Escritores e escrevinhadores do
Itamaraty:
Respostas a questionário enviado
a Paulo Roberto de Almeida
Respostas de Paulo Roberto de Almeida
a questionário enviado em 30/03/2016 por Aurea Domenech, escritora, artista e funcionária do Itamaraty, a propósito de uma reunião com "escritores" da Casa.
Nota
introdutória: Respondo voluntariamente às 20 simpáticas
perguntas do questionário abaixo transcrito, que me foram enviadas como
preparatórias à elaboração de uma monografia a respeito do tema, e como
possível proposta de realização de um congresso de “escritores” do Serviço
Exterior brasileiro, não na condição de “escritor”, o que eu não me considero ser, mas na de um
mero “escrevinhador”, como consignei no título deste trabalho. Escritores são
aquelas pessoas que fazem da escrita – e da ulterior publicação de seus
escritos – uma atividade constante, podendo servir até de ganha-pão, ou, mais
frequentemente, aquelas que escrevem pelo prazer da escrita, por uma motivação
interna que as leva a traduzir suas ideias e pensamentos, suas reflexões e sentimentos,
suas observações sobre a vida exterior e qualquer outra elaboração mental a
respeito da experiência vivida, ainda que alheia, em uma atividade constante,
regular, consciente e deliberada, de transposição de todos esses elementos numa
plataforma qualquer de comunicação, sob a forma de uma escrita compreensível à
maioria dos eventuais leitores.
No meu caso, não creio poder utilizar-me dessa
classificação, não apenas porque não faço da minha escrita – que aliás é
constante e regular – um meio de vida, mas também porque meus escritos são
motivados unicamente por um objetivo didático explícito, o de instruir os mais
jovens (e alguns mais velhos também), sobre o que aprendi na vida, lendo,
viajando, conversando com pessoas mais espertas, observando simplesmente o
funcionamento do mundo e seus problemas, com destaque para o Brasil, seu
processo de desenvolvimento, sua inserção internacional. Essa não é, portanto,
a atividade de um escritor, e sim a de um professor, aliás voluntário, pois a
condição é secundária à minha atividade principal de servidor do Serviço
Exterior brasileiro. Por isso, considero não poder abrigar-me sob o chapéu dos
escritores, daí minha preferência por essa outra categoria que os franceses
chamam de “scribouillard”, que corresponde exatamente à palavra escrevinhador
em Português.
1. Qual é o ponto fundamental no cotejo entre a
atividade diplomática e a produção literária e ensaística? A convivência entre
a cultura e as instituições do Estado nas sociedades ibero-americanas é
notória? Como isso se dá em nosso país?
PRA: A
atividade diplomática, em qualquer país, em qualquer época, constitui,
provavelmente, a mais intelectual, a mais “literária”, das profissões
associadas à burocracia de Estado, uma vez que congregando, recrutando e atraindo
pessoas já naturalmente dotadas de educação acima da média, com conhecimentos
igualmente mais elevados e diversificados do que o padrão normal dos burocratas
estatais. Essa atividade, ou profissão, também exige, impulsiona e estimula,
naturalmente, a arte da boa escrita, as virtudes da síntese, da análise
precisa, do equilíbrio de julgamento, da amplitude de visões sobre as mais
diversas nações do planeta, sobre a diversidade cultural e as riquezas
linguísticas que são dotações exibidas por praticamente todas as sociedades
organizadas do planeta.
Isso não quer dizer que todo diplomata será um
escritor, literário ou em outras áreas, mas significa que ele saberá pelo menos
escrever bem, o que já é meio caminho na direção de uma atividade literária ou
de análise de fatos e processos políticos e sociais. Tampouco creio que essa
convivência entre a cultura e uma instituição estatal como a diplomacia seja
mais distinguida nas sociedades ibero-americanas do que em quaisquer outras
sociedades civilizadas da contemporaneidade. Talvez os diplomatas e outros
membros do Serviço Exterior, sejam, nessas sociedades, mais do que em outras,
os representantes de uma elite ainda mais reduzida do que o próprio conceito de
elite, dadas as grandes distâncias culturais e a desigualdade social mais
acentuada nessas sociedades. Em todo caso, a corporação diplomática, de certa
forma, sempre faz parte de uma elite cultural, mesmo se seus membros, em países
de maior igualdade social sejam típicos representantes da classe média, e não
membros de uma reduzida elite social como pode ser o caso de algumas das
sociedades ibero-americanas. No Brasil, creio que o perfil da corporação
diplomática tendeu a se “democratizar” nas últimas décadas – ou seja, a ampliar
seu recrutamento em camadas típicas da classe média –, mas ainda assim, seus
membros pertencem quase que naturalmente a uma elite cultural, uma vez que os
requerimentos de ingresso na carreira são “anormalmente” elevados, o que tende
a selecionar pessoas já potencialmente “escritoras”, ou futuros membros
prováveis dessa confraria, se por acaso possuírem a vocação ou a vontade para
tal.
