Brasil no itinerário de um processo de crescimento sustentado: flutuação cambial, regime de metas de inflação, Lei de Responsabilidade Fiscal e, conectado à ela, liberação de superávits fiscais para o pagamento da dívida pública, de acordo com entendimentos mantidos com o FMI, que sustentou o esforço fiscal e de reequilíbrio do balanço de pagamentos mediante acordos stand-by que se desenvolveram em várias etapas desde 1998. Em meados de 2002, em plena campanha presidencial, o governo de FHC negociou mais um acordo de sustentação financeira com o FMI, que foi acatado por todos os candidatos no processo eleitoral, inclusive o de oposição ao governo, que acabou sendo eleito poucos meses depois, em outubro.
A retomada de um processo de crescimento sustentado, compatível com as taxas historicamente registradas no passado, dependia então da manutenção daquelas políticas, o que entretanto tinha sido colocado em dúvida na conjuntura eleitoral de 2002. O Brasil pagou um alto preço em função da campanha demagógica do candidato principal, que prometia mudar tudo, o que se refletiu nos juros, no câmbio e nos valores dos títulos governamentais da dívida externa brasileira. Cabe reconhecer que a democracia tem um preço, em termos de aumento da cacofonia no processo decisório e de volatilidade das políticas de curto prazo, mas ela sempre é, em qualquer hipótese, infinitamente mais saudável, inclusive no plano econômico, do que qualquer sistema autoritário de debates (restritos) e de tomada (arbitrária) de decisões, como era o caso durante o período militar.
O sistema político precisaria estar preparado para acomodar qualquer aumento na dispersão de opiniões, típico nos regimes democráticos, mas é um fato que qualquer melhoria na institucionalidade do Estado depende dramaticamente da qualidade dos homens públicos, fator notoriamente carente na tradição social e cultural brasileira. Não se pode sempre dispor de condições ideais para o processo de desenvolvimento, mas as improvisações e voluntarismos podem por vezes custar caro.
Foi o que o Brasil passou a enfrentar a partir de janeiro de 2003, quando uma nova equipe chegou ao poder e começou a alterar de maneira por vezes radical a forma de funcionamento do Estado e suas políticas setoriais. O Estado, aliás, foi tomado de assalto por uma horda de militantes obedientes, disciplinados às ordens superiores, mas claramente incompetentes para fins de administração pública. Esse aparelhamento tinha inclusive um sentido “orçamentário” para o partido companheiro, pois cada um dos disciplinados militantes e, a partir de então, dos novos “funcionários” públicos, passou a contribuir para o partido com um percentual de seus salários individuais, enquanto outros deixavam uma parte dos subsídios adquiridos a título de cargos de confiança. Reconheça-se, de imediato, que a política econômica permaneceu praticamente intocada, uma vez que, sem dispor de pessoal competente, o partido companheiro teve de admitir a continuidade de alguns membros da equipe anterior, bem mais realista, preparada e competente, e inimiga declarada de qualquer improvisação ou magia econômica.
Ao longo do tempo, no entanto, a equipe foi sendo alterada, e a qualidade das políticas econômicas, macro e setoriais, foi sendo erodida, com um aumento contínuo nos gastos correntes – vários tornados permanentes –, o crescimento da máquina pública, o aparelhamento do Estado pelos companheiros de formação muito tosca, o que se refletiu na deterioração da governabilidade em várias áreas da administração pública, e em todos os demais setores que dependem do governo, como os de saúde, educação, infraestrutura, segurança, justiça e processo legislativo. A deterioração administrativa e o descalabro econômico se tornaram bem mais acentuados a partir do segundo governo companheiro, a partir de 2007, mas as raízes do problema já tinham sido colocadas desde o início, aliás refletidas nos primeiros escândalos que começaram a pipocar ainda em 2004.
O sistema político-partidário, assim como o próprio regime representativo apresentam, no Brasil, baixa qualidade intrínseca e baixíssimos níveis de eficiência, assim como não se teve, ao longo dos anos, qualquer melhoria em seu funcionamento, especialmente no Legislativo. As relações entre o Executivo e o Legislativo passaram a se caracterizar por uma chantagem recíproca, o que ficou evidente no curso do Mensalão, que se acreditava, naquele momento (2005), ser o maior caso de corrupção da história política brasileira. Todos, a começar pela alta cúpula do Judiciário, que começou a investigar o processo do Mensalão, a partir de 2006, e só veio a conclui-lo em 2012, consideravam que o Mensalão seria um marco corretor da governança política no Brasil, o que se revelou de uma ingenuidade exemplar. Paralelamente se desenvolvia um outro processo ainda mais insidioso de corrupção mafiosa na alta cúpula do Estado, que só seria revelado a partir de 2014, com os primeiros passos da Operação Lava Jato. O chamado Petrolão superou exponencialmente o Mensalão e já se converteu, não apenas no maior caso de corrupção da história brasileira, como também numa ocorrência de dimensões gigantescas, aparentemente ainda não rivalizado em qualquer outro país.

