CORREIO
BRAZILIENSE, 13de setembro de 2015
Economista
Gil Castello Branco: "As estatais são a Disney dos corruptos"
Em
entrevista ao Correio, fundador da ONG Contas Abertas classifica crise atual
como "muito grave"
"Como ela (Dilma Rousseff) vai explicar
que, em pleno ano eleitoral, aumentava as despesas tendo consciência da
situação econômica pelos relatórios do Planejamento? Não tem como"
Desde
meados da década de 1980, não importa o governo, no seu encalce esteve Gil
Castello Branco. Com ou sem estrutura oficial, o economista se especializou em
expor benesses e desmandos na gestão do Orçamento. A habilidade já rendeu o
apelido de Sherlock, em referência ao famoso detetive britânico. Foi
responsável por diversas passagens na administração pública e em gabinetes
parlamentares. Tudo isso até 2005. Desde então, o “detetive” da Esplanada
encontrou abrigo na ONG Contas Abertas, fundada por ele mesmo.
Composta
por quatro pessoas, a pequena organização foi a responsável pela denúncia
inicial ao Tribunal de Contas da União sobre as pedaladas fiscais de Dilma
Rousseff. Ironicamente, a primeira entidade a observar com rigor o que eram as
maquiagens contábeis do governo Dilma acabou quase tragada pela crise econômica
que as pedaladas agravaram. Faz um mês, a Contas Abertas teve de entregar a
sala em que se situava. “Não consigo falar sobre isso sem me emocionar”,
confidenciou ao Correio, com os olhos marejados. Os integrantes do Contas
Abertas agora executam seus ofícios de casa: o trabalho resiste.
Gil
fala ainda sobre os erros da equipe econômica, a gravidade da crise que se
apresenta ao país, as dificuldades de tocar a ONG em meio à crise econômica e
expõe, como sempre, as veias da corrupção no país. Contra o mal, ele vaticina,
só a sociedade civil é capaz. “Somos como uma manada de búfalos trancafiada num
cercado de ripa de madeira. Se nos movimentarmos, essa situação muda.”
Quão
grave é o quadro econômico?
Muito
grave. É, talvez, a maior crise da história da República. Esse entrelaçamento
de crise econômica e política, mais a indefinição do que acontecerá no campo
jurídico, nas contas da presidente e na Lava-Jato, com suas consequências, cria
uma indefinição. Para quem imaginava que a solução viria pelos investimentos
externos, o rebaixamento é mais uma ducha de água fria. Pelo menos uma boa
parte do dinheiro não vem mais. Fico impressionado em como os investidores
internacionais se preocupam e conhecem a economia brasileira muito mais do que
muito economista brasileiro. É espantoso imaginar que grupos de investimentos
vêm a Brasília, vários procuraram o Contas Abertas e outros especialistas não
oficiais nos últimos tempos, para avaliar o que realmente estava ocorrendo, na
tentativa de evitar o risco de ficar apenas com uma avaliação oficial
chapa-branca.
Havia
já essa desconfiança internacional com as contas brasileiras?
No ano
passado, o Contas Abertas foi a um evento oficial do Banco Mundial; tivemos
direito a fazer uma pergunta a Christine Lagarde e já perguntamos como ela via
a situação de países, como o Brasil, que estão maquiando suas contas para obter
melhores resultados fiscais. Ela ficou surpresa, não citou diretamente o
Brasil, nem o excluiu, mas disse que a situação era muito grave e que alguns
países já haviam tido a situação discutida no âmbito do G20. Um ano depois, a
pergunta se mostrou extremamente pertinente.
A
Contas Abertas foi a primeira a apontar as pedaladas fiscais, não?
Nós
nos orgulhamos disso. A contabilidade criativa vinha sendo comentada há muitos
anos, as dobradinhas com as estatais. Mas chamou a nossa atenção a ocorrência
sistemática das pedaladas. Fomos reconhecidos por isso, inclusive pelo
procurador do Ministério Público no Tribunal de Contas da União Júlio Marcelo,
que foi quem levou à frente a questão das pedaladas na Corte. Enviamos ofício a
ele, mostrando que estávamos observando situações absurdas, como o governo
emitir ordens bancárias nos últimos dias do ano para serem sacadas no ano
seguinte, para influenciar no resultado fiscal. Chegou ao absurdo de os
pagamentos de janeiro ficarem maiores do que os de dezembro, para não impactar
no resultado primário.
