Democracia e
Política Externa: considerações sobre o caso brasileiro
Paulo Roberto de Almeida
Para participação em mesa redonda sobre o
tema no IV Simpósio
Internacional de Ciências Sociais: Ciências Sociais e Democracia Hoje:
controvérsias, paradoxos e alternativas (dias 11, 12 e 13 de novembro, no
auditório da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, em
Goiânia).
(Atenção: draft paper, not yet finished, not to be cited)
1.
Democracia e política externa: considerações iniciais
A temática é bastante
específica: democracia e política externa, no sentido estrito do tema. Em outros
termos, não se trata de examinar conexões entre regimes políticos e as relações
interestatais no sistema internacional, nem de saber como este funciona no
plano de sua organização política em função de critérios mais ou menos
democráticos, isto é, representação eleita, debates de tipo parlamentar,
controle e responsabilização dos poderes, etc. O objetivo é o de considerar
como países membros da comunidade internacional refletem, ou não, princípios ou
valores democráticos em sua política externa, uma das mais importantes
políticas públicas de qualquer Estado contemporâneo. Ao empreender este tipo de
exercício, seria natural dedicar maior atenção ao caso do Brasil, tanto no
plano histórico quanto no atual governo, com ênfase nas difíceis e ambíguas
relações que o seu partido hegemônico, o PT, mantém com o princípio democrático,
a começar pelas relações entre Estado e partido, uma relação clássica no campo
do marxismo-leninismo, corrente à qual o PT estaria ideologicamente associado,
como uma variante anacrônica do neobolchevismo.
Uma pergunta inicial, dentro
da temática proposta, poderia ser assim formulada: pode um país que se pretende
democrático apoiar ditaduras reconhecidas? Registre-se que não se está falando,
neste caso, das relações diplomáticas interestatais, que países de diferentes
regimes políticos mantém entre si, desde que respeitados padrões mínimos de
comportamento, que estão basicamente expressos na Convenção de Viena de 1961
sobre Relações Diplomáticas e, de modo mais amplo, na Carta ONU (1945). Trata-se
de apoio político, financeiro e até moral, que um país pretensamente
democrático possa conceder a regimes que nitidamente não se pautam pelos mesmos
valores e princípios.
É o caso do Brasil atual,
sem qualquer hipocrisia na afirmação: o governo do PT apoia ditaduras
reconhecidas, e parece não ver nenhum problema nisso. Para ser mais concreto
ainda: o governo do PT tem um caso de amor explícito com Cuba, derivado,
provavelmente, de coisas não reveladas e não sabidas pela maior parte dos
simples mortais, que somos nós. Ele também tem manifestas simpatias por outras
ditaduras, mas o seu caso de amor com Cuba é mais longo, mais durável, mais
consistente, simbolizado inclusive nos milhões de dólares transferidos para a
mais longeva ditadura do continente e uma das mais antigas do planeta, só
superada pela da família Kim, da infeliz Coreia do Norte. Mas, como o tema
proposto é o da democracia e suas conexões com a política externa, cabem
considerações iniciais sobre essa relação altamente ambígua, tanto no plano
metodológico ou conceitual, quanto do ponto de vista da prática, antes de se
ilustrar essas conexões com exemplos retirados de nossa própria experiência.
Política externa é
universal, existe em todos os tipos de regime, das mais variadas cores e
sabores. Existe nas tiranias impecáveis, nos despotismos mais cruéis, e também,
claro, nas democracias de mercado, que são aqueles que realizam uma melhor
aproximação entre os objetivos da política externa e os valores desses regimes,
ou seja, uma maior compatibilidade entre meios e fins. Nos demais regimes, a
política externa pode ser convergente ou não com os princípios do direito
internacional contemporâneo – que são, por definição democráticos, pelo menos
tendencialmente –, mas ela não precisa espelhar perfeitamente as
características internas, ou domésticas, do sistema político (que pode ser
“perfeitamente” antidemocrático). Até as menores tribos de caçadores e
coletores da floresta possuem uma política externa – que é a forma de se
relacionar com as tribos vizinhas, pela guerra ou em relativa concórdia – sem
necessariamente exibirem qualquer sistema político digno desse nome, ou
formalizado em regras impessoais, como costuma ocorrer nas comunidades mais
complexas.