Quais são os elementos da crise de governança no Brasil?
Retomando a caracterização central adotada na presente análise, não parece haver dúvida em afirmar que o atual cenário brasileiro não se caracteriza por uma “simples” crise econômica, ou por sua deriva inevitável para o terreno político, ainda que possam existir indicadores preocupantes na primeira vertente e “ruídos” (atualmente muito mais “ruidosos”) na segunda. O que parece, sim, constituir o núcleo central e o vetor principal dos atuais problemas brasileiros é o dramático quadro de falta de governança política, já caminhando para um cenário de anomia institucional, cujos elementos principais podem ser registrados a partir de agora.

Constitui um dos truísmos da vida prática, e até da teoria política, o fato de que o poder especificamente político, na sua esfera executiva, não pode ser dividido, nem deve ser dispersado, devendo existir de forma concentrada numa única fonte de autoridade. Esta tem de deter, legítima e incontestavelmente, por delegação dos eleitores, o comando do processo decisório, que deve então funcionar de maneira eficiente a partir dessa fonte unitária de decisões. Não é uma revelação inédita o fato de que, no Brasil atual, as fontes de poder estão dilaceradas em vários centros de decisão, e relativamente dispersas, ainda que de maneira informal. Sobre a incumbente atual, e esse quadro não vem da presente conjuntura, paira uma imensa sombra de poder, que parece sugar as forças da mandatária.
Não se trata de situação dos últimos meses, neste primeiro ano do segundo mandato da atual incumbente, mas de um cenário que se desenvolve desde antes do início do terceiro mandato companheiro, desta vez por delegação claramente reconhecida, depois de dois mandatos aparentemente bem sucedidos do demiurgo salvador que se considerava acima de quaisquer outros líderes brasileiros do último meio século. O líder populista se considerava um segundo Getúlio Vargas, talvez até com pretensões de alcançar um reconhecimento inigualado na história política brasileira. Desejoso de continuar seu reinado por preposto devidamente mandatado, o carismático sindicalista encarregou-se de selecionar ele mesmo seu sucessor, fora das fileiras tradicionais do partido companheiro, aliás, de maneira a assegurar que sua vontade seria feita em quaisquer circunstâncias, independentemente de sua ausência (temporária?) do poder.
Não surpreende, assim, que as fontes legítimas e reconhecidas de poder passaram a estar diluídas em diversas instâncias, o que parece ter sido aceito como “natural” pela atual incumbente. Sua figuração no comando central do governo apresentou-se, assim, exatamente como uma figuração, o que lhe fragilizou as bases de seu poder político desde o início do primeiro mandato. Havia ministros da cota do ex-presidente, outros que foram designados por partidos e que a incumbente sequer conhecia (e que nunca chamou para despacho) e vários que se revelaram envolvidos em falcatruas desde sempre, e que foi preciso demitir não por vontade própria, mas por pressão da imprensa. Ou seja, um governo saqueado por aventureiros políticos, fragmentado pela coalizão heteróclita que lhe garantia uma grande base de apoio congressual – aliás ainda maior do que a anterior,  sob o chefe inconteste do jogo político – e um potencial imenso para o desgoverno econômico e a confusão política.
De fato, o primeiro mandato já tinha sido caracterizado por problemas de governança, que foram sendo disfarçados pela tradicional mobilização das ferramentas de comunicação social – setor onde são gastos recursos superiores a diversos programas sociais – e pelo apoio congressual a despeito de tudo, já que sempre comprado a golpes de subsídios aos projetos e emendas provincianas dos parlamentares da base de sustentação do governo, cuja elasticidade é medida exatamente em função dessas transferências de verbas e de cargos que alimentam a promiscuidade política no país. O que não se sabia, ou não se conhecia exatamente a extensão, era a promiscuidade mantida com os meios empresariais, e que só veio completamente à tona com o deslanchar da Operação Lava Jato, revelando a enorme devastação companheira conduzida pelos companheiros pela maior empresa estatal do país. Mas também esse episódio revela a enorme diluição das bases do poder presidencial da incumbente, uma vez que a partilha dos despojos econômicos associados ao poder se fazia com o seu mero consentimento, mas não sob a sua direção ou total conhecimento. As bases do poder mafioso sobre a Petrobras tinham sido implantadas desde o início do governo companheiro, tinha passado incólume pelo episódio grotesco do Mensalão, e continuou se desenvolvendo, livre, leve e solto, durante todo o segundo mandato do demiurgo e no primeiro da incumbente.
Além de ser o retrato perfeito da corrupção companheira, o processo de sangria, drenagem, esquartejamento e dilapidação dos recursos da Petrobras constitui igualmente o espelho da fragmentação de poder sob a qual vive o Brasil desde 2011, pelo menos. Não será fácil sanar essa grave problema de governança, pois faltam totalmente à atual incumbente condições para corrigir sua total falta de poder sobre áreas inteiras de administração estatal, ainda sob o controle dos verdadeiros chefes da organização criminosa que tomou de assalto o Brasil em 2003.
A recomposição de uma única autoridade central e a existência de um comando político reconhecido constituem, obviamente, condições indispensáveis para a superação da atual crise de governança no Brasil. Sem isso, todo o mais, em termos de políticas públicas e setoriais, está e ficará comprometido pelo resto do período de governo (qualquer que seja ele). Não é preciso dizer que autoridade não se proclama, e sim se exerce, de modo claro e direto. Nas atuais condições de governança, em que o jogo político e as principais decisões da área econômica fogem completamente ao controle da incumbente, não se pode esperar que tal autoridade possa ser exercida, em qualquer extensão significativa para enfrentar os graves desafios colocados ao país.