2. Como vê o antigo axioma de que o diplomata e os
demais servidores do Serviço Exterior são especialistas em generalidades? Estas
generalidades tirariam do foco os escritores se esses se entusiasmassem por
outros caminhos? O caminho do escritor é diverso do caminho do diplomata?
PRA: De
fato, na tradição diplomática profissional brasileira não existem, a priori,
especialidades, ou seja, o funcionário não é treinado para, e não se espera que
fique em, “nichos eternos”, podendo servir em diversas áreas do Serviço
Exterior ao longo da carreira. Isso não impede que alguns, motivados por suas
próprias “afinidades eletivas”, procurem, ou se dediquem, a certas áreas de
suas preferências pessoais: econômico, multilateralismo, bilateral,
administração, consular, etc. Mas, na maior parte das vezes, os diplomatas e
outros servidores são mesmo especialistas em generalidades, ou seja, podem
servir em áreas muito distintas entre si, no curto, no médio e no longo prazo.
Isso poderia, teoricamente, obstar a uma carreira de “escritor” em uma
determinada área, mas a literatura, tomada no sentido estrito, independe de
áreas de trabalho, pois sua inspiração é a experiência humana, em todas as suas
dimensões, o que pode ser feito em qualquer lugar em qualquer época.
Cabe no entanto observar que os caminhos e as
ocupações do escritor e do diplomata são necessariamente diversos. Este último,
tomado em sua dimensão própria, é um perfeito burocrata, preparando telegramas
e outros expedientes estritamente dentro de suas atribuições funcionais, nas
quais se concede, em princípio, pouco espaço para alguma atividade literária adicional.
O escritor, por sua vez, se também diplomata, o é, geralmente, nas horas vagas,
no recesso do lar, ou nos intervalos de trabalho, num universo que pode até
tomar a diplomacia como inspiração, mas que não deve a ela a motivação principal
para a escrita, que é sempre interior, não ditada por autoridades burocráticas
acima do “escritor diplomata”. Raramente um diplomata será promovido ou a ele
serão concedidos benefícios adicionais, ou de alguma forma compensatórios,
apenas por que se trata, supostamente, de um “escritor”. A diplomacia
profissional não espera e não exige que seus servidores se tornem quaisquer
outras coisas fora do ambiente próprio de trabalho, e não deveria recompensar
por “artes externas” quaisquer de seus membros e servidores, pois não foi para
isso que eles se prepararam, fizeram concurso e foram contratados expressamente
para o desempenho eficiente na burocracia do Estado. Isso basta ao Serviço:
qualquer outra atividade paralela corre por “conta e risco” do servidor, não
lhe sendo facultado valer-se dela, ou tomá-la como suporte e alavanca para
qualquer impulso na carreira e demanda por postos e funções.
3. Há na Literatura felicidade? Escreve-se melhor
quando se está feliz? A chave da Literatura é a experiência ou a ficção se faz
presente com maior relevo na sua literatura?
PRA: Difícil
responder, pois essa questão é essencialmente subjetiva. Quem escreve
literatura, nos moldes tradicionais, sendo diplomata, o faz necessariamente por
alguma necessidade interior, não por compulsão ou obrigação de trabalho. Se
supõe, então, que esse diplomata-escritor seja feliz ao ser realizar como
escritor, não para se distinguir como diplomata, onde essa dimensão pode passar
completamente ignorada.
