Agora que o banco do investimento Goldman Sachs acaba de se desfazer de sua carteira Brics, que só apresentou prejuizos nos últimos anos, caberia rever o conceito e a própria utilidade do grupo.
Trata-se, como já afirmei diversas vezes, de uma construção totalmente artificial, provavelmente o primeiro grupo de natureza diplomática formado por indução externa, não por uma análise serena e ponderada de suas possibilidades intrínsecas, mas decidido a partir das sugestões de investimento financeiro de um banco privado.
Em outros termos, os dirigentes políticos do Bric -- seu acrônimo original -- atuaram de forma narcisística, e por impulsos totalmente de marketing político, não a partir de uma decisão ponderada de natureza técnica.
Desde 2008, ainda antes de sua constituição formal como grupo diplomático, eu já me manifestava a esse respeito.
Apesar de que algumas realidades mudaram desde então, creio que minha análise permanece válida em seus contornos essenciais.
Paulo Roberto de Almeida
Anápolis, 10/11/2015
Questionário
sobre o BRIC
Nome
do entrevistado: Paulo Roberto de Almeida
Data
da entrevista: 5 de maio de 2008
Ocupação
do entrevistado: Diplomata e professor universitário
1)
O conceito BRIC foi criado pelo Goldman Sachs para designar as
potências, que segundo o relatório que eles elaboraram, serão as maiores em
2050. Você concorda que os quatro países que compõe o BRIC serão
superpotências?
R: Não! Para ser mais
preciso, apenas um dos BRICs, segundo esse estudo, se alçará à condição de
primeira economia planetária, enquanto as outras três estarão em patamares
diversos: será a China, supostamente à frente dos EUA a partir de 2040 se, por
acaso, sua taxa de crescimento se mantiver num patamar razoável e a dos EUA
continuar num ritmo moderado. As outras três ficarão atrás do Japão ou até da
Alemanha. Supostamente, os quatro BRICs, conjuntamente, terão ultrapassado o
G-6 do estudo – G-7 menos Canadá – em torno daquela data, mas isto não quer
dizer que todas serão superpotências, uma vez que essa condição supõe uma
capacidade de projetar poder externo que nem todas exibirão. Pode-se dizer que
a Rússia e a China já são superpotências, detentoras de mísseis nucleares e
alguma capacidade naval e aérea, mas não parecem dispor das mesmas condições de
empreender grandes operações navais ou aerotransportadas como os EUA e a OTAN.
Por outro lado, uma superpotência também dispõe de uma clara liderança
tecnológica e certa dominação financeira, o que não parece o caso de nenhum dos
BRICs.
2)
Qual o caminho que o Brasil deve trilhar para que o Brasil possa
acompanhar o crescimento dos outros países do BRIC?
R: Basicamente crescer a
uma taxa sustentável e sustentada, o que significa manter uma taxa de
investimento compatível com um nível razoável de crescimento. A atual taxa de
investimento parece insuficiente para garantir isso. Por outro lado, a economia
precisa ser capaz de desenvolver fontes próprias de inovação tecnológica, o que
não depende unicamente da FBKF (formação bruta de capital fixo) e sim de uma
cultura da inovação que ainda não está devidamente assentada nas instituições
pertinentes, ou seja, empresas e universidades. Em outros termos, o governo
precisa ser menos “extrator” de recursos do setor privado e participar dos
investimentos produtivos – geralmente em infra-estrutura, educação e C&T
--, assim como precisa reverter o processo de crescimento da carga fiscal,
nitidamente em contradição com os requerimentos do crescimento. Isso significa
uma profunda reforma fiscal – e não apenas tributária – com redução dos gastos
correntes e aumento das alocações voltadas para a capacitação da mão-de-obra e
educação da população em geral. Nenhum desses problemas tem a ver com o
ambiente internacional – que ao contrário tem sido extremamente positivo com o
Brasil – e sim com o ambiente interno.
3)
Quais os empecilhos para o crescimento brasileiro?