O
argumento do governo é de que não era novo...
As
pedaladas existem há muitos anos; nós mesmos, em nossas casas, empurramos uma
dívida. O próprio governo, na década de 1980, desde a época do então presidente
José Sarney, fez isso ao modificar a data de pagamento para os servidores do
fim do mês para o início do mês seguinte. Isso foi uma pedalada, no bom
português. O Tribunal de Contas da União já vinha fazendo sutis sugestões de
que essas transferências impactavam o resultado. Só que era em escala muito
menor do que o observado hoje.
Qual
é a diferença entre as pedaladas de Dilma e as dos outros presidentes?
Sinceramente,
a proporção e o fato disso ter acontecido no ano da campanha. Passa a ideia de
que a intenção não era apenas maquiar as contas, mas criar um fato eleitoral. É
um crime contra a responsabilidade fiscal e contra a Lei Eleitoral. Se a
legislação não prevê isso, deveria. Chegamos a um ponto em que diversos
governadores colocaram em curso a mesma prática. Houve a nítida intenção de
maquiar um resultado até o limite. A presidente alega que só teve essa
percepção em novembro. É a forma que ela e seu marqueteiro encontraram para
mudar a acusação de mentirosa para a de desatenta. Não faz sentido você
imaginar que isso não era do conhecimento público antes de novembro.
Por
que?
Houve
fatos graves, como os bancos pagando com recursos próprios programas do
governo, sem que o tesouro repassasse o dinheiro. É tudo o que você queria
impedir com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, na década de 1990,
quando os governadores, não satisfeitos em quebrarem os estados, quebraram
também os bancos estaduais. O procurador Júlio Marcelo avançou mais na denúncia
das pedaladas quando pegou os relatórios bimestrais das contas do governo e
confrontou com os decretos de aumento de despesas. É grave, porque quem
assinava isso era a presidente. Como ela vai explicar que, em pleno ano eleitoral,
aumentava as despesas tendo consciência da situação econômica pelos relatórios
do Planejamento? Não tem como. Isso criou uma onda e agora, como estão evitando
as pedaladas, as despesas passadas se acumularam com os restos excessivos a
pagar. O governo não consegue zerar a conta.
Se
é crime eleitoral, isso reforça a tese do impeachment?
O
Tribunal de Contas deve fazer um julgamento absolutamente técnico. Por isso,
não tem como deixar de reprovar as contas. Ele não pode fazer recomendações,
porque já fez isso aos quilos, inclusive nesse sentido. Eles estão em uma
situação difícil. Já aprovaram com ressalvas, já fizeram considerações e nada
disso foi considerado. Pelo contrário, os problemas se agravaram.
O
governo defende que as pedaladas eram aceitas anteriormente...
Não
concordo. A Lei de Responsabilidade Fiscal já deixava clara a intenção de que
você transferisse para a gestão seguinte um orçamento equilibrado. Pode estar
escrito de uma forma mais ou menos grave, dependendo do artigo, mas a intenção
era essa. E isso não ocorreu na economia. O paciente já vinha doente há tempos.
Só que a doença era mascarada por um cenário externo e interno favorável. Tendo
receita, ninguém se preocupou com as despesas. Quando veio a recessão, os
remédios preventivos não haviam sido adotados e não o foram durante 2014
,porque era um ano eleitoral. Só que o tratamento agora terá sérios efeitos
colaterais. Pelo menos mudaram um dos médicos, mas a equipe médica ainda mantém
nomes antigos. Aliás, esse é um problema. Quando Joaquim Levy aceitou trabalhar
com Nelson Barbosa, as divergências já estavam explicitadas. Barbosa jamais
admitiria o fracasso da nova matriz econômica que ajudou a criar. Não faria o
mea-culpa e diria que errou. O confronto estava marcado. No fundo, Levy era uma
âncora necessária para o governo. Ninguém, no PT ou na cúpula do governo, tinha
simpatia efetiva pelo Levy, por toda a história dele como economista. Mas ele
era essencial para ter a credibilidade nas contas.
A
política errática do governo enfraquece Levy até que ponto?