A experiência vivida, ou ressentida interiormente,
sempre está na base da ficção, pois mesmo os temas mais bizarros, sem qualquer
conexão com a vida real, são sempre inspirados por determinadas leituras, por
obras de arte, por trabalhos de outros autores, por elementos diversos que vão
formando, como pequenos tijolos conceituais, a “matéria prima” da escrita. Literatura,
na maior parte das vezes, é sempre uma arte ficcional, do contrário seria
relato histórico, ou sociologia da relações humanas. Se supõe que a felicidade
que decorre do prazer da escrita, mas parece que também existem os escritores
que se entregam a essa arte, ou atividade, por alguma angústia qualquer,
4. Quando começou a escrever, quais eram as suas
expectativas e com que idade começou?
PRA: Escrevi
desde sempre, desde que comecei a tomar notas a propósito dos livros que lia na
biblioteca pública infantil, que frequentei desde muito cedo. Não tinha outra
expectativa, nessa fase precoce, senão aprender, ou seja, os resumos de
leituras eram notas para releitura e aprendizado mais fixo do que a memória
passageira. Devo dizer que as bibliotecas, sobretudo as da primeira infância,
tiveram um papel fundamental em minha formação intelectual, pois que vindo de
uma família sem formação educacional completa, e de um lar praticamente sem
livros, só me elevei na vida profissional, e nas atividades acadêmicas, que
pratico paralelamente, em função das leituras em biblioteca desde que aprendi a
ler na “tardia” idade de sete anos: desde então nunca mais parei.
Assim, comecei a aproveitar essas notas de
leituras, e de forma não surpreendente, meus primeiros escritos, alguns
publicados ainda adolescente, foram resenhas de livros, o que sempre fiz em
toda a minha vida. Depois, já universitário (entre os 18 e 25 anos, portanto),
comecei a escrever ensaios sociológicos e pequenos artigos de atualidade
política, vários publicados, inclusive sob pseudônimo durante o regime militar.
Não tinha outra expectativa senão a de participar do debate e de trabalhar em
favor de um projeto de país mais desenvolvido, mais igualitário, o que nessa
época, queria dizer socialista. Mais tarde, ao viajar para, e conhecer, os
socialismos reais, tornei-me simplesmente reformista, mais recentemente até
liberal e, num certo sentido, libertário.
Meus escritos da fase madura não são literatura, e
sim aborrecidamente sociológicos, ou seja, ensaios nas áreas de humanidades e
de ciências sociais, com uma inclinação mais forte, nas fases ulteriores, para
as relações econômicas internacionais e a história diplomática. Todos os meus trabalhos – originais e
publicados, ou seja, artigos, ensaios, entrevistas, e sobretudo livros e
capítulos de livros – estão listados cronologicamente em meu site (www.pralmeida.org, em
listas de publicados e originais), e grande parte encontra-se disponível no
próprio site, em meu blog (diplomatizzando.blogspot.com) e em plataformas
acadêmicas das quais sou membro, com destaque para Academia.edu (https://uniceub.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida) e para
Research Gate (https://www.researchgate.net/profile/Paulo_Almeida2).
5. Qual foi, de início, o seu tema favorito? Por quê?
PRA: Sempre
foi o Brasil, que é o meu tema exclusivo, predominante, essencial, permanente,
em todas as suas dimensões, sobretudo econômica e política. A razão é muito
simples: desde o início, minhas leituras foram dedicadas à história, depois à
política, e finalmente à economia, com um grande foco voltado para o próprio
Brasil. Ou seja, meus escritos não estão voltados para qualquer tema literário,
e confesso ter lido pouca literatura em minha vida. As obras caracterizadamente
“literárias” que pude percorrer o foram numa fase precoce, geralmente na etapa
adolescente e na primeira juventude. Depois, na fase adulta, na carreira
diplomática e na vida acadêmica, minhas leituras e escritos sempre foram em
torno de temas relacionados às questões e a problemas nas áreas apontadas, com
ênfase no desenvolvimento econômico do Brasil.
6. De que modo um encontro anual de escritores seria
algo interessante para os escritores da Casa de Rio Branco? Você tem alguma ideia
para enriquecer o evento?
PRA: Creio
que seria algo muito bem vindo, uma espécie de Pen Club dos diplomatas e
servidores do Itamaraty, embora eu mesmo não me inclua nesse clube. Como já
disse em minha introdução, não me considero escritor; sou apenas um
escrevinhador de coisas chatas, aborrecidas, que são os problemas que o Brasil
enfrenta para tornar-se verdadeiramente desenvolvido, com uma democracia de
qualidade, uma economia “normal” (pois considero a nossa totalmente
esquizofrênica), uma sociedade menos desigual (mas não igualitária, pois isso é
impossível e até indesejável).
