O quase-golpe paraguaio que desmoralizaria o Mercosul, mas que
foi obstado pelo Brasil e pelos EUA, e que deu origem à cláusula democrática do
Mercosul, atualmente em desuso num bloco bolivarianizado. Depoimento de Marcio
de Oliveira Dias, ex-embaixador em Assunção na ocasião e um dos protagonistas
do episódio, em artigo histórico e inédito. Material para a história dos dois
países e do Mercosul.
O jornal paraguaio ABC Color retomou a matéria:
Paulo Roberto de Almeida
Quando o Brasil ajudou a impedir o golpe de Oviedo
Se Bambino não estivesse à frente do Itamaraty, talvez o
Paraguai tivesse sofrido um golpe de Estado militar que desmoralizaria o
Mercosul
por Marcio de Oliveira Dias, ex-embaixador em Assunção
O Globo, 29/11/2015
Wasmosy em 1997:
momento-chave - Rafael Urzua / Reuters/19-6-1997
Deixou-nos há poucos dias, vítima de um tolo acidente
doméstico, o embaixador Sebastião do Rego Barros Netto, conhecido dos colegas e
amigos como Bambino. Um dos grandes diplomatas brasileiros, colega de turma e
particular amigo meu. Além da convivência funcional, éramos companheiros de
tênis, bridge, comilanças. Um homem que sentia prazer na vida, que levava tudo
com seriedade profissional temperada por um grande bom humor.
Por volta de 30 anos de carreira, protagonizamos um importante
episódio das relações internacionais brasileiras, até hoje um pouco escondido
do conhecimento público, mas que agora me disponho a revelar, muito como
homenagem a Bambino. O ano era 1996, Bambino era o secretário-geral do
Itamaraty, na ocasião substituindo o ministro Luiz Felipe Lampreia, grande
amigo de nós dois, e eu era o embaixador em Assunção. O Paraguai era presidido
por Juan Carlos Wasmosy, democraticamente eleito. Havia, entretanto, uma
permanente ameaça de golpe de Estado por parte do ambicioso general Lino Cesar
Oviedo, comandante geral do Exército, que pouco ou nada fazia para disfarçar
suas pretensões presidenciais. Instruído pela área política do Itamaraty,
prestei desde logo especial atenção a Oviedo e seus movimentos.
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Wasmosy contou-me que pretendia demitir Oviedo, mas tinha
receio de que ele retrucasse com um golpe. Como já discutira o tema com a
cúpula do Itamaraty, pude assegurar-lhe o apoio do governo brasileiro, mas
Wasmosy disse-me que gostaria de ter a garantia pessoal do presidente Fernando
Henrique Cardoso. Como Oviedo o mantinha sob observação constante, uma ida sua
ao Brasil poderia precipitar a ação golpista. Alertou-me também que Oviedo
monitorava as comunicações das embaixadas mais importantes. Para articular
sigilosamente o encontro com Fernando Henrique, aproveitei a proximidade de meu
aniversário e transformei o jantar que iria dar ao pessoal da embaixada numa
grande recepção, para a qual convidei o topo do mundo político paraguaio,
Oviedo inclusive. De acordo com Wasmosy, anunciei que ele estaria presente à
festa.
Atenção de general foi desviada
Com as cúpulas política e militar do Paraguai bebendo, comendo
e dançando na residência do embaixador do Brasil, Wasmosy tranquilamente
decolou de sua estância no interior e chegou ao Aeroporto Militar de Brasília,
onde, instruídos seu comandante e auxiliares, foi recebido discretamente por
Bambino, que o levou ao Palácio da Alvorada, àquela hora (21h30m de sábado) já
livre do assédio da imprensa. Tudo combinado pelo telefone de satélite — imune
à monitoração de Oviedo.
Sentindo-se seguro com o apoio brasileiro, Wasmosy chamou
Oviedo na manhã de segunda-feira e exigiu sua demissão. Surpreso, Oviedo pediu
tempo para pensar. Wasmosy chamou-o novamente ao meio-dia e, com os comandantes
das outras duas armas e com seu substituto na chefia do Exército, secamente
disse-lhe que mantinha sua demissão e que se quisesse revidar com um golpe, que
o fizesse. E que determinaria às forças que o apoiavam que não reagissem, pois
não queria derramamento de sangue, deixando inteiramente a Oviedo a
responsabilidade pelo que pudesse ocorrer.
A notícia já havia corrido e todas as estações de rádio faziam
as mais diversas especulações, mas sem confirmação alguma, dado o absoluto
silêncio por parte de Oviedo. A essa altura, a embaixada americana, com Oviedo
na mira devido à convicção de seu relacionamento com o narcotráfico, emitiu
comunicado onde condenava a sedição do general e reafirmava veementemente seu
apoio ao presidente constitucional. O fez, a propósito, para evitar a
eventualidade de uma composição com o presidente que viesse a prejudicar a
clara caracterização de Oviedo como golpista.