Diria
que ele recuperou forças. Dentro dessa situação, está mais forte, porque
mostrou que tinha razão. Mas o governo precisa dar uma resposta imediata.
Precisa dizer claramente o que pretende fazer.
Há
saída sem aumento de impostos?
Para
mim, não há. Quando falamos num rombo de R$ 30 bilhões, não temos mais como
imaginar que os cortes em despesas periféricas resolverão isso. Hoje, se
somássemos corte com vigilância ostensiva, festas, publicidade, locação de
imóveis e outros gastos discricionários, eles representariam R$ 19 bilhões. O
Planalto diz que cortará 40%, mas isso não significa nem um terço do que
precisa ser cortado. Por aí, não vai.
O
governo acha que não há saída sem reformar a previdência...
Ao
analisar os gastos da União, você vê que o pessoal não é o vilão. O que saltou
muito foram as transferências constitucionais, Bolsa Família, aposentadorias,
pensões, benefícios. Tudo isso reajustado pelo mínimo, que cresceu acima da
inflação. Isso gera uma distorção que tende a se agravar com a questão da nossa
pirâmide etária estar se invertendo, temos um fim do bônus previdenciário.
Então, temos um problema que não é apenas para o ano, mas para as próximas
décadas. Um imposto temporário vai atenuar a situação no momento. Mas, sem
reestruturar as despesas, o problema ressurge. Temos 130 mil novos servidores
na máquina pública. Só a Presidência tem 18 mil funcionários, se somadas
secretarias, agências e outras estruturas que foram sendo penduradas no
Planalto ao longo do tempo. Só de cargos comissionados e DAS, são 7 mil. A
tribo cresceu, cresceu o número de caciques. Há um inchaço aí.
Você
tem comparação com outros países?
Na
quantidade de pessoal, não, mas a gente escutar da presidente na semana
passada, naqueles movimentos erráticos, que não tinha mais onde cortar, numa
estrutura em que você tem 39 órgãos com status de ministério, 100 mil cargos,
funções de confiança e gratificações, uma Presidência com 18 mil pessoas. Uma
estrutura que incorporou 130 mil pessoas de 2002 para cá, 4 mil DAS e 30 mil
cargos e funções de confiança. Meu Deus! Não é só imaginar que vai cortar 10
ministérios. É preciso repensar o Estado. O único verbo que a Esplanada
aprendeu a conjugar é cortar. O ângulo é só o fiscal. Se você tiver uma receita
superior à despesa, tudo bem. De repente, você se depara com uma recessão, a
receita murcha e a despesa está grande demais. O que fazer? O governo demonstra
uma falta absoluta de planejamento.
Os
governos se assemelham?
Ao
longo da minha vida, acompanhando gastos, perdi aquela ilusão de separações de
esquerda, direita, o bem e o mal. Hoje em dia, prevalece o interesse
político-partidário pessoal sobre interesses maiores. Infelizmente. Com todo
esse linguajar entre Executivo e Legislativo, emendas e cargos. Nem sei como é
que eles passariam a se relacionar se um dia acabasse essa linguagem de cargos
e emendas parlamentares e favores. Tudo converge aí. Cada um enxerga a reforma
política olhando seu umbigo. A situação é dramática por isso.
Há
o que cortar?
Veja:
74% dos DAS são cargos de funcionários concursados. Acaba com o ministério e
aquilo vai virar uma secretaria em algum lugar. Ganhou o quê? A diferença do
DAS 6 para o 5: menos pessoas viajando nos jatinhos da FAB, menos pessoas nas
salas VIP, menos assessores e carregadores de mala, menos empáfia. Tudo isso
vai melhorar. E também a gestão. É impossível imaginar que a presidente consiga
despachar com os 39 ministros. Reunião ministerial passou a ser quase um
comício.
No
Ministério do Esporte, teve a chance de descobrir como a máquina funciona?