Acredito, porém, que os verdadeiros escritores do
Itamaraty seriam muito poucos, ou seja, aqueles que escrevem de fato por alguma
compulsão interna, não por mandato externo. A atividade de escritor não é
compatível com a de redator de memorandos. Dizendo isso, excluo da categoria de
escritores a enorme maioria, na verdade a quase totalidade, daqueles que exibem
em seu currículo uma única obra (geralmente publicada pela própria Casa, ou seja,
a Funag), pois se trata de um trabalho obrigatório, feito no Instituto Rio
Branco ou para cumprir os requerimentos do Curso de Altos Estudos para fins de
promoção funcional.
Esses não são escritores, mas apenas burocratas que
se desempenham de uma obrigação, embora muitos exibam uma qualidade de escrita
comparável à de qualquer escritor mediano. Escritores são unicamente aqueles
que escrevem e publicam textos, em diversas categorias – romance, poesia,
história, ensaios de crítica, contos, ou mesmo crônicas dos eventos correntes –
que resultam de um desejo interno, pessoal, não motivado por qualquer
preocupação funcional, ou mesmo comercial, aqueles que fazem da escrita um
prazer, não uma obrigação. Não sei dizer quanto seriam, no Itamaraty, mas creio
que sejam proporcionalmente muito poucos.
7. Como a vida de viajante e exilado contribuiu para a
sua literatura? Crê que se não lhe fosse dada a ventura de “correr campos”, sua
literatura não seria tão rica?
PRA: Como
publico textos em diversos campos das ciências sociais, e não literatura
estrito senso, a vida de nômade e de “exilado” (primeiro a real, sob a ditadura
militar, depois a funcional, na vida diplomática), o “correr campos” foi
absolutamente essencial na tarefa de ver o Brasil inserido na região e no
mundo, comparar nossos problemas com os de outros países, examinar e conhecer
outros itinerários de desenvolvimento econômico, outras formas de organização social,
sistemas diversos de ordenamento político. Nunca teria escrito tanto, e creio
que de forma tão pertinente, se não tivesse sido exposto, desde muito cedo, e
muito tempo antes de ingressar na diplomacia, a essas experiências de viagens,
o que aliás faço constantemente, nos intervalos das atividades diplomáticas, em
quaisquer tempos e lugares, em todas as circunstâncias. Tampouco nunca teria me
dedicado tão intensamente à produção de artigos e livros se não fosse pelo gosto
do material histórico, ou seja, os fundamentos passados dos problemas da
atualidade, e se não fosse igualmente pelo gosto da atividade docente.
O nomadismo, diplomático ou não, sempre foi uma
característica da família, antes de tudo um traço pessoal de caráter de minha
mulher, Carmen Lícia Palazzo. Em quaisquer lugar onde residimos, em todos os
postos onde fui designado, tanto em nossas estadas no Brasil quanto nas viagens
de férias, nunca deixamos de estar constantemente na estrada, em geral de
carro, mas por quaisquer outros meios igualmente. Nos países setentrionais,
onde as facilidades de transportes e acomodações são maiores e melhores, quase
todo fim de semana saímos para conhecer novos lugares, num tipo de turismo basicamente
cultural e intelectual, com menos natureza, a não ser a passageira, de uma
cidade a outra. No hemisfério sul, onde as distâncias e as dificuldades são
maiores, as viagens são planejadas, mas também realizadas. Tudo isso também é
matéria prima, não necessariamente para escritos literários, mas para
exercícios comparativos com a situação e os problemas do próprio Brasil, e,
portanto, material para algum texto novo.
8. Um jornalista norte-americano afirmou, certa vez,
que todos os escritores criativos são boas pessoas. Você concorda com essa
ideia? Ele chegou a intitular o seu ensaio: “Seja sensato se não for escritor”.
No mesmo ensaio, ele diz que o escritor não aquilata realmente o que faz e que
desconhece a relevância de seu labor. O que pensa sobre isso?
PRA: Não
havia pensado nisso, mas acredito que ele tenha razão: todo ser dotado da
compulsão para a escrita, literária ou de outra dimensão, é necessariamente um
ser reflexivo, pensativo, leitor, observador, anotador. Geralmente é uma pessoa
de paz, com a qual se pode conversar animadamente e sempre aprender alguma
coisa nova: ela sempre terá uma observação inteligente a fazer sobre qualquer
questão da vida humana. Escritores são por natureza pessoas dotadas de vida
interior, mesmo que alguns sejam mais introspectivos, ou calados, do que
outros.