Não pretendo traçar um
roteiro sistemático, sequer científico das relações ambíguas, contraditórias,
frustrantes, que mantêm os dois termos da mesa redonda: democracia e política
externa. O próprio subtítulo deste simpósio internacional aponta para a difícil
interface entre as ciências sociais – no âmbito das quais se situa o estudo da
política externa – e a democracia: controvérsias,
paradoxos e alternativas. Os dois primeiros termos podem ser
compreendidos em suas próprias definições formais, e são incontroversos, tão
claras são as controvérsias e os paradoxos dos regimes democráticos em sua
natural complexidade e variedade. Mas o terceiro termo me parece mais dúbio: eu
não vejo alternativas à democracia, nenhuma alternativa, mas é evidente que
subsiste, se manifesta, ou existe simplesmente, uma imensa decalagem entre os
sistemas políticos realmente existentes, que se auto-intitulam “democracias”, e
sua efetividade concreta, para ficar num outro termo controverso.
Quase todos os países do
mundo, quase todos membros da ONU, pretendem ser democracias, até a China comunista,
ou a Coreia do Norte. Mas é claro que a qualidade democrática de alguns regimes
deixa muito a desejar, e não apenas aqueles que são ditaduras de fato – como os
já citados – mas também grandes democracias de baixa qualidade, como parece ser
o caso do Brasil, ou da Índia, para ficar nos exemplos mais conhecidos. Levando
em conta essas defasagens de fato entre intenção e realidade, e mais
precisamente entre a retórica democrática e a prática da política externa, o
que poderia ser dito da relação sutil entre os dois elementos dessa equação
ambígua?
Poder-se-ia parafrasear
Clausewitz e dizer que a política externa representa a continuidade da política
interna por outras vias ou por outros meios, mas esse tipo de argumento é
bastante frágil, tanto em sua acepção puramente formal – ou seja, enquanto
correspondência, ou reflexo, da política doméstica nas relações exteriores do
país – quanto no entendimento de que a política externa deva refletir
exatamente o caráter do Estado e o agenciamento de forças políticas que nele se
estabelecem (de maneira temporária, nas democracias, de forma mais ou menos
permanente, nas ditaduras). Na verdade, não há uma perfeita correspondência
entre essas duas políticas, que podem se desenvolver de forma independente uma
da outra, por canais e procedimentos próprios, como tampouco há, na forma e no
conteúdo, uma “osmose”, ou imbricação estrutural, entre, de um lado, o
“caráter” da política externa, e a “natureza” do regime político, no nosso
caso, um regime formalmente democrático, dotado de instituições republicanas
mais ou menos “clássicas”, ou comuns aos sistemas presidencialistas desse tipo.
A ONU é, tal como expresso
em sua própria estrutura institucional, uma total contradição entre o princípio
da representação democrática e a realidade da supremacia oligárquica, fenômenos
contraditórios refletidos na composição e nos processos decisórios da
Assembleia Geral de um lado e do Conselho de Segurança de outro. Já discuti
essa questão em meu capítulo sobre os artigos 18 e 19 da Carta da ONU, ao qual
remeto para não ter de me estender novamente sobre essas questões aqui:
“Artigos 18 e 19”, in Leonardo Nemer Caldeira Brant (org.) Comentário à Carta das Nações Unidas (Belo Horizonte: Cedin, 2008,
p. 323-346).
Para que a discussão não
se perca em considerações da caráter puramente abstrato, ou em argumentos muito
vagos quanto a elementos concretos desse complexo relacionamento que se
pretende examinar, o restante deste texto se concentrará num exame do caso
brasileiro em perspectiva histórica, ou seja, cobrindo tanto os períodos autoritários,
ou ditatoriais, quanto as fases democráticas, eventualmente interrompidas ou
aparentemente consolidadas, como pode ser o caso desde 1985.
2. Democracia
e política externa na história do Brasil: o Império
(...)
(em revisão, não acabado)
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