R: Numa palavra: o Estado,
ou seja, seu caráter predatório, extrator, obstrutor do direcionamento da
poupança privada para o setor produtivo. Em detalhe, temos obstáculos
sistêmicos ao crescimento – que são a elevada carga fiscal e o baixo volume de
investimentos para as necessidades de crescimento – e elementos estruturais –
que são o baixo nível de educação da população e a péssima infra-estrutura
disponível. Temos ainda a visão introvertida das elites, que fazem com que o
Brasil seja um país especialmente renitente a maior abertura externa, condição
importante para modernizar a sua indústria e serviços e assim oferecer novas
oportunidades de crescimento no contexto da economia global, onde estão hoje as
maiores possibilidades de captação de recursos – capitais, know-how – para fins
de desenvolvimento produtivo.
4)
Por que é tão difícil para uma empresa brasileira se colocar como
grande multinacional? O que deve ser feito para que isso mude?
R: Baixo grau de vinculação
da economia brasileira à economia mundial e mentalidade introvertida dos
próprios empresários. Ausência de mecanismos financeiros para a projeção
externa dessas empresas, o que é válido no plano interno também, a despeito do
apoio de uma agência pública como o BNDES. Poucos executivos possuem realmente
os requisitos da internacionalização, sobretudo porque as universidades e
outras escolas estão pouco conectadas com congêneres nos países desenvolvidos.
Essas empresas foram, durante muito tempo, protegidas “contra” a competição
externa, em vista de políticas públicas protecionistas e nacionalistas, ou
basicamente introvertidas.
5)
A Rússia tem realmente capacidade de se tornar tão grande quanto as
projeções do Goldman Sachs mostram? O que a Rússia tem atualmente de
superpotência e o que falta para ela?
R: Trata-se de uma potência
nuclear, ou militar, e a esse título incorporada ao G-7, mas que carece de
outras condições econômicas e tecnológicas para realmente liderar o mundo no
sentido da interdependência ativa, em conformidade com a globalização. Ela tem
muitos recursos naturais, alguns deles estratégicos, como petróleo e gás, mas
tem uma população em declínio e condições de governança ainda deficientes.
6)
A Índia tem uma população gigantesca e é a casa de grandes
milionários, o que mais esse país tem a favor e o que ele tem contra seu
crescimento?
R: A favor, uma inserção
quase natural na globalização, graças à herança inglesa deixada pela antiga
metrópole colonial, o que se manifesta no regime político democrático, no
sistema jurídico “inglês” e em certas instituições universitárias. Uma diáspora
indiana nos EUA permitiu fazer um link de negócios e de serviços com as
empresas inovadoras desse país e associar mais estreitamente os indianos à
economia global. De negativo, uma infra-estrutura pavorosa, uma população
miserável, taxas de analfabetismo ainda enormes – o que a rigor não impede sua
inserção na globalização – e um ambiente regulatório ainda negativo para os
negócios de forma geral.
7)
A China é hoje a fábrica mundial devido aos seus baixos custos? Essa
posição é favorável para o país? E para o cenário mundial?
R: Certamente, para ambos.
A principal vantagem comparativa, absoluta e relativa, da China, é sua grande
população, daí a condição imbatível na produção de manufaturas de massa,
especialmente eletrônicos, mas produtos industriais em geral. Isso é excelente
para a China, elevando a qualificação profissional de sua população, trazendo
renda e prosperidade para o país, e ainda melhor para o mundo, pois isso tem um
efeito deflacionário, do contrário o custo de vida teria se elevado no plano
mundial. Por outro lado, ela está fazendo um “favor” aos países avançados, ao
obrigá-los a constantemente se elevar na escala tecnológica, ao dominar de modo
quase absoluto as tecnologias disponíveis. Tudo isso é extremamente positivo
para a economia mundial, ainda que possa “destruir” empregos nos países
desenvolvidos (e em alguns intermediários, como o Brasil).
8)
Como um país comunista chegou onde a China está hoje?