Estive
várias vezes em cargos públicos e estou terminantemente proibido pela minha
mulher de assumir outro. Ela disse que nunca mais. Ela acha que não tenho
temperamento para isso, porque onde chego, cria-se uma situação. Começou no
governo Sarney, com a questão dos imóveis. O ministro João Batista Abreu (do
Planejamento) tinha sido meu professor de microeconomia na PUC-RJ. Ele me
chamou para trabalhar com os imóveis funcionais. Disse: “Isso é um balaio de
gatos. Entra de sola”. Fiz 79 despejos. Até que chegou no Cafeteira(governador
do Maranhão à época). A mulher do governador tinha apartamento funcional em
Brasília. Ela não podia sair.
Quando
tempo você ficou lá?
Sempre
passava quatro meses. Depois, início do governo Collor, foram alguns meses. Saí
até processado, devido a um desentendimento. No governo Collor, me chamaram
porque eu tinha estado no caso Cafeteira e saí brigado. Pensaram: o Gil é
emblemático. E me chamaram para vender os imóveis. Lá fui eu. Naquela época, se
você dissesse para o servidor, ‘olha, vou dar o imóvel para você’, ele dizia
assim: ‘Mas não vai pintar antes, não? Você já viu o estado em que está?’. A
minha posição era defender o Estado. Um cidadão me acusou de dificultar a venda
para atender a grupos imobiliários da cidade. Ele foi ao ministério e aí houve
o desentendimento.
Aí,
você saiu?
Sim.
Acabei indo para o patrimônio da União e fiquei apenas quatro meses, porque não
tive coragem de assinar nenhuma daquelas concessões de áreas, o aforamento.
Você cede uma área da União para uma pessoa. Às vezes chega o cara com uma
certidão de mil novecentos e antigamente, que comprou de um índio aquele
imóvel. Hoje, está mais difícil, mas os cartórios antigamente produziam
documentos de centenas de anos atrás. Então, eu digo o seguinte: para trabalhar
na Esplanada precisa ter estômago...
E
ter cuidado com o que se assina...
Tudo o
que você assina é um risco. Tinha um hábito: colocar uma caixa de papelão do
meu lado. Tudo o que assinava, que achava que era mais delicado, pedia para a
secretária tirar uma cópia e colocava na caixa.
Você
tem isso guardado até hoje?
Alguns
desses, sim. Dentro da minha garagem. Aconselho isso para qualquer servidor.
Porque, daí, quando você vai embora, você não sabe o que vai acontecer. Está
fora e não tem mais como se defender. Então, é uma forma de se proteger.
Com
Agnelo você ficou quanto tempo?
Mais
ou menos seis meses. Prefiro apagar o Agnelo da minha vida. Era secretário
executivo num ministério que era ninho do PCdoB. E era ali uma pessoa
completamente fora do contexto. Sequer conseguia marcar uma reunião com os
secretários. As pessoas eram do PCdoB e achavam que não deveria estar ali.
Então, a saída foi essa: ou Agnelo tomava uma atitude com aquelas pessoas, ou eu
estava fora. Como vi que ele não tomou atitude nenhuma, resolvi sair.
Você
se achou numa ONG depois de passar por todos esses cargos?
A ONG
completa 10 anos em 9 de dezembro, Dia Internacional de Combate à Corrupção.
Somos quatro pessoas. De tudo o que passei, foi o que me deu mais satisfação. É
algo em que você se sente útil e não está ali tendo que receber parlamentar
para construir uma quadrinha em determinado lugar, ou conceder um imóvel
funcional para alguém, ou assinar aforamento de terra para um político
qualquer. Cheguei à conclusão, e a minha família idem, de que não tenho
espírito para o setor público. Também não tenho para ser político. Nunca fui
filiado a qualquer partido. A minha intenção é mostrar que a sociedade pode
fazer muito mais do que imagina.
Vocês
entregaram a sala. Por quê?
Nosso
estatuto diz que é terminantemente proibido receber recursos públicos. Então,
com a nossa expertise de entrar no Orçamento e buscar algo que interesse a
distintos segmentos, a gente produzia levantamentos. Fizemos para o Banco
Mundial, o Unicef. Esses levantamentos, nós cobramos, claro. Recebemos o prêmio
Esso de melhor contribuição à imprensa, da ONU por contribuição ao combate à
corrupção, ganhamos um prêmio da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).
Mas não temos dinheiro para manter a organização no seu dia a dia, a não ser
custear as quatro pessoas. O que tem remuneração hoje se limita a três
contratos: Confederação Nacional dos Municípios, Fiesp e CNI. Temos essa ideia
de que a sociedade pode mais. Nunca tivemos tanto prestígio, mas a ONG nunca
teve tão pouco dinheiro, embora eu não troque um pelo outro.