Mas o quadro é ainda mais grave quando se passa da autoridade “para dentro” para a autoridade “para fora”, isto é, em direção de fontes concorrentes de poder ou no âmbito do exercício real da autoridade legítima, delegada pela sociedade e pelo sistema constitucional, para o cumprimento das leis. Ora, não é preciso muito esforço visual, para se constatar que diminuiu enormemente o respeito à lei e aos contratos nos últimos anos. Sem considerar questões partidárias ou mesmo de cunho ideológico (e persiste uma certa confusão aqui), deve-se reconhecer que essa situação faz aumentar, tremendamente, a volatilidade do cenário econômico, além de agregar custos reais ao funcionamento do sistema como um todo e de contribuir para agravar o quadro de anomia social e de desrespeito generalizado ao quadro legal no País.
A justiça, em si, já constitui um ônus terrível, direto e indireto, para o sistema econômico, diminuindo o PIB potencial. Mas o desrespeito à lei, endossado inclusive por ministros de Estado, constitui um imenso desincentivo aos investimentos (estrangeiros e nacionais) e à iniciativa privada, únicos capazes de criar empregos e disseminar renda no país. É dramático saber, por exemplo, que juízes de província podem criar obrigações para o Executivo sem qualquer amparo na legislação em vigor, que governadores podem promulgar leis anticonstitucionais ou que os mandatários, em geral, se eximem de fazer cumprir a lei em casos claríssimos de violação de direitos dos cidadãos (como as muitas invasões de propriedades). O desrespeito à legalidade chegou a níveis preocupantes no Brasil, mas isso não parece preocupar nem o sistema judiciário nem o próprio Executivo.