Sebastião do Rego
Barros em 2002 - Marco Antônio Teixeira /2-9-2002
Wasmosy, que recebia continuamente por telefone mensagens de
apoio de outros chefes de Estado e de líderes mundiais (o Papa inclusive) pediu
a mim e aos embaixadores dos Estados Unidos e da Argentina que procurássemos
Oviedo. Tentamos fazê-lo, mas sem sucesso.
Já noite fechada, falei por telefone com o ministro do
Exército, general Zenildo Lucena, por quem Oviedo tinha grande respeito pois
foi seu instrutor em Assunção. Sabendo da relação, sugeri a Bambino que
promovesse o contato. Relatou-me o ministro brasileiro que em conversa horas
antes Oviedo pareceu-lhe bastante sereno e garantiu que não promoveria nenhum
ato de força, “mas que providenciaria para que se fizesse com Wasmosy o que o
Brasil fizera com Collor”.
Como Wasmosy e dois filhos (a mulher e o outro filho estavam
fora do país) abrigaram-se na embaixada americana, fui até lá. Presente também
Hugo Aranda, empresário ligado a Wasmosy que havia estado com Oviedo. O
presidente terminava de escrever à mão um documento com sua renúncia, exigida
por Oviedo sob pena de bombardear a casa presidencial e o palácio de despachos,
além de deter ou eliminar outros componentes do Governo. Obtida a renúncia de
Wasmosy, Oviedo “cuidaria ele mesmo do vice-presidente e faria com que o
presidente do Congresso assumisse o governo na manhã seguinte”. Exigia a
renúncia até as 2h. Aranda seria o portador do documento, em complicado sistema
determinado por Oviedo, que, por não estar certo do paradeiro do presidente e
não querer deixar traços como gravação de telefonemas, estabelecera a casa de
Aranda como centro de encontro dos seus mensageiros com os de Wasmosy.
Pedi a Wasmosy que não enviasse o documento até que eu me
comunicasse com meu governo e, com a devida delicadeza, tomei-lhe o papel. Com
a renúncia segura comigo, acordei Bambino às 2h40m e expus-lhe a situação. Concordamos
em que a pressa de Oviedo devia-se à dificuldade que teria para implementar o
“golpe branco” quando fossem abertas as Chancelarias do continente e em pleno
funcionamento de seus governos. Pela impossibilidade prática de tomar qualquer
medida àquela hora, concordamos em tentar ganhar tempo e chegar à manhã de
terça-feira, 23, sem que ações de força ocorressem.
Wasmosy, disposto a tudo para evitar o derramamento de sangue,
insistia em obedecer ao ultimato. Ditei-lhe, então, o texto de um pedido de licença
provisória em termos que, avaliei, dificilmente poderiam ser aceitos pelo
Congresso. Wasmosy escreveu de próprio punho o novo documento. Para evitar
qualquer possibilidade de troca (ou de má fé de algum dos intermediários),
pedi-lhe licença para rasgar a renúncia que estava em minhas mãos. Wasmosy,
intimidado, não teve condições de contra-argumentar, e rasguei-a. Mas, apesar
de acabrunhado pelas circunstâncias, Wasmosy teve o instinto político de
guardar os pedaços. E uma imagem que jamais esquecerei é a da expressão do
embaixador norte-americano quando rasguei a renúncia e ditei ao presidente os
termos do papel com o qual podíamos ganhar o tempo necessário para neutralizar
a manobra de Oviedo.
Aranda saiu com o novo papel para sua casa, onde encontraria o
presidente do Congresso e o emissário de Oviedo. Para tranquilizar Wasmosy e
manter, na medida do possível, a situação sob controle, propus-me a
acompanhá-los. Lá encontrei o presidente do Congresso, que não me pareceu
envolvido no golpe, e instei-o a que só assumisse caso a renúncia fosse
inapelavelmente explícita e legalmente incontestável. O que sabia não poder
ser, pois “saltava” o vice-presidente.
Chegando ao quartel, eu e o ministro do Interior fomos
impedidos de entrar. Quando saíram os mensageiros, regressei com Aranda à
embaixada americana. Contou-nos que Oviedo recebera o papel e o passara ao
presidente do Senado, perguntando se permitiria sua posse na manhã seguinte. O
senador disse-lhe que como estava redigido não permitia que o fizesse dentro da
lei, sendo necessário, no mínimo, submetê-lo ao plenário. Oviedo ficou furioso
e mandou buscar nos arquivos a renúncia de Stroessner e redigir documento nos
mesmos termos para a assinatura de Wasmosy — que, receando o cumprimento das
ameaças, dispunha-se a assinar a renúncia. Ponderei-lhe que, com a residência
presidencial desocupada, Oviedo não a bombardearia e que tampouco iria disparar
tiros ou jogar bombas no centro vazio da cidade. Ressaltei que era um blefe
armado para forçá-lo a tomar uma medida que não teria condições de
extorquir-lhe uma vez raiado o dia e com os governos dos países vizinhos em
pleno funcionamento. Wasmosy finalmente concordou e autorizou Aranda a
regressar ao quartel e dizer que não mais encontrara o presidente. Deixei Bambino
a par do ocorrido.