Ficou
no governo até quando?
Segui
servidor dos Correios, mas sempre requisitado por outros órgãos. É mais fácil
dizer por qual ministério desses não passei. Quando me aposentei, montamos a
ONG.
Você
e o Augusto Carvalho?
Fui o
primeiro a assinar a sua constituição. Augusto Carvalho foi o segundo. Quando
ele foi para a Secretaria de Saúde, fui contra. Conhecia o Augusto. Ele não
conseguia administrar o gabinete, imagine a secretaria. Então, fizemos uma ata
registrada em cartório em que ele se desligava de todas as funções. Saiu do
Contas Abertas. E foi o grande salto da gente. Tirou a ideia de uma associação
política, porque, embora eu fosse o primeiro, ele era o mais conhecido. Na
verdade, servimos (Gil e Carlos Brenner) de escada para muitos políticos.
Augusto, Agnelo, todos saíram com fama de fiscalizador. Trabalhamos também com
Denise Frossard, Roberto Freire, Eduardo Paes.
Eduardo
Paes?
Sim,
quando ele foi deputado, no governo Lula. À época no PSDB, ele ligou para FHC e
perguntou : ‘Presidente, o senhor se lembra daquele pessoal que entrava no
Siafi e fazia uns levantamentos?’ FHC respondeu: “Claro, esse pessoal
infernizou a minha vida.” Quando ele era presidente, pegamos compras de pão de
mel, fundo social de emergência comprando goiabada. Então, quando o Paes
perguntou o que ele achava de nos contratar, FHC respondeu “Ótimo!”. Moral da
história: transparência é muito boa no governo do adversário.
Hoje
é tudo aberto?
A
transparência foi muito ampliada com o boom da informática e da internet. Hoje,
abriu. Antes a gente fazia com exclusividade. Éramos cinco pessoas, no
Congresso.
E o
DF? O que Rollemberg pode fazer em relação a esse rombo?
Acho
extremamente importante preservarmos a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Você tem 19 estados que estão na zona de risco. Brasília entra nisso. O Rio
Grande do Sul é o extremo. Além de ter comprometida uma parte expressiva da
receita corrente líquida com pessoal, está extremamente endividado. Vimos o fim
do governo Agnelo. Ninguém nos contou. Vivenciamos. Se não houvesse uma
situação de penúria, ele teria pagado as contas. Não daria um tiro no próprio
pé. Isso fez com que o Rodrigo recebesse uma situação dificílima.
Que
problemas você vê na LRF?
A lei
perdeu o efeito preventivo. Embora os tribunais de contas alertem os estados,
isso não impede que acabem comprometendo os princípios da lei. A situação se
torna grave porque as punições demoram muito. Uma situação do governo Maria de
Lourdes Abadia, com o secretário de Fazenda, Valdivino Oliveira, em 2006, é um
exemplo. Houve um questionamento se teriam infringido a LRF. O MP fez o que
seria cabível: encaminhar ao TCE. O TCE não puniu, o MP insistiu no assunto e,
no ano passado, Janot abriu uma investigação. Quase dez anos depois. Isso podia
ser mais rápido. Se demorar a punir, a Justiça não é feita. Se (Agnelo) tiver
culpa de ter deixado essa herança, e tudo leva a crer que tem, deve ser punido
imediatamente.
A
LRF não tem sido respeitada...
Tem
sido rasgada todos os dias. É rasgada no governo federal, nos estados, nos
municípios. E aquilo que era uma conquista da sociedade está se perdendo, justo
agora, ao completar 15 anos. É preciso ampliar o debate. Veja o caso da Lei
Complementar 131, aquela lei que obrigou União, governos estaduais e
prefeituras a terem um portal para saber o que comprou, de quem comprou, por
quanto, a quantidade. Mas não foi implementada por completo. O problema parece
estar na impunidade. É lamentável que a lei não seja cumprida. Porque, como ela
é uma emenda à LRF, a punição é clara: suspender as transferências voluntárias.
Como imaginar que ainda tem gente que não cumpre a lei a essa altura do
campeonato?