Não creio, por outro lado, que o escritor
desconheça a relevância de seu trabalho e por isso não concordo com o argumento
do jornalista: todos os que escrevem, ou quase todos, desejam ser lidos, e
apreciados, o que significa, ipso facto, uma atribuição de significância ao seu
trabalho de escritor, ou de escrevinhador, como é o meu caso. Todos nós, que
escrevemos por prazer, não por obrigação, ainda assim queremos mostrar ao mundo
o que produzimos. Seria frustrante escrever e engavetar, ainda que grande parte
do que escrevemos, escritores e escrevinhadores, permaneça mesmo no recesso do
lar, sem qualquer possibilidade de vir a público. A vida é assim.
Um traço essencial do escritor é que ele está
sempre pensando no que vai escrever, planejando seu próximo livro, seu ensaio
já concebido mentalmente, um conto que surgiu por inspiração de um lampejo
qualquer. Para isso, o verdadeiro escritor sempre carrega consigo algum objeto
de escrita, para anotar ideias, curiosidades, por vezes trechos inteiros de
textos que ele quer desenvolver uma vez sentado em sua mesa, com a pluma ou o
computador. Eu, por exemplo, que como disse não me considero escritor, carrego
sempre comigo, invariavelmente, uma caneta e um caderninho, tipo Moleskine,
aliás dois, quando estou vestido formalmente, um de bolso de camisa, tamanho
reduzido, e um médio, de bolso de paletó. Tenho dezenas desses cadernos, cheios
de anotações, por vezes trabalhos inteiros, outras vezes um simples endereço,
ou nome de algum livro que pretendo buscar e ler. Todo escritor faz, ou deve
fazer algo do gênero, mesmo quando apenas acumula mentalmente os textos que ele
ainda vai escrever.
9. Quais são as suas três maiores influências
literárias e de que forma marcaram a sua literatura?
PRA: Antes
de tudo e de todos, Monteiro Lobato, que li todo, ou suponho que quase todo,
primeiro a obra infantil, depois a obra adulta, com destaque, na primeira fase,
para a obra História do mundo para as
crianças, que realmente determinou o que sou, o que eu me tornei. Depois,
algumas grandes obras da literatura, entre as quais eu destacaria Dom Quixote, de Cervantes. Mas, de
resto, basicamente livros de história, de economia, de política sobre o Brasil,
o que não é propriamente uma influência literária, mas constitui o lado mais
relevante de minha carreira como “escrevinhador” nessas mesmas áreas: todos os
grandes nomes das ciências sociais do Brasil, e todos os livros de pesquisa
nessas mesmas áreas.
Na verdade, não posso realmente dizer que eu tenha
preferências literárias, ou autores aos quais eu seja devotado, pois leio a
todos, na maior parte do tempo com objetivos diretamente operacionais – os
livros de humanidades e ciências sociais – ou para fins apenas de prazer, e
aqui vale tudo, desde que seja de boa qualidade: novelas policiais, romances
históricos, livros de viagem, biografias, história virtual.
10.
Lembra-se do primeiro livro que
leu? Tornou a lê-lo depois? Costuma ler mais de uma vez o mesmo livro?
PRA: Não me
lembro de qual tenha sido: como eu frequentava a biblioteca infantil antes
mesmo de aprender a ler, a leitura inicial foi provavelmente feita em algum
livro infantil da primeira alfabetização. Depois que aprendi a ler, não mais
parei: li, não uma, mas diversas vezes, o História
do mundo para as crianças, na versão Monteiro Lobato de um livro americano.
Sim, costumo ler mais de uma vez os mesmos livros, inclusive porque faço
pesquisas sobre as obras de minha área de estudos, e faço anotações e resumos,
ou resenhas e transcrições desses livros. Sempre volto a certos livros para
fins de pesquisa ou detalhamento de algum assunto tratado em algum texto meu.
11.
Você tem algum método de trabalho
permanente, periódico ou não se preocupa com isso?
