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domingo, 27 de setembro de 2015

Eduardo Dutra Aydos corrige o ex-STF Carlos Ayres Britto e interpreta corretamente a CF

Transcrevo está relevante exegese de uma declaração que eu também julguei absurda e clamorosamente equivocada do ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto.
A matéria trata, resumidamente, do seguinte: "O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto disse hoje (25) que não caberia ação de impeachment da presidenta Dilma Rousseff por eventuais fatos que tivessem ocorridos no mandato anterior. Ayres Britto sustenta a tese de que os mandatos presidenciais não se comunicam entre si para crimes de responsabilidade."

O autor da argumentação abaixo transcrita, Eduardo Dutra Aydos, a quem cumprimento pela excelência da exegese constitucional, corrige as distorções da fala do ex-ministro e contribui para o processo de julgamento do impeachment presidencial.
Recomendo leitura atenta, por juristas e por parlamentares, e peço retransmissão.
Paulo Roberto de Almeida 

E JÁ QUE SE FALA DE PEDALADAS CONSTITUCIONAIS... 
Eduardo Dutra Aydos
(Recebido via Facebook em 28/09/2015)

O Ministro aposentado Ayres Britto, padece de um mal hipocrítico - neologismo que utilizo para designar o ‘intervalamento’ ou, quem sabe mesmo o ‘intercalamento’, de uma qualificada hipocrisia jurídica com uma inusitada falta de senso crítico.
 Oscilam, assim, as suas falas recentes, ao sabor de uma ínsita bipolaridade:
 (a) de um lado, a cegueira voluntária de quem se recusa a ver, nos atos da Presidente Dilma Roussef e nos consequentes fatos do seu governo, a violação clara e inequívoca dos princípios e interditos constitucionais que qualificam a honra, a dignidade e o decoro do cargo de Presidente da República; 
(b) de outro, uma prestidigitada capacidade de ler, no texto constitucional, conceitos e mandamentos que ali não estão escritos, nem se encontram implícitos, nem podem deduzidos e, muito menos ainda, pressupostos. Tudo isso, em contradição flagrante com a interpretação estrita e mesmo com a interpretação conforme que o texto constitucional autoriza.

Como já me detive, anteriormente, sobre os fatos evidentes e notórios que a visão do Ministro Ares Britto não alcança, tratarei agora da sua imaginosa leitura do texto constitucional que suscita, pelo surrealismo alinhado das suas conclusões, necessária, embora constrangedora, contestação.

Cito nota publicada hoje, no MSN, textualmente: 
“Segundo o Ayres Britto, a presidenta só responderia por crime de responsabilidade por atos praticados no atual mandato. “Ela jurou, fez um novo compromisso, perante um novo Congresso, para manter, defender e cumprir a Constituição, no curso deste mandato, que se iniciou em 1º de janeiro. Então, não se pode dar pedaladas constitucionais. À luz da Constituição, o crime de responsabilidade incide a partir de atos atentatórios à Constituição, como diz o Artigo 85, na fluência deste mandato”, afirmou.” 
(MSN, 26/09/2015, Editor Aécio Amado – apud Agência Brasil, Repórter Vladimir Platonow)

Gostaria que o Ministro me demonstrasse em que momento o Artigo 85 da Constituição escreve, deixa implícito, permite deduzir ou pressupor que os atos, hoje passíveis de qualificação como crimes de responsabilidade da Presidente Dilma, só podem ser aqueles praticados no seu atual mandato.
Diz o referido artigo da Constituição Federal:

“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I – a existência da União;
II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III – o  exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV – a segurança interna do País;
V – a probidade da administração; 
VI – a lei orçamentária;
VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelece as normas de processo e julgamento.”

Da redação clara, límpida e inequívoca deste artigo constitucional está evidente que ali se trata, tão somente, da tipificação – ainda genérica - dos crimes de responsabilidade, cuja definição mais específica a Constituição remete à Lei Especial. Não existe, neste artigo, qualquer referência ao tempo em que estes crimes de responsabilidade foram praticados.

Trata-se, portanto, no Artigo 85 da Constituição Federal, de forma estrita e insuscetível de interpretação modificativa, de Direito Constitucional Material – sendo essa condição normativa insuscetível de ser, à mera conveniência do intérprete, transformada em regra de Direito Constitucional Processual. É, portanto, não apenas ilegítima, mas ilícita, a tentativa de interpolar-se, no texto constitucional deste artigo, como se ali estivesse escrito, um pedúnculo interpretativo descaracterizando a própria natureza substancial do direito em questão, com a expressão mencionada pelo jurista: “na fluência deste mandato”.  