Pouco depois das 6h, o líder oposicionista Domingo Laino pediu
para ver-me. Wasmosy chamou-me. Disse que iria após receber Laino, e que, se o
palácio de despachos estivesse em mãos leais, eu o encontraria lá. Sugeri a
Laino que, com o outro líder oposicionista, Guillermo Caballero Vargas,
passassem uma resolução pela qual o Senado se recusaria a sequer examinar
qualquer pedido de renúncia do presidente ou do vice, por entender que estariam
sendo apresentadas sob pressão. Laino concordou e (o que muito diz dele)
pediu-me: “Embajador, puedo decir que la idea fué mia?”
No Palácio de Lopez, estavam os embaixadores acreditados, mais
a grande maioria de deputados e senadores (estes já com a resolução de que não
aceitariam examinar o pedido de renúncia), empresários, líderes de partidos,
etc. Grande festival cívico-democrático. Só que, do outro lado da cidade,
estava Oviedo com os canhões e blindados às suas ordens e, ainda acreditava
Wasmosy, o apoio da totalidade dos generais. E já sem saída, pois o golpe
direto fracassara pela decidida reação internacional e o indireto bloqueado
pela iniciativa do Senado. Receava-se a possibilidade de um movimento
desesperado de Oviedo.
A instâncias de Bambino, o ministro Zenildo falara novamente
com Oviedo. Que fez chegar ao palácio que aceitaria “uma saída elegante para
ele” (palavras textuais). Assunto que já havia sido objeto de especulações.
Após exame pelo presidente, seus (poucos) ministros de confiança e os
embaixadores, surgiram duas alternativas: a embaixada em Bonn ou o Ministério
da Defesa (que, apesar do pomposo nome, está fora da linha de comando).
Qualquer ministério exigiria a passagem prévia para a reserva. O que,
entendíamos, reduziria de imediato o apoio dos generais a Oviedo.
Conversa áspera de duas horas
O ministro do Interior foi levar a oferta a Oviedo. Chega
César Gaviria, secretário-geral da OEA, e junto aos demais, aguarda o
resultado. Oviedo rechaçou liminarmente a embaixada, mas aceitou o ministério.
Chegam os chanceleres do Mercosul (Bambino buscou-os no seu avião) e, como
todos, aprovam o acordo como a melhor solução possível naquele momento.
Na manhã seguinte, Oviedo transfere o comando do Exército e é
marcada sua posse na Defesa para o próximo dia. Até então aclamado, Wasmosy,
uma vez conhecida a oferta do ministério a Oviedo, começa a ser alvo de pesadas
críticas e chega-se a cogitar seu impeachment. Transferido o comando,
entretanto, surgem sinais de quebra na unanimidade do apoio a Oviedo. Tentam os
líderes militares convencê-lo a declinar do cargo. Wasmosy e o novo chanceler
pedem-me que convença Oviedo. Tivemos longa e áspera conversa, duas horas.
Oviedo começa a dar os primeiros sinais de afrouxar, mas Wasmosy ainda teme sua
reação e hesita em suspender a nomeação.
Entra de novo Bambino em cena e pede a FHC que encoraje
Wasmosy a suspender a nomeação. Com a ligação do presidente brasileiro, Wasmosy
cobrou alento definitivo. Preparou-se rapidamente um discurso, em cuja redação
colaborei a pedido de Wasmosy, e o presidente dirigiu-se ao Palácio de López,
onde já chegava Oviedo para sua “posse”.
Após o pronunciamento do presidente e sendo-lhe barrada a
possibilidade de dirigir-se ao povo da sacada presidencial, que ainda quis
tentar, Oviedo, bastante desarvorado e com exíguo apoio, tentou dar início a
uma carreira política. No que não teve sucesso, e após uma série de fatos,
inclusive uma detenção, terminou por morrer num acidente de helicóptero.
O caso sem dúvida constituiu um evento ímpar na história
diplomática brasileira, o desfazer de um golpe militar em país amigo por meio
da ação diplomática. O chanceler Lampreia, que na ocasião estava ausente do
Brasil a serviço, chegou a classificar o episódio como “a ação mais
intervencionista que o Brasil já teve neste século”, como descreve o presidente
Fernando Henrique na página 570 do seu “Diários da Presidência”. Mas o próprio
presidente rotula o comentário do seu chanceler de “exagerado”... E acrescenta
que tanto Bambino como eu esclarecemos que a ação no Paraguai foi feita em nome
do Mercosul — que, na ocasião, ainda não “bolivarianizado”, valia preservar.
O episódio contribuiu inclusive para mudar junto aos círculos
mais esclarecidos do país vizinho a imagem do Brasil , até então obscurecida
pelo que era visto como um apoio aos anos da ditadura Stroessner,
Se Bambino não estivesse à frente do Itamaraty, talvez o
Paraguai tivesse sofrido um golpe de Estado militar que desmoralizaria o
Mercosul. Assim, além de todos os seus muitos amigos, ouso dizer que também o
país vizinho tem motivos para lamentar o prematuro desaparecimento da grande
figura profissional e humana que foi Sebastião do Rego Barros Netto, o nosso
queridíssimo Bambino.
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