R: O comunismo foi um
parênteses “passageiro” na história milenar da China, uma sociedade de grandes
tradições culturais e científicas, uma grande economia, “temporariamente”
diminuída por dois ou três séculos de decadência tecnológica e de dominação
ocidental, atrasada ainda mais por um regime disfuncional como o socialismo
centralizado, e agora operando uma volta em força para o centro da economia
mundial, ainda que não totalmente de forma autônoma, na atual conjuntura. O
comunismo foi um enorme atraso, embora um a mais, em dois ou três séculos de
decadência contínua. A China está apenas recuperando o tempo perdido agora, da
mesma forma que sempre fez nos períodos anteriores, isto é, de maneira autoritária,
centralizada, imperial e despótica. O comunismo combina com a história secular
da China, de governos centralizados e autoritários, sem respeito aos direitos
humanos ou ao meio ambiente. Ou seja, a China continua fundamentalmente igual,
mas agora incorporando tecnologia estrangeira, o que não era o caso
anteriormente.
9)
Não existe um acordo envolvendo os quatro países, um acordo assim
pode vir a existir? Pode-se criar um bloco econômico BRIC?
R: Existem tentativas de criação de um grupo “diplomático” dos BRIC,
out of this intellectual exercise made by Goldman Sachs. Ocorreram contatos
diplomáticos, reuniões informais e até uma reunião formal de vice-ministros,
preparando uma reunião formal de ministros do que pode ser o “lançamento”
formal de um novo G-4, ou “the BRIC”. Trata-se provavelmente mais de impulso
“narcisista” do que propriamente um grupo unido em torno de uma agenda comum,
não fosse, talvez, o desejo inconfessado de contestar o “velho” G-7, do qual a
Rússia faz parte, no G-8, mas numa posição que sempre foi “bizarra”, para dizer
o mínimo. Cada um deles pode ter suas motivações peculiares para “opor-se” ao
G-7, que pode ser o motivo mais evidente da constituição desse grupo, uma vez
que não está visível, de imediato, que agenda comum “a favor” possa uni-los. Seria,
de todo modo, um bloco bem mais político, ou diplomático, do que econômico,
ainda que fundamentado no fato de que os quatro foram os “designados” – pela
divina providência do Goldman Sachs – para “superar” o atual G-6.
10)
Comparando-se os BRIC’s, qual a maior semelhança e qual a maior
diferença entre os países?
R: São todos “emergentes”,
ou seja, países de grande crescimento e de grandes possibilidades na economia
mundial, mas como diferentes modos de inserção nessa economia. Dois grandes
fornecedores de commodities, mas diferentes, como Brasil e Rússia – com commodities
agrícolas e energéticos, respectivamente – e dois países voltados para as
tecnologias inovadoras, como China e India, mas com diferentes capacitações
nesses terrenos manufatureiros ou de serviços. De todos, o Brasil é
inquestionavelmente o mais “capitalista” de todos, a despeito de suas
deficiências regulatórias. Tambem, com a India, tem estruturas políticas
formalmente democráticas, ainda que de baixa qualidade, tendo em vista o
constante desrespeito à lei por parte das próprias autoridades. Sua taxa de
corrupção pode não ser mais alta ou mais baixa do que os outros três, mas é
certamente entranhada na máquina pública, como qualquer registro jornalístico
poderia comprovar, mas essa característica parece ser igualmente partilhada
pelos demais. Os outros três são potências nucleares reconhecidas, embora
apenas Rússia e China sejam formalmente aceitas e “legitimadas” nessa
categoria.
11)
O que você tem a dizer sobre o BRIC?
R: Existem enormes
diferenças estruturais, de dotação de fatores, de políticas públicas –
macroeconômicas e setoriais – entre cada um deles, assim como eles ostentam
agendas internacionais bastante dessemelhantes entre si, não sendo possível
visualizar, prima facie, interesses comuns, a não ser, talvez, o já alegado
“interesse” – mais presumido do que real, talvez – em contestar o poder das
velhas potências (do G-7) para melhor assentar o seu próprio poder.
Mas esse tipo de “disputa” é irrelevante do ponto
de vista de uma agenda positiva para o resto do planeta, ocupado em problemas
de insegurança, de desenvolvimento deficiente em vários continentes – com
pobreza disseminada em várias regiões – e as ameaças ambientais e de epidemias
globais ainda remanescentes ou até crescentes.
Os BRICs dariam uma enorme contribuição ao mundo se
pudessem apresentar agendas minimamente coincidentes sobre como resolver, ou
pelo menos encaminhar, alguns desses problemas mais urgentes.
Paulo Roberto de Almeida
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