O que se tem por implícito na tipificação constitucional do crime de responsabilidade, é que se trata de uma infração político-administrativa cometida pelo Presidente em exercício de mandato – o que é muito diferente de afirmar-se que só possa configurar-se o tipo jurídico, se o for neste ou naquele mandato do Presidente autor. A definição do artigo 85, agrega ao conceito tipo do crime de responsabilidade uma condição pessoal do autor no momento do ato ofensivo à Constituição – estar no exercício da Presidência da República. Não se pode deduzir disso que, ao exonerar-se do respectivo múnus, ou ao ser reconduzido à Presidência para um outro mandato, contíguo ou não, o que era traição máxima e perjúrio, como atentado à Constituição deixe de sê-lo. Isso redundaria, notoriamente, no absurdo da mais ilimitada permissividade à violação da Cartas Magna. Pois, neste caso, bastaria a um Presidente delinquente concentrar, ardilosa e insidiosamente, todo o abuso das suas prerrogativas constitucionais, no final do seu mandato, eis que assim procedendo, ao deixar o cargo, sem dar-se tempo ao tempo para que a cidadania tomasse conhecimento da profundidade e gravidade dos seus malfeitos, a natureza deletéria da sua máxima vilania haveria de pronto desvanecer-se na memória da Justiça. Com certeza a Constituição Federal jamais dispôs a qualquer título sobre essa aplicação generalizada e sistemática do que na história política sempre acontece como exceção, qual seja, o instituto da anistia, estendendo-o indiscriminadamente, e à revelia da necessária e específica autorização legislativa, aos Presidentes reconhecidos em qualquer época como autores de crimes de responsabilidade. Em síntese, o que o Ministro Ayres postula é a teratologia de uma “anistia jurisprudencial” para a Presidente Dilma Roussef. Isso que implicaria no efetivo desmoronamento do alicerce fundamental da institucionalidade republicana e democrática, em violação flagrante e incontornável da cláusula pétrea da separação dos poderes (Art. 60, § 4º, III, CF).
Expungida, assim, essa primeira pedalada constitucional do Ministro Ayres Britto, importa esclarecer a segunda, que se articula na seguinte declaração do jurista: 
““É preciso ver como a Constituição fala do impeachment. À luz da Constituição, os mandatos não se intercalam. Os dois mandatos presidenciais se intervalam, para fim de crime de responsabilidade. Não para fim de crime eleitoral, não para fim de infração penal comum. Mas, para crime de responsabilidade, cada mandato novo é uma nova história. O mandato velho é uma página virada. Não tem serventia para crime de responsabilidade”, disse.”
 (MSN, 26/09/2015, Editor Aécio Amado – apud Agência Brasil, Repórter Vladimir Platonow).

Pois aqui, também, não existe, na Constituição Federal qualquer referência expressa ao “intercalamento” ou “intervalamento” de mandatos presidenciais para fins de crime de responsabilidade. O que o nosso ordenamento efetivamente jurídico contempla não carece de adjetivação espúria, nem de qualquer arremedo de justificação que mais confunde do que esclarece a processualidade deste instituto. Está expresso, com todas as letras, e com entendimento óbvio à luz de mero bom senso, em dispositivo Lei 1079/50: “Art. 15. A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo.”  

Bem entendido na sua finalidade, esse artigo é absolutamente consistente com a natureza extra-penal do processo de impeachment: trata-se de um procedimento revocatório de mandato, por isso que, evidentemente, só tem eficácia processual quando acionado contra alguém que está no exercício de um mandato. Aliás, para ser ainda mais fiel à interpretação literal da lei, é preciso sublinhar que a lei utiliza o termo “cargo”, em vez de mandato, e ainda pontua que a ineficácia do processo do impeachment ocorre quando a denúncia ocorre depois que o titular tenha “deixado definitivamente o cargo”.

Ora, a lei 1079/50 foi recepcionada pela Constituição de 1988, e assim também pela Emenda Constitucional nº 16, de 1997, no expresso teor do § 5º, do seu Art. 14, que dispõe: “O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente.”
Do exposto fica óbvio que o fato político originador do segundo mandato presidencial consecutivo, se autoriza, se desenvolve, se consuma e se proclama com a diplomação dos eleitos, no curso do primeiro mandato – pelo que, também, não o interrompe a qualquer título. Descabido pois, esgrimir-se os conceitos ad hoc utilizados pelo Ministro Ayres Britto de “intervalamento” ou “intercalamento” de mandato. O que ocorre na solenidade de posse do presidente reeleito, é simplesmente uma cerimônia de ratificação do respectivo cargo, cujo mandato foi estendido em plena vigência do anterior, e cujo exercício nem sequer se interrompeu, e cujo titular muito menos o deixou "definitivamente” como requer o dispositivo legal expresso para configurar a ineficácia do processo.

Considero lastimável, que o eminente jurista que presidiu o STF, com segurança jurídica e patriótica determinação no julgamento do mensalão, formule tão esdrúxulo entendimento e tão injustificável defesa do mandato da atual Presidente da República. 
Gostaria de ouvir do Ministro Ayres Britto o desmentido da notícia, como se um mal entendido fosse da matéria divulgada pela empresa estatal de comunicação.
 Gravataí, 27 de setembro de 2015.

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