O
que acha da Lei de Acesso à Informação?
É
essencial para o controle social. Mas a transparência tem camadas. Tem pessoas
que vão querer entrar no site do Portal da Transparência da CGU para ver quanto
a Dilma Rousseff está ganhando. E isso está lá. Mas tem entidade, como o
Cfemea, o Inesp, o Contas Abertas, que fazem avaliações mais profundas. Até me
surpreendi favoravelmente dias desses. Hoje, a Contas Abertas tem uma senha do
Siafi, do Tesouro Gerencial, que é o que há de mais moderno. E essa senha me
foi concedida pelo (Joaquim) Levy. Foi a primeira vez que aconteceu isso nos 10
anos da Contas Abertas. Já tinha feito esse pedido várias vezes. E pedi a senha
de novo. Aí, daqui a pouco chegou uma resposta por e-mail: “Favor comparecer à
Secretaria de Fazenda Nacional...”. Pensei: “Será?”. Mas, dois dias depois,
chegou lá no e-mail a autorização. Fomos entrando e vimos que ela tinha acesso
total aos dados. “Caramba, eles deram mesmo”, pensei.
Será
que não foi por engano?
(Risos)
Não, o Levy fez isso. Mas há outros pontos. Todas as estatais estão envolvidas
num escândalo. Digo que as estatais são a Disneylândia dos corruptos. Você tem
muito dinheiro, muita ingerência política e pouquíssima transparência. Elas têm
todos os requisitos para a corrupção prosperar. Você pega uma estatal e vê tudo
que elas movimentam: R$ 1,3 trilhão por ano. Isso é praticamente o PIB da
Argentina. O investimento, só da Petrobras, é muito maior do que o investimento
da União. Muito dinheiro, ingerência política, pouca transparência. É o paraíso
dos corruptos. Que tal, nessa altura do campeonato, ter acesso ao Sistema de
Informação das Empresas Estatais (Siest)? A LDO me dá claramente esse direito,
como entidade da sociedade civil devidamente autorizada. Mas já pedi ao
Planejamento, e ele negou. Pedi aos Transportes, o Siac do Dnit. Todos negaram.
Isso
não é desestimulante?
Tem
uma história mais emblemática. Um amigo da CGU me mostrou um novo sistema. Sim,
a Esplanada tem uma rede do bem, um exército Brancaleone. Esse cara me mostrou
o sistema que tenta reduzir gastos com passagens e diárias. A CGU montou um
sistema, o Observatório de Despesa Pública, que sabe quantas passagens
determinado ministério comprou, o preço e a data da compra. Mostra qual foi o
preço médio das passagens, com que antecedência foi comprada. Você pode fazer
um campeonato: quem está comprando mais barato e quem está comprando com mais
antecedência. Esse sistema elenca vários tipos de despesas, criando um
constrangimento para quem comprou mal. Achei isso muito bom e pedi acesso. Levy
vem falando isso corretamente: não é controlar os gastos dizendo “corta 10%,
20%”. É controlar melhorando a gestão.
E
aí não ganhou a senha?
Pedi
ao primeiro nível, negado. No segundo nível, negaram também. Agora, recorri ao
terceiro nível, o do ministro. Devem negar também. Eles querem uma parceria com
o controle social, mas não dão instrumentos.
É
uma transparência limitada.
Qual
deve ser o receio deles: que se faça uma matéria mostrando quem está comprando
melhor. Mas qual é o mal disso? Isso tem de ser exposto. Se a CGU, que se
arvora como a mãe da transparência, nega, o que esperar de uma prefeitura do
interior de um estado do Norte. Em um país com dimensões intercontinentais,
como o Brasil, os controles têm de se complementar. É o controle externo,
interno, o controle social. É uma honra participar disso. É o prestígio sem
dinheiro.
Qual
é o caminho para o cidadão fiscalizar as contas dos governos?
Pelo
Portal da Transparência, da CGU. Agora, para as entidades que realmente fiscalizam
os gastos públicos com mais profundidade, aí, o melhor, disparado, é o Siga
Brasil, do Senado. Primeiro, que o Portal da CGU só tem do Executivo, não tem
do Legislativo ou do Judiciário. Em segundo lugar, o Portal da Transparência só
tem uma despesa paga, você não tem aquela relação entre quanto está no
orçamento e quanto foi pago.