A desgovernança existente aparece em primeiro lugar na própria máquina pública, hoje ineficiente e descoordenada ao ponto da paralisia. Algo pode ser debitado aos custos do aparelhamento, ao cabo do qual parte da tecnocracia foi substituída pela militância, dedicada e entusiasmada com a causa da mudança, mas nem sempre habilitada a lidar com as reais complexidades da administração pública. Se o ministro da área não possui competências executivas, ou não dispõe de prévia experiência anterior no seu setor, o quadro pode ficar ainda mais dramático, dando a impressão de que os ministérios atuam em ordem dispersa, cada um com suas próprias prioridades políticas e um escasso comprometimento com as diretrizes gerais do governo (quando elas existem).
Não há uma solução simples a esse problema, pois qualquer estrutura ministerial, grande, média ou pequena – e a atual é desmesurada –, só pode funcionar bem se a qualidade da gestão, em suas diferentes vertentes, for razoavelmente satisfatória, com metas claras e cobranças regulares. A continuidade da atual lógica político-partidária na montagem ministerial significa a continuidade da inoperância administrativa na mesma proporção. Seria necessário uma completa reestruturação ministerial, com todos os custos que isso pode acarretar nas frentes congressual e partidária. Cabe ao supremo mandatário julgar o que seria possível fazer para aumentar a eficiência da “sua” máquina executiva.

A ausência de prioridades claras de governo e sobretudo a dispersão do comando central, têm atuado para aumentar a volatilidade do ciclo econômico, pois os agentes são levados a adotar um compasso de espera (seja para precaver-se contra uma possível mudança de regras, seja no aguardo de medidas que possam representar uma melhoria relativa das condições da atividade econômica). O problema aqui é tanto a falta de uma clara manifestação em favor da política econômica atual, com o engajamento do conjunto do governo, quanto o próprio fato de que agentes do Estado ainda determinam, por vezes de modo arbitrário, o comportamento de vários setores da economia, o que obviamente dá margem à manutenção do já referido quadro de incertezas. Ninguém sabe, com certeza, que tipo de política econômica se pretende imprimir ao país, à frente e além do processo de ajuste fiscal que tem necessariamente de ser feito, para evitar o agravamento ainda mais dramático da situação econômica.

A situação da justiça e do ordenamento legal é provavelmente um dos fatores mais negativos que afetam a governabilidade do e no país, aumentando dramaticamente os custos da atividade econômica. Não me refiro apenas à possível e provável existência de descoordenação no aparato judicial, com manifestações de corrupção e nepotismos que podem e devem ser coibidos por alguma forma de controle externo (como aliás deve ser o caso com qualquer poder: não é possível, por exemplo, que o Legislativo e o Judiciário possam criar fontes de despesas sem qualquer tipo de disciplina orçamentária). O que desejo destacar é a própria anomia dos processos jurídicos, nas três esferas da federação e em vários setores de atividade (nas relações de trabalho, por exemplo). Mais: controles internos e externos devem ser implementados para coibir a extraordinária profusão de medidas liminares, várias dotadas de escasso ou nenhum embasamento legal.