PRA: Meu
método é muito simples: ler tudo o que é humanamente possível de ler nas minhas
áreas de interesse, o que significa pouca literatura e excessivamente ciências
sociais em geral. Depois de ler, e simultaneamente, anotar, registrar,
transcrever, e fazer a partir daí uma base para os meus próprios escritos, eu
construo mentalmente meu próximo projeto, faço um esquema escrito, e depois me
coloco ao trabalho. É preciso registrar que, no meu tipo de atividade, que não
é puramente literária – ou seja, obras que se sustentam apenas em ideias, ou
argumentos virtuais – os textos elaborados com objetivos didáticos são sempre
escritos sobre outros escritos, ou ideias sobre ideias de outras pessoas,
pesquisadores de algum problema real, mais do que escritores literários.
12.
Dentre os seus autores
preferidos, cite três que mais lhe agradam.
PRA: Na
literatura, Dom Quixote, mas também gosto de policiais, do tipo Sherlock
Holmes, ou mais especificamente apócrifos de Sherlock, ou seja, obras com o
famoso detetive que não sejam de Conan Doyle, mas de imitadores, ou
“plagiadores”. Há porém esse traço especial que é o fato de buscar apócrifos
misturando Sherlock Holmes com personagens reais: já li dois com Karl Marx, um
com Freud, outro com Einstein, um outro com Oscar Wilde; eu mesmo tentei
escrever um Sherlock Holmes Contra Floriano Peixoto, mas nunca terminei a
história, provavelmente por falta de qualidades literárias ou de imaginação.
Sou, como disse, um escrevinhador de coisas chatas, economia, política e por aí
vai. Dos meus economistas historiadores, que leio intensamente, tenho predileção
por Niall Ferguson e David Landes, ou mesmo Charles Kindleberger.
13.
Há muita diferença entre o início
de sua carreira como escritor e a sua literatura atual?
PRA: Praticamente
nenhuma, pois 95% dos meus escritos são nesses terrenos chatos que eu já mencionei,
temas sem grande charme literário, ou quase nenhum. Mas mesmo nessa atividade
puramente “realista”, tenho uma inclinação por um tipo de escrita que se
aproxima um pouco da literatura, que é a de reler escritores clássicos com os
olhos no presente, isto é, “reviver” alguns grandes analistas do passado, para
ver como eles, se vivos fossem, refletiriam e escreveriam sobre os problemas de
nossa época. Já fiz isso com Marx e Engels, reescrevendo o Manifesto Comunista (adaptado para os tempos de globalização), com
Maquiavel, reescrevendo fielmente o Príncipe
(mas colocando o indivíduo no lugar do Estado), com Tocqueville, mandando-o
visitar recentemente o Brasil e a América do Sul, para refletir nossa a nossa
“democracia”, e tenho vários outros no pipeline, sempre com essa intenção de
reler grandes obras do passado com os olhos postos no presente. Mas, de resto,
meus textos iniciais em minhas áreas de concentração são basicamente similares
aos de agora, apenas que, décadas depois, posso fazê-lo com muito mais
conhecimento e pesquisa, do que no início, e numa visão certamente bem mais
liberal ou libertária do que aquela socialista do começo.
14.
O que mais influenciou a sua
obra? Lê mais do que escreve?
PRA: Minhas
“preocupações” de escrevinhador sempre foram as mesmas: tentar conhecer as origens
e fundamentos dos problemas humanos e sociais, a miséria, a pobreza, a desigualdade, as dificuldades para
se ter um sistema político “ideal”. Para conhecer é preciso ler, de tudo, e
sobretudo manter os olhos bem abertos, para observar tudo, sem viseiras mentais
ou ideológicas, conhecer o mundo como ele é, não como gostaríamos que fosse
(que, aliás, é a concepção de Maquiavel). Por isso mesmo, estou sempre lendo
muito mais do que escrevo: em primeiro lugar, informações, de todos os tipos,
das mais diversas fontes; depois material de pesquisa, ou seja, obras de outros
cientistas sociais ou historiadores e economistas, que são sempre
interpretações sobre fatos, sobre a matéria prima dos indicadores objetivos.
15.
Está escrevendo neste momento?
Sobre o que está escrevendo?