Como
é a relação com Brasília?
Meus
filhos são daqui, a minha mulher também. Eu gosto da cidade, embora me incomode
um pouco com esse clima excessivamente político. Mesmo trabalhando fora do
governo há mais de 10 anos, tenho de tomar os meus cuidados. Você nunca vai me
ver bebendo, não tem a menor chance. Tomo as minhas preocupações e isso excede
os meus princípios morais. É uma questão de absoluta prudência. Isso me incomoda,
mas não deixo de aproveitar a cidade, o lago é o meu paraíso. Tenho uma lancha.
Vou para o lago todo o fim de semana, chova ou faça sol. Nem gasto muito
combustível, saio dali do Iate, paro ao lado da UnB, num lugar tranquilo. Ligo
o som, pego o jornal. Aquilo me dá a higiene mental para começar a
segunda-feira de novo.
O
senhor sofre perseguição?
Em
Brasília tem a rede do bem, mas também tem a rede do mal.
Sim,
tem a rede do mal, então você tem de navegar com cuidado. Não sou uma
instituição, não sou um jornal, o processo vem em cima de mim, então tenho de
tomar certos cuidados.
E
qual é o caminho buscado pelo senhor?
Fortalecer
a sociedade, mostrando que a sociedade civil pode muito mais do que ela própria
imagina. Somos como uma manada de búfalos trancafiada num cercado de ripa de
madeira. Se nos movimentarmos, essa situação muda.
E
também há um desafio, uma mudança de mentalidade.
Você
não muda uma cultura porque simplesmente assinou um papel. Oitenta por cento
dos municípios não regulamentaram a Lei de Acesso, diversos estados. É muito
difícil mudar a ideia do secreto, a ideia do burocrata de que sentar sobre a
informação é poder. Você convencer o servidor, o burocrata, de que informação é
um bem público e não um favor, é algo difícil. E tem também alguns tabus. Não
sei se vocês se lembram, mas a Prefeitura de São Paulo foi a primeira a
divulgar o salário dos servidores, na época do Kassab. E aquilo gerou um
questionamento que foi bater no STF, teve até despacho do Gilmar Mendes. Aí
escrevi um artigo sobre isso, defendendo a abertura dos salários, o acesso à
informação. Dentro do princípio de que o patrão do servidor é o cidadão. Era
ali por 2009. Lembro que a minha mulher leu meu artigo e disse: “Acho que agora
você está indo longe demais”.
Qual
cargo público mais agradou?
Em
todos os cargos tive problemas. Minha duração sempre foi efêmera porque logo,
com alguns meses, tinha que enfrentar graves problemas. O Cafeteira era um, a
venda dos imóveis funcionais, outro. O Patrimônio da União era uma pressão
brutal, aí aumentei os preços dos aluguéis e o mundo desabou em cima de mim.
Como
sobreviver no serviço público?
Tem de
ser tolerante. Senão, as pessoas o acusam de não ter jogo de cintura. Dizem que
não tenho habilidade política e que, em certas circunstâncias, até deixo o
ministro mal. Por exemplo, o João Batista Abreu. Quando aconteceu o negócio do
Cafeteira, ele nem me recebeu. O chefe de gabinete disse: “Gil, você vai deixar
o ministro mal”. E disse: “Eu? Ele me mandou entrar de sola, fiz 79 despachos,
e só o Cafeteira não pode sair? Com que cara volto? Então, você tem de arrumar
outro cara. Mudou a orientação, agora não é mais entrar de sola”. Aí o camarada
corta a relação. Sarney tinha ligado para o João Batista Abreu para resolver o
problema, não resolvo e decido sair. A Esplanada é uma máquina de moer pessoas
do bem. Se você se prender a princípios éticos, vai enfrentar dificuldades.
Isso acontece na Esplanada e no Legislativo. É um dos motivos pelos quais
jamais seria candidato. Prefiro fugir desses ambientes. Tenho a minha
independência, me dou com quem quero. Na época do FHC, os partidos de esquerda
achavam ótimo o que fazia. Hoje é o contrário. Acho engraçado, mas digo que
continuo fazendo a mesma coisa.
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