As obsessões obsessivas do incompetente poder companheiro
O poder companheiro sempre teve, antes mesmo de ser governo, várias obsessões sociais e diversos arremedos de políticas setoriais que passavam por grandes estratégicas de governança, quando constituíam, no máximo, fantasmas de mudanças radicais sem qualquer consistência intrínseca quanto à necessária adequação entre meios e fins. O distributivismo exacerbado sempre esteve entre essas obsessões, sem qualquer noção clara do que fazer para aumentar dramaticamente produção e produtividade no país, base inquestionável de qualquer programa distributivista sustentável. À falta disso, o aumento contínuo da carga fiscal financiou os programas sociais dos governos companheiros, que não representaram, de fato, diminuição da pobreza, apenas subsídio ao consumo dos mais pobres. As políticas industriais e as de “inclusão social” também representaram outras facetas dessas obsessões, todas elas voltadas para a “criação de um amplo mercado interno de consumo de massas”, como se a atividade exportadora, por exemplo, fosse contrária ao objetivo do aumento de renda para esse “grande mercado interno”.
Um governo, qualquer governo, não é feito para provar teses acadêmicas ou testar programas partidários. Ele tampouco atua com base em “grandes teorias” (aliás mais proclamadas do que reais). Ele é eleito, e constituído, para produzir o máximo de bem estar para os cidadãos, pelos meios os mais pragmáticos e racionais possíveis. Permanece latente no Brasil, desde 2003, uma luta contra o passado, para tentar provar a todos que nunca antes de fez tanto e tão melhor em favor dos subalternos e dos marginalizados. A luta contra o passado se exerce tanto contra antigos “adversários” (o que é revelado pela tese da “herança maldita”), como em relação a teses anteriores (o tal de “neoliberalismo”, essa outra invenção dos companheiros). Derivam dai essas tentativas de formulação de alternativas de políticas econômicas, muitas das quais – foi o caso da “nova matriz econômica – levaram ao caos econômico atualmente em desenvolvimento.
Essa obsessão com um passado mítico, seja para condenar (o dos outros), seja para se justificar (o seu próprio), ocupa uma parte substancial da atividade retórica do governo, o que constitui obviamente um grande perda de energia e um desvio do foco próprio da governança. Mas também existe, hoje, uma grave dispersão de esforços em diferentes áreas de atividade, mesmo quando elas não são prioritárias para o aumento do bem estar do povo, em setores concretos sob responsabilidade governamental.
O exemplo mais conspícuo é, obviamente, o das chamadas políticas industriais, várias delas implementadas ao longo dos três mandatos companheiros, não porque as anteriores estivessem absolutamente erradas, mas porque elas nunca produziram efeitos tangíveis para o aumento da competitividade brasileira internamente ou externamente. O fato é que as diversas políticas industriais criaram poucos empregos (que surgiram bem mais no setor de serviços, de baixa produtividade) e foram neutras em relação à iníqua distribuição de renda. A criação de mais uma agência pública nesse setor, a ABDI, junto com a expansão desmedida do BNDES, representou, por outro lado, mais um cartório de espera para alguns esperançosos em dádivas públicas, o que continuou influenciando negativamente o quadro de expectativas microeconômicas no país (ou seja, em lugar do livre empreendedorismo, o leilão de favores governamentais).
A tentativa de mudar um pouco de tudo, no Brasil e no mundo, que sempre esteve no centro do ativismo governamental, inclusive e principalmente na política externa – aliás mais pelo lado das intenções do que pelo das realizações –, também constituiu um entrave concreto ao exercício de uma boa governança em favor dos mais pobres e dos absolutamente carentes. Como as expectativas eram, de modo legítimo, muito grandes, o governo se esforçou para corresponder a todas elas, dando a impressão de que iria mudar tudo num curto espaço de tempo. Começou com o Fome Zero, como todo mundo se lembra, e ele conseguiu ser um fracasso desde o início, sendo abandonado ao cabo de poucos meses, em favor de um desdobramento das bolsas sociais pré-existentes e sua junção num único programa assistencialista chamado de Bolsa Família. A tentativa de se operacionalizar um “Fome Zero Universal”, com a eventual adoção do malfadado programa brasileiro pela ONU, constituiu outro fracasso companheiro, o que não impediu o governo de continuar insistindo nas instâncias internacionais durante vários anos.
O mesmo ocorreu com inúmeros outros programas de “inclusão social” – Primeiro Emprego, inclusão digital nas favelas, computadores a 100 dólares, incentivo à leitura, etc. – todos eles marcados pela improvisação, por um desperdício inacreditável de recursos para resultados pífios em todas as frentes. O PAC, “Programa de Aceleração do Crescimento”, sempre foi um slogan vazio, uma vez que simplesmente deveria fazer parte dos projetos normais de investimentos setoriais a cargo dos diversos ministérios (mas a propaganda sempre foi o forte em todos os governos companheiros). O “Minha Casa, Minha Vida”, se enquadra na mesma categoria, o de subsídios a construtores em projetos apressadamente costurados, que acabam consumindo muitos recursos pela via estatal quando o setor privado, aliviado de tributos, poderia fazer muito mais em termos de oferta habitacional. O mesmo se poderia dizer da substituição tributária da mão-de-obra por um percentual do faturamento em ramos selecionados da economia, um típico expediente discriminatório improvisadamente introduzido, para ser desmantelado ao sabor da crise fiscal. Outros não foram os resultados da política automotiva adotada para proteger os grandes amigos do poder companheiros – sindicatos de metalúrgicos e construtoras do setor – e que terminou por provocar acusações contra o Brasil no âmbito da OMC. Os exemplos mais recentes consistem no FIES e no Ciência Sem Fronteiras, dois programas eleitoreiros e demagógicos, que desviam recursos de áreas mais carentes na educação – ensino fundamental e estímulo real à ciência e tecnologia – por motivos claramente políticos, sem qualquer consistência sistêmica ou visão estratégica.