PRA: Estou
terminando o segundo volume de uma trilogia sobre a diplomacia econômica no
Brasil – da qual uma primeira já foi publicada, aliás em duas edições, sobre a Formação da Diplomacia Econômica no Brasil:
as relações econômicas internacionais no Império (Senac-SP, 2001 e 2005) –
e já preparando o terceiro volume, para o qual tenho muita coisa escrita ou
pesquisada. Também estou compondo um livro sobre os clássicos revisitados,
juntando tudo o que fiz nessa área e acrescentando mais alguns. No mais, tenho
vários livros de ensaios já preparados, que preciso revisar e publicar. Minha
lista de obras em preparação é muito mais extensa do que os livros publicados,
e pretendo continuar nessa atividade até onde a vista alcança, ou até quando
minhas forças o permitirem.
16.
De que maneira acha que poderia
contribuir para o Encontro Anual de Escritores sugerido nessa monografia da
qual esta entrevista faz parte?
PRA: Posso oferecer
um depoimento sobre meus métodos de escrevinhador e de pesquisador, e também
sobre como é importante que diplomatas aproveitem sua experiência de nômades
profissionais, de pessoas dotadas em princípio de uma boa escrita, para
publicarem suas observações sobre outros países, para tornar o Brasil um país
menos introspectivo, ou voltado para si mesmo.
17.
Durante as suas missões no
exterior travou relações ou conhecimentos com escritores locais?
PRA: Não
tanto com escritores, no sentido clássico da palavra, quanto com pesquisadores
de minhas áreas de trabalho, pois estou sempre em contato com acadêmicos ou
pesquisadores independentes. Já dei palestras e aulas em muitas universidades
da Europa e das Américas.
18.
A carreira diplomática ou outra
qualquer do Serviço Exterior é estimulante para o processo criativo de um
escritor?
PRA: Certamente:
ela já é feita, mais de 50% do tempo, de escrita, ainda que de aborrecidos
papéis burocráticos, mas que serão melhor lidos e apreciados se escritos numa
linguagem elegante e bonita, ainda que concisa, objetiva ou quase telegráfica. Por outro lado, a
vivência, a exposição e o contato direto com outros mundos e sociedades nos
abre os olhos para a rica diversidade de experiências humanas, o que deveria
incitar todos aqueles que vivem com livros, nos livros, para os livros (como
eu, por exemplo).
19.
De que maneira, a seu ver,
poderia se dar o encontro literário ora em projeto?
PRA: Talvez
a Funag, ou mesmo a ADB, pudesse tomar a iniciativa de convocar um pequeno
grupo de trabalho para planejar um primeiro encontro exploratório, e depois, se
possível, um verdadeiro seminário de escritores e “escrevinhadores” (não
aqueles que fizeram trabalhos por obrigação), para a partir daí criar algo como
eu sugeri, uma espécie de Pen Club Diplomático, aberto inclusive aos estrangeiros
vivendo no Brasil. Se houver intenção nesse sentido, posso colaborar
voluntariamente com a iniciativa.
20.
De que necessita um escritor?
PRA: Os puramente
literários apenas de imaginação, e também alguma força de vontade, para passar
horas e horas, que poderiam ser de um lazer mais agradável, na dura labuta da
escrita. Não precisa escrever muito a cada vez, mas deve-se escrever bem.
Graciliano Ramos dizia que a arte de escrever é a de cortar palavras, de
reescrever, de corrigir e de escrever novamente.
Já aqueles que, como eu, são “escrevinhadores”,
precisam de muita pesquisa, muita compilação de dados, muito trabalho acadêmico
sério, para poder colocar no papel alguma contribuição significativa em áreas
que são imediatamente submetidas à crítica dos pares. Na literatura, a crítica
se prende bem mais ao estilo, à narrativa, ao enredo, do que à “verdade” dos
fatos, que é essencial no trabalho acadêmico.
Em resumo, um escritor precisa de vocação, seja num
terreno ou noutro, e vocação não é apenas algo inato, próprio da personalidade,
também pode ser adquirida com a persistência, com a teimosia, com a insistência
de escrever, e de escrever bem, de forma clara, numa linguagem formalmente
correta, ou mesmo inovadora, mas elegante e atraente. Ele precisa ser honesto,
consigo mesmo, no caso dos literários, e com os fatos, no caso dos
“escrevinhadores” de temas sociais e políticos.
Um escritor é, antes de tudo, um ser que pensa, e
que depois coloca no papel suas ideias de forma mais ou menos organizada.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de abril de 2016.
Revisto em 30/04/2016.
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