No cômputo global, as obsessões companheiras representaram poucos progressos na frente social – ainda assim revertidos a partir do recrudescimento da inflação e dos desequilíbrios acumulados nas contas públicas, provocados pela gastança sem limites – e uma dramática deterioração da institucionalidade no país, ao se combinarem com práticas claramente delituosas que se revelaram tanto no ambiente congressual quanto na (depois revelada) promiscuidade entre grandes capitalistas e os “donos do poder”. A Operação Lava Jato, ainda em curso, promete revelar aspectos ainda mais clamorosos dessa colusão criminosa entre os principais líderes companheiros e capitalistas promíscuos em busca de altos lucros obtidos com a manipulação das compras governamentais.

Um pequeno balanço dos desastres companheiros
Depois de três governos companheiros e do início de um quarto – que não se sabe se ou quando vai terminar – já está na hora de fazer um balanço (impressionista e ainda provisório) do quadro da governança companheira, que poderia ser assim apresentado:

1) Um sofrível, senão desastroso, desempenho macroeconômico, que se revelou por inteiro no quadro dramático de deterioração da maior parte dos indicadores internos e externos: inflação, juros, câmbio, contas públicas, risco Brasil, credibilidade externa (e talvez desinvestimentos maciços se o país perde o chamado investment grade). A destruição da confiança só não foi total porque, numa inversão completa do discurso e da prática do terceiro governo, foram buscar nas hostes “liberais” um típico representante dos “Chicago-boys” para dar sustentação a uma governança moribunda. Mas, a demanda por magia econômica contina alta (e não foi coibida) nas hostes companheiras.

2) Um pífio desempenho administrativo, na maior parte dos ministérios, o que é amplamente reconhecido até dentro dos círculos governamentais. O inchaço da máquina e a seleção dos titulares por critérios alheios a preocupações com o desempenho são os responsáveis por esse quadro lamentável. No início, os governos companheiros tinham um excesso de Antonio Gramsci e uma carência notável de Peter Drucker. Atualmente, é até difícil determinar qual a natureza dos problemas, pois todo o governo é uma grande confusão, sem que saiba exatamente quais são os planos de curto, médio ou longo prazo (e talvez o governo não tenha nenhum). Talvez, uma boa consultoria externa, dessas voltadas para a organização e métodos com metas e resultados, pudesse ajudar um pouco na reorganização da máquina do governo. Mas é duvidoso que esse governo aceite a suprema humilhação (ainda que ele já tenha sido em grande medida terceirizado), ou que alguma consultoria respeitável tenha a coragem de aceitar um encargo impossível.

3) Uma deterioração dramática do quadro político-institucional, sobretudo no que se refere ao cumprimento da lei, o respeito à legalidade e à administração de conflitos sociais. O Estado, aos olhos de muitos, não faz cumprir a lei, ou por falta de vontade, ou por falta de capacidade, ou por ambas, o que é, reconheçamos, extremamente grave. Uma caracterização desse tipo, se suficientemente embasada em fatos claramente delimitados, pode prestar-se a uma acusação de crime de responsabilidade, contra qualquer um dos agentes públicos, inclusive o mais alto. A experiência histórica nos ensina que o mais rápido e seguro caminho para a desgovernança prática começa pelo desrespeito à lei.

Não tenho a pretensão de oferecer soluções adequadas a todos os problemas de que padece atualmente (e estruturalmente) o país, em especial na vertente governamental. Tenho consciência, porém, de que um dos requisitos para encontrar respostas apropriadas está na correta formulação das perguntas pertinentes e no oferecimento de um diagnóstico ajustado aos problemas. Creio ter indicado os problemas que me parecem mais graves no Brasil atual, a começar pela crise de governança, que resulta ser uma crise da autoridade legal. Minha conclusão é, infelizmente, totalmente negativa: não vejo como diminuir, nas condições atuais, o quadro nebuloso que dificulta até mesmo visualizar a perspectiva de uma retomada da governança no país. Governança supõe, antes de mais nada, líderes políticos com capacidade de exercê-la, mercadoria dramaticamente faltante no Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 6 de setembro de 2015
(com base no trabalho n. 1241, Brasília, 9 de abril de 2004)

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